LINGUAGEM, EMANCIPAÇÃO E CUIDADO
diálogos entre a biblioterapia e a teoria da ação comunicativa
Niliane Cunha de Aguiar[1]
Universidade Federal de Sergipe
nilianeaguiar@academico.ufs.br
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Resumo
A biblioterapia se configura como uma prática terapêutica que utiliza a leitura para promover o autoconhecimento, a reflexão e a resolução de conflitos internos. A teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas oferece um arcabouço teórico para compreender a interação humana pautada na busca pelo entendimento mútuo através da comunicação racional. Este artigo visa discutir a relação entre biblioterapia e a teoria da ação comunicativa, explorando como a leitura e o diálogo simbólico podem promover processos de comunicação emancipatória e desenvolvimento pessoal. Desse modo, o estudo, de caráter teórico-conceitual, apresenta um panorama analítico que permite compreender como a Biblioterapia vista como literatura mediada pelo diálogo pode também funcionar como prática emancipatória, ampliando a compreensão da biblioterapia enquanto intervenção ética, comunicativa e social.
Palavras-chave: Biblioterapia. Teoria da Ação Comunicativa. Habermas.
LANGUAGE, EMANCIPATION, AND CARE
dialogues between bibliotherapy and the theory of communicative action
Abstract
Bibliotherapy is a therapeutic practice that uses reading to promote self-knowledge, reflection, and the resolution of internal conflicts. Jürgen Habermas's theory of communicative action offers a theoretical framework for understanding human interaction based on the pursuit of mutual understanding through rational communication. This article aims to discuss the relationship between bibliotherapy and the theory of communicative action, exploring how reading and symbolic dialogue can promote emancipatory communication processes and personal development. Thus, this theoretical-conceptual study presents an analytical overview that allows us to understand how bibliotherapy, seen as literature mediated by dialogue, can also function as an emancipatory practice, broadening the understanding of bibliotherapy as an ethical, communicative, and social intervention.
Keywords: Bibliotherapy. Theory of Communicative Action. Habermas.
LENGUAJE, EMANCIPACIÓN Y CUIDADO
diálogos entre la biblioterapia y la teoría de la acción comunicativa
Resumen
La biblioterapia es una práctica terapéutica que utiliza la lectura para promover el autoconocimiento, la reflexión y la resolución de conflictos internos. La teoría de la acción comunicativa de Jürgen Habermas ofrece un marco teórico para comprender la interacción humana basado en la búsqueda del entendimiento mutuo a través de la comunicación racional. Este artículo analiza la relación entre la biblioterapia y la teoría de la acción comunicativa, explorando cómo la lectura y el diálogo simbólico pueden promover procesos de comunicación emancipadores y el desarrollo personal. Así, este estudio teórico-conceptual presenta una visión general analítica que permite comprender cómo la biblioterapia, entendida como literatura mediada por el diálogo, puede funcionar también como una práctica emancipadora, ampliando la comprensión de la biblioterapia como una intervención ética, comunicativa y social.
Palabras clave: Biblioterapia. Teoría de la acción comunicativa. Habermas.
1 INTRODUÇÃO
A biblioterapia tem ganhado destaque como prática que utiliza a literatura para promover o autoconhecimento, a reflexão e a reorganização de narrativas subjetivas. Em paralelo, a filosofia de Jürgen Habermas, especialmente sua Teoria da Ação Comunicativa, oferece uma perspectiva de análise sobre o papel da linguagem na construção de consensos e na emancipação individual e social.
Apesar do crescimento de estudos sobre biblioterapia e suas aplicações terapêuticas, ainda existe uma lacuna teórica quanto à articulação dessa prática com fundamentos filosóficos comunicativos. A presente pesquisa propõe examinar essa interface, defendendo que a leitura, quando mediada pelo diálogo e pela reflexão coletiva, pode ser compreendida como uma prática de ação comunicativa.
O artigo busca, assim, contribuir para a fundamentação teórica da biblioterapia, ampliando sua compreensão enquanto prática ética, comunicativa e emancipatória, e ao mesmo tempo preencher uma lacuna na literatura acadêmica ao integrar conceitos habermasianos à prática terapêutica literária.
