REFLEXÕES SOBRE O PRAGMATISMO E SUAS INTERFACES COM O CAMPO DA COMUNICAÇÃO[1]
Ângela Cristina Salgueiro Marques[2]
Universidade Federal de Minas Gerais
angelasalgueiro@gmail.com
Frederico Vieira da Cruz[3]
Universidade Federal de Viçosa
frederico.vieira.souza@gmail.com
______________________________
Resumo
A abordagem relacional desenhada pelo pragmatismo para observar sujeitos e coletividades definem termos justos e paritários para sua vida em comum deriva, entre outros, dos trabalhos de Charles S. Peirce, John Dewey, George Herbert Mead, Jürgen Habermas e Axel Honneth. Este artigo traz articulações entre tais autores de modo a evidenciar alguns aspectos acerca de como que modo o pragmatismo e a perspectiva praxeológica contribuíram para um entendimento do processo comunicativo como chave para a vida política e democrática em comum. A experiência cotidiana, o contato situado com o outro, a construção de identidades narrativas, a argumentação racional e afetiva são elementos da abordagem pragmatista que nos auxiliam a compreender a comunicação enquanto processo e prática reflexiva, cujas dimensões estética, ética e política são responsáveis pela disposição e entrelaçamento dos eventos que produzem as interdependências que modelam nossas formas de vida.
Palavras-chave: pragmatismo; experiência; comunicação; cooperação; mundo comum.
REFLECTIONS ON PRAGMATISM AND ITS INTERFACES WITH THE FIELD OF COMMUNICATION
Abstract
The relational approach designed by pragmatism to observe how subjects and collectivities define fair and equitable terms for their shared life derives, among others, from the works of Charles S. Peirce, John Dewey, George Herbert Mead, Jürgen Habermas, and Axel Honneth. This article brings together these authors to highlight some aspects of how pragmatism and the praxeological perspective have contributed to an understanding of the communicative process as key to shared political and democratic life. Everyday experience, situated contact with others, the construction of narrative identities, and rational and affective argumentation are elements of the pragmatist approach that help us understand communication as a process and reflective practice, whose aesthetic, ethical, and political dimensions are responsible for the arrangement and interweaving of events that produce the interdependencies that shape our ways of life.
Keywords: pragmatism; experience; communication; cooperation; common world.
REFLEXIONES SOBRE EL PRAGMATISMO Y SUS INTERFACES CON EL CAMPO DE LA COMUNICACIÓN
Resumen
El enfoque relacional diseñado por el pragmatismo para observar cómo los sujetos y las comunidades definen condiciones justas y equitativas para su vida en común se deriva, entre otros, de las obras de Charles S. Peirce, John Dewey, George Herbert Mead, Jürgen Habermas y Axel Honneth. Este artículo reúne a estos autores para destacar algunos aspectos de cómo el pragmatismo y la perspectiva praxeológica han contribuido a la comprensión del proceso comunicativo como clave para la vida política y democrática compartida. La experiencia cotidiana, el contacto situado con otros, la construcción de identidades narrativas y la argumentación racional y afectiva son elementos del enfoque pragmatista que nos ayudan a comprender la comunicación como un proceso y una práctica reflexiva, cuyas dimensiones estéticas, éticas y políticas son responsables de la organización y el entrelazamiento de los eventos que producen las interdependencias que configuran nuestros modos de vida.
Palabras clave: pragmatismo; experiencia; comunicación; cooperación; mundo común.
1 INTRODUÇÃO
O pragmatismo, ou filosofia da ação, articulou, durante o final do século XIX e início do século XX, filósofos como Charles S. Peirce, William James, John Dewey e George Herbert Mead em torno da tarefa de priorizar as dimensões intersubjetiva, social e comunal da experiência (Bernstein, 2005). As reflexões desenvolvidas por esses filósofos norte-americanos tiveram grande influência nas obras escritas pelos novos pragmatistas alemães como Jürgen Habermas, Karl O. Apel e Axel Honneth.
Um atual e renovado interesse pelo pragmatismo pode ser associado, por exemplo, ao fato de que esses filósofos alemães têm procurado desenvolver discussões que colocam em contato dimensões da comunicação, da ética, da estética e da política. A meu ver, uma preocupação em comum une esses autores (incluindo entre eles os norte-americanos Richard Rorty e Nancy Fraser): a busca de princípios coletivos capazes de questionar o sofrimento humano, a humilhação, a desvalorização e a ausência de reconhecimento social.
Para Joas (2005), o pragmatismo possui uma poiésis, um viés criativo que o uso corrente da palavra “pragmática” não deixa entrever. Ele afirma que, no horizonte da perspectiva pragmática, cada situação contém um horizonte de possibilidades a ser descoberto diante da necessidade de criar vínculos entre impulsos de ação e as circunstâncias dadas de uma situação. Essa vertente estética e criativa faz com que o pragmatismo possar ser visto como uma “teoria da ação criativa situada”, pois a ação “não consiste na busca de objetivos definidos ou na aplicação de normas, e a criatividade não está ligada a vencer obstáculos nessas rotas prescritas. A criatividade consiste na libertação da capacidade para novas ações” (Joas, 2005, p. 275).
Libertar a experiência[4] da rotina é deixar que ela oscile entre aquilo que está dado (as características que nos aproximam) e aquilo que está à espera de ser construído por meio da comunicação e do diálogo. A criatividade das ações deve ser tomada como a fonte da capacidade social de produzir o novo, de desatrelar as formas de vida da opressão, inventando novos desejos e novas crenças, novas formas de associação e de cooperação (Pelbart, 2003, p. 23). Segundo Dewey, “os inimigos do estético não são nem o prático nem o intelectual. São o monótono, a lassidão dos fins indefinidos, a submissão à convenção nos procedimentos práticos e intelectuais” (1980, p. 93). A experiência de um indivíduo contém as fragilidades, as contingências e as alterações pelas quais ele passa ao longo de seu contato com o mundo, consigo mesmo e com os outros. O objetivo da experiência é fazer com que o indivíduo, ao passar por ela, não seja mais o mesmo (Quéré; Ogien, 2005).
Se, como apontam Maia e França, “estudar a comunicação é estudar a relação entre sujeitos interlocutores; a construção conjunta de sentidos no âmbito de trocas simbólicas mediadas por diferentes dispositivos” (2003, p.199), não podemos desconsiderar as dimensões prática e relacional que abrangem “os gestos, as atitudes, assim como as significações que as animam (dimensão simbólica, presença do sentido), buscando captar o movimento reflexivo que orienta a configuração do processo” (França, 2008, p. 86).
