A auditoria jornalística e a esfera pública plataformizada

procedimentos para fortalecer o caráter público na deliberação política

Heitor Costa Lima da Rocha

Universidade Federal de Pernambuco

hclrocha@gmail.com

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Resumo

A tendência à anomia e as ameaças à democracia que representam as fake News, as bolhas e câmaras de eco das esferas públicas plataformizadas, com a explícita indisposição de participar da dialética do jogo de argumentação com posicionamentos contraditórios para construção de consensos racionais, no entendimento de Jürgen Habermas, precisa ser enfrentada através de uma legislação para normatizar procedimentos similares aos que a auditoria profissional do jornalismo exerce na mídia noticiosa tradicional. Diante da radicalidade do diagnóstico habermasiano das patologias e disfunções sociais da modernidade como decorrentes da comunicação sistematicamente distorcida realizada com a prevalência da publicidade manipulativa na esfera pública articulada pelo jornalismo, desenvolvido a partir da primeira mudança estrutural da esfera pública (1984), esta aplicação ampliada da autocompreensão normativa dos veículos da mídia noticiosa às mídias digitais poderia, numa avaliação rápida, superficial e equivocada, ser considerada como uma contradição. Muitos comentaristas, na verdade, concluíram que Habermas havia decretado a morte da esfera pública, sem levar em conta a revisão do conceito feita em Direito e Democracia (1997), com o refinamento da concepção de autoridade do público já antecipada por Breed (2016) no termo “tabu ético”, quando a sociedade consegue reverter o enquadramento da indústria das notícias com a ideologia epistêmica positivista da objetividade para satisfazer os interesses particulares da estrutura de poder. No livro Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa, Habermas observa que as plataformas precisam assumir, como a mídia tradicional, a responsabilidade de vir a público para rever seus posicionamentos quando se revelarem contrários ao “imperativo constitucional de manter uma estrutura midiática que possibilite o caráter inclusivo da esfera pública e um caráter deliberativo na formação pública da opinião e da vontade”. (Habermas, 2023, p. 80-81)

Palavras-chave: Esfera Pública. Auditoria Jornalística. Autoridade do Público.

JOURNALISTIC AUDITING AND THE PLATFORMIZED PUBLIC SPHERE

procedures to strengthen the public character in political deliberation

Abstract

The tendency towards anomie and the threats to democracy represented by fake news, bubbles, and echo chambers of platformized public spheres, with the explicit unwillingness to participate in the dialectic of argumentation with contradictory positions to build rational consensus, in Jürgen Habermas's understanding, needs to be addressed through legislation to regulate procedures similar to those that professional journalistic auditing exercises in traditional news media. Given the radical nature of Habermas's diagnosis of the pathologies and social dysfunctions of modernity as stemming from systematically distorted communication carried out with the prevalence of manipulative advertising in the public sphere articulated by journalism, developed from the first structural change in the public sphere (1984), this expanded application of the normative self-understanding of news media vehicles to digital media could, in a quick, superficial, and mistaken assessment, be considered a contradiction. Many commentators, in fact, concluded that Habermas had decreed the death of the public sphere, without taking into account the revision of the concept made in Law and Democracy (1997), with the refinement of the conception of public authority already anticipated by Breed (2016) in the term "ethical taboo," when society manages to reverse the framing of the news industry with the positivist epistemic ideology of objectivity to satisfy the particular interests of the power structure. In the book A New Structural Transformation of the Public Sphere and Deliberative Politics, Habermas observes that platforms need to assume, like traditional media, the responsibility of coming forward to review their positions when they prove to be contrary to the "constitutional imperative of maintaining a media structure that enables the inclusive character of the public sphere and a deliberative character in the public formation of opinion and will." (Habermas, 2023, pp. 80-81)

Keywords: Public Sphere. Journalistic Auditing. Public Authority.

AUDITORÍA PERIODÍSTICA Y LA ESFERA PÚBLICA PLATAFORMIZADA

procedimientos para fortalecer el carácter público en la deliberación política

Resumen

La tendencia a la anomia y las amenazas a la democracia que representan las noticias falsas, las burbujas y las cámaras de eco de las esferas públicas plataformaizadas, junto con la explícita renuencia a participar en la dialéctica de la argumentación con posturas contradictorias para construir un consenso racional, según la concepción de Jürgen Habermas, deben abordarse mediante legislación que regule procedimientos similares a los que ejerce la auditoría periodística profesional en los medios de comunicación tradicionales. Dada la naturaleza radical del diagnóstico de Habermas sobre las patologías y disfunciones sociales de la modernidad, derivadas de una comunicación sistemáticamente distorsionada y caracterizada por la prevalencia de publicidad manipuladora en la esfera pública, articulada por el periodismo y desarrollada a partir del primer cambio estructural en la esfera pública (1984), esta aplicación ampliada de la autocomprensión normativa de los medios de comunicación a los medios digitales podría, en una evaluación rápida, superficial y errónea, considerarse una contradicción. De hecho, muchos comentaristas concluyeron que Habermas había decretado la muerte de la esfera pública, sin tener en cuenta la revisión del concepto realizada en Derecho y Democracia (1997), con el refinamiento de la concepción de autoridad pública ya anticipado por Breed (2016) en el término «tabú ético», cuando la sociedad logra invertir el enfoque de la industria de la información, basado en la ideología epistémica positivista de la objetividad, para satisfacer los intereses particulares de la estructura de poder. En su libro Una nueva transformación estructural de la esfera pública y la política deliberativa, Habermas observa que las plataformas deben asumir, al igual que los medios tradicionales, la responsabilidad de revisar sus posturas cuando estas resultan contrarias al «imperativo constitucional de mantener una estructura mediática que permita el carácter inclusivo de la esfera pública y un carácter deliberativo en la formación pública de la opinión y la voluntad» (Habermas, 2023, pp. 80-81).