O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa de abordagem qualitativa, de natureza teórico-conceitual, fundamentada em revisão bibliográfica crítica. Optou-se por uma investigação de caráter exploratório, tendo em vista estabelecer aproximações entre a prática da biblioterapia e a filosofia de Jürgen Habermas, especialmente no que se refere à sua Teoria da Ação Comunicativa.
O objetivo não é comprovar empiricamente a relação, mas elaborar um panorama analítico que sustente novas perspectivas teóricas e metodológicas para a prática biblioterapêutica e indicar caminhos para investigações futuras, incluindo estudos empíricos em contextos de grupos biblioterapêuticos.
A construção do referencial teórico envolveu de modo especial, a análise da obra clássica de Habermas Teoria do agir comunicativo (1984), bem como de produções de Clarice Fortkamp Caldin que abordam a biblioterapia em suas dimensões terapêutica, educativa e social, a fim de que o diálogo teórico-conceitual dos autores possa assegurar rigor e consistência às interpretações elaboradas.
O processo de análise foi desenvolvido por meio de uma hermenêutica interpretativa, que possibilitou cotejar os conceitos habermasianos de linguagem, diálogo, consenso e emancipação com os fundamentos e práticas da biblioterapia.
A biblioterapia, entendida como a utilização da leitura e da literatura em processos de cuidado, autoconhecimento e transformação subjetiva, pode ser analisada sob a perspectiva da filosofia de Jürgen Habermas, especialmente sua Teoria da Ação Comunicativa. Para Habermas, a linguagem é mais do que instrumento de transmissão: constitui-se como prática social orientada ao entendimento mútuo, à emancipação e à construção coletiva de sentidos. Nesse contexto, a biblioterapia configura-se como espaço de ação comunicativa, no qual o texto literário atua como mediador simbólico capaz de mobilizar reflexões individuais e coletivas.
Em grupos biblioterapêuticos, a leitura compartilhada promove igualdade de voz, escuta ativa e diálogo livre de coerção, elementos fundamentais do agir comunicativo habermasiano. O processo terapêutico não se limita à experiência estética da obra, mas à possibilidade de transformar narrativas pessoais a partir da interação dialógica.
Assim, a biblioterapia, ao proporcionar momentos de fala e escuta mediados pela literatura, aproxima-se do ideal habermasiano de comunicação emancipatória, contribuindo para a autonomia do sujeito e para a coesão social. Essa relação evidencia o potencial da prática biblioterapêutica como experiência ética e comunicativa, reforçando seu papel não apenas no âmbito terapêutico, mas também no fortalecimento de processos de humanização e cidadania.
2 TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA E O MUNDO DA VIDA
A Teoria da Ação Comunicativa (TAC) foi elaborada pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, especialmente a partir de sua obra homônima publicada em dois volumes, em 1981. Nascido em 1929, Habermas propôs uma reformulação do conceito de racionalidade, buscando superar a perspectiva tradicional que a compreendia de modo estritamente instrumental.
Para tanto, desenvolveu a noção de razão comunicativa, entendida como uma forma ampliada e intersubjetiva de racionalidade. Essa teoria se estrutura a partir de fundamentos oriundos de diversas vertentes filosóficas e sociológicas, entre as quais se destacam o materialismo histórico dialético de Karl Marx, o funcionalismo compreensivo de Max Weber, a filosofia da linguagem e a teoria crítica desenvolvida pela Escola de Frankfurt.
[..].eu pretendo arguir que uma mudança de paradigma para o da teoria da comunicação tornará possível um retorno à tarefa que foi interrompida com a crítica da razão instrumental; e isto nos permitirá retomar as tarefas, desde então negligenciadas, de uma teoria crítica da sociedade (Habermas, 1984, p. 386).
Nesse contexto, Habermas defende que a comunicação racional, livre e orientada ao entendimento mútuo constitui o alicerce da interação social e da formação de consensos, configurando-se, assim, como elemento essencial para o fortalecimento e a manutenção das sociedades democráticas. Segundo Aragão (1992, p. 82), “Habermas acredita que, na estrutura da linguagem cotidiana, está embutida uma exigência de racionalidade pois, com a primeira frase proferida, o homem já manifestava uma pretensão de ser compreendido, uma busca de entendimento.”
