MUTAÇÕES COGNITIVAS IMPLICADAS NO ATUAL CENÁRIO SOCIOTÉCNICO DE DIGITALIZAÇÃO

Leonardo Dias Avanço[1]

Universidade Federal de Santa Maria

ldavanco87@gmail.com

Adriana Soares Pereira[2]

Universidade Federal de Santa Maria

adriana.pereira@ufsm.br

 

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Resumo

O tema central deste artigo consiste em um conjunto de transformações cognitivas implicadas no cenário sociotécnico de digitalização. O objetivo foi tensionar quatro visões distintas a respeito do ser humano imerso nas redes digitais, respectivamente as abordagens de Pierre Lévy, Domenico De Masi, Marc Presnky e Byung-Chul Han. Do ponto de vista metodológico, adotou-se o enfoque de uma pesquisa teórico-bibliográfica a partir de uma análise comparativa entre as referidas abordagens. A conclusão atingida foi o reconhecimento de que cada abordagem pode trazer determinadas noções corretas do ponto de vista do entendimento. Contudo, ressalta-se que, com base em outros aspectos, foram identificados processos de idealização em cada uma das abordagens.

Palavras-chave: era digital; homo digitalis;  mídia;  mídia digital; formação humana.

COGNITIVE MUTATIONS IMPLICATED IN THE CURRENT SOCIO-TECHNICAL SCENARIO OF DIGITALIZATION

Abstract

The central theme of this article comprises a set of cognitive transformations implied in the sociotechnical scenario of digitalization. The objective was to tension four distinct views regarding humans immersed in digital media, respectively the approaches of Pierre Lévy, Domenico De Masi, Marc Presnky and Byung-Chul Han. From a methodological standpoint, we have adopted the focus of a theoretical-bibliographical research with a comparative analysis between the aforementioned approaches. The main conclusion of the study was recognizing that each approach can bring certain correct notions with regard to comprehension. We highlight, that in other aspects, however, certain processes of idealization were identified in each of the approaches.

Keywords: digital era;  homo digitalis; media; digital media; human formation.

 

MUTACIONES COGNITIVAS IMPLICADAS EN EL ACTUAL ESCENARIO SOCIOTÉCNICO DE DIGITALIZACIÓN

Resumen

El tema central de este artigo comprende un conjunto de transformaciones cognitivas implicadas en el escenario sociotécnico de la digitalización. El objetivo fue tensionar cuatro visiones distintas respecto a los seres humanos inmersos en los medios digitales, respectivamente las aproximaciones de Pierre Lévy, Domenico De Masi, Marc Prensky y Byung-Chul Han. Desde un punto de vista metodológico, se adoptó el enfoque de una investigación teórico-bibliográfica con un análisis comparativo entre las aproximaciones mencionadas. La principal conclusión del estudio fue reconocer que cada una de ellas puede aportar ciertas nociones correctas en lo que concierne a la comprensión. Destacamos que, en otros aspectos, sin embargo, se identificaron ciertos procesos de idealización en cada una de las aproximaciones.

Palabras clave: era digital; homo digitalis; médios; medios digitales; formación humana

1 INTRODUÇÃO

Em 2001, quando escreveu a primeira edição de seu livro Aprendizagem baseada em jogos digitais, Prensky (2012) teorizava sobre uma nova geração de seres humanos denominada “nativos digitais”. O autor, que ainda não refletia sobre a posterior chegada dos smartphones, refere-se a “mudanças cognitivas” fundamentais “causadas pelas novas tecnologias e mídias digitais”, que teriam conduzido “a uma grande variedade de novas necessidades e preferências por parte da geração mais jovem, especialmente na área da aprendizagem, embora não se limite a ela”. Um resultado dessas mudanças seria “uma descontinuidade enorme, nunca antes vivida na história do mundo”, descontinuidade que se manifestaria em uma diferença abissal nos estilos de vida de pais e filhos que experimentaram de maneiras diferentes o nascimento das tecnologias digitais. Citando o clássico War and Peace in the Global Village, de Marshall McLuhan, o autor afirma que este último compreendeu muito bem essa descontinuidade, ainda que houvesse falecido em 1980. Na referida obra, o autor lembra que existiriam, na história humana, uma dor e uma tristeza decorrentes de uma nova tecnologia, dor e tristeza essas que seriam vividas por apenas dois grupos, a saber: “os pertencentes à tecnologia antiga e os que se encontram no meio-termo –, não se aplicando aos que cresceram com ela”. Enquanto os pertencentes à tecnologia antiga “(ele designa as pessoas que cresceram em um mundo dominado pelos materiais impressos como sendo membros desse grupo)” buscam se afastar da confusão do hiperestímulo adicional, experimentando às vezes a vontade de retornar à reclusão do mundo em que viviam, o segundo grupo, o do meio-termo, “tendo crescido com cada pé em um mundo tecnológico diferente, costumam estar extremamente desorientados e depressivos”. Por outro lado, para o autor, o grupo dos que cresceram imersos no novo cenário sociotécnico estaria “confortável” com a tecnologia, “não conhecendo outra forma de vida” e se sentindo mesmo “estimulados pelas possibilidades [de aprendizagem e de desenvolvimento humano] dela advindas” (Prensky, 2012, p. 65).

Por seu turno, no prefácio de sua obra No enxame: perspectivas do digital, publicada pela primeira vez em 2013, Han (2018) não apresenta uma perspectiva otimista por parte da inserção da nova geração no emergente cenário sociotécnico, conquanto concorde que, de fato, mutações cognitivas estejam acontecendo neste exato momento. Também citando Marshall McLuhan, o autor afirma que, “em vista da rápida ascensão da mídia eletrônica”, em 1964, o referido teórico das mídias afirmou: “a técnica da eletricidade está [...] em meio a nós e nós somos zonzos, surdos, cegos e mudos em seu embate com a técnica de Gutenberg” (McLuhan apud Han, 2018, pp. 9-10). Com relação à mídia digital, afirma Han (2018), estaria ocorrendo algo similar: “somos desprogramados por meio dessa nova mídia, sem que possamos compreender inteiramente essa mudança radical de paradigma”. Além disso, arrastar-nos-íamos “atrás da mídia digital que, aquém da decisão consciente, transforma decisivamente nosso comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso pensamento, nossa vida em conjunto”. Essa transformação nos embriagaria, “sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez”, de modo que “essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual” (Han, 2018, p. 10).

Ora, compreendidas concepções teóricas aparentemente opostas a respeito da era digital, a problemática à qual se remete este artigo diz respeito aos seguintes questionamentos: como, na contemporaneidade, podemos caracterizar em termos gerais o ser humano que imerge nas redes digitais? Melhor dizendo, quais são os traços característicos essenciais do denominado homo digitalis? Estaríamos, de fato, rumando para uma sociedade em que crescem uma cegueira e estupidez inauditas em nenhum outro momento da história humana, ou para uma sociedade que apresenta novas possibilidades de aprendizagem e de desenvolvimento humano? As visões aqui apresentadas se contrapõem radicalmente ou podem se complementar?

