O CONCEITO DE JUSTIÇA PÓS-CONVENCIONAL

dilemas entre Israel e Atenas, a aliança e o contrato[1]

 

Jovino Pizzi[2]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

1 INTRODUÇÃO

O título do texto parece, evidentemente, um tanto atípico. No entanto, trata-se de salientar um aspecto importante, principalmente relacionado a textos de Habermas publicados nos últimos anos, dos quais se pode destacar Israel ou Atenas. Ensaios sobre religião, teologia e racionalidade e, ainda, os diversos textos da ob ra Entre naturalismo e religião. Na verdade, alguém teria dito que Habermas tinha pouco a dizer sobre religião, mas esses textos indicam o contrário (Pizzi, 2001). Nesse horizonte de discussões, parece que se evidencia uma questão importante, não apenas em relação ao lugar da religião e de seus conteúdos cognitivos, mas também ao tema da justiça. No fundo, a interrogação investiga saber por que Habermas diz que a justiça é a outra face da solidariedade (1991, p. 199); todavia, quando é chamado a definir justiça, ele a relaciona com o nível seis do juízo moral e, por isso, passa a localizá-la na esfera política, isto é, no âmbito do contrato – ou, como alguns preferem, nos limites do constitucionalismo.

Essa questão ganha novos contornos com o giro ético da filosofia. Nesse processo, ele vai ampliando suas considerações a respeito da ética. O ethical turn, ou seja, a mudança ética salienta outra direção para a filosofia e, ao mesmo tempo, uma reconfiguração no âmbito moral. Essa preocupação promoveu uma transformação na filosofia e, conseqüentemente, da própria ética. Essa modificação significa um novo impulso para a filosofia prática, ou seja, ela representa um novo saber dentro da filosofia prática, mais especificamente, no campo da ética e da filosofia moral. No Brasil, o debate obteve maior receptividade fora do âmbito acadêmico.

Sem dúvida, o próprio Habermas é um dos protagonistas dessa mudança. As primeiras obras de Habermas – Ciências e técnica enquanto ideologia e Conhecimento e interesse – evidenciam uma forte crítica ao reducionismo cientificista. Com a Teoria do Agir Comunicativo, há um profundo exame à teoria do sistema, que coloniza o mundo da vida e reduz o agir ao modelo instrumental. A essa altura, é saliente também o questionamento não apenas em relação ao monopólio das ciências e da burocratização das relações, especialmente da institucionalização do direito positivo. Além disso, começa a evidenciar-se outro aspecto, o reducionismo racional, isto é, à delimitação de todas as esferas da vida humana ao âmbito eminentemente laico. Os processos de entendimento estão vinculados ao procedimento comunicativo entre sujeitos-agentes. Esse entendimento ocorre diante do desencantamento religioso do mundo. Nessa configuração, o discurso religioso permaneceria ausente. Todavia, a obra Zwischen Naturalismus und Religion (2005) trata de reconsiderar a “abertura da filosofia para com os possíveis conteúdos da religião” (Habermas, 2006, p. 251); não apenas à religião, senão também à razão anamnésica, entre outros âmbitos.

Sem dúvidas, essa proposta não está isenta de altercações, nem é tão simples como pareceria. No entanto, há nisso uma plausibilidade inegável e, portanto, exige um tratamento filosófico. Como motivação inicial, salienta-se a nova configuração à questão da racionalidade, aspecto inerente ao giro ético e constitutivo da teoria do agir comunicativo (2.0). Em seguida, pretende-se abordar o novo status da justiça a partir de tradições diferentes, especialmente através da denominação aliança e contrato (3.0). O último aspecto busca delinear alguns aspectos que essa configuração exige do âmbito moral (4.0).

 

2 O GIRO ÉTICO E A QUESTÃO DA “RACIONALIDADE”

 

A introdução da obra Teoria do Agir Comunicativo começa com uma frase relativamente difusa. Refiro-me à segunda frase de Habermas: “o tema fundamental da filosofia é a razão” (TAC I, 1987, p. 15). Mas adiante, quando procura definir o conceito de razão, o faz de forma um tanto introdutória e todos sabemos que, ao final, seu conceito pode ser denominado como racionalidade ético-comunicativa (Cf. Pizzi, 1994).

Aprofundando a leitura do texto introdutório do primeiro volume da referida obra, visualizamos uma contextualização mais detalhada de Habermas a respeito dessa assertiva: “pensamento filosófico nasce da reflexividade da razão encarnada no conhecimento, na fala e nas ações” (TAC I, 1987, p. 15). Na verdade, o telos da pragmática universal é o acordo. Todavia, além da estrutura metodológica desse procedimento, o desempenho do sujeito pressupõe a capacidade de comunicação. E, por isso, o entendimento presume uma compreensão dos diferentes “discursos”, por assim dizer. Para Habermas, os atos de fala têm a presunção de indicar pretensões universais de validade e supor que tais pretensões possam ser colocadas em prática (Habermas, 1989, p. 300). A bem da verdade, essa idéia apresenta um aspecto essencial, pois os sujeitos-participantes necessitam entender os diferentes “discursos”, ou seja, a distintas referências ao mundo, no qual encontramos, entre outros aspectos, o horizonte científico e, inclusive, o âmbito religioso.

Para tentar explicar essas distintas esferas ou “discursos”, creio que há um elemento importante. Por certo, a reflexividade da razão encarnada está presente – como Habermas indica acima – no conhecimento, na fala e nas ações. Essa é a porta de entrada para a discussão em torno da racionalidade e dos diferentes usos da razão, de modo especial no que tange à aos distintos discursos. Por isso, compreender uma emissão significa também ter presente as diferentes referências ao mundo (inclusive o âmbito religioso, embora, para alguns, esse assunto se limita ao campo cultural).

Na discussão com McCarthy, em 2005, Habermas dá continuidade ao tema da razão, quando reforça a necessidade da concepção pragmático-formal, no sentido de poder “dar e exigir razões” as proposições válidas. Trata-se de reconhecer a “autoridade” da razão. Por isso, ela é uma razão pública e, portanto, em nenhuma circunstância um procedimento individualizado ou privado, pois as pretensões de validez estão submetidas ao reconhecimento intersubjetivo. Nesse procedimento, os sujeitos utilizam argumentos com o fim de conseguir um acordo reconhecido como válido, sem perder de vista o horizonte do mundo da vida.

Em sua obra An Examination of the Place of Reason in Ethics (1960), S. Toulmin salienta as limitações e as dificuldades de determinados argumentos, o que exige ampliar o processo de razoamento para tornar possível, então, encontrar argumentos capazes de enfrentar o problema relacionado aos diferentes usos da razão (Toulmin, 1979, p. 17 ss). Em certa medida, os usos da razão indicam uma versatilidade da própria razão, uma vez que ela não se restringe à unilateralidade dos fatos ou da própria fundamentação. Não se trata de uma inconstância, algo próximo à instabilidade, mas de uma capacidade de ser diverso nas suas habilidades, saberes, empregos e aproveitamento. O atributo de versatilidade à razão não significa seu esfacelamento, mas a variabilidade das qualidades ou habilidades, podendo aprender ou realizar diferentes coisas, ou seja, em conseguir suscitar respostas aos diferentes âmbitos da vida prática. Nesse sentido, a razão necessita refletir sobre si mesma e na compreensão de seu próprio status enquanto razão.

Em sua obra, Toulmin analisa os enfoques tradicionais que tratam de conferir razoabilidade aos diferentes argumentos. Trata-se de enfocar o problema modificando a metodologia, utilizando, para tanto, as diferentes “maneiras de usar a linguagem” (1979, p. 102). Na verdade, ele insiste que o uso da razão não se resume a um processo de inferência ou a um simples jogo de palavras, mas em estabelecer critérios para compreender os diversos usos da linguagem, quer seja na “matemática, na ciência, ao expressar nossas reações diante dos fatos, ao explicar nossos motivos, etc” (Toulmin, 1979, p. 102).

Na continuação, o autor diz que o perigo das tentativas dogmáticas do uso da razão está em buscar um único caminho para razoar, desprezando, portanto, outras alternativas ou outras esferas do agir. Ele afirma que Hume, por exemplo, restringe o razoamento à matemática e à ciência. Além disso, há, ainda, os que

 

Estigmatizam, como pseudoconceitos, todos os conceitos que não se referem a objetos particulares ou a processos físicos. Outros ficam obsessivos com facetas limitadas e singulares da verdade. E outros ainda recusam qualquer proferimento que não expresse proposições fácticas, baseando-se no fato de não poder se estabelecer a maneira em que se demonstra a hipótese fáctica (1979, p. 102).

 

Como é possível perceber, Toulmin pretende destacar as diferentes formas dos usos da linguagem e, ainda, que ela não possui uma única finalidade. Nesse sentido, ele salienta a função da linguagem como abridora de “sentido”, ou seja, um mecanismo a descerrar a diversidade de razoamentos a respeito das situações e atividades humanas, na sua pluralidade. O autor salienta as restrições conceituais das explicações científicas e os limites do âmbito científico, ou seja, da “realidade física” para, então, poder perceber a “diferença crucial entre ciência e ética.” No fundo, trata-se de definir não só os limites das diferentes linguagens – científica, jurídica, moral ou religiosa – e compreender o modo como cada uma delas cumpre sua função específica, isto é, o papel de cada esfera normativa. Em todas elas, a peculiaridade encontra-se nas “perguntas limites” sobre seus domínios, cujo sentido é diferente em cada uma delas. Trata-se, pois de identificar e compreender os horizontes discursivos específicos, a comunicação e a interação entre sujeitos-participantes podem fazer suas proposições e serem colocadas em discussão.

Os desdobramentos desse ponto de vista apresentam uma envergadura muito extensa. Todavia, o fato de salientar os diferentes modos de razoar reafirma a versatilidade da razão diante da diversidade de mundos ou de horizontes, aspecto que supera o modelo homogeneizador de racionalidade, tão desconcertante hoje em dia e muito presente em qualquer tipo de fundamentalismo. Em Toulmin, há significativos indícios que incitam romper com uma tradição monolítica e omniabarcante de conhecimento.

Deste modo, a razão deveria explicar e permitir a compreensão, não apenas das questões relacionadas ao conhecimento, seus limites e possibilidades, e da linguagem como tal, mas também das ações inerentes ao horizonte experiencial do sujeito, no qual interagem diferentes relatos, como frisa Adela Cortina (2001). Então, o problema não é apenas a experiência comunicativa isolada, mas no entrelaçamento de tradições discursivas diferenciadas. Diante disso, a filosofia deve também explicitar a crise inerente às diferentes tradições, seja em relação à anencefalia, à manipulação genética, a preservação do meio ambiente, a preocupação com as gerações futuras, etc.

Sem dúvidas, é fácil entender que o tratamento e o consumo de animais podem ser analisados a partir de óticas distintas. Como exemplo dessa disparidade, lembro o caso de jovens arrastando uma cadela pelas ruas da cidade de Pelotas e o caso de alimentar-se com cães, como fazem algumas culturas. Diante desses fatos, é fácil distinguir formas racionais de atitudes que podem ser qualificadas de irracionais. Mas não é essa a questão fundamental, nem pode ser esse o caminho preferencial.

Na verdade, o debate filosófico continua assediado pelas tradições – no caso, aqui, das tradições de fé – e o objetivo é encontrar uma resposta satisfatória para o pluralismo da sociedade atual. Como sabemos, Habermas critica sistematicamente o reducionismo cientificista

– e aqui poderíamos citar vários de seus textos e inúmeros comentadores. Essa crítica ganha, hoje, novos terrenos e nos apresenta o desafio de justificar procedimentos científicos, jurídicos, éticos e, inclusive, religiosos (ou relacionados com o sagrado). Daí, então, a interpelação no sentido de que a filosofia não se ausente do debate a respeito dos limites entre fé e saber (Habermas, 2006, p. 217 ss).

 

3 DUAS TRADIÇÕES DIFERENTES E O NOVO STATUS DA JUSTIÇA

 

As exigências de justiça não se limitam ao status do contrato. Na verdade, a tese ressalta o fato de que as exigências de justiça apresentam um aspecto anterior ao contrato e, por isso, é importante sublinhar também as limitações do constitucionalismo formal. O reducionismo moral ao âmbito do contrato remete à questão da aliança e do contrato. Nesse sentido, vou apresentar alguns aspectos da obra Aliança e Contrato, na qual Adela Cortina as considera como duas esferas distintas ou, então, dimensões irrenunciáveis e, por isso, são imprescindíveis para a compreensão dos vínculos humanos (Cortina, 2001, p. 11). A dimensão da justiça apresenta, pois, um aspecto concernente à dimensão política do agir comunicativo, presente nesse contrato moral. O contrato representaria o aspecto formal do compromisso moral, qual seja, o acordo em torno a interesses particulares, grupais e institucionais, conquanto a aliança indicaria uma obrigação advinda do reconhecimento recíproco, isto é, o nível pós-convencional do âmbito moral.

Atualmente, o contrato dá a impressão de haver colonizado todas as esferas da vida social. Em outras palavras, o contrato ampliou sua interferência, a ponto de abarcar todos os âmbitos legais e legítimos, colonizando não apenas o próprio contrato, mas, e em decorrência disso, acabou desalojando a aliança do seu lugar específico. Todavia, o discurso do contrato e da constitucionalidade pressupõe “o relato da aliança e das obrigações oriundas do reconhecimento recíproco” (Cortina, 2001, p. 26). Como dois âmbitos distintos do fenômeno moral, o contrato representa a base político-jurídica da sociedade, oferecendo os mecanismos institucionalizados (governabilidade, sistemas políticos de participação, constitucionalidade, etc.). A aliança, por sua vez, serve de base para a “sociedade civil, ou seja, para as famílias, as comunidades e as associações voluntárias” (Cortina, 2001, p. 27). A esse respeito, é mister frisar três pontos.