Habermas (1984) defende que a comunicação autêntica, livre de coerção, constitui o núcleo da vida social e da construção de significados. O agir comunicativo ocorre quando os participantes buscam entendimento mútuo, baseando-se em argumentos racionais e respeito à voz do outro. Elementos centrais incluem a linguagem como mediadora de sentido; o consenso; a emancipação e a igualdade de participação e ausência de coerção:
[...] não é a relação de um sujeito solitário com algo no mundo objetivo que pode ser representado e manipulado mas a relação intersubjetiva, que sujeitos que falam e atuam, assumem quando buscam o entendimento entre si, sobre algo. Ao fazer isto, os atores comunicativos movem-se por meio de uma linguagem natural, valendo-se de interpretações culturalmente transmitidas e referem-se a algo simultaneamente em um mundo objetivo, em seu mundo social comum e em seu próprio mundo subjetivo (Habermas, 1984, p. 392).
Habermas (1984) distingue a ação comunicativa da ação estratégica ou instrumental uma vez que, na ação comunicativa, o foco está no entendimento mútuo (Verständigung) entre os participantes, que coordenam seus planos de ação por meio da linguagem e do consenso racionalmente motivado. Já a ação orientada para o êxito (ação teleológica ou instrumental/estratégica) busca alcançar um objetivo por meio de manipulação ou coerção.
A linguagem, para Habermas, possui uma força ilocucionária que engaja os atores em um processo de resgate de pretensões de validade criticáveis (Habermas, 1984, p. 36) que são: a verdade (Wahrheit) () em relação a proposições sobre o mundo objetivo (o mundo dos fatos); a justiça (Richtigkeit) em relação às normas e expectativas do mundo social (o mundo das relações interpessoais e instituições e a veracidade/sinceridade (Wahrhaftigkeit) em relação às intenções, sentimentos e autoapresentações do falante perante seu mundo subjetivo (o mundo das experiências internas).
Essa interação ocorre no Mundo da Vida (Lebenswelt), que Habermas define como o horizonte de pressupostos não tematizados, o estoque de saber cultural, de identidades pessoais e de solidariedade social como um reservatório de certezas implícitas e recursos interpretativos que serve de pano de fundo para a interação (Habermas, 1984). É no Mundo da Vida que se dão os processos de reprodução social, compreendendo a transmissão cultural (pelo saber), a integração social (pela solidariedade) e a formação da personalidade (pela socialização).
O Mundo da Vida, contudo, está sujeito à "colonização do sistema" (mecanismos de poder e dinheiro), que impõe uma racionalidade instrumental a esferas que deveriam ser regidas pela ação comunicativa (Habermas, 1984). Habermas propõe que a razão comunicativa, presente no diálogo livre de coação, é o potencial emancipatório da modernidade.
O aspecto crucial da crítica habermasiana à modernidade reside na distinção entre o Mundo da Vida e o Sistema (subsistemas da Economia e da Administração/Estado), que são coordenados pelos meios de dinheiro e poder, operando segundo uma racionalidade instrumental, orientada para o sucesso. A patologia social surge com a "colonização do mundo da vida", onde a racionalidade sistêmica invade esferas comunicativas essenciais para a integração social e a formação da identidade, impondo sua lógica de eficiência e controle (Habermas, 1984). Habermas postula que a racionalidade comunicativa, presente no diálogo livre de coação, é o único potencial emancipatório da modernidade capaz de resistir a essa colonização.
A TAC representa um esforço monumental para fundar a racionalidade humana não mais na consciência solitária (o paradigma da filosofia da consciência), mas na estrutura da intersubjetividade e da comunicação, pois para Habermas:
[...] sempre que as ações dos agentes envolvidos são coordenadas, não através de cálculos egocêntricos de sucesso, mas através de atos de alcançar o entendimento. Na ação comunicativa, os participantes não estão orientados primeiramente para o seu próprio sucesso individual, eles buscam seus objetivos individuais respeitando a condição de que podem harmonizar seus planos de ação sobre as bases de uma definição comum de situação. Assim, a negociação da definição de situação é um elemento essencial do complemento interpretativo requerido pela ação comunicativa (Habermas, 1984, p. 285, 286).