Palabras clave: Esfera pública. Auditoría periodística. Autoridad pública.

1 INTRODUÇÃO

Não se deve desagravar o crime de naturalização da perversão que a publicidade manipulativa da estrutura de poder dos grupos que controlam o aparelho de estado e as corporações do mercado vem cometendo historicamente ao colonizar a publicidade crítica com que o jornalismo havia inicialmente conseguido erigir o consenso da comunidade de comunicação da esfera pública como o critério único e exclusivo de legitimação do estado de direito democrático. Através da indústria das notícias com a ditadura da ideologia epistêmica positivista da objetividade, o jornalismo informativo, pretensamente apolítico, imparcial e neutro, passou a reprimir a controvérsia interpretativa impondo o “epistemicídio” de uma concepção do significado absoluto dos fatos da realidade pretensamente considerado absoluto e independente de qualquer esforço cognitivo de interpretação.

Desta maneira, Habermas denuncia a distorção sistemática da comunicação efetivada pela fabricação de falsos “consensos” para simular os interesses particulares da estrutura de poder como expressão universal dos interesses do conjunto da sociedade, com a exclusão dos posicionamentos dissensuais contra hegemônicos da periferia das classes, etnias, gêneros e grupos sociais subalternizados, classificados como minoritários devido a sua pequena frequência na visibilidade midiática da discussão pública, quando na verdade representam a grande maioria demográfica da população.

Historicamente, esta maquinaria ideológica vem se tornando cada dia mais avassaladora com o crescimento, ampliação e ubiquidade da indústria cultural midiática, fragmentando a consciência, oprimindo a capacidade crítica e induzindo a uma posição passiva que em muitos casos inviabiliza o exercício da cidadania e naturaliza a máxima da barbárie: manda quem pode, obedece quem tem juízo, como observou Raymundo Faoro (1979).

Diante da radicalidade desta denúncia, é um desafio de elevado valor gnosiológico a compreensão da superação da aparente contradição em que parece incorrer a defesa que Habermas apresenta da auditoria profissional do jornalismo como forma de direcionar o esforço que se apresenta para a humanidade a tentativa de regular o funcionamento das plataformas das mídias digitais, obrigando-as a se responsabilizar pelos conteúdos divulgados. Isto através de uma legislação capaz de enfrentar a ameaça de desagregação e esgarçamento do tecido social devido à ação do discurso de ódio nas bolhas e câmaras de eco que, inspiradas pela concepção da pós-verdade, configuram na forma de conceber a realidade social o ceticismo radical de negar qualquer possibilidade de vir a se constituir um sentido racional compartilhado e intersubjetivamente construído pelo entendimento da comunidade de comunicação.

2 DESENVOLVIMENTO

Para superação do equívoco muito comum na teoria da comunicação de comentaristas que concluíram que, na sua primeira reflexão sobre a Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa, lançada em 1962, Habermas havia decretado definitivamente a morte deste espaço de mediação entre o Estado e a Sociedade Civil, o filósofo alemão esclarece, no livro Direito e Democracia: entre facticidade e validade, lançado em 1992, que, realmente, em muitos momentos, a publicidade manipulativa engendrada pela indústria cultural consegue manter a esfera pública adormecida, em estado de repouso ou anestesiada, em situação de quase completa incapacidade de reflexão crítica sobre a realidade social, mas que, em situações de crise, desperta e consegue ensejar mudanças na estrutura social.

Com este propósito, observa a existência de duas realidades com influência auspiciosa sobre a deliberação política de uma maneira geral, mas também na política de formação das identidades sociais: a autocompreensão normativa dos veículos de comunicação e a autoridade do público. Portanto, desenvolve uma reflexão imprescindível sobre a capacidade da sociedade de promover o pensamento crítico e o desenvolvimento do processo civilizatório, ensejando possibilidades de emancipação e libertação de mecanismos de dominação, o que não é pressuposto nem pelo ceticismo do funcionalismo estrutural, tampouco pelo marxismo economicista mecânico de autores como Louis Althusser na visão determinista expressa no livro Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (1970).

Para Habermas, o entendimento adequado dos conceitos de autocompreensão normativa dos veículos noticiosos, que devem, na expectativa dos cidadãos, se posicionar sempre e exclusivamente em favor dos interesses coletivos, públicos e do bem-comum, e de autoridade do público que eventualmente obriga modificações na administração da estrutura de poder no sentido da mudança social, implica a sua correlação orgânica pressupondo a condição de possibilidade de um à existência do outro, estas duas concepções funcionando como influência para fortalecimento do pensamento crítico e a consolidação do processo democrático. Contudo, seria ingênuo pensar que a grande mídia noticiosa, como monopólio do grande capital, assumisse espontaneamente esta posição ética em favor do conjunto da sociedade sem a rigorosa fiscalização de uma opinião pública atenta e mobilizada. De qualquer maneira, é inevitável e significativo o exemplo do recente episódio dos protestos sociais contra a PEC da Bandidagem que conseguiram impedir a autonomização do Poder Legislativo para se tornar inimputável de qualquer processo legal.