Em primeiro lugar, essas categorias conceituais representam duas tradições históricas sobre os laços que unem os seres humanos, determinando um conceito de justiça que não se limita ao jurídico- constitucional. Não se trata, pois, de “negar uma delas e permanecer somente com uma única narrativa, porque as duas devem ser dadas a conhecer” (Cortina, 2001, p. 20). O não reconhecimento de uma delas pressupõe um prejuízo para qualquer razoamento, isto é, a recusa de laços e da possibilidade de diálogo entre aqueles que se identificam com esses distintos relatos.

Em segundo lugar, a análise dessas duas tradições salienta que as duas histórias não foram contadas por igual. No parecer de Cortina, a parábola da aliança foi sendo relegada a um segundo plano, até, praticamente, cair no esquecimento, conquanto a idéia “do contrato foi sendo utilizada não apenas para interpretar a formação do Estado e o funcionamento do mercado, mas também para configurar o conjunto das instituições sociais” (Cortina, 2001, p. 21). Pouco a pouco, o discurso do contrato foi ampliando seu espaço até assumir o protagonismo não apenas no mundo político, mas também na vida social, estendendo cada vez mais sua intervenção nas relações familiares e civis. Agora, há inclusive uma insistência em, simplesmente, universalizar o contrato, como se isso fosse a bola da vez. Assim, as relações e, inclusive, as decisões submeteram-se cada vez mais ao arbítrio de pactos, direitos e deveres juridicamente constituídos formalmente.

Em terceiro lugar, o aspecto religioso sempre esteve presente, de um modo ou de outro, mesmo com o avanço da ciência e nesse processo de juridicialização da sociedade. O processo de racionalização moderno supôs uma simplificação do mundo da vida, reduzindo os vínculos humanos ao domínio técnico e ao mercado, normatizados apenas pelo direito positivo. Esse pensar técnico-cientificista foi encurralando o relato religioso, a ponto de afastá-lo de qualquer análise, inclusive, da filosofia. Apesar de tudo, os dois relatos seguem vigentes. Por isso, alguns ficaram pasmos quando, por exemplo, Habermas retoma o tema, provocando inclusive inquietações no meio acadêmico. Na verdade, por mais que alguns insistam, o relato da aliança não desapareceu, nem pode ser silenciado. A aliança representa a possibilidade de ir além dos limites do contrato, como é possível perceber na continuação.

De modo general, o contrato se vincula às instituições da sociedade política, aos estados, aos governos e aos sistemas políticos (Cortina, 2001, p. 15). É, todavia, arriscado propor um período provável de tal surgimento. Entretanto, seu nascimento se vincula ao Estado moderno e à separação entre política e religião. Maquiavel define os primeiros passos de uma política laica, independente da religião. Hobbes configura um ordenamento à comunidade política a partir de um pacto entre todos, um instrumento convencional, mediante o qual os homens consentem manterem-se unidos.

Na teoria de Hobbes, o contrato social “cria um Estado, não uma sociedade” (Cohen e Arato, 2000, p. 116). Todavia, é problemático reduzir o contrato ao papel do Estado, pois consente também um conjunto de instituições sociais, de sistemas de governo, de direitos e deveres dos cidadãos, de grupos de interesse, de tendências ou facções e, inclusive, dos partidos políticos. Assim, a racionalidade do contrato “foi infiltrando-se também na vida social e a conquistou, de modo que as famílias e as associações civis vão entendendo-se a si mesmas em termos de pactos, direitos e deveres” (Cortina, 2001, p. 21).

Deste modo, a filosofia moral e política da modernidade passam a concentrar suas atenções sobre a idéia de pacto social entre indivíduos, “dotados de alguns direitos racionais e com capacidade para contratar” (Cortina, 2001, p. 45). Os Estados de Direito modernos utilizam o instrumento do contrato, pois, diante do egoísmo dos homens e da razão calculadora, o aconselhável é um “contrato auto-interessado entre aqueles que estão, de igual modo, interessados em si mesmos e a formar uma comunidade política” (Cortina, 2001, p. 16).. As leis são legítimas se preocupadas em assegurar a felicidade dos cidadãos, todavia como instrumento para garantir a constitucionalidade jurídica. A tradição contratualista procura apoiar-se no “critério de utilidade que, por sua força de convicção racional, é interiorizado por todas as pessoas, permitindo, assim, alcançar uma maior estabilidade social” (Vallespín, 1998, p. 11). A final de contas, nada mais promissor que o império da lei.

Assim configurado, o contrato deixa em aberto uma série de questões, pois não passa de um “instrumento de direito privado, especialmente adequado na organização do mundo mercantil, sob a lógica do toma lá e dá aqui” (Cortina, 2001, p. 18). Contudo, o contrato a respeito dos bens ou mercadorias salienta apenas um âmbito do contrato, conquanto sua vinculação com a vida política deva ser tratada de modo bem distinto. No que se refere ao aspecto político, é lícito insinuar que as relações não podem delimitar-se ao marco jurídico. Nesse caso, é imprescindível alimentar condutas dignas de confiança, no horizonte da res publica, ou seja, promover e exigir convicções e hábitos éticos, tanto com relação ao estado democrático, como em função da economia, das relações sociais cotidianas, atividades profissionais, das organizações e instituições sociais etc. Por isso, as obrigações recíprocas se aplicam também à sociedade civil, “cuja meta deveria consistir em formar realmente esse ethos, ou seja, o caráter de quem aspira à verdade e ao bem, numa comunidade, sem qualquer tipo de prejuízo” (Cortina, 2001, p. 25).

Na verdade, estão aqui delineados os contornos iniciais de uma longa discussão. Trata-se do papel e do status da sociedade civil, temática que ocupa, hoje em dia, um espaço significativo na reflexão filosófica. A pertinência desse tema está no fato de admitir a relação entre sociedade civil e interculturalidade, entre diferentes tradições, laços de solidariedades e identidades culturais, entre o Estado de direito, legitimidade jurídica e fundamentação moral. Segundo Cohen e Arato, a reconstrução dessas relações envolve a “diversidade de instituições, sem igualar-se ao conhecimento dos antecedentes culturais, no qual se apóiam, muito menos com os mecanismos normatizadores da ação, restritos à economia (dinheiro) ou às organizações formais, estruturadas burocraticamente (poder)” (2000, p. 483). Neste último caso, o contrato entre indivíduos dar-se-ia desde mecanismos sistêmicos e, portanto, instituído unilateralmente a partir das regras de uma economia despolitizada e de um estado monopolista. O contrato assumiria, então, a força imperativa mediante um soberano artificial, ou seja, a lealdade ao estado recebe, como moeda de troca, a proteção dos direitos positivos (Cortina, 2001, p. 45).

Habermas também compartilha do status obrigatório do contrato, “em virtude da legitimidade das regulamentações legais subjacentes; e estas só podem ser reputadas como legítimas, enquanto expressões de um interesse geral” (Habermas, 1988, II, p. 116). Essa obrigatoriedade nem sempre representa uma conciliação de interesses, pois o fato de as partes alcançarem um pacto ou convênio não significa que o conjunto de interesses esteja garantido. Assim, o estado encarna uma força, cuja autoridade, muitas vezes, expressa a violação ou a supressão dos interesses de uma das partes.

Nas sociedades modernas, há uma separação entre o agir e a normatividade moral da estrutura sistêmica. Por isso, não poucas vezes, as estratégicas conceituais seguem direções opostas (Habermas, 1988, II, p. 161). O reducionismo sistêmico insiste na autonomia das organizações e das instituições, as quais são reguladas através de leis jurídico-constitucionais, amplamente defendidos pelos meios de comunicação deslingüistizados. Tais mecanismos sistêmicos, salienta Habermas, “controlam um comércio social amplamente desvinculado de normas e valores” (1988, II, p. 217). Esse divórcio entre sistema e o âmbito moral do agir comunicativo ocasiona “fissuras” na orientação da ação.

Em função disso, a reconstrução da sociedade civil é um excelente indicativo na inclusão das “instituições sociais e formas associativas, que requerem a integração comunicativa para sua reprodução, pois dependem, principalmente, dos processos de integração social para coordenar a ação dentro de suas fronteiras” (Cohen e Arato, 2000, p. 483). Por esse motivo, parece oportuno reiterar a versatilidade da razão, evitando cair no reducionismo contratual, pois essa versatilidade é muito mais convincente e produtiva que a simples legalidade jurídica e convencionalidade das leis.

Deste modo, a parábola da aliança recobra vigor, pois representa um elemento não institucional, encarregado de proporcionar um diálogo intersubjetivo, com vistas a uma ética universal. O relato da aliança define um conteúdo moral, capaz de assegurar laços de solidariedade e de justiça entre os seres humanos, independentes da forma de vida particular de cada cultura, Estado, religião etc.

Normalmente, o termo aliança aparece quase sempre ligado à tradição cristã. A narrativa bíblica evidencia, desde o começo, o caráter relacional do ser humano. Essa experiência não pode ser partilhada por aqueles que optam pela solidão ou agem de acordo com os princípios do individualismo metodológico (Macpherson, 1997). Esse caráter relacional salienta um diálogo capaz de redefinir um compromisso da “pessoa em relação com outra pessoa” (Cortina, 2001, p. 16). A convivência e a reciprocidade não representam um pacto entre interesses egoístas, mas o reconhecimento mútuo entre seres, possibilitando sua identidade própria através da relação com os demais. Esse reconhecimento mútuo não pode ocorrer a partir do auto-interesse particular, mas da compaixão, entendida não como condescendência com uma relação assimétrica, mas com esse compartilhar as lutas e desafios, esperanças e alegrias, de quem aspire por viver uma vida feliz. A aliança baseia-se na a mútua exigência de reconhecimento entre aqueles que são conscientes de sua identidade humana (Cortina, 2001, p. 19 e 26).

Nesse sentido, a defesa dos direitos de todos se traduz em exigências de justiça, uma reivindicação cada vez mais visível. No entanto, isso não é suficiente. Não se trata apenas de defender a liberdade dos indivíduos, de defender seus interesses, de realizar pactos, na luta pela autonomia e a não-dominação, mas também de participar e engajar-se em assegurar laços de solidariedade e de justiça entre todos. Por isso, não importa qual seja a origem histórica do pacto social. O imprescindível é sua “justificação racional, sua razão suficiente, preocupada em defender os direitos humanos ou liberdades básicas” (Cortina, 2001, p. 46). Nesse sentido, é possível

extrair úteis ensinamentos tanto do formalismo ético como da figura jurídico-políticas do contrato social: o formalismo ético limita sua tarefa a proporcionar um test para comprovar a validez das normas morais, deixando à margem as preferências axiológicas, aconselháveis a um ethos concreto; a figura do contrato propõe um procedimento cuja racionalidade garante a correção das decisões, assumidas a partir dele (Cortina, 1992, p. 173).

 

Como é possível perceber, a aliança supõe algo mais que o convencionalismo. O conceito de aliança se vincula aos pressupostos do reconhecimento recíproco. Trata-se, pois, de um nível pós-convencional do conteúdo normativo, superando o reducionismo do contrato. Por isso, apesar da proteção dos direitos, não é o contrato quem justifica os direitos. Este é um ponto essencial, pois demonstra que o “contrato não é auto-suficiente, mas necessita apoiar-se no reconhecimento recíproco, fundamentando a aliança” (Cortina, 2001, p. 47). O sentido do pacto está em superar sua redução a simples contrato.

Como conclusão, gostaria de ressaltar os seis pressupostos que, segundo Cortina, devem ser cumpridos para garantir o nível pós- convencional da justiça:

1)        A validade do pacto advém da exigência moral, isto é, o cumprimento dos pactos é um dever moral. Esse dever não é uma característica do “direito positivo, mas um pressuposto moral ou religioso do direito positivo” (Cortina, 2001, p. 47).. Na verdade, o direito positivo apenas possui sentido, se tiver como base um pressuposto moral, pois optar por apenas um significa, às vezes, relegar o outro.

2)        Nas relações de confiança entre os pactuantes, o sentido dos pactos não se justifica na identificação da lei a que foi submetido, pois eles devem ser confiáveis e, além disso, possuir a garantia de seu cumprimento (Cortina, 2001, p. 47-48). A confiança supõe, pois, um capital social um background moral, encarregado de orientar as ações, independentemente da natureza jurídica do pacto como tal.

3)        O sentido dos pactos exige equilibrar a validez das normas jurídico-políticas com as valorações que a sociedade pode formalizar. Essas valorações são prévias a qualquer pacto e podem apresentar diferenciações entre uma sociedade e outra. Devido a isso, a prioridade não está nas divergências entre as sociedades e as valorações do indivíduo e seus direitos, mas na primazia do respeito e no reconhecimento do outro como ser humano, independente de sua cultura, religião, modo de vida, leis jurídicas ou interesses, compreendidos e defendidos como benéficos (justos e corretos).

4)        As questões de justiça se vinculam a pretensões de universalidade. Essa exigência requer um diálogo entre todos, pois, para ter sentido, “pressupõe certos direitos pragmáticos e morais. Tais direitos não é objeto do pacto, mas representam aquilo que dá sentido ao fato de entrar no pacto” (Cortina, 2001, p. 49). Por isso, os direitos humanos não dependem de sua procedência como tal, mas de sua presumível universalidade, porquanto fundamentam a normatividade dos diferentes discursos.

5)        A distinção entre direitos legais (jurídico-políticos) e direitos humanos (ou direitos morais) não depende de nenhum de pacto, pois o sentido de todos os direitos está no fato de realmente aderir ao pacto. Em vista disso, o sentido do contrato não pode ser uma criação particular ou a manifestação de um ponto de vista restrito a uma cultura ou religião, embora pretenda impor-se como universal.

6)        Por fim, a obrigação de proteger esses direitos acentua a “força vinculante” do reconhecimento recíproco entre todos os interlocutores capazes de assumir os contratos. Por isso, “as comunidades políticas, embora, em princípio, estejam obrigadas a proteger seus cidadãos, estão também, necessariamente, abertas a todos os seres humanos, ou seja, têm necessariamente uma vocação cosmopolita” (Cortina, 2001, p. 49).

