CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO EM SAÚDE
desafios tecnológicos e éticos na razão pública contemporânea
Márcio José Sembay[1]
Universidade Federal de Santa Catarina
marcio.sembay@posgrad.ufsc.br
Douglas Dyllon Jeronimo de Macedo[2]
Universidade Federal de Santa Catarina
douglas.macedo@ufsc.br
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Resumo
A crescente digitalização da saúde, impulsionada por sistemas de informação, algoritmos e inteligência artificial, redefine as práticas clínicas, a gestão e a circulação de informações na esfera pública. O presente artigo objetiva analisar a ciência da informação em saúde diante dos desafios tecnológicos e éticos que impactam a razão pública contemporânea. Busca-se investigar como a circulação de informações em saúde, mediada por sistemas digitais, algoritmos e inteligência artificial, pode tanto fortalecer a autonomia cidadã e a deliberação democrática quanto reproduzir assimetrias e invisibilizações. Para isso, será realizada pesquisa de natureza teórica, qualitativa e bibliográfica, fundamentada em revisão narrativa da literatura, contemplando estudos que abordam a relação entre informação em saúde, tecnologia e esfera pública. A discussão é orientada por perspectivas críticas, incluindo reflexões inspiradas em teorias da comunicação e ética da informação, que subsidiam a proposição de diretrizes para que a ciência da informação em saúde atue como mediadora ética e crítica, capaz de promover práticas comunicativas transparentes, inclusivas e socialmente responsáveis.
Palavras-chave: Ciência da Informação em Saúde. Ética da Informação. Esfera Pública.
INFORMATION SCIENCE IN HEALTH
technological and ethical challenges in contemporary public reason
Abstract
The increasing digitalization of healthcare, driven by information systems, algorithms, and artificial intelligence, redefines clinical practices, management, and the circulation of information in the public sphere. This article aims to analyze information science in health in the face of the technological and ethical challenges that impact contemporary public reason. It seeks to investigate how the circulation of health information, mediated by digital systems, algorithms, and artificial intelligence, can both strengthen citizen autonomy and democratic deliberation and reproduce asymmetries and invisibilities. To this end, theoretical, qualitative, and bibliographical research will be conducted, based on a narrative literature review, encompassing studies that address the relationship between health information, technology, and the public sphere. The discussion is guided by critical perspectives, including reflections inspired by communication theories and information ethics, which support the proposition of guidelines for health information science to act as an ethical and critical mediator, capable of promoting transparent, inclusive, and socially responsible communication practices.
Keywords: Health Information Science. Information Ethics. Public Sphere.
CIENCIAS DE LA INFORMACIÓN EN SALUD
desafíos tecnológicos y éticos en la razón pública contemporánea
Resumen
La creciente digitalización de la atención sanitaria, impulsada por sistemas de información, algoritmos e inteligencia artificial, redefine las prácticas clínicas, la gestión y la circulación de información en la esfera pública. Este artículo analiza las ciencias de la información en salud frente a los desafíos tecnológicos y éticos que afectan a la razón pública contemporánea. Busca investigar cómo la circulación de información sanitaria, mediada por sistemas digitales, algoritmos e inteligencia artificial, puede tanto fortalecer la autonomía ciudadana y la deliberación democrática como reproducir asimetrías e invisibilidades. Para ello, se realizará una investigación teórica, cualitativa y bibliográfica, basada en una revisión narrativa de la literatura, que abarca estudios que abordan la relación entre la información sanitaria, la tecnología y la esfera pública. La discusión se guía por perspectivas críticas, incluyendo reflexiones inspiradas en las teorías de la comunicación y la ética de la información, que respaldan la propuesta de directrices para que las ciencias de la información en salud actúen como un mediador ético y crítico, capaz de promover prácticas de comunicación transparentes, inclusivas y socialmente responsables.
Palabras clave: Ciencias de la información en salud. Ética de la información. Esfera pública.