Uma abordagem pragmática ou praxeológica da comunicação preocupa-se, ao mesmo tempo, com as formas e situações nas quais as trocas simbólicas se estabelecem, com os produtos comunicativos que medeiam as interações entre interlocutores (e que também oferecem, em seu discurso, formas de interação e discursos) e com os meios de produção de mensagens. O olhar comunicacional pragmático busca a dinâmica das interações entre os sujeitos, a construção recíproca de sentidos e a atualização constante dos códigos que norteiam as práticas dos indivíduos em comunidade. Esse olhar abrange o modo criativo por meio do qual ações e interações tornam-se imprevisíveis, posições são revistas, argumentos são considerados e reconsiderados, enfim, o modo como uma comunidade avança em suas formas de representar, interpretar e significar o mundo tomado em sua complexidade. A peculiaridade do paradigma comunicacional fundado na práxis está em fazer com que a comunicação deixe de ser “um processo recortado e restrito, para ser tomada como lugar de constituição dos fenômenos sociais, atividade organizante da subjetividade dos homens e da objetividade do mundo” (França, 2003, p. 39).
E é justamente esse entendimento da comunicação como cenário e como processo de elaboração de ações expressivas, de identidades subjetivas, da cultura e atualização da linguagem que pode nos ajudar a perceber como os aspectos estéticos das interações simbólicas e das experiências dos sujeitos (a poiésis, a passibilidade, a criatividade, as táticas de questionamento e de resistência à opressão, a narrativa de si, etc.) configuram o cerne de uma atividade política calcada no dissenso. “O dissenso significa que existem várias maneiras de construir a realidade como um conjunto de condições, incluindo uma distribuição polêmica das capacidades. (...) É a proclamação da capacidade de qualquer um, independentemente de quem, ou a qualificação daqueles que não têm qualificação” (Rancière, 2008, p. 102).
De modo a identificar as interseções que existem entre comunicação, estética e política, acreditamos ser necessário estabelecer, primeiro, de que modo o pragmatismo e a perspectiva praxeológica contribuíram para um entendimento do processo comunicativo como uma dinâmica que articula a situação discursiva, os interlocutores, os discursos por eles acionados e as interações simbólicas e ações mediadas pela linguagem. Pretendemos evidenciar que as interações comunicativas configuram-se como momentos em que diferentes interlocutores usam a linguagem de modo a produzirem entendimentos sobre algo no mundo objetivo, social e subjetivo. Esses entendimentos não se estabelecem unicamente pela via racional, mas também, e sobretudo, pela emoção e pela afetividade.
2 A PRAGMÁTICA E A CENTRALIDADE DA LINGUAGEM DA COMUNICAÇÃO
Em um texto central para nossa reflexão, Vera França (2008, p.89) afirma que “a comunicação é da ordem da prática: é uma prática reflexiva (que orienta a si mesma), o que nos situa no terreno do pragmatismo ou de uma praxeologia da comunicação”. Ao salientar a importância de uma abordagem pragmática do processo comunicativo, a autora nos remete ao fato de que a linguagem, para além de uma dimensão representativa, é uma forma de mediação que nos auxilia a articular e conferir sentido à nossa experiência, a compreender o mundo do outro e o nosso próprio universo, a formular um horizonte de valores por meio do qual avaliamos e medimos nossas ações e atribuímos valor aos outros.
Uma das principais características comumente associadas ao pragmatismo refere-se à percepção da realidade como uma construção social.[5] Mas essa abordagem parece sugerir que conhecemos e apreendemos o mundo por meio de descrições linguísticas que podem atribuir aos objetos do mundo facetas que não lhes são inerentes. Na verdade, para os pragmatistas a linguagem não se reduz a um meio de representar as coisas. “Ao invés disso, a linguagem é um intercâmbio de sinais e ruídos, executados a fim de alcançar algum propósito específico” (Rorty, 2000, p. 60). Mais do que isso, a linguagem nos auxilia a conhecer os objetos do mundo não somente por meio de descrições, mas principalmente, “porque toda sentença a respeito de um objeto é uma descrição implícita ou explícita de sua relação com um, com outro, ou com vários objetos” (Rorty, 2000, p. 67). Assim, é possível dizer que os pragmatistas tentam substituir a imagem da linguagem como um véu que se interpõe entre os indivíduos e os objetos, pelo entendimento de que as sentenças que visam descrever um objeto irão atribuir-lhe uma propriedade relacional.
A linguagem estabelece relações não só entre objetos do mundo, mas também entre sujeitos. Ela não se reduz à língua (sistema fechado de sinais), mas se mostra como uma mediação por meio da qual nos expressamos, buscamos a compreensão e o entendimento recíproco. “Toda ação, todo saber, toda experiência humana só tem sentido na medida em que se exprime em uma linguagem” (Herrero, 1982, p. 75). É no cotidiano que a comunicação mediada pela linguagem se fortalece, se redimensiona e redimensiona os sujeitos e o meio no qual se inserem. Comunicar exige o estabelecimento de um sistema normativo comum, um conjunto de emoções e ações compartilhadas dentro da relação que se estabelece entre os indivíduos.
O homem existe com os outros em virtude da linguagem, enquanto juntos existem na linguagem. (...) O homem não é só o ser que dispõe da palavra como de um instrumento, mas é a linguagem que possibilita ao homem criar uma existência humana com os outros no mundo. (...) a linguagem não é um fenômeno periférico, mas ela põe em jogo o homem todo e suas relações com os outros no mundo (Herrero, 1982, p. 77).
Assim, a linguagem é a interface porosa que permite o encontro de subjetividades, de experiências, pontos de vista. Ela auxilia nos processos de exteriorização e interiorização das percepções e das experiências, aumentando ou diminuindo o campo de ação e de afetos dos sujeitos (Maturana, 1999). Ao mesmo tempo, a linguagem é modificada através desses processos, pois “se, por um lado, é a experiência vivida que constitui o referente da linguagem, por outro lado, é a linguagem que constitui a própria comunicabilidade da experiência” (Rodrigues, 2000, p. 6).
Seguindo a vertente do pragmatismo, ressalta-se o fato de que a filosofia da linguagem e a teoria psicológica do comportamento encontraram um ponto de convergência nas reflexões sobre a teoria do interacionismo simbólico[6] desenvolvida por George Herbert Mead. Apesar de conceber sua própria teoria como “behaviorismo social”, o modelo desenvolvido por Mead não focaliza “o comportamento de um organismo individual que reage a um estímulo do ambiente, mas sim uma interação na qual ao menos dois organismos reagem um ao outro e se comportam reciprocamente” (Habermas, 1987, p.6).