Esses seis aspectos evidenciam que os direitos humanos não são objeto de pacto, nem representam um simples contrato, porque “tais direitos apenas são reivindicáveis por seres humanos, porém, isso sim, por todos e cada um deles” (Cortina, 2001, p. 50). Essa reivindicação representa, pois, uma exigência moral, tornada pública por qualquer ser humano e, como tal, deve ser satisfeita por todos, independente da sua cultura, religião ou modo de vida. No reconhecimento de tais direitos, dá- se a confrontação entre sujeitos de comunidades diferentes. No entanto, os pressupostos universais excedem aos contextos locais ou do relativismo moral ou religioso. Nesse sentido, participar numa argumentação significa “aceitar, implicitamente, pressupostos pragmático- universais” (Habermas,1991, p. 102).

Desse modo, é possível demonstrar que Aliança e Contrato indicam que a versatilidade da razão é um aspecto essencial para o diálogo comunicativo. O debate gira em torno aos aspectos concernentes à filosofia do agir, ou seja, o razoamento sobre as distintas dimensões do agir comunicativo. Com isso, a racionalidade comunicativa consegue salientar o aspecto formal desse compromisso moral, qual seja, o acordo em torno a interesses particulares, grupais e institucionais, conquanto a aliança indicaria uma obrigação advinda do reconhecimento recíproco, isto é, o nível pós-convencional do âmbito moral.

 

REFERÊNCIAS

 

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VALLESPÍN, F. Introducción. In: HABERMAS, J. & RAWLS, J. Debate sobre el liberalismo político. Barcelona: Buenos Aires, México, Paidós, 1998.

 


ÉTICA DO DISCURSO

conteúdo moral e responsabilidade solidária[3]

Jovino Pizzi[4]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

1 INTRODUÇÃO

 

A ética do discurso justifica o conteúdo de uma moralidade que salienta a simetria entre os sujeitos e a solidariedade entre todos. Para Habermas “a solidariedade é a outra face da justiça” (1999, p. 42), ou seja, são duas faces da mesma moeda. Esta é uma afirmação chave em relação ao conteúdo cognitivo do âmbito moral. A validade das normas pressupõe uma fundamentação normativa estruturada linguisticamente, de forma a vincular a justiça com a solidariedade. A ênfase está em uma razão prática capaz de fundamentar princípios igualitários e universalistas da moral e do direito (2009, p. 63). A legitimação do estado de direito deve preservar sua neutralidade ideológica, alicerçada em uma moral racional, isto é, laica (ou secular). Com isso, as exigências normativas devem ser aceitas por todos em uma sociedade pluralista, formada por cidadãos de diferentes credos e, inclusive, por não crentes (HABERMAS, 2009, p. 69).

A teoria do agir comunicativo se insere no horizonte de uma sociedade com sinais profundos de secularização. A prospectiva habermasiana parte do fato de que, com o desenvolvimento da sociedade democrática moderna e a própria integração social passa a ser determinada por uma razão comunicativa laica. A compreensão moderna do mundo suplantou cosmovisões míticas, religiosas e metafísicas (HABERMAS, 1988, p. 101). A “dissolução” das justificativas mítico-narrativas proporcionou, ao sujeito comunicativo e participativo, a assunção discursiva de “pretensões de validez suscetíveis a crítica (1988, p. 107). O fio condutor do entendimento obedece a um procedimento racional ligado ao mundo da vida. As normas que orientam o agir são fruto desse processo comunicativo intersubjetivo entre sujeitos participantes tendo como base a validez do acordo consensuado entre todos os concernentes. Desse modo, os sujeitos se entendem racionalmente sobre pretensões de validade normativas. E somente podem ter validade as normas aceitas por todos os participantes em um discurso prático.

Nessa perspectiva, a razão secular consegue apropriar-se, através dos recursos do pensamento pós-metafísico, dos conteúdos semânticos das tradições, sem renunciar jamais a autonomia que lhe é inerente. O ponto de vista moral não deriva de asserções do tipo empírico-formais ou ligadas ao determinismo causal, muito menos se limita a análise dos aspectos semântico dos proferimentos. A traduzibilidade da razão prática requer, pois, uma conexão com as práticas cotidianas dos sujeitos em diálogo com os demais. É possível, portanto, descrever o processo de fundamentação e explicá-lo, mas sem que isso signifique a adoção deste tipo de fundamentação (HOERSTER, 1975, p. 150). Nisso parece estar o perigo, pois essa mesma razão secular pode “perder-se” no momento da defesa solidária de metas coletivas. Em outras palavras, ela sofre o risco de não chegar a tempo e revelar sua impossibilidade para afiançar laços de solidariedade, seja dentro dos Estados nacionais, nas relações interestatais ou supranacionais (KALDOR, 2005).

Por um lado, isso é decorrência do debilitamento dos aspectos motivacionais de uma moral racional autônoma e laica, porque propor normas morais não significa, de fato, a assunção de um compromisso solidário. Embora esse déficit possa ser corrigido dentro dos limites do Estado constitucional democrático, pelo direito positivo, mesmo assim, ela moral não consegue impulsionar uma ação coletiva solidária, ou seja, uma ação moralmente instruída. Por outro lado, a questão se vincula à ideia de que os princípios válidos para todos possam realmente acarretar em um compromisso prático, isto é, no consequente engajamento efetivo em favor da justiça e da solidariedade.

Esse é o foco desta pesquisa: o potencial de uma moral laica pós- metafísica que ainda repousa adormecido. Pois, o delineamento de princípios válidos para todos (consensuados comunicativamente, portanto) não mobiliza os sujeitos para assumirem concretamente as responsabilidades diante de situações de injustiça e da falta de solidariedade. Daí, então, a preocupação em delinear as considerações de Habermas a respeito da moral pós-metafísica, cujos fundamentos laicos asseguram tanto os direitos fundamentais como os princípios do estado de direito. No seu modo procedimental, essa perspectiva fundamenta um ponto de vista moral. Todavia, essa razão secular parece definhar à medida que não consegue superar as “debilidades motivacionais” e proporcionar a realização solidária de metas coletivas. Ela é eficaz no concernente à “observância individual dos deveres”, mas parece ser um tanto incapaz de impulsionar o engajamento coletivo solidário, ou seja, não se atreve a preceituar uma “ação moralmente instruída.” Em decorrência, tolera a resignação dos sujeitos diante de injustiças e da não solidariedade; estudar e compreender as potencialidades e os possíveis déficits dessa moral laica é a proposta deste trabalho.

 

2 A RAZÃO PÓS-METAFÍSICA SECULARIZADA

 

A questão em análise se vincula à própria autocompreensão da razão pós-metafísica, consolidada a partir do desencantamento das imagens religioso-metafísicas do mundo e o nascimento das estruturas de consciência modernas (HABERMAS, 1988, p. 249). Ao deixar de lado essas imagens, a filosofia já não arroga mais “fundamentos ontoteológicos ou cosmológicos para modelos universalmente vinculantes” (HABERMAS, 2006, p. 276). Daí, então, o moral point of view vinculado aos interesses de todos, renunciando, portanto, a qualquer perspectiva substancial de uma forma de vida exemplar, isto é, externa e alheia ao mundo. Nesse sentido, o Iluminismo fomentou uma “moral laica secularizada”, de forma que a “consciência moral civil” ganhou autonomia diante das perspectivas cosmológicas e religiosas, possibilitando uma “ética regida por princípios” (HABERMAS, 1988, p. 301). Por isso, o ponto de vista moral deve reconstruir uma perspectiva intramundana, ou seja, “dentro dos limites de nosso mundo intersubjetivamente compartilhado, sem correr o risco de afastamento do mundo como um todo e, em decorrência, da perspectiva universalista” (HABERMAS, 1999, p. 33-34).

Além disso, há outro aspecto significativo em relação à ética. Trata-se do fato de que “o vigor afirmativo das éticas clássicas evaporou-se já faz algum tempo” (HABERMAS, 2009, p. 217). Nesse sentido, não se justifica apenas uma genealogia da tradição moral ocidental e de seus aspectos semânticos, mas em estudar e debater sobremaneira as características dessa moral ilustrada, isto é, de uma “razão prática emancipada” (HABERMAS, 1988, p. 302). Em outras palavras, trata-se de estudar o potencial semântico e simbólico dessa moral laica e sua particular influência na vida prática das pessoas.

O discurso sobre a secularização sofreu modificações no decorrer dos anos 80 e 90 do século passado. No entanto, foi nos albores do século XXI que ele ganhou proporções ainda mais abrangentes. Atualmente, existe forte inclinação à secularização da moral, permeando os diferentes discursos públicos e processos políticos. Essa moral secular encontra-se, todavia, constantemente assediada por propostas, às vezes, pertinentes, como é o caso da relação da complementaridade entre fé e saber. Na verdade, não há como fugir da discussão a respeito da “forma como as cosmovisões, sejam metafísicas ou religiosas, são traduzidas simbolicamente por meio da abertura ao tratamento discursivo ou linguístico” (MENDIETA, 2001, p. 42).

Essa temática abre um leque significativo de apreciações, principalmente na contestação do papel e do valor da metafísica (PINZANI, 2009, p. 118). Todavia, o foco deste projeto está em discutir a sensibilidade moral em relação à justiça e à solidariedade. Na verdade, quando Habermas afirma que “a solidariedade é o anverso da justiça” (1999, p. 42), ele salienta não só um “retorno” do tema, mas uma nova configuração e uma nova atitude diante da questão.

A preocupação em torno à justiça varia bastante. Ela faz parte do pensamento filosófico do século XX e do atual. Grande parte do pensamento moderno abandonou o vínculo entre justiça, economia e política. O período medieval tinha como foco a conexão justiça e paz, aspectos considerados essenciais para o bem viver. Como é conhecido, a filosofia moderna e, mais recentemente, o ethical turn introduziu mudanças significativas para a reflexão filosófica. Esse giro ético da filosofia consagrou um novo impulso para a racionalidade prática, porém as ressalvas parecem advir de um ponto de vista moral que não se incorpora nas atitudes das pessoas e garante a superação das situações de injustiça e de não solidariedade, tanto em relação a aspectos estruturais, como em questões relacionadas ao mundo da vida cotidiana.

Sem dúvidas, isso evidencia que a orientação do agir não se resume à resolução de conflitos, mas a uma pragmática vinculada a políticas deliberativas. Essas políticas não dependem de interesses particulares ou, então, de pressupostos metafísicos, pois estão ligadas a princípios ou normas reconhecidas como válidas para todos. A ampliação significa o não restringimento da moral ao âmbito privado ou ao horizonte familiar, muito menos ao fato de garantir a cada sujeito individualmente o que lhe é devido, mas em um dever moral, pois se trata de um compromisso entre todos.

A sociedade medieval, principalmente a francesa, tolerava a vingança como meio para a resolução de conflitos, de modo especial em relação aos crimes contra a honradez (GAUVARD, 2006 II, p. 56). Esse era um tipo de solução privada, às vezes com a intermediação de um juiz ou árbitro. No entanto, a justiça não se limita ao campo privado, pois apresenta caráter público. Aí nasce uma distinção importante: a justiça pública e a oficial. Desse modo, temos a justiça legal, regulada por um poder judiciário, encarregada primordialmente de regular os conflitos particulares, garantindo os direitos a cada indivíduo. Por isso, se, na Idade Média, a preocupação se centrava no vínculo entre paz e justiça (GAUVARD, 2006, II, p. 55), no século XX, o tema é retomado por Rawls, um dos autores renomados na questão da justiça. Otfried Höffe, Paul Ricoeur e muitos outros pensadores também marcam presença na discussão. Macpherson (1991) fala da ascensão e queda da justiça econômica. Atualmente, muito se fala sobre responsabilidade social, éticas aplicadas, políticas afirmativas etc., embora exista a impressão de haver debilitamento da justiça e da solidariedade. Nessa linha, o discurso moral se traduz, às vezes, em simples marketing ou em campanhas filantrópicas (esporádicas, portanto).

 

3 OS NOVOS DESAFIOS PARA A JUSTIÇA

 

Dos anos 70 para cá, a filosofia e, consequentemente, a ética, experimentam uma transformação profunda. A nova configuração na ética coloca em evidência questões relacionadas à fundamentação e à aplicação. Neste processo, há revalorização de diversos conceitos, como é o caso da justiça. Encontramos um leque de concepções relacionadas à justiça. Diante disso, algumas questões são expressivas:

1.    Como a justiça deve ser entendida, principalmente quando se fala de secularização e na sua influência na hora de tomar decisões? Esse debate está inserido naquilo que Habermas denomina de “genealogia da razão” ocidental (2009, p. 225). Esta razão comunicativa pós-moderna assume características laicas, aspecto que permite a legitimação de um Estado democrático de direito neutro, isto é, capaz de promover a integração social a partir de suas próprias bases ou fundamentos. Não se trata, portanto, de um Estado na forma hobbesiana, mas de uma sociedade pós- secular estabelecida em um Estado constitucional e democrático (HABERMAS, 2002, p. 131-133).

2.    O segundo aspecto diz respeito aos próprios pressupostos fundamentais dessa razão secular. Em Réplicas e objeções (1980), Habermas muda sua tese, porquanto a validez das normas e princípios não se vincula apenas a uma situação contrafática, mas elas devem orientar decisões “dignas de confiança”, cujas pretensões de validez estão ligadas a um sistema de referência descentralizado (2006). Nesse sentido, é imprescindível estudar como devemos pensar a própria autocompreensão da razão iluminista e secular, pois é a encarregada de garantir sua peculiar neutralidade diante dos ideais de bem. Nesse caso, a secularização não se vincula ao aspecto jurídico ou da relação entre a Igreja e o poder secular do Estado (HABERMAS, 2002, p. 131); nem se trata de uma “espécie de jogo” preocupado essencialmente em eliminar um dos competidores (2002, p. 132).