Partindo de uma análise comparativa que busca desbravar novos sentidos, este artigo estabelece por objetivo tensionar quatro visões a respeito do homo digitalis, buscando reconhecer o que cada uma pode trazer de correto do ponto de vista do entendimento e onde cada uma esbarra no que concerne a processos de idealização. Para tanto, analisamos aqui concepções teóricas dos seguintes autores: Pierre Lévy (2010), Domenico De Masi (2019), Marc Prensky (2012) e Byung-Chul Han (2018). Encerrando desta feita esta introdução, podemos agora focar nossa análise sobre as referidas mutações cognitivas implicadas no processo de alteração do universo sociotécnico no qual estamos inseridos.

 

2 MUTAÇÕES COGNITIVAS E O ATUAL PROCESSO SOCIOTÉCNICO DE DIGITALIZAÇÃO

2.1 A INTELIGÊNCIA COLETIVA NA CIBERCULTURA: A VISÃO DE PIERRE LÉVY

Comecemos nossa análise apreciando o modo como Lévy (2010) sinalizou o papel da crítica na compreensão dos processos de desenvolvimento da cibercultura. Em sua obra, publicada pela primeira vez 1997, afirma-se que a crítica à cibercultura, na contemporaneidade, haveria frequentemente desempenhado um papel conservador, que estaria mesmo embotando a percepção de fenômenos próprios do atual cenário sociotécnico. O autor não nega o papel fundamental da crítica em si mesma, mas não deixa de realçar que determinadas críticas cumprem uma função contraproducente em certos sentidos. Nessa direção, diz o autor, “uma crítica por vezes mal fundamentada e frequentemente abusiva da técnica inibe o envolvimento de cidadãos, criadores, poderes públicos e empreendedores em procedimentos favoráveis ao progresso humano”. Essa inibição, segundo o autor, “infelizmente” prepara o terreno para que “projetos que visam apenas ao lucro e ao poder” possam avançar, uma vez que tais projetos “não se deixam restringir por nenhuma crítica intelectual, social ou cultural” (Lévy, 2010, p. 217).

Não obstante, posicionando-se como intelectual de seu tempo, Lévy (2010) afirma que, em face da acelerada ascensão de um fenômeno desestabilizador de nível global, “que coloca novamente em questão várias posições adquiridas, hábitos e representações”, sua função enquanto pensador “não é ir no sentido da corrente mais forte e instigar as angústias e o ressentimento das pessoas ou do público”. Essa não seria aparentemente, diz o autor, a opção escolhida por outros intelectuais “que se dizem ‘críticos’”. Considerando a “lucidez” como indispensável ao pensamento, o autor declara que tal qualidade nos “impõe o reconhecimento de que a emergência da cibercultura é um fenômeno ao mesmo tempo irreversível e parcialmente indeterminado”. Assim sendo, ao invés de fomentar o medo insistindo sobre “aspectos minoritários (a cibercriminalidade, por exemplo), parciais (o ciberespaço a serviço da globalização capitalista [...]) ou malcompreendidos (o virtual supostamente substitui o real”), prefere-se realçar por sua vez “as coisas qualitativamente novas que o movimento da cibercultura faz emergir, bem como as oportunidades que ele oferece ao desenvolvimento humano” (Lévy, 2010, p. 217-218).

Lévy (2010) estava ciente de que a cibercultura não constituía apenas um campo de oportunidades ao desenvolvimento humano, uma vez que reconheceu ela poderia abranger também tendências: [1] “de isolamento e de sobrecarga cognitiva (estresse pela comunicação e pelo trabalho diante da tela)”; [2] “de dependência (vícios na navegação ou em jogos em mudos virtuais)”; [3] “de dominação (reforço dos centros de decisão e de controle, domínio quase monopolista de algumas potências econômicas sobre importantes funções da rede etc.)”; [4] “de exploração (em alguns casos de teletrabalho vigiado ou de deslocalização de atividades no terceiro mundo)”; [5] “e mesmo de bobagem coletiva (rumores, conformismo em rede ou em comunidades virtuais, acúmulo de dados sem qualquer informação, ‘televisão interativa’)”. Contudo, haveria tais oportunidades de desenvolvimento humano à medida que a cibercultura também propiciaria condições de desenvolvimento daquilo que o autor denominou aprimoramento da “inteligência coletiva” (Lévy, 2010, p. 29-30).

 

Precisamente, o ideal mobilizador da informática não é mais a inteligência artificial (tornar uma máquina tão inteligente quanto, talvez mais inteligente que um homem), mas sim a inteligência coletiva, a saber, a valorização, a utilização otimizada e a criação de sinergia entre as competências, as imaginações e as energias intelectuais, qualquer que seja sua diversidade qualitativa e onde quer que esta se situe. Esse ideal da inteligência coletiva passa, evidentemente, pela disponibilização da memória, da imaginação e da experiência, por uma prática banalizada de troca de conhecimentos, por novas formas de organização e coordenação flexíveis e em tempo real. Se as novas técnicas da comunicação favorecem o funcionamento dos grupos humanos em inteligência coletiva, devemos repetir que não o determinam automaticamente. A defesa de poderes exclusivos, da rigidez institucional, a inércia das mentalidades e das culturas podem, evidentemente, levar a usos sociais das novas tecnologias que sejam muito menos positivos de acordo com critérios humanistas (Lévy, 2010, p. 169-170).

 

No capítulo em que elabora uma crítica à chamada crítica da dominação, Lévy (2010) declara que “é verdade que a rede tem tendência a reforçar ainda mais os centros atuais de potência científica, militar e financeira”, assim como afirma que “é certo que o ‘cyberbusisness’ deve conhecer uma expansão vertiginosa nos próximos anos”. Porém, acrescentou, ainda assim, não deveríamos fazer como muitas vezes o faz a crítica, isto é, “reduzir o advento do novo espaço de comunicação à aceleração da globalização econômica, à acentuação das dominações tradicionais, nem mesmo ao surgimento de formas inéditas de poder e de exploração”. Isso porque, diz o autor, o ciberespaço pode outrossim ser posto a serviço do desenvolvimento regional ou individual, “usado para a participação em processos emancipadores e abertos de inteligência coletiva”. Na visão do autor, além disso, essas duas visões não são necessariamente excludentes, pois “todo o dinamismo da cibercultura está relacionado ao entrelaçamento e à manutenção de uma verdadeira dialética da utopia e dos negócios” (Lévy, 2010, p. 227).

Para além de ser um movimento exclusivamente fomentado pelo mercado, de acordo com Lévy (2010), “a cibercultura é propagada por um movimento social muito amplo que anuncia e acarreta uma evolução profunda da civilização”. Em sua visão, o papel do pensamento crítico sobre a cibercultura deveria ser redimensionado, isto é, ele deveria intervir sobre a orientação e as modalidades de desenvolvimento dessa referida evolução civilizacional, indicando suas possibilidades positivas. Assim sendo, a “crítica progressista” poderia fazer o esforço de trazer à tona as dimensões mais originais das evoluções em andamento. Com essa postura, a crítica auxiliaria a evitar que ciberespaço reproduza tão-somente o “midiático em maior escala ou o puro e simples advento do supermercado planetário on-line” (Lévy, 2010, p. 235).