1 INTRODUÇÃO
A saúde, enquanto campo de saber e prática social, encontra-se em um processo acelerado e profundo de transformação digital. A convergência de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), a ubiquidade de sistemas eletrônicos para saúde (como o Prontuário Eletrônico do Paciente - PEP) e a emergência de ferramentas analíticas baseadas em Inteligência Artificial (IA) reconfiguram não apenas os processos assistenciais, mas também a própria natureza da informação em saúde e seu fluxo na sociedade (Sittig; Singh, 2010). Este fenômeno situa-se no cerne da Ciência da Informação em Saúde, campo interdisciplinar dedicado a estudar, pesquisar e praticar o provimento de informações de saúde de forma otimizada, e que se vê desafiado a responder a questões que transcendem a técnica, adentrando o domínio da ética e da política (Shortliffe, 2014).
Neste contexto, a razão pública entendida como o exercício coletivo e deliberativo da razão por cidadãos livres e iguais para decidir sobre questões de justiça e bem comum é diretamente impactada (Rawls, 1995). A mediação tecnológica da informação em saúde pode potencializar a autonomia dos cidadãos, fornecer subsídios para políticas públicas baseadas em evidências e fomentar uma esfera pública mais informada. No entanto, essa mesma mediação pode gerar novos e complexos problemas. A opacidade algorítmica, os vieses embutidos nos conjuntos de dados de treinamento de sistemas de IA, a comercialização de dados sensíveis e a criação de novas formas de exclusão digital ameaçam aprofundar assimetrias de poder e invisibilizar populações já marginalizadas (O'Neil, 2017; Noble, 2018).
Diante deste cenário paradoxal, o presente artigo tem como objetivo analisar a Ciência da Informação em Saúde frente aos desafios tecnológicos e éticos que impactam a razão pública contemporânea. Parte-se da premissa de que a informação em saúde não é um recurso neutro, mas um artefato carregado de valores, relações de poder e potencialidades sociais. A pergunta central que orienta esta investigação é: de que maneira a circulação de informações em saúde, mediada por sistemas digitais, algoritmos e IA, pode tanto fortalecer a autonomia cidadã e a deliberação democrática quanto reproduzir assimetrias e invisibilizações?
Para responder a essa questão, o artigo está estruturado da seguinte forma. Após esta introdução, o tópico 2 delineia o percurso metodológico. O tópico 3 descreve sobre a Ciência da Informação em Saúde de forma geral. O tópico 4 explora a reconfiguração da esfera pública da saúde pela tecnologia. O tópico 5 analisa os desafios éticos e políticos emergentes, com foco em privacidade, vieses algorítmicos e justiça informacional. O tópico 6 propõe diretrizes e o papel mediador da Ciência da Informação em Saúde. Por fim, as Considerações Finais sintetizam as reflexões e apontam direções futuras.
2 METODOLOGIA
Este estudo caracteriza-se por sua natureza teórica, qualitativa e bibliográfica. A abordagem qualitativa é adequada para explorar a complexidade e a profundidade dos fenômenos sociais e éticos em análise (Minayo, 1994). A pesquisa foi conduzida por meio de uma revisão narrativa da literatura, que permite uma análise crítica e interpretativa do estado da arte, sem a pretensão de esgotar a produção sobre o tema, mas de construir uma síntese coerente e fundamentada a partir de fontes relevantes (Rother, 2007).
O corpus de análise foi composto por obras clássicas e contemporâneas que articulam os eixos temáticos centrais: Ciência da Informação em Saúde, ética aplicada às tecnologias da informação, filosofia política (com ênfase no conceito de razão pública), estudos críticos sobre algoritmos e teoria da comunicação. A seleção dos textos priorizou publicações em periódicos científicos internacionais de alto impacto, livros de autores consagrados e trabalhos que oferecem perspectivas críticas necessárias para o escopo do artigo.