            O qualificativo “secular” indica, pois, uma sociedade na qual “os fundamentos de decisão seculares” tem como base uma “moral profana” (2002, p. 133). Como entender a razão laica e neutra diante dos conteúdos semânticos que a realidade cotidiana carrega consigo? Essa pergunta salienta a necessidade de garantir o sentido a conceitos filosóficos como pessoa, liberdade, individualização, história, emancipação, comunidade e solidariedade tão carregados de experiências e conotações, pois procedem de doutrinas do bem ou, no caso, de tradições religiosas (HABERMAS, 2009, p. 237).

3.          Daí, então, o terceiro aspecto relacionado a uma moral secular envolvida em uma crise de confiança, pois parece demonstrar uma incapacidade prática para sustentar atitudes solidarias de metas coletivas. Essa razão prática revela uma dicotomia interna, pois não promove atitudes cooperativas concretas e solidárias da “mesma forma que a observância individual dos deveres morais” (HABERMAS, 2009, p. 223). Essa moral iluminista e laica, embora consiga sensibilizar moralmente os sujeitos diante das injustiças, não alcança impulsionar uma ação coletiva solidária. Em outras palavras, ela é exitosa em manter aceso o sentido da “injustiça social”, tanto em relação à marginalização de grupos, à perda da consciência de classe social de muitas categorias sociais e a imigração dentro do próprio país, como também avivar a sensibilidade em relação à pobreza sumamente drástica em diversos continentes. No entanto, apresenta os sintomas de um déficit motivador e não tem êxito para exigir dos sujeitos a assunção da responsabilidade pelas ações coletivas e na luta contras as injustiças sociais.

As antinomias da razão prática revelam, portanto, algo de inquietante, ou seja, a constatação (de certo modo, empírica) de progressiva perda de solidariedade entre as pessoas e os grupos, principalmente diante de situações concretas de injustiça. Para Habermas, a solidariedade é considerada como um conceito limite. Ele supõe uma abstração em relações às questões do bem viver, até conseguir reduzi-la a questões de justiça (1989, p. 432). No entanto, ao definir a justiça como a outra face da solidariedade, Habermas parece diluir a justiça aos âmbitos do bem viver, isto é, ao aspecto fático.

 

4 HAVERIA JUSTIÇA SEM SOLIDARIEDADE?

 

Seguidor da tradição crítica, Habermas reitera o processo de secularização das sociedades modernas, o qual parece conceder prioridade à instrumentalização das pessoas e das relações sociais, mesmo que essas pessoas, no fundo, conservem a consciência moral e acreditem em uma justiça social e na solidariedade humana. Para o autor, a perspectiva filosófica produziu uma modernidade que se reabastece em suas próprias fontes. Por sua vez, ela apresenta, entre outras coisas, “debilidades motivacionais de uma moral racional” que apenas podem ser asseguradas nos “limites do Estado constitucional democrático através do direito positivo” (2009, p. 221). A suspeita gira em torno à progressiva perda de solidariedade, ou seja, às exigências de um compromisso moral não impedem, em nada, as tendências de uma insolidariedade, pois existe um progressivo desaparecimento entre os diferentes setores da sociedade, principalmente em situações de injustiça conjuntural ou social. Na verdade, a falta de solidariedade vai aumentando de modo proporcional ao crescimento dos “imperativos do mercado na forma de custos-benefício-cálculos ou da competência de serviços em âmbitos da vida cada vez mais variados, os quais obrigam aos indivíduos, na sua relação com os demais, a uma atitude objetivista” (HABERMAS, 2009, p. 218).

A questão central da racionalidade comunicativa, além de garantir vínculos relevantes entre os sujeitos, está em supor laços de solidariedade e compromissos de justiça. Os princípios normativos obedecem exigências discursivas. Este é, sem dúvidas, o grande desafio de uma perspectiva universalista disposta a não perder de vista o bom e o justificável de cada cultura, nem desprezando os que clamam por justiça e solidariedade. Por isso, a solidariedade deve ser entendida como condição de justiça. Para Habermas, o conceito de razão deve articular uma intersubjetividade comunicativa promovedora da justiça e de laços de solidariedade.

Assim, a justiça não se reduz à benevolência, empatia, intuição ou ao cuidado, mas à solidariedade. No fundo, justiça e solidariedade não são “princípios morais diferentes, mas dois aspectos de um mesmo princípio” (COHEN; ARATO, 2000, p. 425). A justiça ultrapassa os limites semânticos para ganhar o espaço de uma pragmática-fenomenológica, capaz de ressaltar descritivamente a experiência vivida pelos diferentes interlocutores, sem, por isso, abandonar ou rechaçar os princípios, as normas e regras de caráter universal. O sentido da justiça não separa, portanto, razão (Vernuft) de entendimento (Verstand), nem desvincula a fundamentação da sua realização prática. Não se trata de uma questão lógica, mas pragmática, porque repercute nas consequências práticas do agir.

Os ideais da Ilustração salientam a igualdade jurídica, assim como também a igualdade social e econômica. Esse delineamento nos leva a insistir que a justiça deixa de ser uma questão apenas vinculada ao aspecto semântico (isto é, à sua definibilidade conceitual), mas ao aspecto pragmático. Essa pragmática pressupõe uma “neutralidade do procedimento” (HABERMAS, 1998, p. 386), porque ninguém pode garantir, por si só, sua autonomia moral. Ela depende da interação comunicativa, ou seja, dos esforços cooperativos que ninguém pode ser obrigado por meio das normas jurídicas, mas que todos são conclamados a seguir (ou obedecer). Nesse sentido, a pergunta “a quem” são os sujeitos da justiça nos leva às vítimas da injustiça. A preocupação em saber “quem” são os sujeitos da justiça remete inclusive às futuras gerações.

Em síntese, a razão pós-metafísica se fundamenta em princípios irrenunciáveis. Ela presume a mobilização solidária entre as pessoas, isto é, na participação coletiva. A neutralidade procede na medida em que a inclusão de todos realmente aconteça. Somente assim é possível garantir os preceitos de justiça e laços de solidariedade.

Todavia, há um problema: essa razão parece enfrenta uma dicotomia interna. Seus déficits se manifestam no horizonte de um pensamento dividido. Por um lado, permanece a percepção ou a sensibilidade moral em relação à injustiça, mas, por outro, cresce a des-solidariedade. É pertinente referir-se à insolidariedade ou, então, ausência de solidariedade para salientar esse “deixar de lado” a responsabilidade por uma sociedade justa e solidária. No fundo, a solidariedade vai escasseando cada vez mais, debilitando o compromisso frente às injustiças e aos injustiçados, bem como a responsabilidade diante das futuras gerações e dos riscos que o meio ambiente sofre.

Essa deficiência afeta não apenas as pessoas como tal, mas faz parte também do jogo político, no sentido de manter o status quo de uma sociedade estruturalmente organizada, instrumentalizando não apenas a relação entre os sujeitos, mas colocando também em risco a ideia de uma sociedade global e multicultural. Até mesmo os “governos influentes – que são sempre os atores políticos mais importantes deste cenário – prosseguem, sem titubear, com seus jogos de poder social-darwinistas” (HABERMAS, 2009, p. 219). Em outras palavras, para Habermas, “não falta apenas vontade política para desejar instituições e processos de ordem mundial reformada, mas inclusive a perspectiva de uma política interna global satisfatória” (2009, p. 219).

 

5 AS EXIGÊNCIAS MORAIS EM SINTONIA COM O GIRO APLICADO DA FILOSOFIA

 

As exigências normativas estão vinculadas ao querer. Para Hoerster (1975), a possibilidade de formular normas não significa que elas se transformem em atitudes. O “objetivo do agente” nem sempre pode coincidir com as pretensões de todos. A questão se relaciona ao momento da tomada de decisões. O que realmente motiva os sujeitos para agir segundo princípios? Quem decide por quem? Garfinkel (2006) trata de analisar a tomada de decisões a partir de concernentes à situação cotidiana, isto é, na motivação que as pessoas observam ao tomarem decisões. Na verdade, a justiça e a própria solidariedade não se limitam ao âmbito conceitual (semântico, portanto). Assim, é possível compreender o que significa estar no mundo e distinguir sobre o que os sujeitos podem se entender e em que aspectos eles podem intervir no mundo.

O nível pós-convencional dos estágios morais pressupõe como válidas normas que todos possam querer (HABERMAS, 1999). No âmbito das condições concretas, a racionalidade comunicativa conduz a inserção do sujeito no mundo (nos diferentes contextos do mundo da vida), de modo a unir e articular fala e ação. Esse é o horizonte no qual Habermas admite um espaço para o bom na teoria do justo, não como direito positivo, mas como “liberdades de indivíduos inalienáveis que se autodeterminam (1999, p. 70). A pretensão universal de qualquer pretensão de validade deve assegurar, portanto, os direitos e liberdades de cada sujeito de forma a garantir também o “bem-estar do próximo e da comunidade a que (os sujeitos) pertencem” (HABERMAS, 1999, p. 71).

O ethical turn evidencia mudanças que afetam apenas a ética como tal, mas também os diversos âmbitos da vida prática. Como diz Alcira Bonilla, “as éticas do século XX abordaram em seus objetos características de um modo tal que pouco incide nos assuntos práticos que foram aparecendo como consequência do desenvolvimento das ciências e da tecnologia ou da dinâmica própria da vida social” (2006, p. 78). Sem dúvidas, as mudanças são profundas e, por isso, uma nova configuração ou – como dizem os ingleses – a ética se apresenta com um novo desenho, com o qual a fundamentação exige também formas de aplicação. A racionalidade prática passa a se preocupar com os diferentes âmbitos da vida prática. Essa preocupação é tema para a filosofia e incluso para os diferentes campos ou âmbitos e envolvem a todos os sujeitos.

Nesse processo, os conceitos “tradicionais” são retraduzidos e outros recebem novas delimitações, enquanto outros passam por uma revalorização. Essa exigência salienta a necessidade de desenhar também uma “arquitetônica conceptual” da justiça (RICOEUR, 1997, p. 14). Esse delineamento vai além das definições e nos leva, portanto, à fenomenologia da justiça, pois a pergunta “o que é justiça” se encontra confrontada com sua aplicação prática. Por isso, a discussão evidencia a necessidade de ir além da questão semântica e visualizar os aspectos pragmáticos da justiça e dos laços de solidariedade em uma sociedade pluralista.

Por isso, as exigências de justiça devem responder quem são os sujeitos da justiça, de modo que a busca por definições tenha em vista o futuro da natureza humana e, se desejarmos, do próprio meio ambiente. A proposta poderia ser traduzida em uma nova arquitetônica pragmático- fenomenológica, modelo que não apenas destaca os possíveis déficits da razão secular, mas procura também consagrar um diálogo interdisciplinar com os diferentes campos de aplicação. Na verdade, a arquitetônica pragmático- fenomenológica da justiça encontra em Kant um elemento imprescindível, principalmente em seu postulado de que algo pode ser “correto em teoria, mas não serve para a prática” (2000, p. 3). O debate atual da ética encontra em Habermas uma reformulação do imperativo categórico kantiano e, através da metodologia reconstrutiva, procura fundamentar normas válidas para todos. Essa metodologia reforça o tema da justiça.

Nesse sentido, repetimos mais uma vez: a pergunta “o que é justiça” nos leva a pesquisar não somente seu aspecto semântico e realizar uma genealogia da justiça na tradição ocidental, mas também seu aspecto pragmático. Em outras palavras, trata-se de compreender não apenas “o que é” justiça, mas também identificar “quem” são os afetados e “como” configurar a justiça em vistas às exigências de solidariedade inclusive em relação às futuras gerações. Esse delineamento nos leva, portanto, à fenomenologia da justiça, onde a pergunta “o que é justiça” se defrontada com sua aplicação prática com as diferentes áreas do conhecimento e atividades humanas. Por isso, as exigências de justiça devem responder quem são os sujeitos da justiça, de modo que a busca por definições tenha em vista o futuro da natureza humana e, se desejarmos, o próprio meio ambiente, a economia, as empresas etc., aspectos inerentes às éticas aplicadas.

Macpherson afirma que o modelo de Rawls “satisfaz os critérios para uma teoria da justiça econômica, enquanto realmente propõe submeter os acordos distributivos a um princípio ético” (1991, p. 26). Para este autor, o problema é a forma competitiva do modelo liberal, isto é, “uma economia totalmente dominada pelo mercado no qual a reação negativa dos empresários ao incremento dos impostos faz com que diminua a produtividade global (1991, p. 26)”. O mercado acaba dominando as relações, fazendo com que as exigências normativas percam sua força, de modo que a ética não pode fazer valer seus princípios em relação à tomada de decisões concretas. A proposta trata de ver as considerações de Habermas a respeito da justiça, desde o ponto de uma fundamentação vista pós-metafísica, e mostrar os possíveis déficits dessa razão secular e neutra em uma sociedade laicizada.

Por isso, além de destacar as potencialidades de uma razão secular e, ao mesmo tempo, verificar as possíveis debilidades motivacionais geram uma desconfiança na própria razão secular, consequência de uma aparente antinomia interna. Se, por um lado, ela assegura a capacidade de juízo contra a vulneração das prerrogativas e deveres individuais, por outro, ela se apresenta como deficitária na hora de motivar os sujeitos para agirem solidariamente. Este seria, portanto, o foco de estudo a ser aprofundado, na tentativa de evidenciar se tal déficit representa uma dicotomia interna da própria razão laicizada ou, então, se suas exigências normativas ainda não foram totalmente trazidas à tona, isto é, transformados em força motivadora para o agir solidário. Em certo sentido, o fato de a solidariedade ir se tornando cada vez mais escassa, parece indicar que a ética normativa, neutra e voltada a uma sociedade completamente laicizada, sente os efeitos de suas próprias pretensões normativas.

