FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO EM SAÚDE NO BRASIL
uma análise das produções indexadas pela Brapci
Asy Pepe Sanches Neto
Fundação Oswaldo Cruz
asy.sanches@fiocruz.br
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Resumo
O artigo investiga como as relações entre filosofia e saúde vêm sendo documentadas no interior da Ciência da Informação brasileira. A pesquisa, de caráter exploratório, utiliza a base BRAPCI como recorte empírico e aplica a combinação de descritores “filosofia AND saúde”, examinando qualitativamente os artigos resultantes. Os dados revelam uma produção dispersa, distribuída por diferentes periódicos e instituições, sem locus teórico consolidado. As aproximações identificadas mobilizam tradições diversas, como a filosofia da tecnologia, a ética da informação, a filosofia da diferença e as ontologias realistas, articuladas a contextos biomédicos, educacionais e de políticas públicas. Os resultados indicam que, embora a filosofia apareça frequentemente como linguagem interpretativa, ainda não há uma filosofia da informação em saúde propriamente dita; há, antes, uma zona de convergência entre práticas documentárias, infraestruturas técnicas e reflexões éticas sobre a vida digital e a produção de sentido.
Palavras-chave: Ciência da Informação. Filosofia. Saúde. Filosofia da Informação em Saúde. Datificação.
PHILOSOPHY OF HEALTH INFORMATION IN BRAZIL
an analysis of productions indexed by Brapci
Abstract
This article investigates how the relationships between philosophy and health have been documented within Brazilian Information Science. The exploratory research uses the BRAPCI database as an empirical framework and applies the combination of descriptors "philosophy AND health," qualitatively examining the resulting articles. The data reveal a dispersed production, distributed across different journals and institutions, without a consolidated theoretical locus. The identified approaches mobilize diverse traditions, such as the philosophy of technology, information ethics, the philosophy of difference, and realist ontologies, articulated with biomedical, educational, and public policy contexts. The results indicate that, although philosophy frequently appears as an interpretive language, there is still no philosophy of health information properly speaking; Rather, there is a zone of convergence between documentary practices, technical infrastructures, and ethical reflections on digital life and the production of meaning.
Keywords: Information Science. Philosophy. Health. Philosophy of Information in Health. Datafication.
FILOSOFÍA DE LA INFORMACIÓN EN SALUD EN BRASIL
un análisis de las producciones indexadas por Brapci
Resumen
Este artículo investiga cómo se han documentado las relaciones entre filosofía y salud en el ámbito de la Ciencia de la Información en Brasil. La investigación exploratoria utiliza la base de datos BRAPCI como marco empírico y aplica la combinación de los descriptores «filosofía Y salud», examinando cualitativamente los artículos resultantes. Los datos revelan una producción dispersa, distribuida en diferentes revistas e instituciones, sin un centro teórico consolidado. Los enfoques identificados movilizan diversas tradiciones, como la filosofía de la tecnología, la ética de la información, la filosofía de la diferencia y las ontologías realistas, articuladas con contextos biomédicos, educativos y de políticas públicas. Los resultados indican que, si bien la filosofía aparece frecuentemente como un lenguaje interpretativo, aún no existe una filosofía de la información en salud propiamente dicha; más bien, existe una zona de convergencia entre las prácticas documentales, las infraestructuras técnicas y las reflexiones éticas sobre la vida digital y la producción de significado.
Palabras clave: Ciencia de la Información. Filosofía. Salud. Filosofía de la Información en Salud. Datificación.
1 INTRODUÇÃO
A discussão sobre a relação entre informação e saúde tem se ampliado nas últimas décadas, mas ainda carece de um tratamento propriamente epistemológico e filosófico. As pesquisas brasileiras sobre informação em saúde, em geral, concentram-se em dimensões técnicas (especialmente no que se refere aos sistemas, fluxos, gestão, interoperabilidade) ou em aspectos comunicacionais e educativos. No entanto, pouco se tem explorado as bases conceituais que sustentam a produção e a circulação de informação no campo da saúde, especialmente quando observadas sob a ótica das transformações ontológicas e políticas da sociedade digital.
O ponto de partida desta investigação é o reconhecimento de que existe um déficit de pesquisas filosóficas e epistemológicas que tratem da informação em saúde como campo de pensamento com questões próprias, evidentemente isso não quer dizer que inexistam e, neste primeiro trabalho, estamos buscando recuperar como estas questões estão sendo abordadas na literatura nacional de Ciência da Informação (CI). Ainda não está evidenciado se se trata de um campo autônomo, com fundamentos e objetos próprios, ou de um subcampo derivado da Ciência da Informação e da Saúde Coletiva. Essa suposta indefinição epistemológica também permite pensar que talvez estejamos diante de uma relação inter, pluri ou transdisciplinar, na qual as fronteiras entre informação, tecnologia, conhecimento e cuidado se tornam cada vez mais porosas e menos distinguíveis.
Essa incerteza se manifesta inclusive nas divisões institucionais e operacionais entre os sistemas de informação em saúde. Um exemplo disso pode ser observado na distinção entre “Informação e Saúde”, ligada a setores epidemiológicos e de vigilância (como o Laboratório de Informação em Saúde — LIS), e “Informação Científica e Tecnológica em Saúde”, voltada à comunicação científica, inovação e políticas de pesquisa (como o Laboratório de Informação Científica e Tecnológica em Saúde — LICTS). Essas estruturas coexistem na Fundação Oswaldo Cruz, mas operam sob lógicas distintas: o LIS, vinculado ao Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz), dedica-se à análise e difusão de indicadores epidemiológicos e dados do SUS; já o LICTS, no mesmo instituto, dedica-se à gestão da informação científica, à preservação e disseminação da produção técnico-científica do SUS, da Fiocruz e da Ciência e Tecnologia.
Essas duas iniciativas ilustram uma divisão conceitual e institucional que atravessa o próprio campo da informação em saúde: de um lado, uma tradição voltada à mensuração e vigilância, marcada por uma racionalidade epidemiológica e estatística; de outro, uma abordagem mais próxima da comunicação científica e das políticas de conhecimento, em diálogo com a Ciência da Informação e com as Humanidades. Ambas operam com o termo “informação”, mas sob paradigmas diferentes: no primeiro caso, a informação é dado sanitário, elemento de controle e monitoramento; no segundo, é expressão científica, mediadora da produção e circulação do saber.