A análise do material foi orientada por uma perspectiva hermenêutica, buscando interpretar e inter-relacionar os conceitos e argumentos dos autores selecionados para construir uma reflexão original e contextualizada sobre o problema de pesquisa. A discussão resultante não é meramente descritiva, mas analítica e propositiva, visando contribuir para o debate acadêmico e profissional no campo.
3 CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO EM SAÚDE
A intersecção entre a Ciência da Informação e a Saúde transcende a simples gestão de acervos documentais e científicos. Ela se manifesta de forma dinâmica no próprio ciclo informacional, onde o uso da informação abre perspectivas para investigar o comportamento informacional, um campo que se fortalece pela colaboração entre profissionais das duas áreas (Neves; Braz, 2018).
Nesse contexto, Ribeiro (2009) sustenta que, no domínio da saúde, todos os processos relacionados à produção, preservação e uso da informação, seja no âmbito dos serviços, seja no dos sistemas e organizações que carecem de uma compreensão fundamentada nos princípios da Ciência da Informação. A autora demonstra que essa colaboração é particularmente fértil na análise e otimização dos Sistemas de Informação em Saúde (SIS). Essa atuação conjunta abrange desde estudos organico-funcionais e a análise de fluxos informacionais até a aplicação de normas para representação da informação, estudos de avaliação para preservação de longo prazo e a implementação de modelos e esquemas de metainformação.
Dessa relação sinérgica, emerge a competência em informação em saúde, conceituada por Fong (2018) como a capacidade de obter, processar e compreender informações e serviços básicos de saúde para embasar decisões adequadas nesse campo. Neste processo, a tecnologia da informação configura-se como um elemento catalisador, integrando-se naturalmente a esses movimentos de inter-relação. Seu papel, como destacam Brito et al. (2020, p. 184), é fundamental “[...] a fim de contribuir para o alcance da competência em informação que se espera da população assistida e das organizações de saúde que assistem tal população”.
Desta forma, a Ciência da Informação em Saúde consolida-se como disciplina essencial para a estruturação de sistemas informacionais na área da saúde brasileira. Ao aplicar seus fundamentos teóricos e metodológicos, este campo possibilita a organização e o fluxo eficiente de dados em ambientes de saúde, assegurando uma prestação de serviços digitais que seja segura, qualificada e centrada no paciente. Assim, a Ciência da Informação em Saúde possibilita investigar melhores práticas, diagnosticar desafios e promover inovações na gestão de dados nos mais variados cenários, fornecendo insights estratégicos que impulsionam a transformação digital no setor (Sembay et al, 2024).
Portanto, a Ciência da Informação em Saúde é fundamental para criar SIS saúde no Brasil que sejam, ao mesmo tempo, tecnologicamente avançados e em conformidade com as leis. Ela fornece os princípios para o tratamento e a governança dos dados, assegurando que as informações dos cidadãos sejam não apenas seguras e confiáveis, mas também interoperáveis, permitindo uma visão integral do paciente entre diferentes serviços de saúde (Sembay, 2023).
4 A RECONFIGURAÇÃO TECNOLÓGICA DA ESFERA PÚBLICA EM SAÚDE
A noção de esfera pública, tal como elaborada por Jürgen Habermas (1984), refere-se a um domínio da vida social no qual os cidadãos podem debater livremente questões de interesse comum, formando uma opinião pública que pode influenciar a ação do estado. Na saúde, essa esfera sempre existiu, embora de forma limitada, mediada tradicionalmente por profissionais de saúde, instituições e veículos de comunicação de massa. A digitalização, no entanto, promove uma reconfiguração radical desse espaço.
A primeira grande transformação reside na explosão de fontes informacionais. Plataformas de prontuários eletrônicos, aplicativos de saúde, fóruns online, redes sociais especializadas e portais de instituições de saúde criam um ecossistema informacional denso e fragmentado. Para Sittig e Singh (2010), os sistemas de informação clínica evoluíram de meros repositórios de dados para sistemas sociotécnicos complexos, nos quais interações humanas, processos clínicos e tecnologias hardware e software estão profundamente interligados. Isso significa que a informação em saúde deixa de ser um subproduto da prática clínica para se tornar um ativo central, que circula em múltiplas direções e velocidades.