Na revisão do conceito inicial, a esfera pública se liberta da limitação e vinculação à classe burguesa e passa a poder “ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos” (Habermas, 1997, p. 92). Neste contexto, esta arena simbólica, reproduzida através do agir comunicativo, exige apenas o domínio de uma linguagem natural sintonizada com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana do mundo da vida, constituindo um reservatório para interações simples. Assim, os sistemas de ação e de saber especializados se ligam a funções gerais de reprodução do mundo da vida, como a religião, a escola e a família, ou a diferentes pretensões de validade do saber comunicado através da linguagem comum nas esferas da ciência, da moral e da arte.

Porém, diferentemente da ação estratégica, os que agem comunicativamente ajudam a constituir a situação da realidade social através de suas interpretações negociadas cooperativamente, distinguindo-se dos atores que visam o sucesso e que se observam mutuamente como algo que aparece no mundo objetivo. Este espaço de fala compartilhado intersubjetivamente abre-se através das relações interpessoais que nascem no momento em que os participantes tomam posição perante os atos de fala dos outros, assumindo obrigações ilocucionárias, ou seja, com sentido racional consensuado.

No entanto, temos que fazer uma distinção entre atores que surgem do público e participam na reprodução da esfera pública e atores que ocupam uma esfera pública já constituída, a fim de aproveitar-se dela. Tal é o caso, por exemplo, de grandes grupos de interesses, bem organizados e ancorados em sistemas de funções, que exercem influência no sistema político através da esfera pública. Todavia, eles não podem usar manifestamente, na esfera pública, os potenciais de sanção sobre os quais se apoiam quando participam de negociações reguladas publicamente ou de tentativas de pressão não-públicas. (...) as opiniões públicas que são lançadas graças ao uso não declarado de dinheiro ou poder organizacional perdem sua credibilidade, tão logo essas fontes de poder social se tornam públicas. Pois as opiniões públicas podem ser manipuladas, porém não compradas publicamente, nem obtidas à força. Essa circunstância pode ser esclarecida pelo fato de que nenhuma esfera pública pode ser produzida ao bel-prazer. (Habermas, 1997, p. 96-97)

 

2.1 Barreiras e estruturas de poder que surgem no interior da esfera pública

As perspectivas éticas e ideológicas dos posicionamentos existentes na esfera pública política e na sociedade civil não representam apenas postulados normativos de princípios gerais, pois têm referências empíricas concretas. No conceito de democracia radical proposto pela teoria do discurso, a sociedade civil, em certas situações de crise, pode ter opiniões públicas próprias capazes de influenciar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, obrigando o sistema político a modificar o rumo do poder oficial. No entanto, a sociologia da comunicação de massas é cética quanto às possibilidades da esfera pública tradicional dominada pelo poder e pela mídia, tendo em vista as limitações que atingem os movimentos sociais, iniciativas de sujeitos privados e de foros civis, uniões políticas e outras associações, ou seja, os agrupamentos da sociedade civil, cujos sinais são, em geral, muito fracos para despertar a curto prazo processos de aprendizagem no sistema político ou para reorientar processos de decisão.

A esfera pública, nas sociedades complexas, forma uma estrutura intermediária que faz a mediação entre o sistema político, de um lado, e os setores privados do mundo da vida e sistemas de ação especializados em termos de funções, de outro lado, formando uma rede supercomplexa que se ramifica espacialmente num sem número de arenas internacionais, nacionais, regionais, comunais e subculturais, que se sobrepõem uma às outras. A partir de pontos de vista funcionais, temas e círculos políticos, são formadas esferas públicas mais ou menos especializadas, porém ainda acessíveis a um público de leigos, como esferas públicas literárias, eclesiásticas, artísticas, feministas, ou ainda, esferas públicas ‘alternativas’ da política de saúde, da ciência e de outras. De acordo com a densidade da comunicação, da complexidade organizacional e do alcance, três tipos de esfera pública são constituídos: esfera pública episódica (bares, cafés, encontros na rua), esfera pública da presença organizada (encontros de pais, público que frequenta o teatro, concertos de rock, reuniões de partidos ou congressos de igrejas) e esfera pública abstrata, produzida pela mídia (leitores, ouvintes e espectadores singulares e espalhados globalmente).

No interior da esfera pública abstrata e geral articulada pela mídia, definida através de sua relação com o sistema político, as fronteiras não são rígidas em princípio e mantêm a consciência dos direitos à inclusão e à igualdade ilimitada que se mobilizam para impedir mecanismos de exclusão e fundamentar um potencial de auto-transformação.