A questão que emerge e que orienta esta pesquisa é se essa divisão faz sentido do ponto de vista epistemológico, ou se ela revela uma herança disciplinar que já não corresponde à complexidade contemporânea dos fluxos informacionais em saúde. A produção de informação hoje atravessa todo o ecossistema da vida social e biológica, diluindo fronteiras entre o corpo, o dado e o documento. Talvez, portanto, pensar uma filosofia da informação em saúde exija justamente repensar essa separação e reconhecer que tanto o dado epidemiológico quanto o artigo científico são formas documentais de uma mesma lógica informacional que estrutura o campo da saúde como um todo.
A hipótese que orienta este trabalho é que ainda não há, na produção brasileira, uma “filosofia da informação em saúde” consolidada. O que se observa é um mosaico de aproximações: algumas de caráter tecnológico e metodológico, outras críticas e políticas, e poucas que alcançam um nível propriamente ontológico ou ético. As filosofias mais recorrentes (apenas como exemplos, poderíamos citas as filosofias da tecnologia, da diferença, da linguagem, da ciência e da informação) atuam como matrizes de leitura sobre objetos empíricos do campo da saúde e queremos investigar se constituem um corpo conceitual próprio.
Essa constatação remete a uma questão mais ampla, que ultrapassa a Ciência da Informação e toca a própria noção contemporânea de saúde. A definição da Organização Mundial da Saúde já compreendia, desde 1948, saúde como um estado de bem-estar físico, mental e social, rompendo com a concepção de ausência de doença. No entanto, o capitalismo baseado em dados e na plataformização da vida reconfigura esse horizonte: a saúde passa a ser simultaneamente um valor mercadológico e um fluxo de dados. Os processos de vigilância, autoavaliação e registro contínuo transformam o corpo em documento e o cotidiano em dado, instaurando o que poderíamos chamar de sociedade hiperdocumentada.
Nessa condição, o campo da saúde deixa de ser apenas objeto das ciências médicas e passa a integrar uma ecologia informacional e filosófica mais ampla. A fadiga informacional, o “brain root” e outras expressões contemporâneas de sobrecarga cognitiva e emocional são sintomas de um mundo em que o excesso de dados produz novas formas de sofrimento e de regulação. Pensar uma filosofia da informação em saúde, portanto, é pensar também as fronteiras entre o cuidado, a técnica e a política dos registros, ou, de modo mais amplo, entre a saúde como modo de vida e a saúde como dado processado.
Assim, esta pesquisa busca mapear, por meio da produção científica indexada na BRAPCI, as trilhas conceituais e metodológicas que aproximam filosofia, informação e saúde no contexto brasileiro. Ao examinar títulos, instituições, correntes filosóficas e modos de abordagem, pretende-se compreender como o campo tem articulado, ainda que de forma fragmentada, uma reflexão sobre a dimensão informacional da vida e da saúde.
2 O CAMPO DA INFORMAÇÃO EM SAÚDE: FUNDAMENTOS PARA UMA REVISÃO CONTEMPORÂNEA
O campo da informação em saúde ocupa, desde sua formação, uma posição ambígua entre o técnico e o político, o científico e o social. Segundo Moraes e González de Gómez (2007), ele se estruturou a partir de um conjunto de práticas fragmentadas, vinculadas a dispositivos de gestão e vigilância do Estado moderno, que converteram o corpo individual e as populações em objetos de monitoramento e cálculo. As informações em saúde nasceram, portanto, como parte de um biopoder, cuja função era ampliar o olhar do médico sobre o corpo do paciente para o olhar do Estado sobre os corpos das populações (Moraes; González de Gómez, 2007, p. 555).
Os marcos genealógicos da informação em saúde estão imersos nesse movimento e podem ser encontrados na ruptura da medicina clássica para a medicina moderna, quando o pensamento anátomo-clínico e patológico introduziu um novo significado para a doença, corporificada no indivíduo. As informações em saúde, nos moldes como se expressam até os dias atuais, consolidaram-se como um dos instrumentos estratégicos desse processo, ao amplificar, paulatinamente, o “olhar do médico” sobre o corpo do paciente para o “olhar dos aparelhos de Estado” sobre os “corpos das populações”, constituindo-se em espaço de disputas de relações de poder e produção de saber (Moraes; González de Gómez, 2007, p. 555).
Os marcos genealógicos da informação em saúde estão imersos nesse movimento e podem ser encontrados na ruptura da medicina clássica para a medicina moderna (com o pensamento anátomo-clínico e patológico), quando surge um novo significado para a Doença que passa a estar corporificada no indivíduo. As informações em saúde, nos moldes como se expressam até os dias atuais, consolidaram-se como um dos instrumentos estratégicos desse processo, ao amplificar, paulatinamente, o “olhar do médico” sobre o corpo do paciente para o “olhar dos aparelhos de Estado” sobre os “corpos das populações”, constituindo-se em espaço de disputas de relações de poder e produção de saber. (Moraes; González de Gómez, 2007, p. 555).
Essa gênese explica o caráter duplo do campo: ele é, simultaneamente, dispositivo técnico de gestão e espaço de produção de sentido. Nas palavras das autoras, a informação em saúde é um “intercampo político-epistemológico”, o que permite observá-la como espaço em que se articulam saberes e práticas de diferentes origens, onde se travam disputas por legitimidade epistêmica e autoridade institucional. A partir dessa noção de intercampo, pode-se compreender que o domínio da informação em saúde não se limita à coleta e ao processamento de dados, mas participa ativamente da constituição histórica do setor saúde e de sua forma contemporânea de racionalidade.
No entanto, como observam Moraes e González de Gómez (2007, p. 559), essa potência epistemológica tem sido obscurecida por uma tradição funcionalista e instrumental, que reduz a informação a um meio técnico de apoio à gestão. Nessa perspectiva, em nossa leitura, aponta-se que o documento perde sua historicidade e a própria produção de sentido é vista apenas como um problema “ex post”, a ser resolvido na etapa de disseminação. É essa naturalização que torna invisível o papel constitutivo da informação na produção do real e que, aqui, defendemos, precisa ser revista.