Como se pode notar, a partir dessa leitura do texto de Lévy (2010), o homo digitalis não seria determinado por uma infraestrutura tecnocrática que o domina absolutamente, mas ele não deixa de ser condicionado, por sua vez, pelas novas condições socioculturais moldadas pelo tecnocosmos ciberespacial. Esse condicionamento poderia repercutir, na visão do autor, em “dominação” e “exploração”, mas de maneira relativa. Isso porque tal condicionamento também criaria oportunidades de desenvolvimento pessoal e social e, por essa razão, se estivesse bem instrumentalizado e soubesse aplicar lucidez e discernimento em suas tecno-práticas, o homo digitalis poderia se beneficiar da nova complexidade engendrada por essas novas mídias, bem como poderia trazer benefícios para seus grupos de proximidade ou para a própria espécie humana. As mutações cognitivas implicadas no processo de alteração do cenário sociotécnico, portanto, teriam um potencial positivo, ainda que a realidade atual, em termos de generalização, não confirme essa utopia.

Han (2018), por sua vez, não discordaria de Lévy (2010) quanto à dimensão desestabilizadora da cibercultura. No entanto, sua visão crítica é mais radical e pessimista em relação às consequências supostamente benéficas das mídias digitais. Como vimos na introdução deste artigo, para Han (2018), as mídias digitais não estariam apenas nos desprogramando, como também estariam engendrando uma crise que se caracteriza por um estado generalizado de cegueira e estupidez. A crítica de Han (2018) pode engendrar uma angústia e um ressentimento que aparentemente não levam em conta o caráter irreversível e parcialmente indeterminado das novas evoluções técnicas, mas ela não deixa de levantar questões que nos colocam em uma posição de distanciamento propício ao entendimento de atuais dinâmicas da cultura pós-moderna. Assim sendo, o homo digitalis delineado por Han (2018) assume traços decisivamente menos elogiáveis, pois sua abordagem dos fenômenos pertinentes à era digital é outra e distinta daquela de Lévy (2010). Ora, Han (2018) não concordaria que as mídias digitais estão nos conduzindo a uma evolução civilizacional profunda. Mas deixemos para analisar a teoria de Han (2018) mais adiante. Por agora, vejamos como De Masi (2018) se manifesta sobre as mutações cognitivas concernentes às alterações do cenário sociotécnico contemporâneo, uma vez que o autor também se coloca em uma posição de intelectual progressista que pensa sobre as consequências do uso das novas tecnologias.

 

2.2 ANALÓGICOS E DIGITAIS: A VISÃO DE DOMENICO DE MASI

De Masi (2019) circunscreveu seu conceito de indivíduos digitais, que aqui poderíamos denominar homo digitalis, com fundamento em uma análise sociológica a respeito de efeitos da era digital sobre os comportamentos, os hábitos, as atitudes, as habilidades, as inclinações e os estados de espírito de uma geração de jovens que se familiarizam com o mundo informatizado. Nesse sentido, o autor não estava preocupado com efeitos do uso generalizado dos smartphones e demais dispositivos conectados à internet e ao ciberespaço, mas sim com a descrição de uma categoria geracional em ascensão não apenas no hemisfério norte do Ocidente como também em países emergentes e que tem participado crescentemente dos processos de digitalização e virtualização da economia.

Em seu livro-entrevista intitulado O mundo ainda é jovem: conversas sobre o futuro próximo, De Masi (2019) responde à questão de Palieri sobre o significado antropológico de analógico e digital nos seguintes termos: “a definição se deve a Nicholas Negroponte, um dos primeiros a divulgar o conceito de digitalidade”. Em 1995, o referido autor publica sua obra A vida digital, a partir da qual, segundo De Masi (2019), “explica de modo muito simples que tudo que é analógico trata, manipula, transporta, importa e exporta átomos, isto é, matéria, enquanto tudo que é digital elabora, importa, exporta, cria e destrói bits”. A partir dessa obra de Negroponte, afirma De Masi (2019), começa-se a tratar da digitalização e a compreender mais precisamente “a diferença entre transportar uma notícia e transportar um livro, um automóvel ou uma geladeira” (De Masi, 2019, p. 80-81). Esse é o pressuposto de base para a análise e descrição de De Masi (2019) a respeito dos indivíduos digitais e dos indivíduos analógicos, pressuposto o qual é, conforme veremos, criticado por Lévy (2010).

Mais à frente, a entrevistadora indaga se “ser digital” significa tão-somente saber usar o computador, ao que De Masi (2019) responde: em uma primeira etapa, a diferença tinha a ver com “a familiaridade com a informática, ou seja, a capacidade de elaborar e assimilar apenas átomos ou, ao contrário, apenas bits”. Posteriormente, todavia, ao redor disso se acrescentaram uma série de comportamentos, atitudes, sentimentos e emoções. Como exemplo histórico de um caso relativamente similar, o autor cita a mudança da carroça para o automóvel: “não muda só o veículo, mas se apropria do conceito de velocidade, do conceito de mecânico, e assim por diante”. Assim sendo, de maneira gradual, diz o autor, na órbita da familiaridade ou não com o mundo informatizado, vem-se desenvolvendo “uma série de inclinações, atributos, habilidades”, de modo que, atualmente, “o analógico e o digital são sujeitos com culturas cada vez mais radicalmente diferentes”. O autor ainda cita outro exemplo, o da eletricidade, e afirma que uma transformação desse tipo já haveria ocorrido e, no entanto, “levou cerca de 70 anos para se afirmar e se difundir” (De Masi, 2019, p. 81).

Referindo-se à progressiva velocidade dos processos de digitalização, De Masi (2019) declara que os ritmos das mudanças têm sido cada vez mais acelerados. Diferentemente de Han (2018), De Masi (2019) não é um crítico desse processo de aceleração. Por um lado, ele afirma, por mais lento que seja o avanço da informatização na esfera pública, bem como por mais dura que seja “a resistência do mundo impresso”, por outro lado, “bilhões de pessoas já levam um celular no bolso e bilhões de objetos já funcionam graças a um microprocessador”. O autor acrescenta ainda que, em um ritmo também inexorável, mas de maneira um pouco mais lenta, “avança a mudança de mentalidade induzida pela digitalização” (De Masi, 2019, p. 83-84).