 

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CONSIDERAÇÕES DE HABERMAS A RESPEITO DA MORAL LAICA PÓS- METAFÍSICA E A PROGRESSIVA PERDA DA SOLIDARIEDADE[5]

 

Jovino Pizzi[6]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

Nos últimos textos, quando trata de delinear os contornos entre naturalismo e religião, Habermas insiste em um pensamento pós-metafísico, colocando ênfase em uma razão prática capaz de fundamentar princípios igualitários e universalistas da moral e do direito (2009, p. 63). A legitimação das normas deve preservar sua neutralidade ideológica, alicerçada em uma moral racional laica. As exigências normativas devem ser, pois, aceitas por todos, isto é, por cidadãos de diferentes credos e, inclusive, pelos não crentes (Habermas, 2009, p. 69).

A teoria do agir comunicativo se insere no horizonte de uma sociedade com sinais profundos de secularização. A compreensão moderna do mundo suplantou cosmovisões míticas, religiosas e metafísicas (Habermas, 1988, p. 101). A dissolução das justificativas mítico-narrativas proporcionou, ao sujeito comunicativo e participativo, a assunção discursiva de “pretensões de validez suscetíveis a crítica” (1988, p. 107). Assim, a razão secular consegue apropriar-se, através dos recursos do pensamento pós-metafísico, dos conteúdos semânticos das tradições, sem renunciar sua autonomia.

A auto-compreensão da razão pós-metafísica ganha forçar e se consolidada a partir do desencantamento das imagens religioso-metafísicas do mundo e o nascimento das estruturas de consciência modernas (Habermas, 1988, p. 249). Ao deixar de lado essas imagens, a filosofia não arroga “fundamentos ontoteológicos ou cosmológicos para modelos universalmente vinculantes” (Habermas, 2006, p. 276). O moral point of view vinculado aos interesses de todos, renunciando, portanto, a qualquer perspectiva substancial de qualquer forma de vida exemplar, isto é, externa e alheia ao mundo. Nesse sentido, o Iluminismo fomentou uma “moral laica secularizada”, de forma que a “consciência moral civil” ganhou autonomia frente às perspectivas cosmológicas e religiosas, possibilitando uma “ética regida por princípios” (Habermas, 1988, p. 301). Daí, então, a reconstrução de uma perspectiva intramundana, ou seja, “dentro dos limites de nosso mundo intersubjetivamente compartilhado, sem correr o risco de afastamento do mundo como um todo e, em decorrência, da perspectiva universalista” (Habermas, 1999, p. 33-34).

Todavia, essa mesma racionalidade pode “perder-se” no momento da defesa solidária de metas coletivas. Ela sofre o risco de revelar sua impossibilidade em afiançar laços de solidariedade (Kaldor, 2005). Embora esse déficit possa ser corrigido dentro dos limites do Estado constitucional democrático, através do direito positivo, mesmo assim, ela não consegue impulsionar uma ação coletiva solidária.

Por um lado, se essa perspectiva fundamenta um ponto de vista moral que assegura vínculos entre os sujeitos que acreditam na justiça social e nos laços de solidariedade, por outro, essa razão secular parece definhar conquanto não consegue superar as “debilidades motivacionais” e proporcionar a realização solidária de metas coletivas. Ela é eficiente em relação à “observância individual dos deveres”, mas parece ser um tanto incapaz de impulsionar o engajamento coletivo solidário, ou seja, não se atreve a preceituar uma “ação moralmente instruída.” Em decorrência, tolera a resignação dos sujeitos diante de injustiças e da não solidariedade; e essa é, sem dúvida,a certificação de que essa moral pós-metafísica apresenta um nível de potencialidade significativo, mas, ao mesmo tempo, está permeada de dicotomias típicas de uma moral deficitária.

Para Habermas, a modernidade que se reabastece em suas próprias fontes, mas apresenta, entre outras coisas, “debilidades motivacionais de uma moral racional” que apenas poder ser asseguradas nos “limites do Estado constitucional democrático através do direito positivo” (2009, p. 221). Na verdade, a falta de solidariedade vai aumentando de modo proporcional ao crescimento dos “imperativos do mercado na forma de custos- benefício-cálculos ou da competência de serviços em âmbitos da vida cada vez mais variados, os quais obrigam aos indivíduos, na sua relação com os demais, a uma atitude objetivista” (Habermas, 2009, p. 218). Habermas reitera o processo de secularização das sociedades modernas, que parece conceder prioridade à instrumentalização das pessoas e das relações sociais, mesmo que essas pessoas, no fundo, conservem a consciência moral e acreditem na justiça e na solidariedade mútua.

Macpherson afirma que o modelo de Rawls “satisfaz os critérios para uma teoria da justiça econômica, enquanto realmente propõe submeter os acordos distributivos a um princípio ético” (1991, p. 26). Para este autor, o problema é a forma competitiva do modelo liberal, isto é, “uma economia totalmente dominada pelo mercado no qual a reação negativa dos empresários ao incremento dos impostos faz com que diminua a produtividade global (1991, p. 26). O mercado acaba dominando as relações, fazendo com que as exigências normativas percam sua força, de modo que a ética não pode fazer valer seus princípios em relação à tomada de decisões concretas.

Essa talvez seja a causa das debilidades motivacionais que geram uma desconfiança na própria razão secular, consequência de uma possível antinomia interna. Se, por um lado, ela assegura a capacidade de juízo contra a vulneração das prerrogativas e deveres individuais, por outro, ela se apresenta como deficitária na hora de motivar os sujeitos para agirem solidariamente, porque seus interesses permanecem ligados aos aspectos instrumentais de uma economia de mercado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


A ESFERA PÚBLICA FRENTE AO PROCESSO DE LAICIZAÇÃO DO ÂMBITO MORAL[7]

 

Jovino Pizzi[8]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

A questão da esfera pública se relaciona com dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, o debate a respeito da modernidade como tal; e, em segundo, a efervescência do ponto de vista moral delineado desde uma perspectiva laica, isto é, alheio a qualquer religião institucionalizada. Desde o início, a preocupação central de Habermas foi, e continua sendo, o papel do sujeito coautor participativo no âmbito da esfera pública. O foco da teoria do agir comunicativo é o sujeito coautor emancipado capaz de assumir, através do agir comunicativo, a responsabilidade frente aos desafios de uma sociedade com profundos sinais de transformação. O significado de esfera pública não se isola do agir comunicativo. Por isso, não há como rechaçar o fenômeno humano ligado às crenças ou à fé, nem propalar uma moral delineada desde a dogmática religiosa. Então, como entender a razão laica diante dos conteúdos semânticos que a realidade cotidiana apresenta? O que significa justiça no contexto secular e, ao mesmo tempo, plural e multi- étnica e religiosa? Quais os reflexos que esse ponto de vista moral acarreta para a educação?

Essas questões presumem uma longa discussão. Vale dizer, a fundamentação do ponto de vista moral se articula desde uma ética cívica, com o fim de garantir o protagonismo dos sujeitos coautores participativos. Em vista disso, este estudo inicia com a questão do procedimento discursivo e a pretensa neutralidade frente ao dogmatismo religioso (1.0). O segundo passo trata do fenômeno da secularização diante do ateísmo contemporâneo (2.0). Em terceiro lugar, o texto salienta a educação para a justiça no horizonte de uma sociedade laica (3.0). O último ponto trata de uma fundamentação discursiva como afiançável de normas válidas para todos (4.0).

 

1 SECULARIZAÇÃO FRENTE À NEGATIVA DE REZAS E/OU DE CRUZES

 

Em relação à retomada da questão laica, é preciso salientar o longo e infindável debate em torno da “sempre atual” controvérsia entre o controle das instituições religiosas sobre a vida das pessoas e o âmbito moral, tanto na delimitação jurídica a respeito da orientação do agir, quanto na implementação de políticas deliberativas. Nesse sentido, o qualificativo “secular” indica uma sociedade na qual os fundamentos de decisão devem ser alheios a qualquer tipo de instituição religiosa, pois sua base está em “moral profana” (Habermas, 2002, p. 133).

Por isso, o significado de esfera pública “50 anos depois” – para fazer jus ao tema do colóquio – se insere no horizonte de uma sociedade com sinais profundos de secularização. A simples menção a dois fatos indicam a relevância da questão: a) a retirada de símbolos cristãos de determinados ambientes, ou seja, a remoção de crucifixos de salas dos tribunais de justiça;b) a cerimônia fúnebre em memória de Max Frisch.

O primeiro deles é um caso recente, e se refere à retirada de crucifixos e demais símbolos oficiais de prédios da Justiça gaúcha, decisão acatada pelo Conselho da Magistratura de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), em março de 2012. O pedido foi interposto pela Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) sob o argumento de que o Estado laico protege a liberdade religiosa de qualquer cidadão ou entidade, em igualdade de condições, eliminando, desta forma, qualquer influência da religiosidade na coisa pública.

O segundo diz respeito ao arquiteto e escritor Max Frisch, falecido em abril de 1991. O cerimonial fúnebre foi realizado na catedral São Pedro, em Zurique. Na oportunidade, sua companheira sentimental leu uma nota, escrita por Max antes de morrer, na qual agradecia aos párocos a permissão para que o ataúde permanecesse dentro da igreja. Todavia, o mais chamativo refere-se à recomendação de que não houvesse nenhuma menção a algo religioso. Frisch recomendou que, embora o funeral se realizasse no recinto de uma igreja, não houvesse sacerdotes, abençoantes e abençoamentos e, muito menos, se pronunciasse a palavra “amém” (Habermas, 2009, p. 53-55).

Existe uma relação entre os dois fatos? Qual o seu significado para o tema em discussão?

Em primeiro lugar, essas questões – entre muitas outras – evidenciam a distinção entre a fundamentação com um forte teor apriorístico das concepções religiosas versus o caráter pragmático-comunicativo da ética habermasiana. Embora haja a tendência em procurar o equilíbrio entre diversidades latentes, o desejável nem sempre coaduna com o possível. Em vista disso, o aspecto apriorístico parece ser, em termos da pragmática procedimentalista da ética discursiva, coibitivo e, por isso, contraproducente. Aliás, a insistência em pressupostos apriorísticos não é recente, principalmente por parte de setores que se utilizam de pressupostos dogmáticos para justificar normatizações e impor orientações ético-morais até mesmo a quem não professe credo religioso algum.

Nesse sentido, é importante salientar a análise interpretativa da filosofia ocidental desde uma genealogia de suas diferentes épocas, começando com “o mito nas sociedades primitivas, a filosofia na antiguidade clássica, a teologia na idade média, até a ciência no pensamento ocidental, a partir da modernidade” (Domingues, 1991, p. 15). Em sua síntese, Ivan Domingues, neste quadro, salienta os períodos cosmológico, teológico, mecanicista e historicista como etapas diferentes do pensamento ocidental. Nele, as diferentes discursividades aparecem delineadas, em suas distintas épocas, sem perder de vista e nem denegar nenhuma de suas características específicas.

Por isso – e em segundo lugar – negar ou preterir o debate a respeito da laicização significa negligenciar, por exemplo, o desgaste que algumas instituições religiosas enfrentam atualmente. Não se trata apenas de casos isolados, mas de um processo de divisões, enfrentamentos e querelas internas ou, até mesmo, entre igrejas diferentes. Além do mais, no Brasil, é deveras sintomática a insistência de uma frente parlamentar voltada a zelar por questões desde um cunho eminentemente dogmático. Neste caso, a bancada evangélica representa a junção de forças que nem sempre compartilham, nas suas comunidades de fé, as mesmas práticas e/ou os mesmos pontos de vista interpretativos. Se, entre as diferentes igrejas, haveria, por exemplo, uma unidade em relação ao aborto, não existe o menor compartilhamento em relação à doutrina e compreensão bíblica. Essa dicotomia vai provocando uma constante migração dos crentes entre as diversas igrejas, o que mostra a crescente acracia tanto entre os próprios expertos em teologia como também nos seguidores ou devotos.

Essa espécie de confusão encontra eco em manifestações extremistas, seja em favor ou em contra temas dos mais diversos. No fundo, trata-se de estratégias para impedir o debate sistemático em relação à homogeneização frente a temas controversos. Assim é o caso do aborto, em relação à sexualidade etc., refletindo o rechaço a qualquer debate, cujos fundamentos estariam em supostos preceitos dogmáticos; aprioristas, portanto. Nesse caso, a ideia da reativação da religião não é propriamente verdadeira, pois a tese mais plausível estaria na rediscussão do papel e do lugar da religião na vida cotidiana das pessoas e, em decorrência, na possibilidade – ou não – se tais orientações estejam legitimadas jurídica e legalmente.

Por isso, ser “claramente a favor” ao aborto (Safatle, 1012, p. 19), por exemplo, significa tanto quanto estar terminantemente em contra, isto é, não denota absolutamente nada. Na verdade, esse tipo de pregação apenas reforça os radicalismos de quem não quer discutir a questão, nem pressupor que ela possa ser discutida desde o ponto de vista de uma moral laica. O argumento clássico a respeito da modernidade salienta que ela se sustenta na teoria da secularização, tese que não pode ser considerada plausível.

Esse debate engendra o exame da modernidade, pressupondo que a teoria clássica da secularização implica “na eliminação das diferenças religiosas e culturais e da homogeneização da sociedade inerente ao processo de modernização” (Demenchonok, 2009, p. 18). Na verdade, a interpretação de que a modernidade é correlativa com secularização não procede. Trata-se, na verdade, de uma forma “unidimensional e de uma descrição linear da sociedade e da história”, uma forma parcial de compreender a “complexidade das diferentes sociedades e as únicas características de suas culturas e históricas” (Demenchonok, 2009, p. 18).

Demenchonok, por exemplo, advoga por “multíplices modernidades”, o que indica também uma reconsideração a respeito da própria compreensão que a sociedade ocidental tem de si mesma. Em outras palavras, é possível descrever distintas modernidades, assim como são inúmeros os componentes ou áreas a levar em conta no momento de caracterizar a modernidade: cultural, econômico, tecnológico, político e assim por diante (Demenchonok, 2009, p. 19).