Todavia, mesmo que conhecêssemos o peso e o modo de operar dos meios de comunicação de massa e a distribuição de papéis entre público e atores, e mesmo que pudéssemos opinar sobre quem dispõe do poder dos meios, não teríamos clareza sobre o modo como os meios de massa afetam os fluxos intransparentes da comunicação da esfera pública política. No entanto, são mais claras as reações normativas face ao fenômeno relativamente novo do poder dos complexos de mídia que concorrem entre si para obter influência político-partidária. Gurevitch e Blumler sintetizaram as tarefas a serem preenchidas pela mídia nos sistemas políticos constitucionais, nos seguintes pontos: 1. vigiar sobre o ambiente sócio-político, trazendo a público desenvolvimentos capazes de interferir, positiva ou negativamente, no bem-estar dos cidadãos; 2. definir as questões significativas da agenda política, identificando as questões-chave, bem como as forças que as conceberam e que podem trazer uma solução; 3. estabelecer as plataformas que permitem aos políticos, aos porta-vozes de outras causas e de outros grupos de interesses, defender suas posições de modo inteligível e esclarecedor; 4. permitir o diálogo entre diferentes pontos de vista e entre detentores do poder (atuais e futuros) e público de massa; 5. criar mecanismos que permitem acionar os responsáveis para prestar contas sobre o modo como exerceram o poder; 6. incentivar os cidadãos a aprender, a escolher e a se envolver no processo político, abandonando sua função de meros espectadores; 7. resistir, em nome de princípios bem definidos, aos esforços exteriores à mídia que visam subverter sua independência, sua integridade e sua capacidade de servir ao público; 8. respeitar os membros do público espectador e leitor como virtuais envolvidos e capazes de entender seu ambiente político’”. (Habermas, 1997, p. 111-112 – Grifo do autor)

Estas tarefas atribuídas à mídia noticiosa são idealizadas no código profissional dos jornalistas e na autocompreensão ética da corporação, de um lado, bem como a organização de uma imprensa livre, de outro lado, tomando tais princípios como orientação. Eles expressam uma ideia reguladora bastante simples, que coincide com o conceito de política deliberativa: os meios de massa devem situar-se como mandatários de um público esclarecido, capaz de aprender e de criticar; devem preservar sua independência frente a atores políticos e sociais, imitando nisso a justiça; devem aceitar imparcialmente as preocupações e sugestões do público, obrigando o processo político a se legitimar à luz desses temas. Este caminho pretende neutralizar o poder da mídia e impedir que o poder administrativo ou social seja transformado em influência político-publicitária. Segundo esta normatização, os atores políticos e sociais podem utilizar a esfera pública, mas somente quando capazes de fornecer contribuições convincentes para o tratamento dos problemas percebidos pelo público ou inseridos na agenda pública com a anuência dele. Os partidos políticos, por sua vez, também devem participar na formação da opinião e da vontade do público, desde que “assumindo a perspectiva própria deste público, ao invés de tentar influir no público para manter seu poder político, visando apenas extrair da esfera pública a lealdade das massas”. (Habermas, 1997, p. 112-113)

Quando influenciados pela imagem difusa da esfera pública veiculada pela sociologia da comunicação de massa, que aparece submetida ao poder e à dominação dos meios de comunicação de massa, somos tomados por um ceticismo com relação às chances de a sociedade civil vir a exercer influência sobre o sistema político. Todavia, tal concepção cética vale somente para uma esfera pública em estado de repouso, uma vez que, a partir do momento em que acontece uma mobilização, as estruturas sobre as quais se apoia a autoridade de um público que toma posição começam a vibrar, fazendo com que as relações de forças entre a sociedade civil e o sistema político possam sofrer modificações.

 

2.2 Superação das barreiras em situações críticas

A partir dos modelos de Acesso Interno, de Mobilização e de Iniciativa Externa, modificados através da aplicação da teoria do discurso à teoria da democracia, Habermas analisa a influência que circula no processo deliberativo entre a esfera pública e o sistema político, destacando o processo de descentração do poder, no primeiro caso, restrito aos controladores dos aparelhos de Estado e das corporações do mercado; ampliado, no segundo caso, a alguma influência das galerias da opinião pública, embora, em geral, os resultados sejam favoráveis à estrutura de poder, devido à desigualdade de recursos usufruídos pelas minorias privilegiadas; e, no terceiro caso, quando as forças contra hegemônicas de fora da estrutura governamental conseguem modificar o funcionamento da administração pública.

Desta maneira, quando estes atores da periferia da sociedade civil, até agora negligenciados, assumem um papel ativo e tomam consciência da situação de crise, apesar da diminuta complexidade organizacional, da fraca capacidade de ação e das desvantagens estruturais, têm a chance de “inverter a direção do fluxo convencional da comunicação na esfera pública e no sistema político, transformando destarte o modo de solucionar problemas de todo o sistema político”. (Habermas, 1997, p. 114-115)

Neste sentido são apontados os temas problematizados na mídia pela pressão da periferia, como a espiral do rearmamento atômico, os riscos do emprego pacífico da energia nuclear, as ameaças ecológicas que colocam em risco o equilíbrio da natureza (morte das florestas, poluição da água, desaparecimento de espécies, etc.), o empobrecimento progressivo e dramático do Terceiro Mundo e os problemas da ordem econômica mundial e os temas do feminismo e do racismo. Segundo Habermas, o interesse da mídia por estes temas é provocado por intelectuais, pessoas envolvidas, profissionais radicais, ‘advogados’ autoproclamados, associações interessadas e iniciativas de cidadãos que se transformam em núcleos de cristalização com capacidade de encenar e dramatizar as contribuições, fazendo com que os meios de comunicação de massa se interessem pela questão.