A revisão proposta neste trabalho parte justamente da constatação de que as transformações digitais das últimas décadas deslocaram a informação de sua posição auxiliar para o centro ontológico da experiência humana. Esse deslocamento foi formalizado no campo filosófico por Luciano Floridi, cuja teoria da informação propõe uma ontologia e uma ética adequadas ao mundo digital. Para Floridi (apud González de Gómez, [2020?], p. 3), vivemos hoje em uma infoesfera, um ambiente constituído por entidades informacionais e suas interações, onde o humano, o técnico e o biológico formam uma continuidade.
Segundo a leitura de González de Gómez, Floridi rompe com o dualismo entre o ser e a representação ao propor uma reontologização da realidade, isto é, o reconhecimento de que o próprio real é configurado por processos informacionais. Nessa perspectiva, “o ciclo de vida da informação perpassa cada um dos modos como a realidade afeta a humanidade, ontológico, epistemológico e prático. Não se trata, agora, de um novo estágio de expansão dos prévios recursos e serviços de informação, como se fosse um continuum” (González de Gómez, [202?], p. 5). A consequência direta dessa virada é a necessidade de uma ética informacional, fundada não mais na centralidade do sujeito, mas na preservação da integridade ontológica dos sistemas informacionais que sustentam a vida.
No campo da saúde, essa reontologização implica compreender que a produção, o registro e a circulação de dados não são apenas práticas instrumentais, mas atos que constituem o próprio objeto “saúde”. Cada dado epidemiológico, cada prontuário eletrônico, cada laudo digitalizado inscreve-se em uma ecologia de informação que redefine o que significa viver, adoecer e ser cuidado. Nesse sentido, o conceito de intercampo proposto por Moraes e González de Gómez (2007) e o conceito de infoesfera de Floridi convergem: ambos descrevem redes de mediação e poder que estruturam as relações entre humanos, instituições e artefatos técnicos.
Assim, o campo da informação em saúde não é apenas um recorte temático ou institucional. Ele é, antes de tudo, um laboratório epistemológico, onde se confrontam diferentes regimes de verdade e de saber: o biomédico, o tecnológico, o político e o ético. Retomar esse campo à luz da filosofia da informação é, portanto, recolocar as perguntas fundacionais sobre quem produz, quem interpreta e quem se beneficia dos fluxos informacionais que hoje governam a vida.
2.1 VIDA DIGITAL E REONTOLOGIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA
A chamada vida digital é mais do que a presença cotidiana em ambientes conectados: é uma nova condição ontológica da existência. Floridi (apud González de Gómez, [2020?], p. 4) descreve esse processo como parte da “quarta revolução”, após as de Copérnico, Darwin e Freud — uma revolução informacional que redefine o humano como “ser-informação”. Nessa perspectiva, o indivíduo não é apenas produtor ou receptor de dados, mas entidade informacional inserida em ecossistemas de registro e processamento permanentes.
González de Gómez ( [202?], p. 4) explica que “essa dupla tomada de posição, em relação a nosso ser genérico e em relação ao mundo, teria passado primeiro por três grandes mudanças [...]. Hoje, um quarto reposicionamento, em pleno acontecer, colocaria de manifesto a condição informacional do homem, que vai perceber-se incluído na Infoesfera, em igualdade de condições com outras agências”
A infoesfera, nesse sentido, torna-se um espaço de ação moral distribuída. Para Floridi (apud González de Gómez, [202?], p. 5), a ética informacional é uma ética ontocêntrica, centrada na preservação da existência informacional — humana e não humana — contra a degradação e o ruído. Essa proposta substitui o antropocentrismo moral por uma responsabilidade difusa, em que humanos e artefatos compartilham os efeitos de suas ações.
No contexto da saúde, isso significa repensar o cuidado como uma prática de inscrição e manutenção da vida informacional. O corpo torna-se simultaneamente sujeito e objeto de informação: ele produz, armazena e é lido. Cada dispositivo de monitoramento, cada registro biométrico amplia a fronteira entre o biológico e o técnico, instaurando uma zona de interdependência entre cuidado e controle.
A consequência é dupla. De um lado, há a promessa de uma medicina personalizada, baseada em dados e predição; de outro, a emergência de novas formas de vulnerabilidade e de fadiga informacional, expressas em fenômenos como o brain rot e a ansiedade digital. A filosofia da informação em saúde deve, portanto, interrogar esses paradoxos: como pensar a saúde em seu sentido amplo (ou seja, como diz OMS em que devemos articular bem-estar físico, mental e social) dentro de um ambiente em que a vida é continuamente medida, indexada e processada? (Como bem nos lembra Ronald Day em seu livro Documentarity)
Ao colocar a vida digital sob exame, o campo da informação em saúde revela-se também como campo de resistência e reflexão ética. A partir da leitura de González de Gómez (2007; [202?]), é possível afirmar que o desafio contemporâneo não é apenas técnico ou epistemológico, mas ontopolítico: trata-se de compreender como o ser humano pode existir, agir e cuidar-se em meio àquilo que Floridi denomina mundo-informação.
2.2. VIDA DOCUMENTADA E PLATAFORMIZAÇÃO
Se a vida digital reconfigura ontologicamente a experiência, a vida documentada a inscreve em sistemas técnicos e institucionais de fixação, classificação e circulação. O campo da informação em saúde é, nesse sentido, um dos lugares em que essa passagem se torna mais visível: nele, a existência é continuamente traduzida em documentos, e o documento, por sua vez, se converte em instrumento de governo, de valor e de verdade.
No debate mais amplo sobre a sociedade informacional, há uma transição significativa entre os autores que descrevem a contemporaneidade como sociedade da informação, entre eles, Floridi, Capurro e González de Gómez, e aqueles que, como Buckland, preferem falar em sociedade do documento. Essa mudança terminológica não é apenas semântica: ela reflete uma alteração no foco de análise, que passa da circulação da informação para a materialidade das inscrições que a sustentam.
Para Buckland (2013, p. 1-2), “toda sociedade é uma sociedade da informação e sempre o foi, porque todas as comunidades — humanas ou animais — se formam pela comunicação, interação e colaboração. Não pode haver uma ‘sociedade sem informação’” (tradução nossa). O autor acrescenta, contudo, que os processos sociais e de controle se tornaram progressivamente mediados por documentos, de modo que “dependemos cada vez mais dos documentos; por isso, ‘sociedade do documento’ seria mais preciso do que ‘sociedade da informação’” (Buckland, 2013, p. 1-2, tradução nossa).