Neste novo ambiente, o cidadão é convidado, e por vezes forçado a assumir um papel mais ativo na gestão de sua própria saúde, fenômeno que alguns autores denominam de “biocidadania” ou “patient empowerment” (Lupton, 2013). O acesso a informações sobre doenças, tratamentos e serviços de saúde, teoricamente, ampliaria a autonomia do indivíduo, permitindo-lhe participar de forma mais qualificada de decisões sobre seu cuidado e de debates públicos sobre políticas de saúde. Nesse sentido, a tecnologia poderia funcionar como um potencializador da razão pública, fornecendo os insumos informacionais necessários para uma deliberação democrática mais fundamentada.
No entanto, essa mediação tecnológica não é transparente nem neutra. A curadoria e a circulação da informação são cada vez mais geridas por algoritmos e sistemas de IA. Ferramentas de apoio à decisão clínica, sistemas de predição de surtos e algoritmos para alocação de recursos são exemplos de como a IA está sendo integrada ao cotidiano da saúde. Esses sistemas prometem maior eficiência, precisão e personalização. Porém, sua operação é frequentemente um segredo comercial ou de complexidade técnica inacessível ao público leigo, criando uma “caixa-preta” que dificulta o escrutínio público (Pasquale, 2015).
A esfera pública da saúde, portanto, torna-se uma esfera pública algorítmica, onde a visibilidade, a credibilidade e a própria definição do que é um problema de saúde relevante são influenciadas por lógicas computacionais (Just; Latzer, 2017). Isso coloca a Ciência da Informação em Saúde diante de um duplo desafio: compreender tecnicamente o funcionamento desses sistemas e criticamente analisar seus impactos sociais e políticos na formação da opinião pública e na construção da agenda de saúde.
5 DESAFIOS ÉTICOS E POLÍTICOS EMERGENTES: DA PRIVACIDADE À JUSTIÇA INFORMACIONAL
O cenário de intensa dataficação da saúde traz à tona uma série de dilemas éticos que desafiam os marcos tradicionais da bioética e exigem uma reflexão ancorada numa ética da informação (Floridi, 2013). Estes desafios têm implicações diretas para a qualidade da razão pública.
5.1 PRIVACIDADE, VIGILÂNCIA E COMODIFICAÇÃO DE DADOS
O princípio da confidencialidade é um pilar da relação clínica. Contudo, a escala e a granularidade dos dados coletados hoje que vão desde informações genéticas até padrões de sono e locomoção, transformam a privacidade em um problema de nova magnitude. Zuboff (2019) cunhou o termo “capitalismo de vigilância” para descrever a lógica econômica que extrai valor comportamental de dados humanos, muitas vezes sem um conhecimento ou consentimento significativo dos indivíduos.
Na saúde, isso se traduz na transformação de dados sensíveis em ativos transacionáveis, comercializados entre empresas de tecnologia, seguradoras e instituições de pesquisa. O risco não é apenas a violação da intimidade, mas a possibilidade de uso desses dados para discriminação em seguros de saúde, empregos ou mesmo para manipulação comportamental por meio de publicidade direcionada. Esse ambiente de vigilância pode ter um efeito inibidor sobre a participação cidadã, pois os indivíduos podem temer que suas opiniões ou buscas por informações sobre condições de saúde estigmatizadas sejam rastreadas e usadas contra eles, corroendo a liberdade de expressão necessária para uma esfera pública robusta.
5.2 VIESES ALGORÍTMICOS E A REPRODUÇÃO DE DESIGUALDADES
Um dos maiores perigos para a razão pública na saúde é a reprodução e o agravamento de desigualdades sociais pré-existentes por meio de sistemas algorítmicos. Como alerta O'neil (2017), os algoritmos são opiniões embutidas em código. Eles são treinados com dados históricos que, frequentemente, refletem discriminações passadas e presentes.