Segundo Goulart (2009), Habermas distingue dois tipos de coordenação da ação social: a ação comunicativa, cujo meio principal é a linguagem orientada para o entendimento, e a ação sistêmica, orientada por meios como dinheiro e poder, que visa fins estratégicos. Essa dualidade é central para compreender a tensão da sociedade moderna entre cooperação comunicativa e domínio sistêmico.
A racionalidade comunicativa, conforme analisa Machado et al (2017), é um meio pelo qual os sujeitos buscam atingir um consenso por meio do diálogo livre de coerções, diferenciando-se da racionalidade instrumental que visa objetivos predeterminados. Essa abordagem enfoca a importância da interação dialógica e intersubjetiva para a tomada de decisão e mediação de conflitos, sendo particularmente relevante em contextos sociais e organizacionais complexos.
Mendonça (2024) destaca que a TAC responde à colonização do mundo da vida por mecanismos societais dominados pela racionalidade instrumental, ressaltando que a ação comunicativa promove a cooperação social e a integração a partir do entendimento intersubjetivo. A distinção entre ação estratégica e comunicativa é fundamental para compreender as possibilidades emancipatórias da teoria.
Pinto (1995) amplia a discussão mostrando a clareza entre a ação comunicativa e o mundo da vida, via reprodução das estruturas simbólicas e culturais por meio da linguagem, o que reflete nos processos sociais de comunicação e organização. Gonçalves (1999) reforça que o modelo ideal de ação comunicativa é organizacional e social, baseado na busca coletiva por um consenso através do uso da linguagem, com possibilidade de transformação social e emancipação.
Essas abordagens reforçam a importância da TAC como uma teoria crítica que propõe a comunicação como base para a construção do entendimento, da legitimação social e da cooperação em sociedades complexas, indo além do mero cálculo racional e instrumental.
A TAC é um marco teórico fundamental para compreender a comunicação como um processo estruturante das relações sociais e um caminho para a emancipação social por meio do entendimento e consenso comunicativos. Está fundamentada na ideia de que o entendimento humano e a construção do sentido social acontecem por meio do diálogo racional entre sujeitos. Neste contexto, é possível observar que a Biblioterapia também possui uma perspectiva habermasiana, como será apresentado a seguir.
3 A BIBLIOTERAPIA COMO PRÁXIS DIALÓGICA
A Biblioterapia pode ser compreendida como uma prática que concretiza, no campo simbólico e terapêutico, a própria dinâmica da ação comunicativa. A sessão biblioterapêutica constitui um espaço dialógico em que o texto literário atua como mediador entre os sujeitos, possibilitando trocas intersubjetivas que visam à compreensão e à reconstrução de sentidos. A leitura, quando compartilhada e refletida, transforma-se em discurso, e o discurso, em meio de entendimento e autoconhecimento. Caldin (2001, p.36) define a biblioterapia como “leitura dirigida e discussão em grupo, que favorece a interação entre as pessoas, levando-as a expressarem seus sentimentos: os receios, as angústias e os anseios.
Observa-se, portanto, que assim como a ação comunicativa se estrutura pela busca do consenso racional, a Biblioterapia se organiza pela busca do entendimento emocional e simbólico, em que o leitor é convidado a reinterpretar suas experiências de forma discursiva.
Se o envolvimento com a história produzir a catarse, a identificação ou a introspecção (não necessariamente concomitante ou sucedâneas), tal história cumpriu o propósito terapêutico, mesmo que isso não fique visível ou não seja facilmente detectado. De fato, no mais das vezes, apenas o atingido sabe em que medida o texto permitiu-lhe trabalhar as emoções, ativar a imaginação ou fazer uma reflexão (Caldin, 2010, p. 121).