Essa formulação não apenas reconhece a centralidade dos fluxos informacionais, mas destaca o papel dos registros, artefatos e provas na coordenação das ações humanas. A sociedade do documento é, para Buckland, uma consequência da divisão do trabalho e, simultaneamente, sua condição de possibilidade: quanto mais complexas as interdependências sociais, maior a necessidade de mediações documentárias. Nesse sentido, a virada da “informação” para o “documento” implica deslocar o olhar do dado para a inscrição, do fluxo para a fixação, do conteúdo para o suporte — e, portanto, repensar os fundamentos da própria Ciência da Informação e seus desdobramentos no contexto datificado contemporâneo. Aqui cabe dizer que, embora derivadas de diferentes contextos epistêmicos, não há profundas modificações metodológicas sobre o objeto e se apontamos ambas as tradições é para apontar que lidam com contextos similares.
Buckland (2013, p. 4) lembra que qualquer documento possui múltiplos aspectos, pois “o status de ser um documento não é inerente (essencial), mas atribuído a um objeto. O significado é sempre construído por um observador. Todo documento possui aspectos culturais, tipológicos e físicos” (tradução nossa). O autor descreve esses níveis de modo detalhado:
1. Aspecto fenomenológico: enquanto objetos percebidos como significativos, os documentos não são intrinsecamente documentos, mas tornam-se documentos ao serem interpretados;
2. Códigos culturais: toda forma de expressão comunicativa depende de entendimentos compartilhados, que podem ser compreendidos como linguagem em sentido amplo;
3. Tipos de mídia: textos, imagens, números, diagramas, arte, música, dança;
4. Suportes físicos: tabuletas de argila, papel, filme, fita magnética, cartões perfurados, mídias digitais, etc. Ser digital afeta diretamente apenas o suporte físico, mas suas consequências são extensas” (Buckland, 2013, p. 4, tradução nossa).
Esse deslocamento da definição de documento do plano técnico para o plano fenomenológico e cultural implica reconhecer que cada ato de documentação é também um ato de interpretação e de produção do real. Quando a informação em saúde se organiza em torno de prontuários eletrônicos, protocolos clínicos, dashboards e algoritmos, ela não apenas descreve situações de saúde, mas também institui modos de existência — corpos mensuráveis, populações calculáveis e sintomas parametrizados. Isso reforça, entre outras coisas que todos os dados quantitativos são, por essência, decididos pelos indivíduos também: quem define as tecnologias, que escolhe as perguntas da anamnese, quem organiza os dados, quem escolhe parâmetros de verificação....
Outro autor importante sobre este ponto é Niels Windfeld Lund (2024), que ao formular a Teoria do Documento propõe uma compreensão triádica da realidade informacional: informação, documentação e comunicação são dimensões complementares de um mesmo fenômeno cultural. Para Lund, nenhuma delas é autônoma ou suficiente em si — a informação pressupõe atos de documentação, e toda documentação só adquire sentido na comunicação. O autor propõe, portanto, uma epistemologia relacional em que o documento se torna a instância de mediação entre o evento comunicativo e a significação informacional. O documento não é um mero suporte, mas o espaço de acontecimento entre sujeitos, linguagens e técnicas, o ponto onde o simbólico e o material se tornam mutuamente inteligíveis. Essa formulação permite compreender que o campo da informação em saúde não se organiza por fronteiras estanques e rígidas, mas pela interdependências entre formas de registro, processos de circulação e modos de enunciação. A saúde, nesse sentido, é documentária porque é comunicável — e é informacional porque é documentada.
A Medicina 2.0, tal como formulada por Capurro (2013), não é apenas uma metáfora para a digitalização da prática médica, mas a expressão filosófica de uma mutação ontológica. Ela marca o momento em que o corpo (antes observado, agora quantificado) passa a existir como uma arquitetura de dados. O gesto médico, antes situado na relação entre saber e experiência, torna-se uma operação informacional. O que se altera, portanto, não é apenas o meio, mas o estatuto do próprio cuidado: a clínica passa a ser mediada por plataformas, sensores e algoritmos que registram, interpretam e antecipam a vida. Nessa nova configuração, saúde e doença deixam de ser estados para tornar-se processos contínuos de atualização informacional. O corpo é traduzido em padrões, desvios e probabilidades, e a medicina — que, em seu início moderno, nasceu da observação do cadáver — reorienta-se agora pela leitura estatística dos vivos.
Essa transformação implica, como observa Capurro (2013), uma revisão profunda da antropologia médica. As tecnologias digitais não são apenas extensões instrumentais do humano, mas constituem o próprio horizonte de autocompreensão da existência — uma ontologia digital que redefine o que significa ser corpo, tempo e presença. A saúde, nesse contexto, torna-se um campo de disputa entre a promessa de autonomia e o risco de heteronomia algorítmica. A informação, convertida em critério universal de verdade e governança, produz uma patologia própria: a saturação de dados e a perda de sentido. Assim, a Medicina 2.0 é, ao mesmo tempo, diagnóstico e sintoma de uma época em que o cuidado se confunde com o controle e o habeas corpus se converte, como adverte o próprio Capurro, em habeas data.
É nesse limiar, entre o corpo vivido e o corpo documentado, que a filosofia da informação em saúde deve, em nossa leitura, intervir. A plataformização da saúde torna esse movimento palpável. Aplicativos de autocuidado, repositórios clínicos, telessaúde e redes de vigilância epidemiológica operam como mediadores de um novo regime documental. Toda interação, clique, batimento registrado transforma-se em dado que retroalimenta uma economia política da informação. Nessa dinâmica, o documento deixa de ser apenas prova de um evento para tornar-se evento em si, gerando valor, reputação e predição.
Essa passagem do registro à predição exige, porém, reconhecer que a dataficação não é um efeito automático da digitalização. Como adverte Sérgio Amadeu da Silveira(2025), trata-se de um processo construtivo e político, que depende de arquiteturas técnicas e de interesses econômicos:
A digitalização de um sistema não implica que todos os seus usuários tenham seus dados capturados, armazenados e analisados. Para que isso ocorra é necessário que dispositivos e, em especial, algoritmos de coleta e análise sejam desenvolvidos e aplicados. Ou seja, dados não são naturais, nem brotam das ações. Eles precisam ser criados e dependem de soluções (hardware e software) de coleta. (Silveira, 2025, p. 27).