Pois, para atingir o grande público e a ‘agenda pública’, tais temas têm que passar pela abordagem controversa da mídia. Às vezes é necessário o apoio de ações espetaculares, de protestos em massa e de longas campanhas (acesso disruptivo) para que os temas consigam ser escolhidos e tratados formalmente, atingindo o núcleo do sistema político e superando os programas cautelosos dos ‘velhos partidos’”. (Habermas, 1997, p. 115-116)

Assim, nas esferas públicas políticas, mesmo nas que foram mais ou menos absorvidas pelo poder, as relações de forças modificam-se tão logo a percepção de problemas sociais relevantes suscita uma consciência de crise na periferia. E, salienta Habermas (1997, p. 116), nesse momento, se atores da sociedade civil propagarem um tema dissensual negligenciado, esta iniciativa pode ter sucesso porque a mobilização da esfera pública coloca em movimento “uma lei, normalmente latente, inscrita na estrutura interna de qualquer esfera pública e sempre presente na autocompreensão normativa dos meios de comunicação de massa, segundo a qual os que estão jogando na arena devem a sua influência ao assentimento da galeria”. Por isso, em favor do reconhecimento das reivindicações dissensuais persistentes, argumenta que

A justificação da desobediência civil apoia-se, além disso, numa compreensão dinâmica da constituição, que é vista como um projeto inacabado. Nesta ótica de longo alcance, o Estado democrático de direito não se apresenta como uma configuração pronta, e sim como um empreendimento arriscado, delicado e, especialmente, falível e carente de revisão, o qual tende a reatualizar, em circunstâncias precárias, o sistema dos direitos, o que equivale a interpretá-los melhor e a institucionalizá-los de modo mais apropriado e a esgotar de modo mais radical o seu conteúdo”. (Habermas, 1997, p. 118)

 

2.3 Democracia e as concepções liberal, republicana e deliberativa

Na problematização das condições da esfera pública de fazer prevalecer no processo de deliberação política os interesses universais do conjunto da sociedade e os ideais republicanos da soberania popular e da autoprodução da formação social em confronto com os interesses particulares poderosos encastelados na estrutura de poder dos grupos que controlam os aparelhos de Estado e as corporações do mercado, inclusive na grande mídia noticiosa, conforme o modelo liberal de democracia, apresenta-se como altamente significativa a reflexão desenvolvida por Habermas no livro A inclusão do outro (2002), especialmente no capítulo sobre Os três modelos normativos de democracia.

Na análise dos modelos liberal e republicanos, podem-se identificar, fundamentalmente a diferença decisiva que reside na compreensão do papel que cabe ao processo democrático. Na linha da concepção “liberal”, esse processo cumpre a tarefa de programar o Estado para que se volte ao interesse da sociedade: imagina-se o Estado como aparato da administração pública, e a sociedade como sistema de circulação de pessoas em particular e do trabalho social dessas pessoas, estruturada segundo as leis de mercado.

Em contrapartida, para a concepção “republicana”, a política não se confunde com essa função mediadora, pois, mais do que isso, ela é constitutiva do processo de coletivização social como um todo. Concebe-se a política como forma de reflexão sobre o contexto de vida ético. Na perspectiva republicana, a política

(...) constitui o medium em que os integrantes de comunidades solidárias surgidas de forma natural se conscientizam de sua interdependência mútua e, como cidadãos, dão forma e prosseguimento às relações preexistentes de reconhecimento mútuo, transformando-as de forma voluntária e consciente em uma associação de jurisconsortes livres e iguais. Com isso, a arquitetônica liberal do Estado e da sociedade sofre uma mudança importante. Ao lado da instância hierárquica reguladora do poder soberano estatal e da instância reguladora do mercado, ou seja, ao lado do poder administrativo e dos interesses próprios, surge também a solidariedade como terceira forma de integração social. (Habermas, 2002, p. 270)

Assim, esta vontade política horizontal, firmada e vinculada ao entendimento mútuo, deve ser considerada prioritária sob o ponto de vista genético ou normativo, tendo em vista o seu significado para a autodeterminação por parte dos cidadãos no âmbito do Estado, consubstanciada numa base social autônoma que independa da administração pública e da mobilidade socioeconômica privada, impedindo a comunicação política de ser apropriada pelo Estado e engolida pela estrutura de mercado. Portanto, através da visão republicana, é conferido significado estratégico tanto à opinião pública política quanto à sociedade civil que a sustenta.

Conforme a medida dos direitos individuais de que dispõem em face do Estado e dos demais cidadãos, na concepção liberal, os cidadãos têm seu status como portadores de direitos subjetivos, com os quais poderão contar com a defesa do Estado desde que defendam os próprios interesses nos limites impostos pelas leis, o que se refere até à defesa contra as próprias intervenções estatais que excedam ressalva interventiva prevista em lei. Desta maneira, direitos subjetivos são direitos negativos que garantem um espaço de ação alternativo em cujos limites as pessoas do direito se tornam livres de coações externas, enquanto direitos políticos oferecem aos cidadãos a possibilidade de conferir validação a seus interesses particulares (por meio de votações, formação de corporações parlamentares e composições de governo) e afinal transformados em uma vontade política que exerça influência sobre a administração.