Um exemplo emblemático, documentado por Obermeyer et al. (2019), foi um algoritmo amplamente utilizado nos Estados Unidos para identificar pacientes para programas de cuidados de alta complexidade. Os pesquisadores descobriram que o algoritmo sistematicamente privilegiava pacientes brancos em detrimento de pacientes negros, mesmo quando estes últimos tinham o mesmo nível de necessidade clínica. O viés ocorria porque o algoritmo usava o custo histórico dos cuidados de saúde como um proxy para a necessidade, ignorando que o acesso ao sistema de saúde e, consequentemente, os gastos, eram historicamente menores para a população negra.
Esse caso ilustra como um artefato tecnológico pode, de forma aparentemente objetiva, invisibilizar grupos sociais inteiros, consolidando uma visão distorcida da realidade que serve de base para decisões de alocação de recursos. Quando tais sistemas são utilizados para informar políticas públicas, eles podem perpetuar ciclos de injustiça, minando a credibilidade das instituições e a própria noção de um debate público equitativo.
5.3 O DÉFICIT DEMOCRÁTICO E A OPACIDADE DAS CAIXAS-PRETAS
A legitimidade da razão pública depende da transparência e da prestação de contas. Se os cidadãos não podem compreender os critérios que orientam decisões que afetam sua saúde coletiva, o espaço para o debate democrático se fecha. O problema da caixa-preta é particularmente agudo em sistemas de machine learning complexos, cuja lógica interna pode ser incompreensível até para seus próprios desenvolvedores (Pasquale, 2015).
Quando um algoritmo define quais tratamentos são cobertos por um plano de saúde, quais áreas recebem investimento em vigilância sanitária ou quais pesquisas são priorizadas, ele está exercendo um poder político. A opacidade desses processos cria um déficit democrático, transferindo a tomada de decisão de instâncias públicas e deliberativas (como conselhos de saúde) para domínios técnicos e privados inacessíveis ao escrutínio cidadão. Isso corrói a confiança, elemento fundamental para o funcionamento de qualquer sistema de saúde e para a coesão social.
6 O PAPEL MEDIADOR DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO EM SAÚDE: POR DIRETRIZES PARA UMA PRÁTICA CRÍTICA E SOCIALMENTE RESPONSÁVEL
Diante desses desafios, a Ciência da Informação em Saúde não pode se limitar a uma perspectiva puramente técnica e instrumental. Ela é chamada a assumir um papel de mediadora ética e crítica, posicionando-se no centro das tensões entre tecnologia, sociedade e saúde pública. Para isso, é necessário adotar um quadro de referência que incorpore explicitamente a dimensão política e normativa de seu objeto de estudo.
Inspirado por teorias da comunicação dialógica de Habermas (1984) e pela ética da informação de Floridi (2013), a seguir propõem-se diretrizes orientadoras para a atuação da Ciência da Informação em Saúde na esfera pública contemporânea.
6.1 ADVOCACIA POR TRANSPARÊNCIA E AUDITORIA ALGORÍTMICA
A comunidade de pesquisa e prática em Ciência da Informação em Saúde precisa assumir um papel proativo na exigência de transparência e auditoria independente dos sistemas algorítmicos utilizados na saúde. Conforme alerta Topol (2019), a implementação de IA na medicina exige novos paradigmas de validação e transparência, especialmente considerando que muitos algoritmos operam como caixas-pretas de difícil interpretação. O princípio fundamental não é a revelação de segredos comerciais, mas a garantia de que os dados de treinamento, métricas de desempenho e potenciais vieses estejam acessíveis para escrutínio por entidades reguladoras e comitês de ética.
A implementação de auditorias algorítmicas regulares mostra-se como mecanismo essencial para mitigar riscos. Como demonstra o estudo de Vayena et al. (2018), a supervisão ética contínua e a avaliação de impacto são componentes cruciais para a implementação responsável de machine learning em saúde, destacando a necessidade de verificações independentes que acompanhem todo o ciclo de vida do algoritmo. Neste contexto, a certificação de algoritmos em saúde emerge como iniciativa promissora, podendo seguir modelos similares aos processos de validação clínica tradicionais, porém adaptados às particularidades dos sistemas de aprendizado de máquina (Amann et al., 2020).