Mais à frente, ainda se referindo à velocidade da digitalização, De Masi (2019) assinalou que, se, por um lado, “a difusão do automóvel exigiu processos lentos e complicados, com a instalação de postos de gasolina, garagens e oficinas mecânicas”, por outro lado, a ampla difusão de tudo o que é digital ocorre com grande aceleração, “porque se vale de computadores cada vez mais miniaturizados, da nuvem, do espaço, de satélites”. Do ponto de vista da infraestrutura necessária para a aceleração da expansão digital, reconheceu-se que, “se para levar eletricidade da central até a sua casa eram necessárias centenas de postes e quilômetros de fios, agora basta um satélite que alcança bilhões de pessoas num piscar de olhos”. Seria dessa forma inclusive que nasce o conceito de “tempo real”, desconhecido de nossos avôs (De Masi, 2019, p. 87).

Do ponto de vista antropo-psicológico, De Masi (2019, p. 87) afirma que, “quando digo que alguém é digital ou analógico, não quero apenas dizer que usa ou não usa o computador, mas também que se depila ou não se depila, que tende a viver mais à noite ou durante o dia, que respeita ou não a pontualidade”. Relativamente aos yuppies, afirma De Masi (2019), os digitais atualmente “tendem a dar menos importância ao dinheiro e à carreira, mesmo que em seu imaginário estejam os rankings da Forbes, a riqueza fulminante de Mark Zuckerberg e de toda a economia digital”. Além disso, o consumo também constituiria um critério de distinção, pois os digitais não seriam obsessivos e compulsivos, ao passo que “Bill Gates e Jeff Bezos andam de jeans azul”. De um modo geral, declara o autor, “todos os digitais cuidam do próprio corpo sem paramentá-lo de modo vistoso e caro”, ao passo que “tendem a ser menos pessimistas que os analógicos”. Além disso, acrescenta o autor, “acreditam no futuro e confiam na longevidade”, havendo nascido em um “mundo no qual a vida já tem como parâmetro os 90 anos de idade” (De Masi, 2019, p. 89-90).

Além disso, de acordo com De Masi (2019), os chamados digitais, predominantemente, aceitariam ou teriam propensão a aceitar com mais facilidade “a diversidade, a multirracialidade, a interculturalidade”, ainda que não façam aderência cega a ideologias. Eles tenderiam ainda “a várias formas de secularização”, não sendo mais “tão influenciados pela fé em algo além” e temendo mais o aquecimento global do que o inferno. Por essa razão, os digitais também seriam “sensíveis à ecologia e à sustentabilidade”, enquanto, do ponto de vista do trabalho, “não fazem muita distinção entre dias úteis e feriados oficiais”. Ainda desse ponto de vista, enquanto os analógicos, vinculados à era industrial, fariam uma distinção mais nítida e rígida entre tempos livre, de trabalho e de descanso, os digitais, por sua vez, ligados a uma era pós-industrial, não fariam “muita distinção entre as atividades de estudo, de trabalho e de lazer”, sendo propensos a colocar em prática o conceito que o sociólogo cunhou em outra obra: o “ócio criativo” (De Masi, 2000). De modo distinto de seus pais e avôs, afirma o autor, os jovens digitais também não desenvolveriam uma atitude de amor incondicional ao trabalho, visto que não o considerariam “como fator central da própria existência” e não lhe atribuiriam “significados carregados de sacrifício, dever, orgulho”, dando a ele a importância mais ou menos que atribuem ao tempo livre. Seriam também frequentemente acostumados com o trabalho precário, havendo-se habituado “a combinar períodos de trabalho ocasional com fases de estudo, viagem, tempo com a família e com os amigos” (De Masi, 2019, p. 92-93).

Enquanto os analógicos, segundo De Masi (2019, p. 97), fariam parte de uma geração que está em vias de extinção por razões demográficas, os digitais, por seu turno, viriam a substituir os analógicos em um futuro próximo, fazendo desaparecer os problemas da sociedade industrial e contraindo novos problemas “consubstanciais ao mundo virtual”. Como se pôde notar, De Masi (2019) parte em suas considerações dos pressupostos estabelecidos por Negroponte, sobre os quais nos referimos no início deste tópico. Lévy (2010) também se refere à obra de Negroponte, mas em um contexto de crítica à chamada crítica da substituição.

Nesse contexto, afirma Lévy (2010), a hipótese da substituição simples e pura “contradiz o conjunto de estudos empíricos e das estatísticas disponíveis”. O autor pontua que “é triste” notar que as obras de pensadores renomados, que flertam com um pessimismo radical, tenham gravitado sobre um “fantasma que a simples observação daquilo que nos cerca mostra ser irremediavelmente falso”. Em uma linha similar de pensamento, referindo-se a Negroponte, afirma-se que não mais um “profeta do mau agouro, mas um sorridente especialista do marketing e da pesquisa hi tech” sinaliza que está havendo uma passagem ou uma espécie de substituição “dos átomos aos bits”. Em outras palavras, uma marca do mundo contemporâneo seria supostamente uma substituição “da matéria pela informação, ou do real pelo virtual”. Para refutar essa tese, de um ponto de vista econômico, apesar da evolução da era digital, bastaria constatar que, nos últimos anos, “o comércio internacional não para de aumentar em tonelagem (e, portanto, em átomos!)”. Assim sendo, o autor declara que concordaria com Negroponte se ele “tivesse defendido que o controle das informações ou das competências estratégicas, ou a capacidade de processar e de difundir eficazmente os dados digitais, governa atualmente a produção e a distribuição dos produtos materiais”. Contudo, não é isso que Negroponte mais exatamente defende, de modo que Lévy considera a “passagem” dos átomos aos bits uma simplificação absurda (Lévy, 2010, p. 220-221).

Veremos, ademais, que o conceito de homo digitalis de Han (2018) é consideravelmente mais amplo do que o exposto neste tópico, pois não se restringe a uma categoria geracional, mas à própria espécie humana inserida em novos costumes decorrentes de usos indiscriminados da tecnologia digital interconectada. A análise de De Masi (2019), além disso, apresenta aspectos que foram descritos como avanços civilizacionais, repercutindo um certo otimismo, conquanto também tenha indiretamente apontado alguns dilemas e problemas próprios da sociedade pós-industrial. Com efeito, ela é carregada de uma relativa ambiguidade que inere de uma posição que se preocupa em pôr em relevo aspectos benéficos e prejudiciais. Não por acaso De Masi (2019) sugere uma síntese entre analógicos e digitais para construir respostas mais consistentes a problemas contemporâneos.

Compreendida a teoria de De Masi (2019) a respeito do “homo digitalis” sobretudo no que se refere à “mudança de mentalidade” atrelada aos processos de digitalização, vejamos agora como um outro autor otimista, Prensky (2012), manifesta-se sobre a questão das mutações cognitivas pelas quais passam as pessoas inseridas nos processos de alteração do atual cenário sociotécnico.