Na concepção republicana, por sua vez, o status dos cidadãos não é determinado segundo o modelo das liberdades negativas, que podem reivindicar como pessoas em particular. Os direitos de cidadania, direitos de participação e comunicação política são, em primeira linha, direitos positivos que não garantem liberdade em relação à coação externa, mas sim a participação em uma práxis comum, por meio de cujo exercício os cidadãos só então se tornam sujeitos politicamente responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais. Assim, o processo político deixa de ser visto como tendo uma função mediadora entre Estado e sociedade, pois o poder estatal democrático não é uma força originária.

A força origina-se, isso sim, do poder gerado comunicativamente em meio à práxis de autodeterminação dos cidadãos do Estado e legitima-se pelo fato de defender essa mesma práxis através da institucionalização da liberdade pública. A justificação existencial do Estado não reside primeiramente na defesa dos mesmos direitos subjetivos, mas sim na garantia de um processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, em que cidadãos livres e iguais chegam ao acordo mútuo quanto a quais devem ser os objetivos e normas que correspondam ao interesse comum. Com isso, exige-se do cidadão republicano mais do que a orientação segundo seus respectivos interesses próprios. (Habermas, 2002, p. 271-273)

 

O sentido de uma ordem jurídica, segundo a concepção liberal, consiste em que definir em cada caso individual quais são os direitos cabíveis a que indivíduos, enquanto em uma concepção republicana esses direitos subjetivos se devem a uma ordem jurídica objetiva, que possibilite e garanta a integridade de um convívio equitativo, autônomo e fundamentado sobre o respeito mútuo.

Para Habermas, o teor intersubjetivo dos direitos exige a consideração recíproca de direitos e deveres, em proporções simétricas de reconhecimento, já que o projeto republicano vai ao encontro de um conceito de direito que atribui pesos iguais, de um lado, à integridade do indivíduo e suas liberdades subjetivas e, de outro, à integridade da comunidade em que os indivíduos podem se reconhecer uns as outros como seus membros e enquanto indivíduos. Neste sentido, vincula a legitimidade das leis ao procedimento democrático de sua gênese, preservando uma coesão interna entre a práxis de autodeterminação do povo e do domínio impessoal das leis.

Essa estrutura está na base da interpretação dos direitos à comunicação e à participação política e se distribui entre todos os direitos ao longo do processo legislativo que os constitui, expressando um dissenso de raízes mais profundas sobre a natureza do processo político. Para a concepção liberal, a política é essencialmente uma luta por posições que permitam dispor, individualmente, do poder administrativo disputado na concorrência entre agentes coletivos agindo estrategicamente e pela manutenção ou conquista de posições de poder, o que faz com que as decisões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que os atos eletivos de participantes do mercado voltados à conquista de êxito.

Segundo a concepção republicana, a formação de opinião e vontade política em meio à opinião pública e no parlamento não obedece às estruturas de processo de mercado, mas às renitentes estruturas de uma comunicação pública orientada ao entendimento mútuo. Para a política no sentido de uma práxis de autodeterminação por parte de cidadãos do Estado, o paradigma não é o mercado, mas sim a interlocução. Segundo essa visão, há uma diferença estrutural entre o poder comunicativo, que advém da comunicação política na forma de opiniões majoritárias estabelecidas por via discursiva, e o poder administrativo de que dispõe o aparato estatal. (...) Portanto, o embate de opiniões ocorrido na arena política tem força legitimadora não apenas no sentido de uma autorização para que se ocupem posições de poder; mais que isso, o discurso político ocorrido continuamente também apresenta força vinculativa diante desse tipo de exercício de dominação política. O poder administrativo só pode ser aplicado com base em políticas e no limite das leis que nascem do processo democrático. (Habermas, 2002, p. 275-276)

Com evidente reconhecimento do nível mais elevado da responsabilidade social do modelo republicano de democracia, o pensador alemão salienta o fato desta perspectiva se firmar no sentido radicalmente democrático de uma auto-organização da sociedade pelos cidadãos em acordo mútuo por via comunicativa e não remeter os fins coletivos tão-somente a uma negociação entre interesses particulares opostos. No entanto, lamenta o fato deste modelo ser bastante idealista e tonar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos, sem conceber procedimentos capazes de garantir a progressiva consolidação da democracia e o fortalecimento do bem comum.

Por isso, Habermas propõe a aplicação à teoria da democracia da concepção de uma política deliberativa que faça jus à diversidade das formas comunicativas na qual se constitui uma vontade comum, não apenas por um auto-entendimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, da chegada da coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racional e voltada a um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamentação moral. Assim, a partir da teoria do discurso, apresenta o terceiro modelo normativo de democracia baseado nas condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo o seu alcance, de modo deliberativo.

Quando se faz do conceito procedimental da política deliberativa o cerne normativamente consistente da teoria sobre a democracia, resultam daí diferenças tanto em relação à concepção republicana do Estado como uma comunidade ética, quanto em relação à concepção liberal do Estado como defensor de uma sociedade econômica. Com isso, a razão prática desloca-se dos direitos universais do homem ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura da comunicação linguística.