O processo biblioterapêutico, contudo, transcende a mera leitura individual: ele se insere em uma rede comunicativa em que o diálogo, a escuta ativa e o acolhimento configuram condições análogas à “situação ideal de fala” descrita por Habermas. Neste sentido, a Biblioterapia também está alicerçada no relacionamento interpessoal de ajuda e confiança entre os envolvidos no processo terapêutico a partir do texto. “Na Biblioterapia, considera-se a fala cortês, o olhar gentil, o toque carinhoso e o abraço amigo como altamente terapêutico para esse corpo sofrido que é o nosso” (Caldin, 2010, p. 58).
No contexto biblioterapêutico, a literatura funciona como um terceiro mediador do discurso — um texto que catalisa a expressão de sentimentos, valores e narrativas pessoais. A leitura provoca o surgimento de enunciados que são reelaborados coletivamente, de modo que cada participante possa reconstruir seu horizonte de sentido à luz das experiências dos demais. Assim, o diálogo literário se transforma em uma forma de discurso terapêutico racional, em que o consenso não é lógico-formal, mas simbólico e emocional, visando à autocompreensão e à emancipação subjetiva. Para Caldin (2001, p.37):
O método biblioterapêutico consiste em uma dinamização e ativação existencial por meio da dinamização e ativação da linguagem. As palavras não são neutras. A linguagem metafórica conduz o homem para além de si mesmo; ele se torna outro, livre no pensamento e na ação.
A Biblioterapia não se limita à mera prescrição de livros, mas se consolida como uma práxis dialógica onde a leitura e a discussão subsequente atuam como catalisadores do processo de reflexão e mudança. A interação mediada pelo texto (literário ou informativo) possibilita a projeção, identificação e catarse, elementos essenciais para o desenvolvimento de novas perspectivas sobre si e o mundo (Solé, 2012). Em programas de Biblioterapia, o biblioterapeuta (ou mediador) busca promover o autoconhecimento e a inclusão social, demandando, para tal, o desenvolvimento de uma competência baseada na escuta e no diálogo. O papel do facilitador é garantir o agir comunicativo: evitar interrupções, promover respeito e valorizar o consenso possível.
A práxis dialógica da Biblioterapia ocorre em duas vertentes: no diálogo interno entre o leitor interagente e o texto terapêutico e no diálogo compartilhado entre os participantes em uma sessão. Entretanto, esse compartilhamento ocorre de forma voluntária (não imposta e nem manipulada), de modo que ninguém é obrigado a se manifestar: “abre-se o diálogo e dele participa quem sentir o desejo ou a necessidade de partilhar as angústias semelhantes às das personagens ou os sucessos obtidos por estratégias parecidas às das mesmas” (Caldin, 2010, p. 163).
Na Biblioterapia, o interagente é aquele que participa de atividades biblioterapêuticas dentro ou fora de uma biblioteca, seja em grupo ou individualmente, e que se coloca no processo de forma ativa, abrindo-se para o diálogo. É possível identificar alguns níveis de interação do indivíduo nos processos de leitura terapêutica. Ele interage tanto com o livro, ou o texto, quanto com aqueles que compartilham das atividades (Sousa; Caldin, 2016, p.6).
O processo biblioterapêutico, portanto, não é apenas individual, mas também relacional uma vez que o texto literário funciona como mediador comunicacional e o leitor encontra novas perspectivas para interpretar sua própria vida e no grupo, a discussão das leituras promove trocas simbólicas que constroem significados coletivos. À luz dessa compreensão, infere-se que os conceitos de linguagem, comunicação, diálogo, consenso e emancipação, no âmbito da teoria habermasiana, revelam uma relação de convergência com os pressupostos epistemológicos e praxiológicos que fundamentam a biblioterapia.
4 A CONFLUÊNCIA: A BIBLIOTERAPIA COMO ESPAÇO DE AÇÃO COMUNICATIVA
A relação entre a Biblioterapia e a TAC reside no potencial da primeira em constituir uma esfera de interação que, idealmente, se aproxima da situação ideal de fala habermasiana, promovendo a emancipação do indivíduo no seu Mundo da Vida.
A Biblioterapia, enquanto processo de mediação da leitura com fins terapêuticos e de autoconhecimento, estabelece-se como um campo interdisciplinar que dialoga com a Ciência da Informação, Psicologia, Filosofia, Educação, dentre outras áreas. Sua relevância reside na capacidade de mobilizar recursos cognitivos, afetivos e sociais para promover a transformação pessoal e o bem-estar dos indivíduos.