 

2.3 OS NATIVOS DIGITAIS: A VISÃO DE MARC PRENSKY

Na introdução deste artigo, no momento em que desenvolvíamos a descrição do contexto no qual se insere a problemática que estamos abordando, citamos brevemente a concepção de Prensky (2012) a respeito da nova geração de jovens que cresceram imersos no universo digital. Pudemos notar que o autor considerava, de modo similar à De Masi (2019), uma radical diferença entre a referida geração e as gerações dos chamados analógicos, diferença que se manifestaria, por parte dos digitais, em mutações cognitivas substanciais decorrentes da imersão mesma no referido universo. Essas mutações teriam consequências para os programas de treinamento e de ensino que não se reinventassem, pois elas alterariam a forma fundamental como os jovens aprendem, acostumados que estariam a um “mundo da velocidade twitch”, mas não apenas isso. A novas formas como os jovens aprendem, em sua visão, seriam marcadas por uma série de oportunidades de desenvolvimento humano, ainda que também pudessem esbarrar em dilemas pós-modernos.

Ora, para Prensky (2012), as crianças que se desenvolveram em meio ao crescimento de uso de videogames “vem ajustando ou programando o cérebro para a velocidade, a interatividade e outros fatores dos jogos, assim como o cérebro dos baby boomers foi programado para acomodar a televisão”. Mais à frente, o autor afirma que, atualmente, “nossos filhos estão treinando o cérebro com furor para pensar de maneiras novas, muitas das quais [...] são antagônicas às maneiras de pensar mais antigas”. Esse seria, na visão do autor, “um dos principais pontos de tensão na raiz de muitos problemas de ensino e treinamento de hoje” (Prensky, 2012, p. 70-71). A esse respeito, o autor cita Peter Moore, que afirma o seguinte: “processos de pensamento lineares que dominam os sistemas educacionais podem agora, de fato, retardar a aprendizagem para o cérebro desenvolvido por meio dos processos computacionais de jogos e de navegação na internet” (Moore, 1997 apud Prensky, 2012, p. 71). Por essa razão, Prensky (2012, p. 74), após haver citado outros estudos, declarou que “está claro que atualmente temos uma nova geração com uma combinação de habilidades cognitivas bem diferente da de seus antecessores – a geração dos jogos”.

As gerações dos jogos – outros preferem usar termos N-gen [de net] (geração internet) ou D-gen [de digital] (geração digital) – são falantes nativos da linguagem digital dos computadores, videogames e da internet. Aqueles de nós que não nasceram nesse universo, mas que adquiriram, pelo menos em algum momento da vida, certo fascínio pelas novas tecnologias, tendo adotado muitos ou a maior parte de seus aspectos, são e sempre serão os “imigrantes digitais” quando comparados a eles. (Estou em dívida com Sylvia Kowal da Nortel por estimular essas ideias.) E, assim como todos os imigrantes, à medida que aprendemos – alguns mais do que outros – a nos adaptar a novos ambientes, sempre mostraremos certo grau de “sotaque”, isto é, sempre teremos um pé no passado. O sotaque do imigrante digital pode ser visto em ações do tipo usar a internet como fonte de pesquisa depois de já ter usado outro meio, ou ler o manual de um programa em vez de admitir que ele próprio nos ensinará a usá-lo. Nós, mais velhos, não fomos “socializados”, para usar o termo de Greenfield, da mesma forma que nossos filhos. Lembre-se de que uma língua aprendida em um estágio mais avançado da vida se localiza em uma parte diferente do cérebro (Prensky, 2012, p. 75).

Para compreender mais especificamente as características dos “nativos digitais”, Prensky (2012) assevera que é fundamental distinguirmos as mudanças mentais provocadas pela televisão daquelas mutações cognitivas decorrentes do uso de tecnologias interativas: “a principal diferença é que as pessoas das gerações dos jogos são participantes ativos, em vez de simples observadores passivos”. Embora o autor tenha considerado a “fundamental importância” dessa distinção entre o assistir e o participar, um não precisaria necessariamente excluir o outro, pois, “como todos podem observar, muitas pessoas, crianças e adultos, jogam videogames e assistem à televisão”. Isso significa que, pelo menos em parte, “as formas passivas de entretenimento chegaram para ficar”, ainda que seja possível verificar o crescimento do mercado de tecnologias interativas. No que se refere aos nativos digitais mais propriamente, o autor assinala que os integrantes dessa geração preferem “os videogames e a internet à televisão devido à interatividade dos dois primeiros”. Assim sendo, instrutores e professores de outras gerações “trazem vídeos passivos” e com isso pensam que “estão fazendo um favor aos aprendizes”, quando, segundo o autor, em verdade, “o que os aprendizes querem mesmo é interatividade – para eles, o resto é basicamente chato demais” (Prensky, 2012, p. 76-77).

Outro aspecto que diferencia as gerações mais antigas dos “nativos digitais”, segundo Prensky (2012), seria a atenção. Quando perde a paciência e afirma que os “nativos digitais” tem uma espécie de “atenção da galinha”, isto é, uma atenção que não dura muito tempo, a geração mais antiga perderia a razão. Prensky (2012), por sua vez, busca sustentar a afirmação segundo a qual “as pessoas que continuam com a visão dos curtos períodos de atenção não têm visto ou ouvido os mais jovens com atenção suficiente”, uma vez que “a atenção deles não é curta para os jogos, por exemplo, para a música, para andar de patins, para passar o tempo na internet, ou para qualquer outra coisa que lhes interesse de fato”. Assim sendo, os métodos de ensino e os treinamentos tradicionais não seriam “atraentes” o suficiente para a geração mais jovem, pois não é que eles “não conseguem prestar atenção, eles apenas optam por não fazê-lo” (Prensky, 2012, p. 78). No caso da atenção, o que Prensky (2012) sugere com base em seus estudos é que a geração dos “nativos digitais” é capaz de realizar “processamento paralelo”. O autor busca demonstrar que, “embora algumas pessoas argumentem que o processamento paralelo limita a atenção a uma das tarefas”, por outro lado, “normalmente, a mente tem um pouco de ‘tempo ocioso’ de sua atividade principal que pode ser utilizado para lidar com outras coisas”. Nesse sentido, os processos não paralelos de atenção poderiam “retardar a aprendizagem em cérebros desenvolvidos por meio de jogos de computador e do acesso à internet”. À questão segundo a qual estaríamos assimilando mais em menos tempo com o preço da menor profundidade da atenção, o autor responde que, “talvez”, isso esteja de fato ocorrendo. De qualquer modo, esse seria um problema que a própria internet teria o potencial de resolver, pois, segundo o autor, para quem deseja “mais profundidade, se e quando quiser, está a um clique de distância”. Educadores, administradores e instrutores de treinamentos precisariam pensar a partir de agora “em outras formas de melhorar o processamento paralelo da geração dos jogos, a fim de aproveitar essa capacidade humana agora ainda mais aprimorada” (Prensky, 2012, p. 84-85).