No segundo volume da Teoria da Ação Comunicativa, Habermas retoma várias das perspectivas de Mead, reconhecendo a relevância do mecanismo de “assumir a perspectiva do outro” no curso de uma interação. A perspectiva do “outro generalizado” é desenvolvida por Mead quando ele elabora um meio de interações mediadas por gestos se transformarem em interações simbolicamente mediadas através de três passos:
Primeiro, os gestos são transformados em símbolos por meio da substituição de sentidos que existem para organismos individuais por sentidos que são iguais para ambos os participantes. Segundo, o comportamento dos participantes muda de tal modo que uma relação interpessoal entre falante e ouvinte substitui a relação causal entre estímulo-resposta-estímulo. Ao interagirem um com o outro, os participantes têm agora um objetivo comunicativo. Finalmente, há uma transformação da estrutura da interação, na qual os participantes aprendem a distinguir entre atos de busca por entendimento e ações orientadas para o sucesso (Habermas, 1987, p.9).
Vera França (2008, p.76) também menciona essa “estrutura ternária” presente na obra de Mead, ao afirmar que “existe comunicação quando os gestos se tornam símbolos, quando eles fazem parte de uma linguagem e trazem um sentido partilhado por todos os indivíduos envolvidos na ação”. A centralidade de uma tal estrutura para se pensar o processo comunicativo está em tornar evidente que para Mead, assim como para todos os pragmatistas, é por meio de uma “intersubjetividade prática que são fundadas a objetividade e a subjetividade, a individualidade e a socialidade” (Quéré, 1991, p. 85). Sob esse aspecto, a comunicação
[...] não pode ser apreendida e compreendida a partir de apenas uma de suas fases, nem a partir de apenas um dos sujeitos envolvidos. Ela diz respeito exatamente à relação que existe entre eles, ela é o instrumento que permite que entre eles se construa um certo tipo de interação. (...) Não é possível, numa perspectiva interacional, analisar a intervenção de um emissor sem levar em conta o outro a quem ele se dirige e cujas respostas potenciais já atuam com antecedência sobre o seu dizer; não é possível analisar o receptor separado dos estímulos que lhe foram endereçados e que o constituíram como sujeito daquela relação (França, 2008, p.85).
Adotar o ponto de vista do outro sobre si mesmo, ler as ações e intenções da outra pessoa e responder a ela de modo apropriado tornaram-se diretrizes centrais para a reflexão atual de autores preocupados com o “modo como nos vemos a partir do olhar do outro”. A teoria do reconhecimento social, presente nas discussões Axel Honneth (2005, 2006, 2007) partem do pressuposto de que é no campo da ação que tomamos consciência de nós mesmos e do outro. Além disso, o self só adquire sentido, valor e status moralmente válido quando o outro o percebe como sujeito digno de afeto, direitos e estima social.
Nós só podemos nos entender como portadores de direitos quando conhecemos quais as várias obrigações normativas devemos manter vis-à-vis com os outros; somente quando tomamos a perspectiva do ‘outro generalizado’, a qual nos ensina a reconhecer os outros membros da comunidade como portadores de direitos, podemos também nos entender como pessoas legais, no sentido de que nós podemos estar seguros de que nossas demandas serão satisfeitas (Honneth,1995, p.108).
A contribuição de Mead para que a linguagem ocupasse lugar central nas reflexões filosóficas desenvolvidas ao longo do século XX (linguistic turn)[7] concentra-se em torno de alguns eixos principais: a passagem de uma interação mediada por gestos para uma interação mediada por símbolos; a perspectiva do outro generalizado e o uso racional da linguagem, uma vez que ela “implica respostas organizadas por meio do mecanismo do símbolo. Uma cooperação efetiva requer que utilizemos símbolos significantes por meio dos quais as respostas podem ser organizadas” (Mead, 1967 p.268).
George Herbert Mead já elevou a interação simbolicamente mediada ao novo paradigma da razão, associando-a à relação comunicativa entre os sujeitos, que está enraizada no ato de assumir o lugar do outro – ou seja, o ego torna suas as expectativas que um alter dirige a ele (Habermas, 1984, p.390).
Para Habermas, a virada linguística marca o entendimento de que os fatos comunicados não podem ser separados do processo de comunicação e, além disso, o conhecimento não coincide mais com a correspondência de sentenças e fatos (a intersubjetividade na obtenção de entendimento toma o lugar da objetividade da experiência), mas ele é fruto das interações que se estabelecem no “espaço público de um mundo vivido, compartilhado intersubjetivamente pelos usuários da linguagem” (2005, p. 173).
Não podemos conceber um mundo que exista objetivamente, desligado da subjetividade e intersubjetividade que nele se estabelecem. Também não podemos nos esquecer de que é exatamente por meio das relações práticas que se dão entre os indivíduos que o mundo se constitui e adquire sentido. Os indivíduos se inserem no mundo por meio da linguagem e, através dela, transformam suas relações na comunidade, bem como renovam e constroem o mundo à sua volta. Assim, o contexto de interação não é um “aparte”, mas um “entorno” construído simultaneamente às práticas interativas dos indivíduos em comunidade. As ligações entre contexto de interação, linguagem e indivíduos substituem o confronto direto do homem com o mundo, revelando que as respostas e argumentos subjetivos são examinados por meio da justificação pública obtida na comunidade de comunicação (Barbosa, 2006). A justificação é a ponte entre a experiência subjetiva e a transparência intersubjetiva.
Fortemente influenciado por Peirce, Dewey e Mead, Habermas constrói um entendimento das interações linguisticamente mediadas marcado por uma tentativa de articular noções como intersubjetividade, comunicação, racionalidade prática, discurso e ética. Segundo Habermas (1987, p.5), Mead trata a comunicação linguística sob dois aspectos: coordenar as ações orientadas para fins de diferentes sujeitos e mediar a sua socialização. Na visão desse autor, falta aí uma preocupação com a busca por um entendimento mútuo. Visando mostrar como o sentido partilhado aparece como fruto de interações voltadas para a cooperação e para a compreensão recíproca, Habermas percebe a linguagem como um meio de coordenar as ações dos sujeitos que, engajados em discursos práticos[8], buscam alcançar entendimento sobre algo no mundo.[9] Para o modelo da ação comunicativa, “a linguagem é relevante somente de um ponto de vista pragmático, no qual os falantes, ao empregarem sentenças orientadas para alcançar entendimento, relacionam-se com o mundo de uma maneira reflexiva” (Habermas, 1984, p.98).