Paralelamente, a TAC oferece um robusto arcabouço para a compreensão da racionalidade humana e da integração social (Habermas, 1984). É possível estabelecer uma relação intrínseca entre a Biblioterapia e a TAC, argumentando que o processo biblioterapêutico pode ser compreendido como uma forma de ação comunicativa que utiliza uma linguagem emancipatória orientada para o entendimento no "mundo da vida" (Habermas, 1984).
4.1 LINGUAGEM: DIÁLOGO E PRETENSÕES DE VALIDADE
Para Habermas, quando nos comunicamos, não apenas transmitimos informações, mas também reivindicamos que aquilo que dizemos é válido. Essas pretensões de validade podem ser questionadas e justificadas no diálogo racional. Assim, a comunicação é o meio por excelência da racionalidade humana.
A informação terapêutica (existente em textos, imagens, sons ou artefatos) utilizada nas práticas biblioterapêuticas funciona como um mediador reflexivo onde as pretensões de validade são postas em xeque. Baseando-se em Habermas é possível compreender que na Biblioterapia as pretensões de validade podem ocorrer nas seguintes perspectivas:
· Veracidade (Mundo Subjetivo): A leitura e a partilha de sentimentos e experiências pessoais (identificação, projeção) levam o indivíduo a tematizar e a refletir sobre sua própria subjetividade, resgatando a veracidade de suas expressões emocionais e autoimagens.
· Justeza (Mundo Social): O diálogo em grupo, ao confrontar diferentes interpretações e reações ao texto, permite que os participantes reavaliem normas e valores sociais (mundo social), buscando a justeza na construção de novas relações e papéis.
· Verdade (Mundo Objetivo): A discussão sobre o contexto da obra, informações contidas nela ou as crenças do indivíduo sobre a realidade (mundo objetivo) pode levar a um aprendizado cognitivo e à correção de interpretações factuais, aproximando-se da pretensão de verdade.
A coordenação dos planos de ação, neste contexto, se manifesta na mudança de comportamento e na adoção de novas estratégias de enfrentamento de problemas, decorrentes do consenso (ou da compreensão reflexiva) alcançado através do diálogo.
A linguagem é utilizada para coordenar ações através do acordo racional e da busca por um entendimento consensual e objetivo, em vez de se basear na imposição ou na instrumentalização do outro. A dimensão ética e dialógica das práticas biblioterapêuticas se alinha com a percepção de diálogo habermasiano que exige respeito, escuta e reconhecimento do outro. As sessões de biblioterapia em grupo devem seguir esse mesmo princípio: todos podem expressar-se, compartilhar experiências e reinterpretar sua história.
4.2 EMANCIPAÇÃO NO MUNDO DA VIDA
O objetivo último da Biblioterapia, ao buscar o autoconhecimento e a transformação social, converge com a preocupação habermasiana de defender o Mundo da Vida contra a racionalidade instrumental. Ao propiciar um espaço de diálogo livre, onde as experiências são narradas e renegociadas através da linguagem (a leitura e a fala), a Biblioterapia atua como um mecanismo de renovação do saber cultural e de formação de identidades pessoais (Habermas, 1984).
Em ambientes comunitários e de vulnerabilidade social, por exemplo, o agir comunicativo mediado pela leitura pode contribuir para a emancipação dos interagentes, reforçando o papel do mediador (bibliotecário/biblioterapeuta) como agente que atua frente à diversidade, promovendo a interação e a solidariedade social (Cavalcante; Silva; Lopes, 2017).
Se para Habermas, a linguagem não serve apenas para transmitir informações, mas para criar entendimento e libertação, na biblioterapia, a linguagem é utilizada como instrumento de cura emocional e emancipação. Visto que na prática biblioterapêutica, a informação terapêutica, como por exemplo a literatura, mobiliza sentimentos e reflexões que emancipam o sujeito de bloqueios psíquicos e sociais e torna-o livre de prisões traumáticas e de manipulações coercitivas da sociedade.