Relativamente à reflexão ou capacidade reflexiva, Prensky (2012) reconhece que, de fato, os “nativos digitais” estariam sendo impactados negativamente pela era digital. Em sua visão, de acordo com diversos teóricos, a reflexão “é o que nos permite fazer generalizações, à medida que criamos ‘modelos mentais’ a partir de nossa experiência”. O autor acrescenta que, de certo modo, ela é o “processo de ‘aprendizagem pela experiência’”. Essa capacidade “de parar e refletir”, segundo o autor, “é o que distingue a leitura de um livro – em que as pessoas podem parar e pensar sempre que quiserem – dos jogos de videogame à velocidade twitch ou dos negócios com a velocidade da internet, nos quais quem parar morre”. Como diz o autor em outro trecho, há atualmente cada vez menos oportunidade e tempo para exercitar a capacidade reflexiva “e esse desenvolvimento preocupa muitas pessoas”. Nesse sentido, o autor afirma que, na indústria dos videogames e dos treinamentos baseados em jogos digitais, haveria muito o que se fazer para superar esse cenário e, por conseguinte, produzir obras capazes de estimular e desenvolver a reflexão (Prensky, 2012, p. 81-82).

Não obstante isso, ao haver refletido acerca da indagação a respeito do que distingue os “nativos digitais” em relação às demais gerações, Prensky (2012) afirmou que, “ao crescer com videogames na velocidade twitch, MTV (mais de 100 imagens por minuto) e a velocidade ultrarrápida dos filmes de ação, a mente da geração dos jogos foi programada para se adaptar a uma rapidez maior e obter êxito nisso”. Entretanto, quando chegam à escola ou ao ambiente do trabalho, a geração dos nativos digitais enfrentaria dificuldades, pois “educadores e instrutores costumam transmitir a ela todas as características do passado que não contemplam essa velocidade twitch”. Nesse sentido, o autor enuncia dez das principais “mudanças de estilo cognitivo” pelas quais a geração dos “nativos digitais” teria passado. Essas mudanças são expressas na forma de oposições, nas quais o primeiro elemento representa o signo da mudança e o segundo elemento ilustra uma característica do passado: [1] “velocidade twitch versus velocidade convencional”; [2] “processamento paralelo versus processamento linear”; [3] “primeiro os gráficos versus primeiro o texto”; [4] “acesso aleatório versus passo a passo”; [5] “conectado versus autônomo”; [6] “ativo versus passivo”; [7] “brincar versus trabalhar”; [8] “recompensa versus paciência”; [9] “fantasia versus realidade”; e [10] “tecnologia como amiga versus tecnologia como inimiga” (Prensky, 2012, p. 82-83).

Como se pode notar, o “homo digitalis” de Prensky (2012) também constitui uma categoria sociológica de caráter geracional. Nesse aspecto, o autor se aproxima de De Masi (2019) e seus pontos de vista se complementam mutuamente, uma vez que ambos os autores se preocuparam em descrever as mudanças da mentalidade de uma geração mais jovem muito familiarizada com o universo informacional. Essa complementaridade, contudo, esbarra em posicionamentos axiais que fazem com que De Masi (2019), por um lado, filie-se ao campo do pensamento progressista e, por outro lado, Prensky (2012) esteja perfilado a uma tradição mais voltada ao campo dos negócios. Nessa perspectiva, Prensky (2012) também se opõe relativamente a Lévy (2010), conquanto ambos sejam otimistas, em sentidos diferentes, em relação ao potencial da era digital em fomentar o desenvolvimento da inteligência humana. Além disso, com base nos avanços da neurociência, Prensky (2012) buscou fundamentar seus estudos na descrição dos processos que envolvem a plasticidade cerebral ao longo da vida. Han (2018), por seu turno, parece concordar com essa neuroplasticidade ao afirmar que estamos sendo “desprogramados” pelas mídias digitais, mas aborda o assunto desde uma perspectiva radicalmente crítica e pessimista. Compreendida a visão de Prensky (2012) a respeito das mutações cognitivas implicadas na alteração do atual cenário sociotécnico, podemos passar a partir de agora para a análise da obra do quarto autor, aquele que, efetivamente, desenvolveu no contexto de sua filosofia um conceito de homo digitalis.

 

2.4 HOMO DIGITALIS E A CRISE DA CULTURA DIGITAL: A VISÃO DE BYUNG-CHUL HAN

Na introdução deste artigo, foi visto que, de acordo com Han (2018), o atual cenário sociotécnico da era digital estaria condicionando uma crise. Essa crise faria com que ficássemos aquém das decisões conscientes, transformando assim decisivamente nossa percepção, nossa sensação, nosso comportamento, nosso pensamento, em suma, nossa vida como um todo. Diferentemente de De Masi (2019) e Prensky (2012), Han (2018) não compreende o homo digitalis como uma categoria sociológica de caráter geracional, uma vez que as mídias digitais estariam nos desprogramando e, por consequência, estariam provocando uma mudança radical de paradigmas com a ausência de nossa percepção. Ao nos arrastarmos atrás da mídia digital, outrossim, estaríamos experimentando uma espécie de embriaguez, cujas consequências seriam uma cegueira e estupidez inauditas. Vejamos a partir de agora, do ponto de vista das mutações cognitivas, que crise seria essa descrita pelo autor.

Pois bem, Han (2018) considera que as mídias digitais estimulam a ausência de distanciamento e, por consequência, de respeito, uma vez que, “no trato respeitoso com os outros, controlamos o nosso observar [Hinsehen] curioso”, enquanto o antigo olhar distanciado dá lugar hoje “a um ver sem distância, característico do espetáculo”. Essas mídias, em outras palavras, descontruiriam de modo generalizado a distância. Além disso, enquanto o espetáculo, que remonta ao verbo latino spectare, constituiria o modus operandi da comunicação digital, sendo uma espécie de “olhar voyeurístico, ao qual falta a consideração distanciada”, a sociedade, por seu turno, sem o “pathos da distância”, culmina em uma sociedade sem respeito (respectare) e, por conseguinte, em uma sociedade do escândalo. Considerando o respeito como o alicerce da esfera pública, o autor assinalou que onde ele deixa de existir tal esfera desmorona. Atualmente, na visão do autor, vigora “uma falta total de distância, na qual a intimidade é exposta publicamente e o privado se torna público”. Com essa ausência de afastamento [Ab-Stand], diz o autor, “não é possível nenhum bom comportamento [An-Stand]”, ao passo que “também o entendimento [Ver-Stand] pressupõe um olhar distanciado”. Por outro lado, acrescenta o autor, a desconstrução da distância espacial acompanharia “a erosão da distância mental” (Han, 2018, p. 11-12).

No que se refere a essa erosão da distância mental, em sua outra obra intitulada Sociedade do Cansaço, Han (2017) pondera que “os desempenhos culturais da humanidade, dos quais faz parte também a filosofia, devem-se a uma atenção profunda, contemplativa”. Como foi visto no exame da visão de Prensky (2012), a atenção daqueles que crescem imersos no cenário sociotécnico digital tenderia a desenvolver-se no sentido do “processamento paralelo”, mais para o bem do que para o mal. Na visão de Han (2017), por sua vez, a imersão nas redes digitais tem promovido mais prejuízos do que benefícios à atenção, pois “a cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda”, atenção essa que nos dias atuais vem sendo cada vez mais deslocada “por uma forma de atenção bem distinta, a hiperatenção (hyperattention)”. Esta última se dispersa facilmente e, portanto, caracteriza-se “por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos”. O sujeito de hyperattention seria dotado, aliás, de uma baixa tolerância para com o tédio, também não admitindo “aquele tédio profundo que não deixa de ser importante para um processo criativo” (Han, 2017, p. 33).