A Ciência da Informação em Saúde possui ferramentas metodológicas fundamentais para esta tarefa, particularmente através da gestão de metadados e dados de proveniência (Sembay, 2023). Como destacam Amann et al. (2020), é necessária uma abordagem interdisciplinar para tornar os sistemas de IA explicáveis na prática clínica, o que inclui a rastreabilidade completa do ciclo de vida dos dados como pré-requisito para qualquer auditoria significativa. Esta abordagem permite não apenas detectar vieses, mas também compreender como os dados foram transformados e utilizados em cada etapa do processo decisório, estabelecendo assim as bases para sistemas de saúde algorítmicos confiáveis e eticamente responsáveis.
6.2 PROMOÇÃO DA INCLUSÃO E DA LITERACIA DIGITAL E INFORMACIONAL EM SAÚDE
Combater a exclusão digital configura-se como um imperativo ético no desenvolvimento de SIS, particularmente em contextos de profundas desigualdades sociais. Projetos de SIS devem ser desenhados através da colaboração de diversas partes interessadas com e para populações marginalizadas, considerando a diversidade linguística, cultural e de acesso tecnológico. Esta abordagem alinha-se com o princípio da justiça proposto por Costanza-Chock (2020), que defende que o desenvolvimento tecnológico deve desafiar, reproduzir, desigualdades estruturais, centrando-se nas necessidades das comunidades historicamente excluídas. No contexto brasileiro, essa perspectiva torna-se particularmente urgente, dado o cenário de heterogeneidade tecnológica e diversidade cultural que caracteriza o país.
Paralelamente, é fundamental investir em programas robustos de literacia digital e informacional em saúde que capacitem os cidadãos a acessar, compreender, criticar e utilizar informações de saúde de forma segura e autônoma. Conforme demonstra Jercich (2021), iniciativas de educação digital em saúde precisam considerar as especificidades de diferentes grupos populacionais, adaptando linguagem, canais e estratégias pedagógicas às realidades locais. A literacia em saúde, na concepção de Nutbeam (2008), evolui de uma perspectiva funcional para uma abordagem crítica, onde esta não se limita a habilidades individuais de leitura e escrita, mas envolve a capacidade de analisar informações de forma crítica e de influenciar mudanças sociais através da ação coletiva.
Esta formação para uma literacia crítica revela-se essencial no contexto atual de abundância informacional. Uma população mais letrada digitalmente mostra-se menos vulnerável à desinformação em saúde e mais capaz de participar de forma qualificada dos debates públicos. Swire-Thompson e Lasser (2020) argumentam que a desinformação em saúde explora assimetrias de conhecimento e fragilidades nos sistemas de verificação de fatos, constituindo uma ameaça à saúde pública que demanda respostas multifacetadas. Programas de literacia digital em saúde, quando adequadamente contextualizados, podem funcionar como antídotos eficazes contra este fenômeno, empoderando os cidadãos para uma participação mais qualificada na esfera pública da saúde.
A integração entre inclusão digital e literacia informacional representa, portanto, um pilar fundamental para a construção de sistemas de saúde verdadeiramente democráticos e equitativos. Esta dupla abordagem permite não apenas garantir o acesso aos recursos tecnológicos, mas também assegurar que este acesso se traduza em ganhos reais de autonomia e capacidade de participação social.