O conceito de ação comunicativa refere-se à interação entre ao menos dois sujeitos capazes de fala e ação, os quais estabelecem relações interpessoais (seja por meios verbais ou não). Os atores procuram alcançar um entendimento sobre a situação de ação e seus planos de ação a fim de coordenar suas atitudes pela via do acordo. O conceito central de interpretação refere-se, um primeiro plano, à negociação de definições sobre a situação que admite consenso. A linguagem ocupa um lugar de destaque nesse modelo (Habermas, 1984, p.86).
É sobretudo na interseção entre as contribuições de Mead e Habermas, que Louis Quéré (1991) vai estruturar o paradigma praxeológico da comunicação. Tal paradigma considera que a abordagem comunicacional do mundo, isto é, sua construção pela ação (sendo que entendemos agir por começar, experimentar, criar algo novo) “relaciona-se a uma coletividade, a práticas comuns que os sujeitos efetuam, uns em relação aos outros e em relação ao mundo, sujeitos esses pertencentes a uma mesma comunidade de linguagem e de ação, e dispondo de mediações simbólicas compartilhadas (conceitos, jogos de linguagem, formas instituídas) efetuando uns em relação com os outros e em relação ao mundo” (1991, p.72).
O paradigma praxeológico sustenta que comunicar deixa de ser a mera troca de informações (produção e transmissão de conhecimentos) para ser um “locus” instituidor e instituído pela sociabilidade, ou seja, um mundo partilhado no qual os sujeitos se ligam e se constituem “por meio da alternância dos papéis comunicacionais da primeira e da segunda pessoa para constituir o espaço de sua interação” (Quéré, 1991, p. 80).
O engajamento dos sujeitos sociais na produção de um mundo comum se dá por meio da comunicação, aqui interpretada sob o viés de um agir conjunto. Tal mundo, construído através da ação, tem, em suas características complexas, a marca de cada sujeito realizada nos processos intersubjetivos de construção do sentido. E é exatamente a modelagem deste mundo comum, fundado em práticas e significados compartilhados (atualizados e instituídos pela linguagem na vivência rotineira dos indivíduos), que o paradigma praxeológico busca desvendar.
3 EXPERIÊNCIA E PRÁTICA POLÍTICA COMO COOPERAÇÃO COLETIVA EM MEIO AO DISSENSO
Uma reflexão de cunho pragmático que articule as noções de estética (no sentido do uso de táticas e da criatividade para libertar a ação e a experiência) e comunicação deve se preocupar em como pensar as relações que se estabelecem entre os indivíduos em um contexto social, ou seja, como se manifestam as formas situadas de contato, de diálogo, de negociação e de questionamento das ordens valorativas e simbólicas que ditam o modo como indivíduos desenvolvem suas ações e interações, não só em contextos institucionais, mas sobretudo nos múltiplos contextos das interações cotidianas. Assim, aos conceitos de estética e comunicação, creio ser necessário associar o conceito de política, entendida muito mais enquanto processos cotidianos informais de diálogo e de conversação em torno de questões morais e éticas do que como as relações tecidas no âmbito da política administrativa e formal.
A definição do conceito de experiência em Dewey é devedora de seu diálogo com a tríade que Peirce (1984) utilizava para compreender a maneira como nossa consciência acessa os fenômenos do mundo. A primeiridade está associada à maneira como experimentamos os fenômenos a partir dos sentidos, sem mobilizar conceitos e julgamentos, marcando a abertura a ambiências e atmosferas. A secundidade foi concebida por Peirce a partir da lei da Física que mostra que a toda ação corresponde uma reação. Nesse caso, os fenômenos do mundo passam a ser trabalhados por nós a partir da maneira como, de forma situada, nos dedicamos a agir sobre um dado fenômeno que resiste à nossa compreensão. Por fim, a terceiridade refere-se ao processo de produção de uma inteligibilidade em nosso contato com os outros e com as coisas, acentuando a interação recíproca como cooperação capaz de produzir signos. A reflexividade do sujeito em interação com o mundo e com os outros define representações capazes de conferir sentido à experiência, de forma que os signos são sínteses inteligíveis e compartilháveis que orientam a estabilização dos aprendizados e dos quadros normativos que definem parâmetros a partir dos quais definimos nossas ações.
Quando Dewey (2005) define a experiência ele se refere ao ritmo através do qual ela se desenvolve: iniciando-se de maneira perceptiva e sensorial, desdobrando-se na tentativa de compreender e encontrar formas de estabilizar o que acontece, rumo à uma forma de reflexividade que permite articular capacidades de sentir, julgar e agir, transformando a existência graças ao tipo de transações que uma pessoa empreende com seus diversos ambientes. É possível evidenciar como a experiência definida por Dewey move-se entre três dimensões: ter uma experiência, fazer uma experiência e sofrer (padecer) uma experiência.
De modo geral, a experiência ocorre continuamente, porque “a interação da criatura viva com as condições (de resistência e conflito) que a rodeiam está implicada no próprio processo da vida” (Dewey, 1980, p. 89). Contudo, grande parte de nossas experiências podem ser associadas ao “ter”, pois “não nos ocupamos da conexão de um incidente com o que sucedeu antes ou com aquilo que irá suceder depois. Não há interesse algum em controlar a seleção ou recusa atentas do que será organizado na experiência em movimento” (Dewey, 1980, p. 92). Assim, quando temos uma experiência, as coisas acontecem, mas não são trabalhadas para operarem em prol da transformação de uma pessoa, de seus vínculos e seu contexto.
Quando fazemos uma experiência, a vida individual e coletiva se transforma em um canteiro de obras no qual são testados, examinados, verificados e avaliados modos de vida, arranjos de ação pública ou saberes de sentido comum (Cefai, 2017). Sob esse aspecto, fazer uma experiência requer o envolvimento do sujeito em ações que permitam um engajamento na descoberta e organização dos sentidos em aprendizados e saberes. Assim, fazer uma experiência não se resume a registrar nossas impressões, mas envolve uma transação na qual nossas atividades influenciam o ambiente, de modo que esse resiste a elas, mas integra alguns de seus aspectos e “esse tensionamento constitui um conjunto de novas condições para nossa conduta e nossas experiências futuras” (Zask, 2007, p. 133).