O efeito combinado é evidente: se, de um lado, a virada documentária torna o documento a charneira entre vida e sentido, de outro, a dataficação instala uma racionalidade de cálculo que redefine a própria ontologia do cuidado. O que se discute, portanto, já não é apenas quem acessa os dados, mas quem define as condições de existência documentária do sujeito — quais categorias, métricas e protocolos podem reconhecer um corpo, uma doença, um desfecho. Se a informação constitui o real (na chave ontológica discutida anteriormente) e o documento o torna verificável, então a plataformização da vida se apresenta como uma forma de biopoder informacional, exercida pela captura, ordenação e previsão dos rastros.
Nesse quadro, a filosofia da informação em saúde não se limita a discutir políticas de acesso; ela interroga as infraestruturas que tornam a vida visível e, ao mesmo tempo, delimitam o que pode ser cuidado, assim como (e principalmente) o que não pode. Prontuários eletrônicos, algoritmos de triagem e dashboards de vigilância não são meros instrumentos: são dispositivos de inscrição ontológica que normatizam o que conta como evidência, valor e decisão clínica. Em última instância, discutir a vida documentada é discutir os limites éticos e epistemológicos do registro: como se constrói o sujeito quando sua existência é continuamente mediada por sistemas de documentação?
É exatamente dessa inquietação que emerge o próximo passo do trabalho: no capítulo metodológico, analisaremos como essas operações que lidam com filosofias documentárias, informacionais e comunicacionais se materializam discursivamente na produção brasileira indexada na BRAPCI. O corpus e os procedimentos de análise foram concebidos para mapear como o campo documenta a si mesmo, quais categorias usa para fazê-lo e onde despontam as tensões entre cuidado, cálculo e sentido.
3 METODOLOGIA
Esta pesquisa tem caráter inicial, exploratório e parte de uma constatação simples: embora a relação entre informação, saúde e filosofia seja conceitualmente ampla e multifacetada, é necessário começar por um recorte mínimo, verificável e passível de ser ampliado em etapas posteriores. O objetivo é compreender como, no interior da Ciência da Informação brasileira, aparecem os discursos que aproximam os campos da saúde e da filosofia.
Para isso, optou-se por utilizar exclusivamente a BRAPCI (Base de Dados Referenciais de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação) como fonte de coleta. A escolha justifica-se pelo fato de a BRAPCI reunir a produção nacional reconhecida como pertencente ao campo da Ciência da Informação, permitindo observar como o próprio campo se autodefine quando articula diferentes domínios do saber.
O procedimento de busca foi direto: aplicou-se a combinação dos termos “filosofia AND saúde”, tal como aceita pelo mecanismo de busca da base. Não se empregaram variações semânticas, descritores ampliados ou operadores de aproximação. O interesse estava em identificar os trabalhos que, de forma explícita, associam as duas áreas (foco na ideia de área)filosofia e saúde, sem recorrer a termos correlatos como “medicina”, “enfermagem”, “bioética”, “ontologia”, “prontuários” ou “ética médica”, “epistemologia”, ou qualquer outros termos que pudessem conceituar práticas, ações, tecnologias e saberes de domínio da saúde ou filosofia. Essa decisão reflete o propósito de examinar a intersecção entre duas áreas nomeadas, e não entre conjuntos dispersos de temas que poderiam ser interpretados como filosóficos ou da saúde.
Ao não incluir expressões limítrofes, o estudo assume uma limitação metodológica deliberada. Sabemos que essa escolha exclui textos potencialmente relevantes — por exemplo, discussões sobre filosofia e medicina, epistemologia médica, ou fundamentos filosóficos da informação em saúde. No entanto, considerou-se fundamental preservar a coerência do recorte, mantendo-o objetivo e reprodutível. O foco está em compreender como a própria base indexa e reconhece a presença simultânea da saúde e da filosofia em sua estrutura de campos, e que tipo de discurso emerge quando essa intersecção é assumida pelo próprio sistema de indexação.
Os resultados retornados pela busca foram lidos integralmente e organizados em planilha, contendo informações básicas sobre título, autores, ano, instituição e principais eixos conceituais. A análise seguiu uma abordagem qualitativa e interpretativa, interessada menos na contagem de ocorrências e mais na forma como a filosofia aparece como linguagem, referência ou fundamento nos estudos sobre saúde — e, inversamente, como a saúde é compreendida no interior de debates de natureza filosófica.
O caráter inicial do estudo exige reconhecer seus limites. A busca por áreas nomeadas (filosofia e saúde) não esgota o universo conceitual da pesquisa, mas define um campo de observação que nos foi suficiente para iniciar nossas reflexões e buscas por categorias utilizadas posteriormente. O que se pretende é mapear o modo como a Ciência da Informação brasileira tem documentado essa relação, construindo um ponto de partida sólido e transparente para investigações posteriores, que poderão incluir novas combinações de termos, outros descritores e bases complementares.
4 RESULTADOS
A busca por “filosofia AND saúde” na BRAPCI resultou em um conjunto reduzido, porém significativo, de textos que revelam a presença dispersa e ainda emergente desse cruzamento no campo da Ciência da Informação brasileira. Os trabalhos estão distribuídos entre periódicos acadêmicos consolidados e anais de eventos, com predominância de publicações em revistas como Informação em Pauta, Ciência da Informação, Logeion: Filosofia da Informação e Reciis, além de contribuições em edições do ENANCIB. Essa diversidade indica que a interlocução entre filosofia e saúde não constitui um eixo institucionalizado, mas um território de incursões pontuais, frequentemente situadas em margens temáticas da área.
Figura 1 – Publicações por ano

Fonte: Autores.
O intervalo temporal dos textos vai de 2006 a 2022, o que sugere que o interesse pela filosofia no campo da informação em saúde não é recente, embora só nos últimos anos tenha adquirido maior visibilidade. As abordagens, contudo, são heterogêneas. Os artigos recuperados constam no Quadro 1.