6.3 ADOÇÃO DE UMA PERSPECTIVA DE JUSTIÇA INFORMACIONAL
A Ciência da Informação em Saúde deve adotar o conceito de justiça informacional como princípio orientador fundamental. Esta perspectiva, articulada por estudiosos como Hjorland (2018), defende que a organização e a recuperação da informação são práticas intrinsecamente carregadas de valores, que podem tanto perpetuar quanto desafiar estruturas de poder existentes. No contexto da saúde, isso se traduz na necessidade imperativa de assegurar que os benefícios da informação em saúde como o acesso a conhecimento, o uso de ferramentas de predição e os ganhos em eficiência sejam distribuídos de forma equitativa. Paralelamente, é crucial garantir que os danos informacionais, como a violação de privacidade, a discriminação algorítmica e a exclusão digital, não recaiam desproporcionalmente sobre os grupos sociais e raciais já vulnerabilizados, um fenômeno criticamente analisado por Boccio (2022) em seu trabalho sobre racismo e tecnologia.
Em termos práticos, a adoção deste marco teórico exige uma reorientação das prioridades de desenvolvimento e implementação tecnológica. Significa, antes de tudo, priorizar o desenho e a oferta de sistemas que atendam diretamente às necessidades de populações negligenciadas, como comunidades rurais, populações de baixa renda e grupos minoritários, garantindo que a inovação não amplifique o status quo de desigualdade. Além disso, é fundamental instituir a prática de auditoria regular dos impactos distributivos das tecnologias de informação já implementadas. Essas auditorias devem investigar sistematicamente se os sistemas estão produzindo ou exacerbando disparidades em termos de acesso, qualidade do cuidado de saúde, conforme defendido por Metcalf et al. (2021) em sua abordagem sobre auditoria de algoritmos e justiça social. Desta forma, a Ciência da Informação em Saúde pode transcender uma visão puramente técnica para assumir um compromisso explícito com a equidade e a justiça social no ecossistema informacional da saúde.
6.4 FOMENTO A MODELOS DE GOVERNANÇA PARTICIPATIVA DE DADOS
A governança dos dados de saúde não pode permanecer como um assunto restrito a tecnocratas e empresas, sob o risco de aprofundar assimetrias de poder e desconfiança pública. A Ciência da Informação em Saúde, por sua natureza interdisciplinar, está posicionada para atuar como facilitadora estratégica na criação e implementação de modelos inovadores de governança participativa. Tais modelos podem incluir a formação de conselhos de cidadãos, comitês éticos com representação comunitária substantiva e fóruns deliberativos permanentes, espaços estes destinados a debater questões críticas como modalidades de consentimento, finalidades do uso secundário de dados e definição de prioridades em pesquisa em saúde. Esta abordagem encontra respaldo no trabalho de Sharon (2018) sobre a “googlização” da pesquisa em saúde, que alerta para os riscos éticos quando processos de inovação disruptiva na saúde ocorrem sem uma supervisão pública igualmente disruptiva e estruturas de governança inclusivas.
De forma, para complementar, Prainsack (2020) avança o argumento ao defender um modelo de governança solidária de dados, propondo que o valor dos dados de saúde é maximizado quando seu gerenciamento reflete um compromisso com a justiça social e a participação cidadã. A autora sustenta que a participação ativa e contínua dos cidadãos nas decisões sobre dados que os representam não é apenas um princípio ético, mas uma condição prática para a sustentabilidade e legitimidade dos ecossistemas de dados em saúde no longo prazo.
Esses mecanismos institucionalizados de participação materializam a razão pública em ação, trazendo para o centro do debate técnico as visões de mundo, os valores contextuais e as experiências vividas pelos próprios indivíduos e comunidades mais diretamente afetados pelas tecnologias. A implementação de tais estruturas, portanto, não é um acessório, mas um componente fundamental para uma governança legítima, contextualmente sensível e eticamente robusta. Ao fomentar a governança participativa, a Ciência da Informação em Saúde cumpre seu papel social de mediadora, contribuindo decisivamente para a construção de um ecossistema informacional em saúde que seja tecnologicamente avançado e, ao mesmo tempo, socialmente justo, democraticamente responsável e alinhado com o interesse público.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo analisou os complexos desafios tecnológicos e éticos que a Ciência da Informação em Saúde enfrenta no contexto da razão pública contemporânea, procurando responder como a mediação tecnológica da informação em saúde pode tanto fortalecer a autonomia cidadã quanto reproduzir assimetrias sociais. A análise confirmou o caráter ambivalente da digitalização na saúde: enquanto potencial instrumento de empoderamento e fortalecimento democrático, representa também fonte de novos riscos e desigualdades.