Joelle Zask (2007) argumenta que a experiência se desenha e se desdobra a partir das interações cooperativas entre pessoas e grupos que vivenciam uma situação singular, delimitadas por diversos aspectos que configuram condições de vulnerabilidade e resistência de cada um e cada uma em relação ao ambiente relacional construído na prática comunicativa recíproca. Os constrangimentos, mas também as potencialidades de uma situação interferem na formação de uma forma de vida e, reciprocamente, os elementos que orientam a individualidade humana e seu conjunto de susceptibilidades particulares em um ambiente que modifica e é modificado pela ação e pelas interações entre os sujeitos.
Sofrer ou padecer uma experiência se relaciona, de acordo com Dewey, ao processo reflexivo que cria conexões entre acontecimentos pregressos, atuais e futuros, de modo a conferir uma dimensão de profundidade à experiência. Assim “deve-se estabelecer conexões entre o que já foi feito e o que se deve fazer em seguida, sem que essa relação entre as partes seja mecânica” (1980, p.96). As conexões a serem estabelecidas dependem do estabelecimento de pausas reflexivas no fluxo e ritmo da experiência, para que seja possível não apenas a promoção de novos aprendizados e imaginários, mas também a transformação do próprio sujeito, situado socialmente, historicamente e orientado por suas crenças e emoções. Importante mencionar que, para Dewey (1980), as emoções são qualidades significativas das experiências em sua complexidade e possuem dimensão política, orientando os sujeitos em suas decisões e ações.[10]
O padecer é movido pela reflexão que deriva dos obstáculos que enfrentamos e do capital ativo adquirido em experiências anteriores (significações vindas do pano de fundo de experiências passadas). O encontro entre o conhecido e o desconhecido envolve uma “recriação na qual o impulso presente adquire forma e solidez, enquanto que o material antigo que estava reservado é literalmente regenerado e ganha uma vida e uma alma novas ao enfrentarem uma nova situação” (Dewey, 2005, p.88).
Entre o fazer e o padecer da experiência se definem práticas de experimentação fundadas no jogo de reciprocidade entre os indivíduos e seus mundos. Fazer uma experiência é agir sobre as condições factuais de sua vida, reorientar condutas e se engajar em um processo de realização de si mesmo no qual a interdependência e a responsabilidade são fortalecidas. Padecer uma experiência é produzir espaços de reflexão e de respiro capazes de conectar criticamente os acontecimentos que atuam sobre os sujeitos em situações historicamente localizadas. Dewey (2005, p.105) ressalta que “cada lugar de descanso na experiência é um padecer em que são absorvidas e abrigadas as consequências de um fazer anterior, e cada fazer traz em si próprio um significado que foi extraído e conservado”. Os saberes elaborados pelo padecer, assim como os signos elaborados na terceiridade de Peirce, são sínteses e conexões entre diferentes elementos, dando origem a uma experiência que dispõe e redispõe esses tais elementos sem necessariamente seguir uma ordenação lógica de tempos, espaços e afetos.
É importante sublinhar que a relação entre fazer e padecer também é mobilizada por Dewey (2005) para construir uma abordagem experimentalista para a prática democrática cooperativa. De acordo com Zask (2007) e Cefai (2017), a experimentação permitia que pessoas e grupos definissem problemas coletivos a partir da mobilização de redes de debate nas quais a contribuição de todos orientava não apenas a busca por soluções, mas também formas partilhadas de interpretação e reflexividade.
Encontrar a boa resposta, reagir de modo a superar o problema ou a deficiência encontrada, são sinônimos da palavra experiência. Dewey chama de “enquete” o conjunto de procedimentos que conduz de uma dúvida ou um distúrbio a um objeto partilhável (uma vez que ele se torna parte do ambiente objetivável) (Zask, 2007, p. 133).
Diante de um problema definido por todos como importante, há a necessidade de um esforço, de uma busca cooperativa definida nos termos de operações destinadas a reorganizar os fragmentos de experiências que o encontro de uma dificuldade separou uns dos outros. A fim de ser superada, a situação problemática se transforma em terreno de problematização: ela é examinada afim de buscar elementos que possam ajudar a definir e depois, a solucionar o problema em pauta, afastando as armadilhas da desmobilização (Silva, 2022). Entre esses elementos, alguns se transformam em obstáculo e outros podem ser convertidos em recurso para transformar a situação (Quéré, 2003; Cefai, 2017).
As pessoas podem se reunir para problematizar a situação, identificar as consequências do que foi feito, produzir causas e estabelecer responsabilidades, buscar e implementar soluções, fazer valer direitos e obrigações, etc. Nessas condições, a experiência da situação muda de status: torna-se compartilhada não apenas porque um certo número de pessoas passa a ser exposto aos mesmos eventos, a suportar as mesmas coisas e a reagir de forma semelhante, mas também porque a constituíram em conjunto como comum, por meio de suas perguntas, de suas investigações, de suas análises e do alinhamento de suas reações. Sua situação se tornou idêntica em novos aspectos porque se configurou em um ato comum de problematização e articulação reflexiva do padecido e do fato. (Quéré, 2003, p. 133)
Um público nasce e se transforma junto com a instauração de uma situação problemática vivenciada de maneira comum (Cefai, 2017): a verificação gradual dos dados, a organização progressiva das descobertas e a narrativização de acontecimentos provoca não apenas sentimentos e percepções, mas permite descobrir aspectos inexplorados do mundo, de si mesmo, de uma coletividade, transformando perspectivas. Quéré (2003, p. 119) entende que um público vivencia e dá forma a uma experimentação política quando “explora e redispõe os detalhes de acontecimentos, transformando a percepção das coisas e conferindo orientação ao desejo de compreender através do debate, do diálogo e de uma agência pautada pelo conflito que amplia os horizontes e os interesses comuns articulados.
O pensamento de Dewey (2008) sobre a democracia, ao salientar a importância da cooperação, da partilha e da definição de outras coordenadas para a experiência nos lembra de que a política não é o exercício do poder, ou a luta pelo poder. Ela é, como define Dewey (2005, 2008), a configuração de um espaço específico, o enquadramento de uma esfera particular da experiência, de objetos tidos como comuns e como pertencentes a uma decisão comum de sujeitos reconhecidos como capazes de designar esses objetos e apresentar argumentos acerca deles em uma relação de igualdade e abertura à negociação.