Desta maneira, a teoria do discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente de um conjunto de cidadãos virtuosos coletivamente capazes de agir, mas sim da institucionalização dos procedimentos comunicativos que viabilizem a construção de consensos racionais para enfrentamento dos problemas sociais. Portanto, não opera em um sistema de normas constitucionais que inconscientemente pretendem gerar o equilíbrio do poder e de interesses diversos através do modelo de funcionamento do mercado, com a atribuição do domínio anônimo das leis a sujeitos individuais concorrentes entre si que vivenciam processos de poder que se cumprem cegamente, já que não se vislumbra a possibilidade de decisões coletivas cumpridas de forma consciente para além dos atos eletivos individuais.

Para realização do propósito de promover a descolonização da racionalidade comunicativa pela racionalidade instrumental, o modelo de democracia deliberativa conta com a intersubjetividade mais avançada presente em processos de entendimento mútuo que se cumprem, por um lado, na forma institucionalizada de aconselhamento em corporações parlamentares, bem como, por outro lado, na rede de comunicação formada pela opinião pública de cunho político.

Essas comunicações sem sujeito, internas e externas às corporações políticas e programadas para tomar decisões, formam arenas nas quais pode ocorrer a formação mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de temas relevantes para o todo social e sobre matérias carentes de regulamentação. A formação da opinião que se dá de maneira informal desemboca em decisões eletivas institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comunicativa é transformado em poder administrativamente aplicável. (...) Dessa compreensão democrática, resulta por via normativa a exigência de um deslocamento dos pesos que se aplicam a cada um dos elementos na relação entre os três recursos a partir dos quais as sociedades modernas satisfazem sua carência de integração e direcionamento, a saber: o dinheiro, o poder administrativo e a solidariedade. As implicações normativas são evidentes: o poder socialmente integrativo da solidariedade, que não se pode mais tirar apenas das fontes da ação comunicativa, precisa desdobrar-se sobre opiniões públicas autônomas e amplamente espraiadas, e sobre procedimentos institucionalizados por via jurídico-estatal para a formação democrática da opinião e da vontade; além disso, ele precisa também ser capaz de afirmar-se e contrapor-se aos dois outros poderes, ou seja, ao dinheiro e ao poder administrativo. (Habermas, 2002, p. 280-281)

Essa concepção tem consequências para a compreensão de legitimação e soberania popular. O conceito de soberania popular deve-se à apropriação republicana da revalorização da noção de soberania surgida no início da Era Moderna e inicialmente associada aos déspotas que governavam de modo absolutista. O Estado, que monopoliza os meios de aplicação legítima da força, é concebido como um concentrado de poder, capaz de prevalecer sobre todos os demais poderes do mundo. Essa figura de pensamento é transposta à vontade do povo unificado, mesclada à ideia clássica do autodomínio de indivíduos livres e iguais e assumida no conceito moderno de autonomia. Apesar dessa sublimação normativa, o conceito de soberania permaneceu ligado à noção de sua corporificação no povo. Desta maneira, “o povo (ao menos potencialmente presente) é portador de uma soberania que por princípio não se pode delegar: não é admissível que, em sua qualidade de soberano, o povo se deixe representar. O poder constituinte funda-se na práxis autodeterminativa de seus cidadãos, não de seus representantes. (Habermas, 2002, p. 282-283)

 

2.4 Consciência Moral, Ética do Discurso e Democracia Deliberativa

A proposta da democracia deliberativa é fundamentada por Habermas a partir da Ética do Discurso que pressupõe que toda norma válida tem que preencher a condição de que as consequências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo, possam ser aceitas sem coação por todos os concernidos. Para isso, a Ética do Discurso não envolve nenhuma orientação conteudística, mas sim um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo. O discurso prático é um processo, não para a produção de normas justificadas, mas para o exame da validade de normas consideradas hipoteticamente. Neste contexto, o desenvolvimento do nível de consciência moral é decorrente de um processo cognitivo de construção de conhecimento sobre a realidade social.

Na avaliação do processo de conhecimento, Habermas utiliza os estágios de desenvolvimento da consciência moral de Lawrence Kohlberg (1981) pré-convencional, convencional e pós-convencional.

No primeiro nível pré-convencional são identificados os estágios da obediência para evitar o castigo (1) e do objetivo instrumental individual e da troca (2). Evidente neste nível de desenvolvimento moral que o cidadão não tem consciência da importância do contrato social estabelecido na sociabilidade para a qualidade de vida de que dispõe, não levando em conta a necessidade de estabilizar a expectativa dos outros com relação ao seu comportamento como condição para a sua adequada integração social e a possiblidade de realização de seus próprios projetos individuais. Consequentemente, no nível de consciência moral pré-convencional, o cidadão não tem condições de conceber a possibilidade de atribuição de sentido racional à vida social, tornando-se vulnerável à concepção da pós-verdade em que o mundo fica restrito à condição da teoria agonística, especialmente da teoria do jogo de soma zero, onde o ganho de um implica necessariamente a perda de outro. Desta maneira, apresenta-se atomizado e aprisionado em sua individualidade constituindo-se como vítima natural das bolhas, câmaras de eco, desinformação e Fake News.