Os achados demonstram que a mediação algorítmica da informação cria uma reconfiguração fundamental na esfera pública da saúde, estabelecendo o que se pode caracterizar como uma esfera pública algorítmica onde a visibilidade e credibilidade das informações são filtradas por lógicas computacionais. Esta transformação exige que a Ciência da Informação em Saúde transcenda sua tradição técnica para assumir um papel de mediação ética e crítica, capaz de enfrentar os desafios da opacidade algorítmica, dos vieses discriminatórios e da comodificação de dados sensíveis.
As diretrizes propostas, advocacia por transparência algorítmica, promoção da inclusão digital, adoção da justiça informacional e fomento à governança participativa, representam um framework orientador para esta atuação mediadora. Elas apontam para a necessidade de estruturas de governança que garantam não apenas a eficiência técnica, mas também a equidade substantiva na circulação de informações em saúde.
Ainda, é importante reconhecer as limitações inerentes a esta investigação. Em primeiro lugar, a natureza teórica e bibliográfica do estudo, baseada em revisão narrativa da literatura, embora adequada aos objetivos propostos, não permite a validação empírica das diretrizes apresentadas. A análise concentrou-se em um corpus específico de literatura, privilegiando perspectivas críticas sobre tecnologia e ética, o que pode ter limitado a incorporação de outros enfoques relevantes.
Ademais, a velocidade exponencial das transformações tecnológicas na saúde representa um desafio metodológico significativo. Novos desenvolvimentos em IA, particularmente em modelos generativos e de aprendizado profundo, podem reconfigurar radicalmente o cenário analisado, exigindo contínua atualização das reflexões aqui apresentadas.
Outra limitação reside no caráter predominantemente macroestrutural da análise, que não detalha as particularidades de implementação das diretrizes propostas em contextos institucionais específicos, especialmente considerando a complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro e suas diversidades regionais.
As limitações identificadas abrem caminho para importantes agendas de pesquisa futura. Estudos empíricos que avaliem a aplicabilidade das diretrizes propostas em diferentes contextos de saúde representam um desdobramento natural e necessário. Pesquisas que investiguem modelos concretos de auditoria algorítmica adaptados à realidade brasileira, bem como estudos sobre mecanismos de governança participativa de dados em saúde, são igualmente prioritárias.
A consolidação da Ciência da Informação em Saúde como campo mediador exige ainda maior investimento em pesquisas interdisciplinares que integrem saberes da saúde, ciência da informação, direito e ciências sociais. O desenvolvimento de métricas para avaliação de justiça informacional e a criação de frameworks para educação crítica em saúde digital emergem como frentes igualmente relevantes para investigação futura.
O futuro da saúde digital não está predeterminado pela tecnologia, mas será construído através de escolhas técnicas, regulatórias e éticas que refletem valores e prioridades sociais. Neste processo dinâmico, cabe à Ciência da Informação em Saúde, em diálogo permanente com a sociedade e em colaboração interdisciplinar com demais campos do saber, atuar como força mediadora e crítica. Seu papel transcende a otimização técnica para assumir responsabilidade central em garantir que essas escolhas se orientem não apenas pela busca da inovação tecnológica, mas fundamentalmente pela promoção da justiça social, pela redução de desigualdades em saúde e pelo fortalecimento contínuo da razão pública. Isto implica cultivar uma visão de saúde digital que privilegie a equidade no acesso, a proteção contra formas algorítmicas de discriminação e o empoderamento informacional de cidadãos e comunidades, assegurando que o projeto tecnológico em saúde sirva, em última instância, aos imperativos de um sistema de saúde democrático, inclusivo e socialmente responsável.
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