A democracia é um modo de vida que é conduzido pela fé pessoal no cotidiano pessoal de trabalho conjunto com outras pessoas. Democracia é a crença de que mesmo quando necessidades e fins ou consequências são diferentes para cada indivíduo, o hábito de cooperação amigável – que pode incluir, como no esporte, rivalidade e competição – é em si um acréscimo valioso à vida. Afastar, ao máximo possível, todo conflito que surgir – e certamente eles surgirão – da atmosfera e meio da força, de violência como um meio de solução e resolvê-lo através de discussão e inteligência significa tratar aqueles que discordam – mesmo profundamente – de nós como aqueles com quem podemos aprender e, na medida do possível, como amigos. (Dewey, 2008, p. 134)
O modo como a prática política se entrelaça com a vida e as experiências dos sujeitos não é meramente uma questão de discursos e tecnologias, estratégias e emprego de constrangimentos de poder. A política está diretamente ligada “ao modo concreto por meio do qual indivíduos e grupos são tratados, sob quais princípios e em nome de quais princípios morais, implicando as desigualdades e ausência de reconhecimento social que afligem os sujeitos” (Fassin, 2009, p.57). Em sua relação com a justiça e as dimensões éticas da vida em comum, Dewey (2008) enfatiza o quanto a experiência política está associada à liberdade de crença, de investigação, de discussão, de reunião, de ensino: no método da inteligência pública, em oposição a uma coerção que aparentemente passa a ser exercida em nome da suposta liberdade suprema de todos os indivíduos.
A democracia é uma prática da experiência comunitária que, segundo Dewey (2008), se organiza em torno da cooperação, da inteligência coletiva organizada e da maneira de expor abertamente os conflitos derivados de reivindicações específicas. Em certa medida, Fassin (2009) e Rancière (2016) desenham noções que dialogam com a proposta de Dewey, argumentando a importância da produção conjunta de cenas polêmicas nas quais os sujeitos e suas demandas possam aparecer, ser vistas e avaliadas, onde elas possam ser discutidas à luz de interesses mais inclusivos que são representados por qualquer um deles separadamente. Acreditamos que fazer e padecer uma experiência são processos comunicacionais que requerem uma espacialidade e uma temporalidade que podem ser definidas pela cena polêmica.
Uma polêmica perturba e desloca a ordem social vigente e as identidades sociais impostas. Ao falar sobre o modo como aqueles que são excluídos da política se organizam para serem considerados, Rancière afirma que eles têm que construir uma cena polêmica para que ela seja a base da ação política: “a cena polêmica comum é onde colocam em discussão o status objetivo do que é dado e propõem um exame e uma discussão dessas coisas que não eram visíveis ou consideradas anteriormente” (2000, p.125).
Para Rancière (1995, 2000, 2010), a política deve ser concebida como um modo de questionar a partilha de tempos, espaços e regimes de visibilidade, lançando luz sobre identidades rodeadas pela obscuridade e pela dominação, desestabilizando práticas que determinam a parte e o papel que cada um deve ocupar em uma ordem imposta. Assim, a política é o verdadeiro “conflito entre a existência desse espaço, a designação de objetos pertencentes à ordem do comum e os sujeitos que possuem a capacidade recíproca de fala” (Rancière, 2009, p. 24).
A política ocorre quando aqueles que “não têm tempo” conseguem o tempo necessário para aparecerem enquanto habitantes de um espaço comum e demonstrar que sua boca pode emitir discursos capazes de se configurar como pronunciamentos sobre o comum, os quais não podem ser reduzidos a vozes que sinalizam a dor. Essa distribuição e redistribuição de lugares e identidades, essa fragmentação e reunificação de espaços e tempos, do visível e do invisível, do ruído e da fala constitui o que chamo de partilha do sensível. A política consiste na reconfiguração da partilha do sensível, que define o comum de uma comunidade, introduzindo nele novos sujeitos e objetos, para tornar visível o que não era, e para fazer ouvir falantes que até então tinham sido percebidos como meros animais barulhentos (Rancière, 2009, p.25).
Enquanto a estética abrange “todas as coisas que implicam a promoção permanente de outros agenciamentos enunciativos, outros recursos semióticos, uma alteridade apreendida em sua posição de emergência (não xenófoba, não racista, não falogocrática), devires intensivos e processuais, um novo amor pelo desconhecido e pela singularidade, enfim, uma ruptura com os consensos” (Guattari, 1992, p.147), a política envolve formas de alterar as divisões entre o vísível e o invisível, o consenso e a singularidade, a disciplina e a resistência.
Pragmatistas como Rorty (2000) e Dewey (2005) tratam dessas questões referindo-se ao progresso moral das sociedades contemporâneas. Rorty, especialmente, afirma a necessidade de associarmos razão e sentimentos para evidenciar as características de um mundo comum[11] que constitui e é constituído por meio das interações sociais:
Nós, pragmatistas, pensamos no progresso moral mais como o processo de costurar uma imensa, policromática e elaborada colcha de retalhos do que como alcançar uma visão mais clara de algo verdadeiro e profundo. (...) A esperança é de costurar grupos diferentes e opostos com uma infinidade de pequenos pontos – invocar uma porção de pequenas coisas comuns aos seus membros, ao invés de especificar a única e grandiosa humanidade comum entre eles (Rorty, 2000, p.120-121).
Entre a estética e a política, a comunicação assume o papel de colocar em evidência a experiência cotidiana dos sujeitos, que emerge no contato situado com o outro, no desvelamento e na construção de identidades que tomam forma através da narrativa, da argumentação racional, da expressividade emotiva e do conhecimento conflituoso da alteridade. A comunicação, enquanto processo relacional e prática reflexiva, é a chave que permite uma reconfiguração do “comum” entre os sujeitos (dimensão estética), articulada a um questionamento daquilo que, na dimensão política, é tido como “nossa situação, que nome lhe pode ser dado e que sentido se pode retirar dela, quem é capaz de vê-la, de compreendê-la e de discuti-la” (Rancière, 2008, p. 102).
A situação de comunicação marca não só a importância da contextualização dos interlocutores, mas também a tematização de uma questão percebida como pertencente ao âmbito do “comum”. É interpelando os outros e sendo por eles interpelados que os sujeitos se reconhecem como membros de uma comunidade e reconhecem os outros como seus pares de interação. A trama que resulta de tais interações é feita de fios narrativos que entrelaçam as histórias biográficas subjetivas, a cultura, os significados compartilhados coletivamente e, é claro, as formas simbólicas providas pelos media.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na perspectiva praxeológica, a vida coletiva e comunicacional dos sujeitos privilegia não a experiência de acontecimentos e elementos separados, com funções definidas, mas o quadro interativo, o lugar da intervenção e da multiplicidade de associações e apropriações. É aí, e somente aí – nas interfaces, no conflito e nos intervalos de reflexividade que os elementos ganham sentido e compõem a experiência transformadora. É correlacionando as partes, preservando a singularidade de cada uma, que apreendemos a situação mais ampla, o trabalho conjugado de modelagem de um mundo comum, configuração recíproca dos termos da relação (França, 2003, p.47).