No nível convencional são alcançados os estágios das expectativas interpessoais mútuas, dos relacionamentos e da conformidade (3) e da preservação do sistema social e da consciência (4). Neste nível, o cidadão já se apresenta de forma civilizada preocupado em desempenhar o papel de uma pessoa boa e amável com os outros, manter-se leal e conservar a confiança dos parceiros e estar motivado a seguir as regras e expectativas. Assim, alcança a consciência da Regra de Ouro da moral que prescreve o compromisso de se colocar no lugar do outro para saber que tratamento gostaria de receber. Desta maneira, no nível de consciência moral convencional, o cidadão sente-se comprometido em manter o funcionamento da instituição como um todo, “o auto-respeito ou a consciência compreendida como cumprimento das obrigações definidas para si próprio ou a consideração das consequências: ‘E se todos fizessem o mesmo?’” (Habermas, 1989, p. 153). Apesar da conquista de um patamar mais elevado de pertencimento à comunidade, neste nível de desenvolvimento da moral a pessoa não reconhece a realidade social como produto das atividades humanas individuais e coletivas, não tendo consciência de sua responsabilidade sobre a existência de mecanismos de opressão e dominação que comprometem a soberania de cidadãos sobre sua própria vida. Assim, no nível convencional da consciência moral, o cidadão pode pretender se eximir da responsabilidade diante de aspectos da realidade social com os quais não concorda, acreditando estar desonerado eticamente.

Portanto, só no nível pós-convencional ou baseado em princípios, o cidadão assume plenamente a responsabilidade pelo que está convencionado no contrato social, vinculando-se às demandas por mudanças sociais que possibilitem a superação de mecanismos de estigmatização, opressão e dominação. Neste patamar de desenvolvimento moral encontram-se os estágios dos direitos originário, do contrato social ou da utilidade (5) e dos princípios éticos universais (6). Portanto, as leis ou acordos sociais particulares são, em geral, válidos porque se apoiam nos princípios éticos universais. Quando esses princípios são violados pelas leis, o cidadão deve agir de acordo com o princípio. São princípios universais de justiça a igualdade de direitos humanos e o respeito pela dignidade dos seres humanos enquanto indivíduos, funcionando não meramente enquanto valores reconhecidos, mas também como princípios usados para gerar decisões particulares.

Kohlberg compreende a passagem de um para outro estágio como um aprendizado. O desenvolvimento moral significa que a pessoa em crescimento transforma e diferencia de tal maneira as estruturas cognitivas já disponíveis em cada caso que ela consegue resolver melhor do que anteriormente a mesma espécie de problemas, a saber, a solução consensual de conflitos de ação moralmente relevantes. Ao fazer isso, a pessoa em crescimento compreende o seu próprio desenvolvimento moral como um processo de aprendizagem. Pois, em cada estádio superior, ela deve poder explicar até que ponto estavam errados os juízos morais que considerava corretos no estádio precedente. Kohlberg interpreta esse processo de aprendizagem, com concordância com Piaget, como um desempenho construtivo do aprendiz. As estruturas cognitivas que subjazem à faculdade de julgar moral não devem ser explicadas nem primariamente por influências do mundo ambiente, nem por programas inatos e processos de maturação, mas, sim, como o resultado de uma reorganização criativa de um inventário cognitivo pré-existente e que se viu sobrecarregado por problemas que reaparecem insistentemente. (Habermas, 1989, p. 154-155)

 

3 CONCLUSÃO

Com o esclarecimento de que a autocompreensão normativa dos veículos noticiosos não é alcançada por uma decisão altruísta destas organizações empresariais, mas como resultado de uma opinião pública vigilante e rigorosa no exercício da autoridade do público para exigir o posicionamento exclusivo em favor do interesse coletivo e do bem-comum, é superado o aparente paradoxo da indicação de Habermas de utilização da auditória profissional jornalística como referência para implantação de uma legislação que obrigue as plataformas digitais a se responsabilizar pelos conteúdos divulgados, depois de toda a sua contundente denúncia de distorção sistemática das deliberações políticas através da publicidade manipulativa da grande mídia.

Neste sentido, é importante salientar a importância de processos de esclarecimento e conscientização sobre o desenvolvimento da moralidade como forma de os cidadãos se mobilizarem pela cobrança do cumprimento de normas que garantam a atuação ética dos meios de comunicação na mediação das deliberações políticas. Afinal, é preciso distinguir os interesses ideológicos - pela reprodução da ordem institucional - do grande capital que monopoliza a grande mídia noticiosa dos interesses ideológicos da maioria dos jornalistas empregados nessas organizações empresariais, que, em geral, se posicionam pela mudança social.

Desta maneira, esclarecida a natureza da expectativa do público de cobrança da autocompreensão normativa dos veículos de comunicação noticiosa, é justificável o exemplo da auditoria profissional jornalística como forma de demover as plataformas digitais de sua posição de invocar o direito à liberdade de expressão para continuar a usufruir dos lucros de sua condição de inimputável pela responsabilidade dos crimes praticados pela internet, como pedofilia, golpes, estelionatos, racismo, estigmatizações, discriminações e outras aberrações que são estimuladas pela polarização e discursos de ódio que ameaçam a democracia e a sociedade de uma maneira geral.

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Editorial Presença, 1970.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1979

HABERMAS. Jürgen.  Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HABERMAS. Jürgen.  Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, volume II, 1997.

HABERMAS. Jürgen.  Mudança estrutural da esfera pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

HABERMAS. Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

HABERMAS. Jürgen. Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa. São Paulo: Editora Unesp, 2023.

Kohlberg, Lawrence. The meaning and measurement of moral development. Worcester: Clark University Press, 1981.

 

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