A representação das “multíplices modernidades” supera, segundo Demenchonok, os estereótipos da “modernização como ocidentalização”, pressupondo uma “crítica pós- moderna/pós-colonial às metanarrativas da globalização, aos conceitos de heterogeneidade, indigenismo e hibridização” (Demenchonok, 2009, p. 19). Nesse ponto, Demenchonok parece ser mais interessante, principalmente pelo fato de lembrar não somente o aspecto da ocidentalização e às metanarrativas, conquanto ele menciona o indigenismo – faltando-lhe a referência à contribuição dos escravos afros –, aspecto relevante para salientar o processo de aculturação ocorrido nas Américas (de norte a sul). Em razão disso, não há como fugir do “fenômeno cultural” e do processo “civilizatório” (Grüner, 2010, p. 30) que criou, nas Américas, uma homogeneização que envolveu três continentes: Europa, América e África[9].Esse processo reproduziu. “através de sofisticadas formas de sincretismo, estruturas sociais, culturais, religiosas, linguísticas, estéticas, artístico-musicais etc. muito complexas, gerando uma nova cultura, inédita até então” (Grüner, 2010, p. 30).

Por isso, a tese da ruptura ou da continuidade da modernidade ocidental se vincula ao processo de reconstrução das identidades, apoiadas na reinterpretação da interpretação do “ocidente uniforme” e na reconsideração da multiplicidade, da interculturalidade, hibridização e outros conceitos. De acordo com Demenchonok, isso favoreceu a retomada da questão vinculada ao âmbito religioso. Na verdade, esse é apenas um dos diversos aspectos que passaram a ganhar importância para a filosofia e as ciências em geral.

Seja como for, o reconhecimento das multíplices modernidades dá outro caráter ao tema da laicização e da tese de uma filosofia secular. Isso quer dizer que ela aponta para uma espécie de ateísmo, pois rompe com um modelo apriorístico – seja mitogônico, teogônico ou de qualquer outra classe – para, então, procurar compreender as circunstancialidades independentemente de apriorismos ou pré-determinações alheias. Essa tentativa pode gerar um desconforto e gerar uma espécie de insegurança, especialmente aos que ainda preconizam uma fundamentação eminentemente metafísica. No entanto, tal heterogeneidade permite compreender a diversidade das contingências do mundo da vida, sem reduzir as circunstancialidades à clivagem dicotômica entre o ideal e o circunstancial e, assim, poder consolidar o reducionismo de justificar as diferentes dimensões do Lebenswelt a apenas uma interpretação.

Diante disso, é mais que oportuno salientar o fenômeno da secularização como uma forma de ateísmo que não nega ou rechaça o âmbito religioso, nem o campo das religiões. Esse aspecto permite entender, ente ouras coisas, os limites da proposta de Taylor, quando reduz o campo do sagrado ao âmbito da religião institucionalizada. Para fazer frente a essa percepção, nossa leitura se aproxima de Ricardo Salas, que insiste em uma hermenêutica voltada à ressignificação dos símbolos, metáforas e narrativas ligadas ao sobrenatural e divino enquanto experiências religiosas.

 

2 O FENÔMENO DA SECULARIZAÇÃO DIANTE DO ATEÍSMO CONTEMPORÂNEO

 

O fenômeno da secularização ganha espaço diante da certificação das diferenças frente à própria configuração da modernidade. As multíplices modernidades salientam a tendência pós-secular em compreensão de tolerância como uma alternativa capaz de “responder às mudanças inerentes aos conflitos políticos” que foram reaparecendo (Demenchonok, 2009, p. 20). De fato, o fenômeno social da secularização interfere nos diferentes discursos e processos políticos. De acordo com Habermas, a compreensão moderna do mundo suplantou cosmovisões míticas, religiosas e metafísicas (1988, p. 101). Com a dissolução das justificativas mítico-narrativas, o sujeito comunicativo e coautor participativo assumiu a auto-responsabilidade pela “validez das pretensões suscetíveis de crítica” (1988, p. 107). Essa mudança tem profundas implicações na ética e, em decorrência, também na educação.

Nessa perspectiva, a ética discursiva apresenta um forte teor iluminista, uma vez que o sujeito está livre de qualquer imposição alheia, externa ou apriorística e é, portanto, coautor autônomo. O pensamento pós-metafísico retoma as pretensões do Iluminismo e confere ao sujeito coautor “esclarecido” uma capacidade racional auto-suficiente para dispor de normas e princípios para a ação. Assim, a ética também passa a ser determinada por uma razão comunicativa laica.

De fato, a razão secular consegue se apropriar, através dos recursos do pensamento pós- metafísico, dos conteúdos semânticos das tradições, sem renunciar jamais a autonomia que lhe é inerente. No entanto, essa mesma razão secular pode ser deficitária e, inclusive, “perder- se” no momento de delinear metas coletivas. Em outras palavras, ela sofre o risco de ser umasimples “falácia”, pois demonstra certa impossibilidade para afiançar laços de solidariedade e motivações para a justiça, seja dentro dos Estados nacionais, nas relações interestatais ou até mesmo em questões supranacionais (Kaldor, 2005). Do mesmo modo, as religiões ocidentais também se ressentem de um déficit de adesão, o que evidencia seu caráter comunitarista e, portanto, com dificuldade de implementar um domínio mais abrangente.

Para fazer frente a esses aspectos deficitários, o apelo retoma a questão do liberalismo e trata de ressaltar sua insistência em valores, direitos e atitudes, como é o caso da liberdade, a igualdade (e/ou a diferença, como se insiste ultimamente), a solidariedade e o respeito (ou tolerância). Trata-se de uma consciência moral das “sociedades com democracia liberal”, quer dizer, pluralistas. Nesse caso, a fundamentação não pode ocorrer desde “uma ética confessional-religiosa, muito menos confessional-laicista” (Cortina, 1998, p. 115).

Como é possível perceber, uma ética confessional-religiosa assume um caráter homogeneizador, porque seus pressupostos são eminentemente apriorísticos. Do mesmo modo, a perspectiva confessional-laicalista corre o risco de assumir um radicalismo absolutizante, alto próximo ao anticlericalismo posterior à Revolução Francesa. No caso específico, pode-se citar a Noite de São Bartolomeu, “um dos episódios mais sinistros das guerras de religião que assolaram a Europa no século XVI” (Rouanet 1992, p. 150). Na verdade, o mais relevante do estado civil francês é a “clara intenção anticristã”, isto é, a lógica da “descristianização” em nome de uma moralidade cívica que aprofunda ainda mais o abismo entre o “sagrado e o profano” (Rouanet, 1996, p. 285 ss).

Diante desse malfadado risco, insistência em uma fundamentação moral pós-metafísica assegura tanto os direitos fundamentais dos sujeitos coautores como também os princípios do Estado de direito. Os objetivos salientam o significado e a abrangência do conceito de racionalidade laica e, assim, poder identificar sua relação com o ponto de vista moral como pressuposto para a educação para a justiça. No entanto, há uma correlação entre os déficits da razão prática e a neutralidade ideológica do Estado constitucional como prerrogativa para as bases normativas de uma razão pós-metafísica.

No caso da educação, a proposta de um ponto de vista moral laico proporciona a abertura ao debate sobre suas exigências seculares em uma sociedade intercultural. Nessa direção, é importante salienta que o discurso sobre a secularização sofreu modificações no decorrer dos anos 80 e 90 do século passado. No entanto, foi nos albores do século XXI que ele ganhou proporções ainda mais abrangentes. Atualmente, existe uma forte inclinação à secularização da moral, não como oposição ao religioso, mas como resposta à multiplicidade de crenças e formas de manifestar e vivenciar o sagrado. Essa moral secular defronta- se constantemente com argumentações, por exemplo, relacionadas à complementaridade entre fé e saber. Na verdade, não há como fugir da discussão a respeito da “forma como ascosmovisões, sejam metafísicas ou religiosas, são traduzidas simbolicamente por meio da abertura ao tratamento discursivo ou lingüístico” (Mendieta, 2001, p. 42).

Essa temática abre um leque significativo de apreciações, principalmente na contestação do papel e do valor da metafísica (Pinzani, 2009, p. 118). Sem entrar nessa discussão, o tema se ocupa com as considerações de Habermas a respeito do ponto de vista moral laico de caráter pós-metafísico. Habermas insiste frequentemente que a “solidariedade é o anverso da justiça” (1999, p. 42) e, por isso, não há separação entre as duas categorias. No entanto, é preciso ter salientar que a legitimidade das regulamentações legais “só podem reputar-se legítimas na medida em que elas sejam expressão de um interesse geral” (Habermas, 1988, p. 116), isto é com validez universal. Neste caso, o universalismo igualitário e o reconhecimento recíproco encontram respaldo numa “cultura política” baseada nos direitos fundamentais, porque ela é “o fundamento para una co-existência igualitária de diferentes grupos e sub-culturas, cada um deles com uma origem e uma identidade próprios” (Habermas, 2001, p. 181).

Nesse sentido, o direito politicamente estabelecido de uma comunidade particular, para ser legítimo, deve estar em consonância com um mínimo de princípios, os quais pretendem também validez geral que ultrapasse os valores de uma comunidade concreta ou uma forma de vida particular (Habermas, 1998, p. 357). Neste caso, não apenas o reconhecimento recíproco, mas também a obtenção de um acordo sobre uma base mínima supõe a possibilidade de revisão das tradições e de uma justificação racional das normas com validez universal. Para melhor entender a dimensão pragmático-comunicativa do ponto de vista moral laico, é preciso ter em vista a distinção fundamental entre religião e o fenômeno relativo ao sagrado, aspecto que será explicado na continuação.

 

3 AS METÁFORAS E NARRATIVAS DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

 

Como foi salientado, Ricardo Salas Astrain (1996) defende a tese de que as estruturas religiosas devem ser analisadas a partir da “criatividade religiosa”, prova de que a experiência religiosa aduz para o horizonte do sagrado. Nesse sentido, a religião se atém ao âmbito da institucionalização, conquanto o sagrado articula o campo de imagens e redes simbólicas às vezes nunca institucionalizadas (Salas, 1996, p. 11-12). Esse ponto de vista não coincide com Charles Taylor (2010). O estudo de Taylor permanece restrito à análise das convicções e práticas religiosas (p. 15) típicas do fideísmo cristão (p. 16) e de um sentido e sensação de plenitude específicos das figuras religiosas europeístas. Na sua longa introdução, ele insiste nos três sentidos do termo secular ou secularidade (p. 28-29), conquanto “todos os três modos de secularidade fazem referência à religião” (p. 29).

Além do mais, a análise de Taylor apresenta um caráter comunitarista de tipo hegeliano, às vezes revestido como um liberalismo fantasiado de tolerante. Como ponto de entrada, Taylor parece interessante; como proposta, as controvérsias apontam para o ponto de vista restrito a um sujeito arraigado aos contextos sociais e culturais. Esse debate é analisado por Stephen Mulhall e Adam Swift, na obra O indivíduo frente à comunidade (1996), delineando as teses entre liberais e comunitaristas. Para estes autores, Taylor não pretende rechaçar o liberalismo como tal (p. 147). No entanto, sua tese tem como pressuposto argumentos comunitaristas, uma vez que os “seres humanos são animais que se autointerpretam, ou seja, criaturas cuja identidade pessoal depende de sua orientação em vistas concepções de bem derivadas da matriz de sua comunidade linguística e de sua vinculação com tais concepções” (Mulhall e Swift, 1996, p. 148). Em segundo lugar, Taylor sustenta que os juízos e instituições morais podem ser elucidados e representados racionalmente “mediante um procedimento que recorre a marcos valorativos fundamentais e de grande alcance derivados também da comunidade” (p. 148).

Nesse sentido, é possível entender Taylor e suas teses concernentes às limitações da categoria religiosa e seu vínculo comunitarista bastante parecido ao fideísmo cristão e com a religião institucionalizada. O perigo é justamente a radicalização entre duas alternativas, vale dizer, entre o horizonte de tipo confessional-religioso e o confessional-laicalista.

Em outra direção, é significativa a leitura e interpretação de Adela Cortina. Todavia, o fenômeno religioso ocidental não se atém ao dualismo de duas tradições tipicamente ocidentais. No caso, a proposta da professora de Valência se articula em vista das duas versões que permeiam a herança ocidental: a Aliança e o Contrato (Cf. Pizzi, 2005). Para a filósofa espanhola, é imprescindível levar em conta duas dimensões distintas, ou seja, “duas dimensões irrenunciáveis” (2001, p. 11). Nesse mesmo caminho, Habermas (2001) também se atém a uma demarcação entre Israel e Atenas.

Na sua obra Aliança e Contrato, Cortina salienta os dois aspectos que não podem ser eliminados na convivência humana, ou seja, duas formas de interpretar os laços humanos, vigentes em sociedades diferenciadas. Ainda que o contrato seja questionado, ele continua sendo uma forma específica que articula os vínculos entre seres com autonomia. Todavia, para encontrar seu sentido verdadeiro, deve-se pressupor o “relato da aliança e da obrigação, nascidas do reconhecimento recíproco.” Enquanto duas esferas distintas para as decisões humanas, o contrato representa a “base da sociedade política e dá lugar aos instrumentos do Estado (governos, sistemas políticos), enquanto que a aliança é a base da sociedade civil e dá lugar às famílias, às comunidades e às associações voluntárias” (Cortina, 2001, p. 27). Esta delimitação contribui com, pelo menos, três aspectos significativos para o diálogo intercultural.

Em primeiro lugar, essas duas categorias conceituais representam “duas histórias sobre os laços que unem os seres humanos e podem evitar a violência e a guerra.” Neste sentido, continua Cortina, “não se trata de negar uma delas e permanecer somente com uma única narrativa, porque as duas devem ser contadas” (Cortina, 2001, p. 20). Recusar-se a reconhecer tais relatos sobre a vida e a história presumem um prejuízo sem precedentes, ou seja, a recusa de laços que unem os seres humanos e que devem alimentar o diálogo entre aqueles que se reconhecem nesses relatos.