Tal autonomia e emancipação proposta por Habermas é vista como fruto das relações de comunicação livres de coerção. E a biblioterapia têm como princípio norteador a promoção da autonomia emocional e cognitiva do interagente, pois permite que este seja livre para elaborar e reelaborar sua narrativa de vida por meio da sua interpretação pessoal e coletiva da informação terapêutica existente na literatura por exemplo.
4.3 O CUIDADO COMO ATO COMUNICATIVO: HABERMAS E O RECONHECIMENTO DO OUTRO
Habermas acredita que a racionalidade humana não se
manifesta apenas no pensamento lógico, mas na capacidade de dialogar e buscar
entendimento.
Isso significa que, para ele, o cuidado com o outro começa no reconhecimento da
alteridade, isto é, reconhecer o outro como um sujeito igualmente capaz de
falar, argumentar e ter razões válidas. Em outras palavras, cuidar das pessoas,
em termos habermasianos, é levar a sério a palavra e a dignidade delas. Pois
para Habermas toda fala orientada ao entendimento implica um reconhecimento
recíproco dos interlocutores como sujeitos livres e iguais.
A busca pelo consenso e pela construção de sentido existente na teoria da ação comunicativa encontra na Biblioterapia um espaço para sua prática, ao estimular o diálogo sobre textos e leituras, busca-se um consenso subjetivo, que é o reconhecimento da experiência de cada participante e a co-construção de sentidos.
O cuidado para promover o reconhecimento do outro e sua emancipação por meio do diálogo livre de coerção e com igualdade de voz recomendado pela TAC, aparece na prática biblioterapêutica por meio de escuta, empatia racional, inclusão e respeito mútuo, para que todas as pessoas envolvidas se sintam aceitas, acolhidas, ouvidas e compreendidas. Assim, o cuidado, para Habermas e para a Biblioterapia não é apenas um sentimento, mas uma prática comunicativa e racional de respeito e consideração pelos sujeitos.
A integração entre biblioterapia e da filosofia de Habermas evidencia que a leitura pode ser compreendida como prática ética, comunicativa e emancipatória. Nesse sentido, ao organizar sessões de biblioterapia com base no agir comunicativo, é possível:
· Ampliar o entendimento das experiências subjetivas;
· Valorizar a voz de cada participante;
· Promover transformação pessoal e coletiva;
· Conectar processos terapêuticos à construção de coesão social e cidadania.
Para tanto, deve-se estabelecer uma metodologia que tenha procedimentos capazes de oferecer tais resultados, como se verá a seguir.
4.4 PROPOSTA DE METODOLOGIA PARA PRÁTICAS DE BIBLIOTERAPIA INSPIRADAS EM HABERMAS
Para Caldin (2001, p.37) “O método biblioterapêutico consiste em uma dinamização e ativação existencial por meio da dinamização e ativação da linguagem. As palavras não são neutras. A linguagem metafórica conduz o homem para além de si mesmo; ele se torna outro, livre no pensamento e na ação.” Assim sendo,
A linguagem em movimento, o diálogo, é o fundamento da biblioterapia. O plurarismo interpretativo dos comentários aos textos deixa claro que cada um pode manifestar sua verdade e ter sua visão do mundo. Entre os parceiros do diálogo há o texto, que funciona como objeto intermediário. No diálogo biblioterapêutico é o texto que abre espaço para os comentários e interpretações que propõem uma escolha de pensamento e de comportamento. Assim, as diversas interpretações permitem a existência da alteridade e a criação de novos sentidos (Caldin, 2001, p.37).