Se o modelo praxeológico considera que as relações práticas dos indivíduos se desenvolvem tendo como pano de fundo significados compartilhados, devemos, por outro lado, considerar que esses significados estão em constante atualização e recriação. Eles não são dados mais pela imposição de uma tradição, mas são implementados pelos discursos reflexivos dos indivíduos, pela linguagem e, até mesmo, pelas reapropriações dos recursos simbólicos midiáticos. É desse manancial que se serve a perspectiva praxeológica proposta por Quéré, em diálogo com Dewey, Mead e Habermas, uma vez que ele vê a comunicação distante do lugar onde os sujeitos monológicos trocam signos linguísticos organizados de maneira informativa. Para esse autor, a comunicação deve ser pensada como uma prática que visa à modelagem mútua, processual e intersubjetiva de um mundo comum. As subjetividades, juntamente com suas identidades, disposições e sentimentos são reformuladas e construídas na interação, de modo que a construção do mundo comum considere sempre um campo de visibilidade e de significados compartilhados.
A importância das interações comunicativas, das justificações recíprocas e da publicização de premissas está em não permitir que as práticas relacionais e os valores sociais se tornem estanques, ou seja, que eles se vejam sempre conduzidos e engessados pelos mesmos e tradicionais significados. A comunicação, vista como interação entre interlocutores, discursos, dispositivos, espaços conversacionais e interpretações, articula distâncias sem destruí-las, aproxima diferenças sem dissolvê-las e confere destaque à singularidade da experiência por meio de um trabalho minucioso, que aparece sob a forma de uma multitude de pontos e de elementos responsáveis por estabelecer o contato e a interdependência entre os indivíduos. Contato esse que nunca aparece sob uma única forma, pois é, ao mesmo tempo, afetivo e racional, consensual e conflitivo, estético e político.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Ricardo. Experiência Estética e racionalidade comunicativa. In: GUIMARÃES, C.; LEAL, B.; MENDONÇA, C. (org.). Comunicação e Experiência Estética. Belo Horizonte, MG: UFMG, 2006. p.27-49.
BERNSTEIN, Richard. The resurgence of pragmatism. In: GOODMAN, Russell (ed.). Pragmatism: critical concepts in philosophy. London: Routledge, 2005. v. 4, p. 54-73.
CEFAI, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p.187-213, mar./2017.
DEWEY, John. A arte como experiência. In: Dewey: vida e obra. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 89-105. (Os Pensadores)
DEWEY, John. L’art comme expérience. Pau: Farrago, 2005.
DEWEY, John. Em busca do público (1927). In: FRANCO, A.; POGREBISCHI, T. Democracia Cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey (1927-1939). Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008. p. 25-50.
DEWEY, John. Democracia criativa: a tarefa diante de nós (1939). In: FRANCO, A.; POGREBISCHI, T. Democracia Cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey (1927-1939). Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008, p.135-142.
FASSIN, Didier. Another Politics of Life is possible. Theory, Culture & Society, Reino Unido, v. 26, n. 5, p. 44-60, sept. 2009.
FRANÇA, Vera. Paradigmas da comunicação: conhecer o quê?. In: FRANÇA, V. MOTTA, Luiz G. et al. (org.). Estratégias e culturas da comunicação. Brasília: Editora UnB, 2002, p.13-30.
FRANÇA, Vera. Louis Quéré: dos modelos da comunicação. Fronteiras, São Leopoldo/RS, v. 5, n. 2, p. 37-51, 2003.
FRANÇA, Vera. Reflexões sobre a Comunicação: esse estranho objeto. Geraes: Revista de Comunicação Social, Belo Horizonte, n. 48, p. 2-6, jun./1997.
FRANÇA, Vera. Interações comunicativas: a matriz conceitual de G. H. Mead. In: PRIMO, Alex; OLIVEIRA, A. C.; NASCIMENTO, G.; RONSINI, V. M. (org.). Comunicação e Interações. 1. ed. Porto Alegre: Sulina, 2008. v. 1, p. 71-91.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.
HABERMAS, J. The Theory of communicative action: reason and the rationalization of society. Boston: Beacon Press, 1984. v. 1.
HABERMAS, J. The Theory of communicative action: lifeworld and system, a critique of functionalism reason. Boston: Beacon Press, 1987. v. 2.
HABERMAS, J. A virada pragmática de Richard Rorty. In: SOUZA, João Crisóstomo de. (org.). Filosofia, racionalidade, democracia: os debates de Rorty & Habermas. São Paulo: Ed. Unesp, 2005. p. 163-212.
HABERMAS, Jürgen. A Reply to my Critics. In: THOMPSON, John B.; HELD, David (ed.). Habermas: critical debates. Cambridge: MIT Press, 1982. p.219-283.
HABERMAS, Jürgen. Ações, atos de fala, interações mediadas pela linguagem e mundo da vida. In: Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.
HABERMAS, Jürgen. Jürgen Habermas: Morality, Society and Ethics – an interview with Torben Hviid Nielsen, Acta Sociologica, Londres, n. 33, v. 2, p. 93-114, 1990.
HERRERO, Xavier. O homem como ser de linguagem. In: PALÁCIO, Carlos (org.). Cristianismo e História. São Paulo: Edições Loyola,1982. p. 73-114.
HONNETH, Axel. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Cambridge: MIT Press, 1995.
JOAS, Hans. The creativity of action. In: GOODMAN, Russell (ed.). Pragmatism: critical concepts in philosophy. London, Routledge, 2005. v. 4.
MAIA, R. C; FRANÇA, V. R. A comunidade e a conformação de uma abordagem comunicacional dos fenômenos. In: LOPES, Maria Immacolata Vassallo de (org.). Epistemologia da comunicação. Rio de janeiro: Ed. PUC Rio; São Paulo: Edições Loyola, 2004. p.187-204.
MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 1999.
MEAD, G. H. Mind, self and society. Chicago: The University of Chicago Press (Phoenix Books), 1967.
PEIRCE, Charles. Semiótica e filosofia. São Paulo, Cultrix, 1984.
PELBART, Pete Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
QUÉRÉ, Louis. D’un modèle épistémologique de la communication a un modèle praxéologique. Réseaux, v.9, n. 46-47, 1991, p.69-90.