Por outro lado, como foi visto, Lévy (2010) afirma a inteligência coletiva como um ideal, uma possibilidade latente e em alguns casos atual da cibercultura, conquanto não houvesse duvidado de possibilidades negativas, tais como a veiculação indiscriminada de rumores ou de bobagem coletiva. Han (2018), por sua vez, inclina-se a descrever os processos de estupidez coletiva que seriam próprios da emergência das mídias digitais. Para isso, delineia o fenômeno da tempestade de indignação, mais bem denominado Shitstorm. Segundo o autor, esse fenômeno tem múltiplas causas: “ele é possível em uma cultura de falta de respeito e de indiscrição”, mas também é, “antes de tudo, um genuíno fenômeno da comunicação digital”. Para descrever melhor esse fenômeno, o autor distingue a comunicação digital da comunicação analógica. Nesse sentido, o Shitstorm diferenciar-se-ia radicalmente das cartas de leitores que estão vinculadas “às mídias escritas analógicas e que ocorrem de modo expressamente nominal”. Enquanto a comunicação digital poderia facilmente ser anônima – o Shitstorm é por natureza anônimo –, as mídias escritas analógicas, por sua vez, também o podem, mas com a diferença de que, no caso das cartas anônimas de leitores, elas “acabam rapidamente no cesto de lixo das redações de jornal”. Além disso, uma outra temporalidade marcaria a carta de leitor, pois, “enquanto se a redige esforçadamente à mão ou com a máquina de escrever, a exaltação imediata já desvaneceu”. Por outro lado, no caso da comunicação digital em geral, e do Shitstorm em particular, torna-se possível uma instantânea “descarga de afetos”. Em razão de sua temporalidade específica, a comunicação digital e o Shitstorm transportariam mais afetos do que a comunicação analógica, de modo que “a mídia digital é, desse ponto de vista, uma mídia de afetos” (Han, 2018, p. 14-15).

Além disso, as análises de Lévy (2010) e Prensky (2012) coincidem com as de Han (2018) quando este último afirma que “hoje não somos mais destinatários e consumidores passivos de informação, mas sim remetentes e produtores ativos”. A esse respeito, o autor acrescenta que “não nos contentamos mais em consumir informações passivamente, mas sim queremos produzi-las e comunicá-las ativamente nós mesmos”. Ao passo que seríamos produtores e consumidores simultaneamente, afirma o autor, “esse duplo papel aumenta enormemente a quantidade de informação”. Não obstante essa análise, que poderia dar a entender que esse duplo papel reforçaria a função das massas no encaminhamento de um algum movimento baseado em uma inteligência coletiva ou na sinergia de competências singulares, não se observa na avaliação de Han (2018) uma perspectiva otimista, e, nesse sentido, o autor distancia-se dos pensadores cujas abordagens apresentamos nos tópicos anteriores

O mundo do homo digitalis aponta, além disso, para uma topologia complemente diferente. São estranhas a ele espacialidades como estádios e anfiteatros, ou seja, lugares de reunião de massas. Elas pert.encem a uma topologia das massas. O habitante digital da rede não se reúne. Falta a ele a interioridade da reunião que produziria um Nós. Eles formam um especial aglomerado sem reunião, uma massa [Menge] sem interioridade, sem alma ou espírito. Eles são, antes de tudo, Hikikomori isolados para si, singularizados, que apenas se sentam diante da tela. Mídias eletrônicas como o rádio reúnem pessoas, enquanto as mídias digitais as singularizam (Han, 2018, p. 29-30).

Ademais, Han (2018) também se distancia da abordagem de De Masi (2019) a respeito dos digitais. Enquanto, para De Masi (2019), os digitais apresentar-se-iam como uma categoria geracional que representaria, pela consciência que possuiria, um avanço civilizacional em certa medida, ainda que dilemas pós-modernos e aspectos negativos também tenham sido considerados, Han (2018), por seu turno, parece notar que as mídias digitais estariam promovendo uma espécie de declínio civilizacional. Na visão deste segundo autor, atualmente, a chamada “sociedade de opinião e de informação” conta com o apoio de uma “comunicação desmediatizada”, uma vez que “todos produzem e enviam informação”. Essa “desmediatização” da comunicação estaria fazendo com que jornalistas, antes “sacerdotes da opinião”, sejam vistos como complemente anacrônicos e superficiais: “a mídia digital dissolve toda classe sacerdotal”. Ao fazer isso, a mídia digital estaria funcionando como um instrumento que coloca em vias de extinção a época da representação, pois, “hoje, todos querem estar eles mesmos diretamente presentes e a apresentar a sua opinião sem intermediários”. A representação, inclusive a representação no Estado democrático, “recua frente à presença ou à copresentação [Kopräsentation]”. Em suma, afirma o autor mais à frente, “a crescente compulsão por presença que a mídia digital produz ameaça o princípio universal da representação” (Han, 2018, p. 37-38).

Além disso, Han (2018) afirma que as mídias digitais tendem a furtar à comunicação “a tatilidade e a corporeidade”. Com isso, o autor quis dizer que, do ponto da comunicação, a parcela verbal seria muito pequena, de modo que “as formas não verbais de expressão como gesticulação, expressões de rosto ou linguagem corporal constituem a comunicação humana”. Essas formas não verbais da comunicação lhe concederiam a sua “tatilidade”. Por essa expressão, o autor não pretendia designar contato corporal, mas sim “a pluridimensionalidade e a multiplicidade de camadas da percepção humana, da qual fazem parte não apenas o visual, mas também outros sentidos”. Com relação à comunicação digital, o autor afirmou que, em função mesmo de sua eficiência e comodidade, “evitamos crescentemente o contato direto com pessoas reais, e mesmo o contato com o real como um todo”. Nessa perspectiva, afirma-se que a mídia digital estaria levando o contraposto real “cada vez mais ao desaparecimento”, pois “ela o registra como resistência”. Por essa razão, a comunicação digital estaria se tornando cada vez mais “sem corpo e sem rosto”, ao passo que “o smartphone funciona como um espelho digital” que “abre um espaço narcísico, uma esfera do imaginário na qual eu me tranco”. O outro, essa materialização da alteridade, não falaria efetivamente por meio do smartphone (Han, 2018, p. 44-45).