Para que o método biblioterapêutico seja efetivo, as sessões práticas de Biblioterapia devem ser planejadas levando em consideração a promoção dos componentes biblioterapêuticos apresentados por Caldin (2001): Catarse, Humor, Identificação, Introjeção, Projeção e Introspecção. Tais componentes podem aparecer em diversos momentos da sessão, à medida que os interagentes se conectam e se sentem livres para se expressar e para experimentar os efeitos terapêuticos dos textos utilizados. É possível sintetizar uma proposta de prática de Biblioterapia inspirada na TAC por meio das seguintes etapas:
1. Leitura compartilhada de textos curtos (poesia, crônica, narrativa) para promover reflexão e identificação;
2. Rodada de impressões com escuta ativa e igualdade de voz;
3. Diálogo mediado pelo facilitador, garantindo ausência de coerção e respeito mútuo;
4. Síntese coletiva, registrando consensos e novos sentidos construídos pelo grupo.
Essa proposta de prática permite que os participantes experimentem a literatura como espaço de ação comunicativa, promovendo autoconhecimento e emancipação, de acordo com os princípios habermasianos. A discussão reforça que a biblioterapia não é apenas intervenção estética ou emocional, mas também prática social de diálogo e construção de sentido, alinhada à filosofia habermasiana.
A articulação entre biblioterapia e agir comunicativo evidencia que a prática literária mediada pelo diálogo vai além do desenvolvimento pessoal, aproximando-se de princípios éticos e sociais. Considera-se que a experiência biblioterapêutica se torna, assim, instrumento de emancipação e humanização, capaz de fortalecer relações interpessoais e promover entendimento coletivo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relação entre biblioterapia e a filosofia de Habermas está na ideia de que a linguagem literária é um espaço de ação comunicativa, onde o sujeito encontra emancipação, sentido e cura. Assim como Habermas aposta no diálogo para transformar a sociedade, a biblioterapia aposta na leitura e na palavra para transformar o indivíduo e os grupos. O estudo demonstra que a biblioterapia pode ser articulada teoricamente à Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, consolidando-se como prática de leitura ética, comunicativa e emancipatória. A análise sugere que a literatura mediada pelo diálogo promove não apenas reflexão individual, mas também construção coletiva de significados, fortalecendo o entendimento mútuo e a coesão social.
A relação entre biblioterapia e a filosofia de Habermas está na ideia de que a linguagem literária é um espaço de ação comunicativa, onde o sujeito encontra emancipação, sentido e cura. Assim como Habermas aposta no diálogo para transformar a sociedade, a biblioterapia aposta na leitura e na palavra para transformar o indivíduo e os grupos. As observações elaboradas neste estudo podem contribuir para preencher lacunas teóricas ao:
· Estabelecer uma articulação conceitual entre a biblioterapia e a filosofia de Habermas, destacando o potencial terapêutico do diálogo e da linguagem.
· Propor uma metodologia de biblioterapia fundamentada na Teoria da Ação Comunicativa, com foco na emancipação e no entendimento mútuo.
· Contribuir para a expansão teórica da biblioterapia, ampliando suas bases filosóficas e práticas.
Conclui-se que a prática biblioterapêutica, fundamentada em princípios habermasianos é possível e, portanto, há um caminho promissor para pesquisas futuras, incluindo estudos empíricos que investiguem os efeitos da ação comunicativa em contextos terapêuticos, educacionais e comunitários.
O estudo demonstra que a biblioterapia pode ser compreendida como prática de ação comunicativa, alinhada à filosofia de Habermas. Sessões de leitura e diálogo permitem expressão subjetiva, construção de sentidos coletivos e emancipação, oferecendo bases sólidas para futuras pesquisas, inclusive empíricas, que avaliem os efeitos do diálogo mediado pela literatura em grupos terapêuticos. A análise desenvolvida neste estudo indica que a biblioterapia estruturada segundo princípios habermasianos pode promover a participação ética e igualitária; a reflexão individual e coletiva sobre experiências de vida; a transformação subjetiva por meio da literatura mediada pelo diálogo e a construção de consensos simbólicos e entendimento mútuo.
A Biblioterapia, vista sob a ótica da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, transcende sua função meramente terapêutica para se firmar como um ato de resistência e de construção da racionalidade comunicativa. Ela cria um ambiente ideal, no seio do Mundo da Vida, onde a força ilocucionária da linguagem (a leitura e o diálogo) prevalece sobre o sucesso estratégico, permitindo que os indivíduos, através do entendimento mútuo e da reflexão crítica, promovam a integração social e a formação de identidades autônomas. Estudar a Biblioterapia com base na TAC fornece um referencial teórico e metodológico robusto para analisar seus potenciais emancipatórios na sociedade contemporânea.
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