Quadro 1 – Artigos recuperados
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Título |
Periódico (ano) |
Autores |
Instituições |
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Campanhas públicas de vacinação e filosofia da tecnologia |
Informação em Pauta (2020) |
Trazíbulo Henrique Pardo Casas; Hernane Borges de Barros Pereira |
UFRGS; UPC |
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Interação dos atores no ambiente aprendiz: o caso da saúde |
Ciência da Informação (2006) |
Solange Mostafa |
UNIVALI |
|
Teoria do Agir Comunicativo de Habermas na Administração de Organizações de Saúde — revisão sistemática |
Logeion: Filosofia da Informação (2022) |
Clóvis Ricardo Montenegro de Lima; Mariangela Rebelo Maia |
IBICT; Santa Ursula |
|
Da loucura e da arte nos limites de uma epistemologia da organização do conhecimento |
ENANCIB (2017) |
Gustavo Silva Saldanha; Michelle Louise Guimarães da Silva |
UNIRIO; UFRJ |
|
The teleological arc of disinformation ethics: from the pomadistas of Machado de Assis to the deniers of the pandemic |
Reciis (2022) |
Arthur Coelho Bezerra; Marco Schneider; Rafael Capurro |
IBICT; IBICT; UFF; ICIE |
|
Fontes de informação para políticas de pesquisa em saúde |
ENANCIB (2013) |
Cicera Henrique da Silva; Tânia Regina Neves da Silva; Viviane Santos de Oliveira Veiga; Ester Cristina Machado Ruas; Agatha Dias Lemos |
FIOCRUZ/ICICT; FIOCRUZ; FIOCRUZ/ICICT; UFF; Casa Publicadora Brasileira |
|
Informação, modelos de ciência e a política científica em saúde: qual o caminho? |
ENANCIB (2016) |
Lidiane Carvalho; Josué Laguardia; Rejane Machado |
Fiocruz; Fiocruz; Fiocruz |
|
Teorias ontológicas para modelagem |
FRC: Front. Repr. Conh. (2021) |
Maurício Barcellos de Almeida |
UFMG |
|
Ontologia de imagens do domínio da nefrologia a partir dos atributos visuais e verbais dos laudos e prontuários de pacientes |
ENANCIB (2009) |
Virginia Bentes Pinto; Henry de Holanda Campos; Jefferson Leite Oliveira Ferreira; Edgleiton Monteiro de Freitas |
UFC; UFC; UFC; UFC |
|
Arquivos abertos e instrumentos de gestão da qualidade como recursos para a disseminação da informação científica em segurança e saúde no trabalho |
Ciência da Informação (2009) |
Erika Alves dos Santos; Simone Georges El Khouri Miraglia |
Fundacentro; UNIFESP; USP |
|
Os desafios dos serviços psicológicos mediados pelas TIC no contexto da Pandemia do Coronavírus 2019-2020 |
Revista de Biblioteconomia e Ciência da Informação (2020) |
Sérgio Rodrigues de Santana; Carla Daniella Teixeira Girard; Levi Cadmiel Amaral da Costa; Cristiane Marina Teixeira Girard; Daniel Jackson Estevam da Costa |
UFPB; UFRA; ULBRA; UFPB; UNIR; UFPB |
Fonte: Autores.
A distribuição dos periódicos e das filiações institucionais dos autores confirma a dispersão do campo de estudos que articula filosofia e saúde no interior da Ciência da Informação brasileira. As publicações estão espalhadas por revistas de diferentes perfis — como Ciência da Informação, Reciis, Informação em Pauta, Logeion, Revista de Biblioteconomia e Ciência da Informação e FRC: Front. Repr. Conh. —, além dos anais do ENANCIB. Essa variedade revela que não há um locus preferencial de publicação para trabalhos que tratem dessa interseção: ora o debate emerge em periódicos voltados à epistemologia e à filosofia da informação, ora em revistas mais aplicadas à gestão da informação e à comunicação científica. Em termos institucionais, o tema circula sem centro hegemônico, sendo abordado tanto por grupos de pesquisa do eixo Rio–São Paulo quanto por programas do Nordeste e do Sul do país.
A análise das filiações mostra, contudo, alguns polos de recorrência. A Fiocruz e o IBICT, com suas ramificações internas (notadamente o ICICT), aparecem em diferentes momentos e colaborações, o que sugere que parte significativa das reflexões sobre informação e saúde nasce em contextos de pesquisa institucionalmente orientados pela prática pública da informação em saúde. No entanto, a presença de autores de universidades como UFMG, UFRGS, UFPB, UFC, UNIRIO, UFRJ, UNIVALI e USP demonstra que o interesse pelo tema não se restringe ao eixo institucional da saúde pública: ele também emerge em programas voltados aos fundamentos teóricos, à documentação e à epistemologia da informação.
No plano das autorias, nota-se um predomínio de textos coletivos e com vínculos interinstitucionais, especialmente nos trabalhos mais recentes. Artigos como Fontes de informação para políticas de pesquisa em saúde (2013) e Os desafios dos serviços psicológicos mediados pelas TIC no contexto da pandemia (2020) reúnem pesquisadores de até cinco instituições diferentes, revelando uma rede colaborativa que atravessa fronteiras regionais e áreas de especialização. Esse padrão contrasta com produções anteriores — como o estudo de Solange Mostafa (2006) —, mais concentradas em autoria individual e em abordagens disciplinares.
A presença de parcerias internacionais, embora pontual, também é significativa. O artigo Campanhas públicas de vacinação e filosofia da tecnologia (2020), desenvolvido entre a UFRGS e a Universitat Politècnica de Catalunya (UPC), ilustra a inserção de debates latino-americanos em redes mais amplas de filosofia da tecnologia e ética informacional. Essa colaboração, ainda que isolada, sugere que o diálogo entre filosofia, informação e saúde se realiza tanto em espaços nacionais quanto em arenas transnacionais.
O quadro geral indica, portanto, um campo em expansão, mas ainda não institucionalmente consolidado. A dispersão de periódicos e de filiações, aliada à ausência de grupos de pesquisa dedicados exclusivamente à temática, sugere que as articulações entre filosofia e saúde surgem como movimentos marginais dentro de agendas já estabelecidas — ora vinculadas à epistemologia da informação, ora às políticas públicas de saúde. Paradoxalmente, é justamente essa dispersão que confere ao tema seu caráter experimental: longe de um eixo fixo, ele se desenvolve como zona de contato entre epistemologias, instituições e práticas, reafirmando a necessidade de um olhar filosófico sobre a informação em saúde como campo plural e em constante reinvenção.