QUÉRÉ, Louis. Le public comme forme et comme modalité d’expérience. In : CEFAI, Daniel ; PASQUIER, Dominique (eds.). Le sens du public, Paris: PUF-CURAPP, 2003, p.113-133.
QUÉRÉ, Louis; OGIEN, Albert. Le vocabulaire de la sociologie de l’action. Paris: Ellipses, 2005.
RANCIÈRE, Jacques. La Mésentente : politique et philosophie. Paris: Galilée, 1995.
RANCIÈRE, Jaques. Dissenting words: a conversation with Davide Panagia. Diacritics, v.30, n.2, 2000, p.113-126.
RANCIÈRE, Jacques. As Desventuras do Pensamento Crítico. In: CARDOSO, Rui (org.). Crítica do contemporâneo: Giorgio Agamben, Giacomo Marramao, Jacques Rancière, Peter Sloterdijk. São Paulo: Fundação Serralves, 2008. p.79-102.
RANCIÈRE, Jacques. The method of equality: an answer to some questions. In: ROCKHILL, G.; WATTS, P. (eds.). Jacques Rancière: History, Politics, Aesthetics. Duke University Press, 2009. p. 273-288.
RANCIÈRE, Jacques. Ten Thesis on politics. In : CORCORAN, Steven (ed.). Dissensus: on politics and aesthetics. London : Continuum, 2010, p.27-43.
RANCIÈRE, Jacques. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016.
RODRIGUES, Adriano Duarte. Comunicação e Experiência. Revista BOCC, v.2, n.1, 2000, p.1-7. Disponível em: https://arquivo.bocc.ubi.pt/pag/rodrigues-adriano-comunicacao-experiencia.pdf. Acesso em 20 mai. 2025.
RORTY, Richard. Um mundo sem substâncias ou essências. In: MAGRO, Cristina; PEREIRA, Antônio M. (orgs.). Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. p.53-92.
SILVA, Daniel Reis. Dinâmicas da desmobilização: entraves aos processos de formação e movimentação de públicos. In: SILVA, D.; HENRIQUES, M. (org.). Públicos em movimento: comunicação, colaboração e influência na formação de públicos. 1. ed. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora, 2022. v. 1, p. 261-287.
ZASK Joelle. Anthropologie de l’expérience. In: DEBAISE, Didier (ed.). Vie et expérimentation : Peirce, James et Dewey. Paris: Librairie de Philosophie J. Vrin, 2007, p.129-146.
[1] A realização deste artigo contou com o apoio do CNPq.
[2] Professora Associada do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Comunicação Social pela UFMG (2007) e mestre em Comunicação Social pela mesma instituição. Realizou pós-doutorado em Comunicação e em Ciências Sociais na cidade de Grenoble (França).
[3] Doutor em Comunicação Social pelo PPGCOM-UFMG e professor do PPGCOM da Universidade de Viçosa.
[4] Para Adriano Duarte Rodrigues (1994), a experiência tem origem na vivência de fenômenos ou de acontecimentos. Ele cita três tipos-ideais de experiência: a do mundo natural, do mundo intersubjetivo e do mundo intrassubjetivo. Essas três formas de experiência estão imbricadas: elas determinam e são determinadas pelo uso da linguagem e da comunicação para a produção de sentidos e entendimentos compartilhados.
[5] “Nunca seremos capazes de apreender uma realidade que não seja mediada por uma descrição linguística. (...) Dizer que tudo é uma construção social é dizer que nossas práticas linguísticas estão tão entrelaçadas com nossas outras práticas sociais que nossas descrições da natureza, assim como nossas descrições de nós mesmos, serão sempre uma função de nossas necessidades sociais” (Rorty, 2000, p. 57).
[6] Mead deu aulas na Universidade de Chicago na década de 1920, mas suas ideias foram publicadas postumamente. A expressão “Interacionismo simbólico” aparece em 1937, em um artigo escrito por Herbert Blumer, que havia sido seu aluno. É importante salientar que Mead colaborou com os trabalhos de Dewey, reforçando o viés pragmatista partilhado por ambos.
[7] A expressão “virada linguística” ganhou força em 1967, quando Richard Rorty editou uma coletânea com o título de The linguistic turn. A partir daí, a expressão ganhou popularidade. Habermas (2005), ao comentar a obra de Rorty, ressalta como a linguagem é central para a representação e a comunicação do conhecimento, uma vez que este só se concretiza por meio da justificação pública. Essa expressão também destaca o fato de que “nós não temos nenhum acesso independente às entidades no mundo. Esse acesso depende de nossas práticas linguísticas de atingir compreensão e do contexto, linguisticamente constituído, do nosso mundo vivido” (Habermas, 2005, p.173).
[8] O conceito de discurso só é utilizado por Habermas quando se refere ao uso racional da linguagem voltado para o entendimento ou “somente se a argumentação pode ser conduzida de forma suficientemente aberta e contínua ao longo do tempo” (Habermas, 1984, p.42).
[9] “Atores comunicativos se movem em meio à linguagem, constituída por meio de interpretações transmitidas culturalmente, e relacionam-se simultaneamente a algo nos mundos objetivo, social e subjetivo” (Habermas, 1984, p.392). “O conceito de ação comunicativa pressupõe a linguagem como o meio para um tipo de alcance de entendimento, no curso do qual os participantes, ao se relacionarem com um dos três mundos (social, objetivo e subjetivo), constroem reciprocamente demandas de validade que podem ser aceitas ou contestadas” (Habermas, 1984, p.99).
[10] “A emoção é a força que move e consolida: ela seleciona o que é congruente e tinge com seu matiz aquilo que é selecionado, proporcionando assim, unidade qualitativa a materiais externamente díspares e dessemelhantes. Provê, portanto, unidade em e através das partes variadas da experiência” (Dewey, 1980, p. 94).
[11] Podemos pensar aqui na noção de mundo comum desenvolvida por Xavier Herrero (1982) a partir de Hannah Arendt. Para ele, o mundo comum articula os sujeitos em uma trama visível feita por fatos e eventos tangíveis no seu acontecimento e que se materializa na comunicação intersubjetiva, através da qual as opiniões se formam e os julgamentos se constituem. Nesse caso, o espaço público significa mais do que a um espaço de convivialidade: ele produz sentidos e valores derivados de conversações, da partilha de percepções e afetos, da produção de um senso comum que assegura a capacidade de discernimento que a compreensão e o julgamento exigem, enquanto maneira especificamente humana de se fazer e de se padecer a experiência da realidade.