Em segundo lugar, uma análise crítica dos últimos séculos mostra que as “duas histórias” são muito fortes. Isso sempre quando a questão é a modernidade ocidental. O contrato surge com o Estado Moderno, no século XVI, com Maquiavel, Hobbes e muitos outros. Na verdade, o contrato nasce porque a religião vai como que deixando lugar às instituições cívicas. Não é verdade que ela desaparece, porque ela deixa de ter um lugar privilegiado, ou seja, pouco a pouco, o discurso do contrato vai ampliando seu espaço até assumir o protagonismo não apenas no campo político, mas também na vida social. A aliança tem um passado muito mais remoto. Nesse tempo, tanto a parábola da aliança e o relato do contrato foram utilizadas tanto para interpretar uma determinada situação – no caso, o Estado, o funcionamento do mercado, as instituições sociais – ou, então, receberam críticas e considerações dos mais variados tipos.

O terceiro aspecto – relacionado ao contrato e a aliança, e de sua relação com a questão da interculturalidade e a inter-religiosidade – diz respeito à questão de que qualquer análise do presente deve levar em conta as duas dimensões irrenunciáveis: a aliança e o contrato, porque os dois relatos seguem vigentes. Vale dizer, o relato da aliança não desapareceu, nem pode ser silenciado. No entanto, é possível reconhecer que os mecanismos políticos e econômicos parecem assumir a coordenação da ação e orientar as decisões de nossas vidas.

É significativa a plausibilidade das considerações de Cortina. Todavia, o desenho permanece novamente restrito ao horizonte do pensamento ocidental, para não dizer euro- ocidental. Mais uma vez, vale recordar que, por exemplo, a presença de sujeitos coautores dos povos originários das Américas permanece esquecida. Nas palavras de Eduardo Grüner, esses outros permanecem alheios, porque o movimento eurocêntrico, embora admita a diversidade, articula de tal modo o universalismo como se “nada tivéssemos que ver” com as particularidades (2012, p. 24).

Entre outras coisas, esses aspectos, embora com suas limitações, pressupõem uma diferenciação entre multiculturalismo e interculturalidade. A interculturalidade caminha no sentido oposto, pois, além das diferenças, procura salientar os aspectos que possibilitam o diálogo e a interação mútua entre a diversidade de culturas. Não se trata, portanto, de uma mera coexistência e da descrição de suas características específicas das particularidades, masde redimensionar o diálogo no sentido de contribuir para que haja, na expressão de Adela Cortina, mais mundos para todos.

Na verdade, o tema proposto – esfera pública e laicização – deve responder à questão da interculturalidade. Deste modo, a questão da diversidade cultural ganha um aliado muito importante. Não se trata, pois, de identificar as diferenças ou similitudes, ou seja, a um projeto transdisciplinar ou interdisciplinar, mas de redimensionar e redefinir as fronteiras entre aquilo que, por um lado, é inerente a cada cultura em particular – isto é, suas características peculiares – e, por outro, buscar um eixo comum no sentido de alimentar práticas solidárias e as exigências de justiça.

Nesse sentido, o diálogo intercultural é imprescindível, por dois motivos. Em primeiro lugar, porque através da identificação, da estima e do apreço, reconhece e respeita as culturas na sua riqueza. Ao mesmo tempo – este é o segundo aspecto – porque esse fato exige um diálogo a partir do qual os atores sociais podem discernir que valores e costumes merecem ser reforçados – isto é, cultivados – e quais se deve esquecer (ou deixar de lado).

Da mesma forma que podemos, pois, falar de interculturalidade, ou de diálogo intercultural, é possível argumentar a favor de um diálogo inter-religioso. Ou seja, tanto a questão da interculturalidade como a do aspecto inter-religioso presume um diálogo cuja característica é a simetria e, portanto, sem dogmatismo ou qualquer apriorismo sentencioso. Isso não representa uma mera tolerância, mas relações de convivência e, com isso, uma universalidade solidária e comprometida com a justiça. Em resumo, a filosofia intercultural – e não a mera certificação do multiculturalismo – representa o esforço no sentido de assegurar as contribuições das culturas e/ou religiões com o melhor e o mais saudável que elas podem oferecer. O multiculturalismo trata a diversidade como se fossem coisas estáticas, como se cada cultura ou religião fosse homogênea, fechada nela mesma, coibindo, portanto, a possibilidade de um aprender do outro, podendo, em alguns casos, favorecer atos de racismo cultural ou religioso, a intolerância, a segregação ou outras formas de preconceitos.

 

4 A EDUCAÇÃO PARA A JUSTIÇA EM UMA SOCIEDADE LAICA

 

Como já se pode constatar, o fenômeno da laicização da sociedade não se limita às justificações de ordem mítico-religiosas, pois suas exigências são de ordem prática. Nesse sentido, a laicização não é um fato, um acontecimento que possa ser considerado bom ou mau, mas um fenômeno que pressupõe uma relação entre diferentes espaços de interação, ou seja, desde uma relação dialógica entre sujeitos coautores.

Então, o fenômeno da laicização, desde uma moral secular, deve salientar o “como” podemos fundamentar o ponto de vista moral e “como”, de fato, os sujeitos coautores podemdelinear uma sociedade secular. Nesse sentido, qualquer estudo a respeito do âmbito religioso não deve apenas averiguar o que se entende por laico ou secular, mas estudar também o quem e como são configuradas as políticas de reconhecimento e verificar se tais políticas conseguem superar as “debilidades motivacionais” e proporcionar uma educação comprometida com a justiça e a solidariedade.

Além do mais, o ponto de vista moral secular deve ter em vista as antinomias da razão prática. Por isso, as considerações ultrapassam os limites da religião institucionalizada para conhecer também “as manifestações religiosas populares e os processos culturais que lhes são subjacentes” (Salas, 1996, p. 7). Daí, então, é possível entender que, para Habermas, a solidariedade é considerada como um conceito limite. Ele supõe uma abstração em relações às questões do bem viver, até reduzi-la a questões de justiça (1989, p. 432). Essa solidariedade intercultural requer, pois, a justiça em relação ao tratamento das diferentes manifestações do sagrado, não se limitando, portanto, as religiões tradicionais e reconhecidas como tais.

Para Habermas, a modernidade produziu uma racionalidade que se reabastece em suas próprias fontes, mas apresenta, entre outras coisas, “debilidades motivacionais de uma moral racional” que apenas poder ser asseguradas nos “limites do Estado constitucional democrático através do direito positivo” (2009, p. 221). A suspeita gira em torno à progressiva perda de solidariedade, ou seja, às exigências morais não impedem a insolidariedade, isto é, do estiolamento da justiça entre os diferentes setores da sociedade. A injustiça vai aumentando de modo proporcional ao crescimento dos “imperativos do mercado na forma de custos- benefício-cálculos ou da competência de serviços em âmbitos da vida cada vez mais variados, os quais obrigam aos indivíduos, na sua relação com os demais, a uma atitude objetivista” (Habermas, 2009, p. 218). Seguidor da tradição crítica, Habermas reitera o processo de secularização das sociedades modernas, às vezes voltado apenas à instrumentalização das pessoas e das relações sociais, mesmo que essas pessoas, no fundo, conservem a consciência moral e acreditem em uma justiça social e na solidariedade humana.

Os ideais da Ilustração salientam a igualdade jurídica, assim como também igualdade social e econômica. Esse delineamento nos leva a insistir que a justiça deixa de ser uma questão apenas vinculada ao aspecto semântico (isto é, à sua definibilidade), mas ao aspecto pragmático. Essa pragmática pressupõe uma “neutralidade do procedimento” (Habermas, 1998, p. 386), porque ninguém pode garantir, por si só, sua autonomia moral. Ela depende da interação comunicativa, ou seja, dos esforços cooperativos que ninguém pode ser obrigado através das normas jurídicas, mas que todos são conclamados a seguir (ou obedecer). Nesse sentido, a pergunta “a quem” são os sujeitos da justiça nos leva às vítimas da injustiça. A preocupação em saber “quem” são os sujeitos, e os próprios concernidos pela justiça, remete inclusive às futuras gerações.

Esse é outro aspecto importante para configurar o espaço público no horizonte de uma moral secular. Na verdade, a filosofia sofreu, no século XX, distintas transformações. Os diferentes giros introduziram mudanças significativas para a reflexão filosófica. Isso indica que a orientação do agir não se resume à resolução de conflitos, mas a uma pragmática vinculada a políticas deliberativas. Essas políticas não dependem de interesses particulares ou, então, de pressupostos metafísicos. Essa mudança indica que as normas válidas para todos não é fruto da reflexão individual e, por isso, a ética não se reduz o âmbito privado ou ao horizonte familiar, muito menos ao fato de garantir ao sujeito participativo o que lhe é devido, mas em um dever moral, pois se trata de um compromisso entre todos.

Nesse sentido, racionalidade ético-comunicativa, além de garantir vínculos relevantes entre os sujeitos, está em supor laços de solidariedade e compromissos de justiça. Este é, sem dúvidas, o grande desafio de uma perspectiva universalista disposta a não perder de vista o bom e o justificável de cada cultura, nem desprezando os que clamam por justiça e solidariedade. Nesse sentido, a convivência e a reciprocidade não representam um pacto entre interesses egoístas, mas do reconhecimento mútuo entre seres que reconhecem sua própria identidade através da relação com os demais. Assim, a solidariedade deve ser entendida como condição de justiça. Para Habermas, o conceito de razão deve articular uma intersubjetividade comunicativa promovedora da justiça e de laços de solidariedade. Por isso, o ponto de vista moral laico seja a forma de resgatar a outra cara da razão (Muguerza, 1990, p. 628); ou, então, a outra cara da justiça. O “como” presume, portanto, uma forma de distribuição da riqueza ou dos recursos escassos. Por isso, o ponto chave está em insistir também por uma justiça econômica.

O debate retoma as reflexões indicadas até o momento, e aponta uma alternativa dentro do próprio liberalismo. Mesmo assim, a justiça não se reduz à benevolência, empatia, intuição ou ao cuidado, mas à solidariedade. No fundo, justiça e solidariedade não são “princípios morais diferentes, mas dois aspectos de um mesmo princípio” (Cohen e Arato, 2000, p. 425). Dessa forma, a justiça ultrapassa os limites semânticos para ganhar o espaço de uma pragmático-fenomenológica, isto é, capaz de ressaltar descritivamente a experiência vivida pelos diferentes interlocutores, sem, por isso, abandonar ou rechaçar os princípios, normas e regras de caráter universal.

Em razão disso, a compreensão das manifestações relativas ao sagrado não podem ser tratas como folclóricos ou desonrantes, porque fazem parte da linguagem humana. Os processos do simbolismo retratam a experiência humana do sagrado nos processos de uma “textura polissêmica, isto é, os símbolos do círculo, da vida, do contágio, do sacerdote y da pureza, para citar alguns, assumem uma variedade de significações que não se anulam umas nas outras, mas que se potenciam e se enriquecem” (Salas, 1996, p. 14).

Nesse sentido, seria ingênuo explicar o fenômeno do sagrado a partir das religiões institucionalizadas. Ao mesmo tempo, não há como compreender os processos simbólicos unicamente desde as religiões tradicionais. Por isso, o ponto de vista moral laico não recusa o sagrado como tal, mas, ao mesmo tempo, essa diversidade e pluralidade de “subjetividades religiosas” (Salas, 1996, p. 14) não podem condicionar aprioristicamente qualquer norma ou princípio que pretenda validade a todos os coautores participantes. O ponto de vista moral volta-se, portanto, aos coautores participantes como um todo, independente de sua crença ou adesão a uma religião qualquer.

 

5 O PONTO DE VISTA MORAL SECULAR COMO GARANTIDOR DE PRINCÍPIOS

 

Para concluir, dois pontos, porque em parte o jogo político visa manter o status quo de uma sociedade estruturalmente organizada, instrumentalizando não apenas a relação entre os sujeitos, mas colocando também em risco a idéia de uma sociedade global e intercultural. Até mesmo os “governos influentes – que são sempre os atores políticos mais importantes deste cenário – prosseguem, sem titubear, com seus jogos de poder social-darwinistas” (Habermas, 2009, p. 219). Em outras palavras, para Habermas, “não falta apenas vontade política para desejar instituições e processos de ordem mundial reformada, mas inclusive a perspectiva de uma política interna global satisfatória” (2009, p. 219).

Nesse sentido, o primeiro ponto salienta o nível pós-convencional dos estágios morais, pressupondo como válidas as normas que todos possam querer (Habermas, 1999). No âmbito das condições concretas, a racionalidade comunicativa conduz a inserção do sujeito no mundo (nos diferentes contextos do mundo da vida), de modo a unir e articular fala e ação. Esse é o horizonte no qual Habermas admite um espaço para o bom na teoria do justo, não como direito positivo, mas como “liberdades de indivíduos inalienáveis que se autodeterminam” (1999, p. 70). A pretensão universal de qualquer pretensão de validade deve assegurar, portanto, os direitos e liberdades de cada sujeito de forma a garantir também o “bem-estar do próximo e da comunidade a que (os sujeitos) pertencem” (Habermas, 1999, p. 71).

Em segundo lugar, a exigência de ampliar as liberdades individuais e garantir a justiça social retrai o sujeito e limita o agir a interesses individuais. Essa falta de motivações para com o coletivo se traduz como “debilidades motivacionais” geram uma desconfiança na própria razão iluminista secular, consequência de uma possível antinomia interna. Se, por um lado, ela assegura a capacidade de juízo contra a vulneração das prerrogativas e deveres individuais, por outro, ela se apresenta como deficitária no momento de motivar os sujeitos para agirem solidariamente. Este seria, portanto, o foco de estudo a ser aprofundado, na tentativa de evidenciar se tal déficit representa uma dicotomia interna da própria razão laicizada ou, então, se suas exigências normativas ainda não foram totalmente trazidas à tona, isto é, transformados em força motivadora para o compromisso solidário em nível pós-convencional. Em certo sentido, o fato de a solidariedade ir se tornando cada vez mais escassa, parece indicar que a ética normativa, neutra e voltada a uma sociedade completamente laicizada, sente os efeitos de sua própria presumibilidade.