4.1 VINCULAÇÕES FILOSÓFICAS
Nas sessões seguintes, não nos deteremos nos artigos em si. Interessa menos vincular autores e instituições às teorias, e mais evidenciar a paisagem filosófica que atravessa os textos, especialmente nas abordagens sobre medicina e informação. Inicialmente, observamos as vinculações filosóficas, adotando uma compreensão ampla do que se apresenta como filosofia ou como elemento que dá sentido filosófico à discussão. Sendo um estudo exploratório, buscamos identificar as bases conceituais que orientam os trabalhos, entrelaçando correntes clássicas e filosofias institucionais, conforme indicadas nos textos.
A leitura comparativa revela uma diversidade de tradições filosóficas, sem predomínio de uma escola ou uniformidade conceitual. A filosofia aparece menos como disciplina estruturante e mais como repertório interpretativo, acionado conforme os objetos e contextos das pesquisas. Ainda assim, é possível reconhecer núcleos recorrentes que aproximam modos de pensar a técnica, a linguagem, o conhecimento e a informação.
O primeiro núcleo gira em torno da filosofia da tecnologia, com referências críticas (Feenberg), fenomenológicas (Heidegger), tecnocríticas (Ellul), humanistas (Ortega y Gasset, Mumford) e histórico-conceituais (Mitcham, Kapp, Ure). Embora plural, essa tradição converge na ideia da técnica como mediadora das relações humanas com o mundo. A leitura feenbergiana predomina, sugerindo uma abordagem política e emancipatória da tecnologia, em diálogo com a fenomenologia e com genealogias da modernidade técnica.
Outro núcleo mobiliza a filosofia da diferença, especialmente Deleuze e Guattari, articulando-se com Foucault e os estudos sociais da ciência e tecnologia (Latour, Knorr-Cetina, Frohmann). Essa vertente rejeita o sujeito cognitivista e a dialética hegeliano-marxista, adotando categorias como rizoma, plano de imanência e virtual/atual. Trata-se de uma epistemologia crítica e experimental, que desloca a informação da representação para a criação de mundos possíveis.
Em contraponto, há abordagens centradas na racionalidade comunicativa e na deliberação pública, inspiradas por Habermas. A informação é vista como mediação discursiva, voltada à construção de consenso e à organização racional das decisões em saúde. Essa perspectiva normativa e procedimental insere-se na filosofia prática, articulando informação, ética e gestão.
A filosofia das formas simbólicas (Cassirer) e as críticas ao mentalismo e ao positivismo lógico (Frohmann, García Gutiérrez, Vignaux, Bourdieu) também se destacam. Propõem uma epistemologia simbólica da organização do conhecimento, onde arte, ciência e linguagem compartilham estruturas expressivas. Foucault aparece como elo entre história das classificações, loucura e crítica às epistemes disciplinares.
A ética da informação, na linhagem de Capurro, constitui outro eixo relevante. Vincula-se à ontologia informacional e à teleologia aristotélica, com influências de Kant, Weber, Arendt e da crítica frankfurtiana (Benjamin, Brecht, Lukács). Essa abordagem, presente em estudos sobre desinformação e pandemia, trata a informação como questão moral e política, com implicações éticas na mediação técnica.
Alguns trabalhos não se filiam a escolas filosóficas clássicas, mas se aproximam de uma filosofia pragmática e política da ciência, orientada pela filosofia do SUS. O pensamento filosófico é operacionalizado por conceitos como equidade, integração e universalidade, com base em autores da política científica brasileira (Morel, Gadelha, Guimarães, Jansen), traduzindo-se em racionalidade prática voltada à gestão pública.
A ontologia surge em duas vertentes: uma realista, que articula Aristóteles, Kant e Husserl à metafísica aplicada da Ciência da Informação e da Computação, em diálogo com ontologias formais; e outra, de matriz platônico-aristotélica, reinterpretada pelas ciências cognitivas e pela representação do conhecimento. Ambas apontam para esforços de formalização conceitual, com foco técnico.
Por fim, destacam-se duas vertentes contemporâneas: a filosofia do acesso aberto, inspirada em Benkler, Sayão, Kuramoto e Costa, com enfoque ético e pragmático na circulação do conhecimento; e a filosofia da tecnologia da informação, de filiação bachelardiana, que reflete sobre a revolução digital, a sociedade do conhecimento e os impactos das TIC na subjetividade, em diálogo com a psicologia moderna e a modernização reflexiva.
Em conjunto, o corpus revela que o campo da informação em saúde se constitui como entrecruzamento de tradições filosóficas — tecnológicas, críticas, ontológicas, éticas e comunicacionais — sem hegemonia epistemológica. A filosofia opera como campo transversal, oferecendo léxicos, modos de problematização e ferramentas conceituais para pensar a saúde como fenômeno informacional, técnico e político.
4.2 COMO A SAÚDE APARECE?
A saúde geralmente aparece nos trabalhos analisados de forma instrumental. É pouco tratada como fundamento filosófico autônomo; funciona como campo empírico, referência metodológica ou contexto de aplicação. Isso indica que é vista menos como saber reflexivo e mais como conjunto de práticas que produzem e consomem informação. Em resumo, é objeto de análise, não eixo conceitual para a maioria dos casos.
Em um grupo de textos, a saúde é abordada no contexto das políticas públicas e da biomedicina, com temas como vacinação, vigilância epidemiológica e avaliação de tecnologias. O foco está na dimensão técnica e gerencial, com ênfase em segurança e efetividade, sem articulação filosófica própria. A medicina é tratada como produtora de dados e normas, funcionando como instrumento de racionalidade estatal.
Outro conjunto a apresenta como campo pedagógico, especialmente em modelos como o aprendizado baseado em problemas, atenção primária e ensino clínico. O foco recai sobre a formação profissional e o uso de fontes de informação, com a saúde funcionando como cenário didático, não como tradição filosófica.
A gestão dos serviços aparece como terceiro núcleo, associando saúde a práticas administrativas e lógicas de decisão. A teoria do agir comunicativo, metodologias de triagem e revisões sistemáticas exemplificam a aplicação de racionalidades filosóficas em contextos médicos. Aqui, o campo se aproxima da sociologia e da ética aplicada.
Nos estudos sobre saúde mental e psiquiatria, o tema assume papel histórico e classificatório. São recuperadas genealogias da loucura e práticas de isolamento, com autores como Pinel, Esquirol, Morel, Kraepelin, Basaglia e Nise da Silveira. Influenciados por Foucault, esses textos deslocam o foco terapêutico para o político, evidenciando a produção de categorias diagnósticas e imaginários sobre a anormalidade.