Referindo-se às consequências do uso indiscriminado de smartphones, Han (2018) declara que eles são aparatos digitais que trabalham “com um modo de input e output pobre de complexidade”, uma vez que abafaria toda negatividade: “desse modo se desaprende a pensar de um modo complexo”. Além dessa consequência sobre o pensamento, o uso de smartphones também teria repercussões sobre o comportamento. Para o autor, ele faz também com que definhem “formas de comportamento que demandam uma amplitude temporal ou uma visibilidade ampla”. Demandando sempre o curto prazo e se opondo ao longo e ao lento, esses aparelhos viabilizam “o curtir sem lacunas”, o que “produz um espaço da positividade”. Em razão de sua negatividade, a experiência entendida enquanto o “irromper do outro” tende a interromper o “autoespelhamento imaginário” promovido por esses aparelhos. A positividade do ambiente digital reduziria a possibilidade desse irrompimento, uma vez que sempre “promove o igual”. Dessa feita, o smartphone constituiria um aparelho que tem enfraquecido a nossa capacidade de lidar com a alteridade e com o negativo. Mais à frente, o autor declara que “passar o dedo pela touchscreen é um movimento que tem uma consequência com relação ao outro”, uma vez que esse movimento “elimina aquela distância que constitui o outro em sua alteridade”. Em outras palavras, afirma o autor, “pode-se passar o dedo na imagem, tocá-la diretamente, porque ela perdeu o olhar, o rosto”. Por outro lado, com o movimento de pinçar a imagem, dispõe-se do outro, podendo-se mesmo descartar o outro com um passar de dedos “a fim de deixar que nossa imagem espelhada se apresente” (Han, 2018, pp. 45-49).

Como se pode notar, Han (2018) posiciona a sua análise a partir de um ponto de vista de distanciamento, de modo que entendia ser essa uma atitude frutífera do ponto de vista do pensamento e do entendimento. Em sua crítica, não está presente aquela “lucidez” de que falava Lévy (2010), isto é, o reconhecimento de que o avanço da cibercultura, do uso de aparelhos digitais interconectados mundialmente à rede de internet, seria irreversível e parcialmente indeterminado. Por essa razão, a sua abordagem e visão tendem a se manifestar como uma crítica radical, não se mostrando afeitas a explorar as possibilidades positivas do novo cenário sociotécnico em processo acelerado transformação. A própria aceleração, por fim, é criticada por Han (2017, 2018) como signo de uma sociedade excessivamente positivada e de superdesempenho, o que estaria conduzindo o homo digitalis a novas formas de coação e extenuação.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscamos tensionar quatro visões a respeito do homo digitalis, buscando reconhecer o que cada uma poderia trazer de correto do ponto de vista do entendimento e onde cada uma esbarra no que tange a limites internos resultantes de processos de idealização. Para tanto, após havermos situado em contexto, na introdução, a problemática sobre a qual este artigo versa, isto é, no contexto da terceira grande etapa histórica da humanidade, inaugurada pela acelerada produção e disseminação de smartphones conectáveis à rede de internet e, por conseguinte, ao ciberespaço, passamos a examinar as visões de Lévy (2010), De Masi (2019), Prensky (2012) e Han (2018).

Dois destes autores, Lévy (2010) e Prensky (2012), embora não houvessem conhecido os smartphones no período em que preparavam as publicações das primeiras edições dos livros que aqui examinamos (respectivamente, 1997 e 2001), fornecem-nos uma arguta leitura a respeito da rápida transformação da era digital. Nessa leitura, esses autores apresentam uma visão otimista da evolução da técnica, embora em sentidos variados e partindo de pontos de vista distintos. Porém, de um ponto de vista dos pressupostos axiológicos, Lévy (2010) aproxima-se mais de De Masi (2019) do que de Prensky (2012), de modo que suas perspectivas de análises tendem mais a se complementar do que se contrapor. Contudo, uma vez que De Masi (2019) aceita sem críticas o pensamento de Nicholas Negroponte como ponto de partida de suas reflexões, Lévy (2010), por sua vez, tende a se distanciar de sua abordagem ao haver criticado esse pensador do marketing.

Por outro lado, De Masi (2019) e Prensky (2012) compartilham de um otimismo relativamente similar em relação às transformações tecnológicas. Diferem, entretanto, na apreciação de alguns temas, conquanto tenham fornecido quadros vívidos a respeito das alterações cognitivas e comportamentais concernentes a uma categoria sociológica relativa às gerações mais jovens e familiarizadas com o mundo informatizado. Han (2018), por sua vez, consiste no autor que mais destoa em sua apreciação das mutações cognitivas do homo digitalis, pois parece desconfiar profundamente de que estaríamos experimentando uma evolução civilizacional. Assim sendo, enquanto os três autores anteriores posicionaram as análises desde um ponto de vista inserido no interior das transformações sociotécnicas pelas quais a cultura vem passando, Han (2018) estabelece um recuo e procura lançar luzes sobre os fenômenos da digitalização do mundo a partir de um ponto de vista mais distanciado. Foi visto que esse distanciamento, em seu modo de entender, é fundamental para uma compreensão mais ampla e profunda.

Ora, a abordagem crítica de Han (2018) ocorre desde uma perspectiva privilegiada, de distanciamento amplo, permitindo a percepção de aspectos prejudiciais relativos ao uso indiscriminado de dispositivos digitais conectados à internet. Por outro lado, ela desconsidera que, caso não ocorra uma catástrofe que danifique irremediavelmente a infraestrutura que dá suporte mundial ao funcionamento das redes digitais, trata-se de um processo irreversível e parcialmente indeterminado, como apontava Lévy (2010). Por essa razão, conviria de fato, após o distanciamento, realizar um movimento de reaproximação e de reinserção, a fim de que fossem examinadas possibilidades de desenvolvimento humano e cultural. Ao não realizar esse segundo movimento de reaproximação, Han (2017, 2018) tende à idealização no que concerne à proposição de alternativas para a vida humana.

Por outro lado, o otimismo algumas vezes excessivo e o não distanciamento próprios das abordagens de Lévy (2010), De Masi (2019) e Prensky (2012) também os levaram por caminhos inversos à idealização. Além disso, sobretudo os autores que limitaram suas análises aos efeitos sobre as camadas mais jovens da sociedade – De Masi (2019) e Prensky (2012) – deixaram de levar em conta alterações as quais também têm ocorrido em todas as gerações que imergem nas redes digitais. Por fim, pode-se dizer que os julgamentos desses três autores a respeito da era digital e das mutações cognitivas a ela correspondentes, por mais argutos que sejam, tendem a pecar pelos processos indevidos de generalização que engendram, devido justamente à ausência de um distanciamento mais radical acerca dos fenômenos da era digital.

REFERÊNCIAS

DE MASI, Domenico. O mundo ainda é jovem: conversas sobre o futuro próximo. São Paulo, SP: Vestígio, 2019. 282 p.

DE MASI, Domenico. O ócio criativo. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: Sextante, 2000. 336 p.

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. 1365 p.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. 136 p.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. 3. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2010. 264 p. (Coleção TRANS)

PRENSKY, Marc. Aprendizagem baseada em jogos digitais. São Paulo, SP: SENAC, 2012. 576 p.



[1] Doutor em Educação pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

[2] Doutora em Ciência da Computação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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