A bioética e a ética médica aparecem pontualmente em discussões sobre pandemia, mentira terapêutica e dilemas morais. A medicina é vista como prática social e metáfora cultural, como no uso literário do médico machadiano Diogo Meireles. O discurso médico torna-se chave simbólica para pensar tensões entre verdade, poder e responsabilidade.
Outros textos situam a medicina na interface com a tecnologia e a ciência, abordando ensaios clínicos, medicina personalizada, big data e ética dos dados biomédicos. Trata-se de uma prática conectada a paradigmas como o projeto genoma e a medicina digital, onde o cuidado se vincula à predição algorítmica e às redes digitais.
A saúde ocupacional e a segurança do trabalho também são mencionadas, reforçando a lógica normativa e administrativa. Em outro grupo, a medicina aparece de forma indireta, associada aos efeitos psicológicos e sociais da pandemia, especialmente nas políticas de regulação.
Em síntese, a medicina é tratada como categoria relacional, não como matriz epistemológica. Atua como mediadora entre práticas, políticas e tecnologias, funcionando como linguagem de aplicação. Embora presente em diversas escalas, raramente se converte em reflexão sobre o ato médico. O corpus confirma que a informação em saúde se apoia na medicina como espaço empírico e normativo, mas ainda carece de uma filosofia capaz de problematizar os modos de produção de verdade, cuidado e subjetividade.
4.3 COMO A ÁREA DE INFORMAÇÃO APARECE?
A análise dos trabalhos mostra que as áreas da informação, especialmente a Ciência da Informação e a Organização do Conhecimento, aparecem com frequência, mas de forma desigual entre os registros metodológico, teórico e instrumental. Na maioria dos casos, a informação é tratada como meio ou infraestrutura, não como objeto filosófico autônomo. Isso sugere que, no campo da informação em saúde, a Ciência da Informação atua como mediadora entre práticas técnicas, políticas públicas e epistemologias emergentes, oscilando entre vocação reflexiva e função aplicada.
Em parte dos textos, a informação aparece apenas como suporte editorial e método de análise. A área fornece ferramentas como redes semânticas, análise de cliques e estratégias de busca, mas sem discutir o conceito de informação. A ênfase recai sobre aspectos tecnológicos e decisórios, enquanto a reflexão teórica permanece ausente na maioria dos trabalhos. Essa abordagem reforça o papel da área na gestão de sistemas, mas também revela um esvaziamento conceitual, com a informação reduzida a operação técnica.
Outros trabalhos atribuem à informação um papel mais definido, tanto teórico quanto empírico. A Ciência da Informação é vista como campo cultural e cognitivo, com foco em bibliotecas, estudos de usuários e crítica ao virtualismo. A informação é entendida como mediação simbólica e social, e o documento científico como artefato cultural. Há um retorno às bases humanísticas, com influências da filosofia contemporânea e dos estudos culturais.
Em textos ligados à filosofia da informação, o conceito aparece como infraestrutura metodológica e como objeto discursivo. As interfaces com a saúde são analisadas pela mediação comunicativa, com foco no discurso e na deliberação, em vez da representação ou armazenamento. Essa abordagem se aproxima da tradição habermasiana, propondo uma epistemologia da comunicação racional e da decisão coletiva.
Os estudos sobre Organização do Conhecimento enfrentam tensões conceituais, confrontando o mentalismo e o positivismo lógico. Discutem a recuperação da informação, os limites das classificações e o papel das ontologias, relacionando essas questões à psiquiatria e à epistemologia crítica. A informação assume dimensão simbólica e política, com categorias e tesauros funcionando como instrumentos disciplinares, especialmente em contextos médicos.
Alguns textos exploram a ética da informação e a epistemologia da desinformação, analisando práticas documentais e pseudo-autoridades em contextos políticos e literários. A Ciência da Informação fornece vocabulário metodológico e aparato conceitual para pensar regimes de verdade e credibilidade no espaço público.
Outra vertente usa a informação como recurso estratégico para políticas públicas em saúde. O foco é pragmático: orientar decisões, priorizar investimentos e apoiar a governança. Embora com foco técnico, essa abordagem reafirma o papel da informação como instrumento de poder e regulação.
Nos estudos sobre infraestrutura científica e digital, a área se articula com a Ciência da Computação e a Gestão do Conhecimento. Três níveis são reconhecidos: teórico, voltado à modelagem; técnico, ligado à representação de dados; e gerencial, que trata a informação como ativo estratégico. Ontologias e metadados funcionam como tecnologias epistêmicas, formalizando sentidos nos sistemas informacionais.
A informação também é discutida como princípio ético e político, especialmente em temas como acesso aberto, curadoria digital e repositórios científicos. A área sustenta uma filosofia pragmática da circulação do conhecimento, em diálogo com os movimentos de bens comuns e políticas de comunicação científica. A ideia de informação pública e reutilizável substitui a noção de conhecimento como propriedade individual.
Por fim, a filosofia da informação amplia o debate, reposicionando o conceito como mediação entre técnica, comunicação e ética. A informação é tratada como fluxo, relação e documento, compondo uma ontologia ampliada que atravessa dimensões epistemológicas, sociais e políticas.
Em conjunto, os textos mostram que o conceito de informação circula com múltiplas funções (como método, objeto, valor e metáfora) refletindo a herança interdisciplinar da área. Essa diversidade revela o caráter plural do campo, onde pensamento filosófico, prática documental e técnica convivem em uma mesma ecologia cognitiva.
5 CONCLUSÕES
A análise dos textos revela que o campo da informação em saúde se constitui como um espaço de articulação entre múltiplas tradições filosóficas, sem que haja uma escola dominante. A filosofia aparece como ferramenta transversal, oferecendo modos de problematização que permitem compreender a saúde como fenômeno técnico, político e comunicacional. A saúde, embora recorrente, é tratada de forma instrumental, como cenário empírico ou dispositivo de gestão, sem se consolidar como eixo conceitual. Já a informação assume papéis variados — método, valor, objeto — e circula entre registros técnicos, éticos e epistemológicos, refletindo a vocação interdisciplinar da Ciência da Informação e sua tensão entre aplicação e reflexão. Em conjunto, os textos apontam para um campo marcado pela pluralidade teórica e pela coexistência entre crítica, prática e mediação, onde filosofia, saúde e informação se entrelaçam como dimensões complementares da produção de conhecimento.
REFERÊNCIAS
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