Daí, então, a importância de uma perspectiva ética para criar convivência cidadã, pois ela trata do lugar habitual, ou seja, do lugar onde vivemos. Essa definição realça a necessidade de ir criando hábitos e costumes que orientam o agir, tanto em relação ao âmbito político, quando ao econômico e social. O estudo dessa dinâmica e de seus impactos na vida prática, principalmente na educação para a justiça é, sem dúvida, um forte argumento para salientar a relevância desse projeto.

 

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METAFÍSICA PÓS-CONVENCIONAL E O IMPERIALISMO DA VIDA COTIDIANA[10]

 

Jovino Pizzi[11]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

A teoria do agir comunicativo de Habermas resgata um déficit filosófico indis- cutível. A mudança de paradigma evidenciou não apenas as limitações da filosofia da consciência, mas realçou – e de forma irrefutável – o “conceito fenomenológico de mundo da vida” (Habermas, 2012 I, p. 4). Essa questão é tema recorrente, com o que, por um lado, é possível insistir nas formas de colonização das esferas da vida cotidiana – isto é, os bloqueios impostos pelo sistema – e, por outro, reaver e com- preender o sentido do agir comunicativo e seus diferentes plexos “de racionalidade e respectivos aspectos de validade” (Habermas, 2012 I, p. 4). Nesse sentido, creio que é preciso estudar o significado não de uma metafísica dos costumes, como previa Kant, mas de uma metafísica pós-convencional.

Em certo sentido, não dá para negar que os “imperativos do mundo da vida” (Habermas, 2012 I, p. 5) apresentam um alcance limitado, isto é, se ressentem de uma perspectiva universalista. Todavia, esses imperativos resguardam um sentido que não pode ser simplesmente rechaçado, pois suas pretensões de validade per- fazem um núcleo de sustentação capaz de justificar as decisões dos sujeitos coau- tores. Em outras palavras, a teoria do agir comunicativo representa, para a filosofia e para as ciências em geral, a certificação de que as questões da vida cotidiana têm um significado imprescindível, às vezes, com sérias antipatias à lógica do direito ou às formulações sistêmicas do poder e do dinheiro.

Com o fim de ressaltar o significado das questões relacionadas à vida cotidiana (every day life), o primeiro item deste texto mostra as duas leituras que a filosofia expõe diante do tema. Em segundo lugar...

 

 

 

1 O TEMA DA VIDA COTIDIANA E A MODERNIDADE FRENTE AOS ATAQUES DE LIQUEFAÇÃO CONTROVÉRSIA INTERPRETATIVA

 

A filosofia contemporânea sofreu e se articula em vistas às distintas transforma- ções. Em certa medida, o movimento indica uma reação frente a determinados pressu- postos da modernidade. Por isso, a maneira como esse termo vem sendo utilizado se relaciona a uma polissemia que, às vezes, é enganadora. Nesse sentido, a substantivação modernidade agrega diferentes significados, pois são muitos pensadores, concepções e interesses que estão em jogo. Às vezes, as divergências são profundas a ponto de ques- tionar se há, ou não, algo em comum entre os autores e pontos de vista. Quais são os argumentos da modernidade? Existe apenas uma modernidade? Trata-se, pois, de uma homogeneidade linear ou, então, de uma simples etapa no desenvolvimento do pensa- mento ocidental? Enfim, existe uma polissemia em torno ao próprio termo?

No melhor dos casos, pode-se advogar por diferentes acepções de modernida- des. Ao se falar de modernidade, é preciso considerar, de antemão, dois aspectos fundamentais. Em um sentido, a própria noção de modernidade enquanto um fe- nômeno uniforme, homogêneo e com sucessivas etapas até conseguir um estágio de maioridade inquestionável; e, por outro, a ideia de que seus pressupostos esmo- recem e, portanto, se liquefazem a ponto de perderem sua consistência, energia e sua lucidez. Vejamos cada um desses pontos com mais detalhe.

Na maioria dos casos, as referências filosóficas e das ciências em geral a respeito da modernidade evidenciam uma interpretação homogênea, homogeneizadora e, ainda, vinculada a um processo linear. Ela presume a sucessão de etapas em vistas a um amadurecimento necessário e, portanto, esperançoso. O adjetivo e o substan- tivo moderno refletem tendências, metodologias e estilos de vida mais avançados em relação à Antiguidade e ao período medieval e, por isso, essa etapa cumpriu os estágios de amadurecimento típico do esclarecimento. Daí, a substituição de hábitos, padrões e procedimentos considerados infantis por outros, sinônimos de avanço e perfeição em todos os aspectos: político, modos de produção e consumo, eficiência, tecnologia, comunicação etc. Enquanto sinonímia de novo, o lexema apresenta como antonímia a noção de avelhantado, infantilismo e retrógrado.

O verbo modernizar consolida sua conotação no século XIX, cuja acepção evidencia três feições: a) tornar-se moderno, no sentido de acompanhar a evolução e as ten- dências do mundo; b) efetuar mudanças e/ou substituir sistemas, métodos, equipamen- tos etc. antigos por outros modernos; c) dar ou adquirir um aspecto concernente ao mundo atual. O sentido literal evidencia o sentido literal, conquanto a substantivação lexicográfica ressalta a categoria modernidade, cujo significado é muito mais complexo e abrangedor. Por isso, além do sentido literal, o adjetivo moderno só aparece no latim tardio (modernus, a, um) e se traduz por moderado, recente, novo, contemporâneo.

Por todas as vias, o exame da locução modernidade se depara com a inter- pretação clássica da secularização, sinônimo de laicização e concernente ao não espiritual. O substantivo não tem nada a ver com o escatológico ou apocalíptico. A noção do “plenamente capaz e responsável” de sujeito implica na necessidade de eliminar todas as interferências externas. Na verdade, trata-se da capacidade de o sujeito governar-se a si mesmo desde suas próprias capacidades, de modo que ele se apresenta com o devido discernimento e orientação para fundamentar o agir.

Nesse sentido, a noção laical – secular, portanto – de sujeito esclarecido e com aptidão para conduzir seu destino evidencia duas consequências um tanto problemáticas. A primeira delas refere-se à necessidade de revisar os fundamentos externos, isto é, alheios ao próprio sujeito. A tradição ocidental utilizemprega duas expressões para dar a conhecer salientar a os classificação diferentes esferas dos saberes: a episteme e a doxa. Essa divisão pode ser examinada em vistas a uma idealidade metafísica, isto é, enquanto plenitude frente a um mundo de circuns- tancialidades contingenciais. Essa dupla noção pode também ser percebida como dois patamares que separam o nível da fundamentação de tipo transcendente e as cotidianidades do mundo habitual e do horizonte terrenal e mundano.

Atualmente com frequência, verifica-se que persiste o ponto de vista extrema- mente deficitário, nocivo ou malvisto em relação às diferentes dimensões da vida cotidiana e, inclusive, na própria relação entre filosofia e as circunstancialidades do mundo da vida. Essa dicotomia se acentua no pensamento moderno. Então, a ciência, acreditando-se já amadurecida, procura consolidar “um corpo de conheci- mentos bastante sólido e dispondo de seus próprios padrões de racionalidade [...]” a ponto de acusar “a metafísica de inconsistência, de esterilidade, de pseudoconhe- cimento, cujo método ou modo de instalar a racionalidade não satisfaz as novas normas do saber” (Domingues, 1991, p. 173).

Essa ambivalência reforça as suspeitas e consagra a desconfiança desmedi- da em relação às experiências vivenciais e ao saber relativo ao mundo da vida e das suas contingencialidades. Em outras palavras, qualquer revisão bibliográfica, por mais simples que seja, salienta que as evidências da vida cotidiana e as interações dos sujeitos com o oikos-cosmos apresentam conotações carac- terizadas pela ambivalência, o menosprezo  e  com  fortes  indícios  enigmáticos; em uma palavra: indecifráveis. Em Platão, por exemplo, a ideia de um mundo efêmero e visível recomenda o descrédito e o menosprezo ao horizonte ligado ao efêmero. A realidade vinculada à doxa não passa de um horizonte inapro- priado, isto é, um pseudo-horizonte e, portanto, nada confiável e esvaziado de qualquer sentido. Por isso, ater-se à realidade mundana, segundo o filósofo grego, testifica uma vida  inautêntica  e, em  vista  disso, tias  pretensões  podem ser simplesmente desqualificadas.

Para Fornet-Betancourt, esse descrédito pode ser compreendido através do mito da caverna e, mais recentemente, em Heidegger, “com sua análise da cotidianidade como lugar de vida inautêntica” (2010, p. 39). Dessa maneira, não há como superar o caráter inapropriado do mundo da vida, pois se trata do “lugar de alienação, falta de verdade, de sentido e de autenticidade” e, portanto, como lugar impróprio para alcançar a “verdadeira” vida (Fornet-Betancourt, 2010, p. 41). Essa concepção alimenta uma “forte desvalorização da existência carnal e terrestre, rebaixada ao escalão de aparência ilusória da qual o homem deve buscar fugir se aspira a viver em conformidade com os impulsos superiores da alma” (Schimitt, 2006, I, p. 254). Assim, as circunstanciali- dades do mundo da vida são empecilhos relacionados ao processo de racionalização sistêmica e, pois isso, elas impedem a possível emancipação dos sujeitos.

Nesse sentido, as figuras ou representações como as do exílio ou do sofrimen- to, por exemplo, acenam para o aspecto de fragilidade e fugacidade, em sentido oposto ao da plenitude, para o “qual nos orientamos moral ou espiritualmente” (Taylor, 2010, p. 18). Nessa contraposição, há uma espécie de dilema entre o agir voltado ao modo “habitual” da vida e a projeção de um ideal transcendente e de “vida plena”. A vida plena – e, portanto, ligada a noção de eternidade – se traduz em uma linguagem ideal e reflete uma forma de vida imbricada à plenitude, à perfeição e à harmonia. A perspectiva da plenitude é o oposto da realidade cir- cunstancial e, em decorrência, modeladora e protótipo da vida terrenal. Esse as- pecto eidético exprime, pois, uma “intemporalidade” (Merleau-Ponty, 1984, p. 30). O aspecto central dessa perspectiva está na necessidade de “renunciar esse lugar” comum, esse horizonte de sentido – embora seu caráter relativamente enigmático das situações cotidianas. Enfim, a realidade cotidiana se relaciona ao perecível e, por isso, não serve como base para qualquer tentativa de fundamentação racional.

O segundo aspecto mencionado é decorrência dessa compreensão de mundo. Trata-se da propensão de buscar os fundamentos das validades em bases alheias ao mundo da vida, isto é, fora dos contextos e horizontes mundano-vivencias. O protótipo está, pois, ausente dao vida e do mundo cotidianos, de forma a negar qualquer possibilidade de realização ou de salvação. O “lugar da plenitude” é com- preendido “como fora ou além da vida humana” (Taylor, 2010, p. 29). Em Platão, por exemplo, o sentido das vivências vincula-se à preocupação em afiançar um entendimento e fundamentação que “só podem ser compreendidas por meio das ideias” (Taylor, 2010, p. 29). No caso, o verdadeiro e a plenitude só podem ser re- presentados desde o horizonte transcendente, pois a justificação pertence a outro nível, separado da realidade mundana e terráquea.

No caso, o ideal de vida se vincula ao forâneo, ou seja, a dupla representação. Nesse plano, vigora um tipo eidolon (εἴδωλον, ghost), isto é, uma disposição ideal que se sobrepõe ao sensível e ao cotidiano. Esse caráter forâneo reflete um projeto hegemônico e unilateral, anulando, portanto, a reflexividade crítica, pois a unidade do cosmos e o caráter transcendente impõe sua harmonia. Nesse sentido, o impera- tivo da submissão conduz à uniformização de um estilo de vida conforme o modelo desenhado desde fora. No caso, as historias particulares e circunstanciais, o passa- do e o presente do peculiar e do singular sofrem a condenação de um horizonte vinculado ao “desprezo e à difamação” (Fornet-Betancourt, 2010, p. 40).

Em relação a isso, é possível compreender a trajetória da tradição ocidental, e cristã e laica, que soube criar uma imagem extremamente poderosa, vigente até os dias de hoje, tanto em relação à fundamentação quanto na própria noção de mun- danidade. A projeção de vida plena é um dogma irrenunciável. Em configurações diferentes, esse ideal também se projeta na ciência como tal. De um lado, a projeção de um mundo feliz para além desta vida e, de outro, a idealização de vida enquanto possibilidade de o ser humano poder criar vida. No fundo, são duas tradições que se juntaram para formar uma ideologia que, com a influência de Platão e do neoplato- nismo, foi decisiva para a consolidação deste modelo antropocentrado de compre- ensão de mundo. É possível perceber que Descartes contribui nessa dicotomização, uma vez que a res extensa e res cogitas mantêm a dicotomia entre a idealização e a realidade circunstancial. Nessa linha, a morada terrenal não passa de um lugar de cativeiro, de encarceramento e de precariedade; um período de expiação, de sacrifí- cio e de resignação em vistas a outro espaço. Na percepção de Platão, os humanos terráqueos são prisioneiros e permanecem na insensatez de uma vida que lhes im- possibilita, inclusive, distinguir os objetos reais (Platão, 1972, p. 778).

 

2 O AGIR COMUNICATIVO E SUA NOÇÃO DE COTIDIANIDADE: O ANTROPOCENTRISMO MODERNO

 

Por mais que se possa discutir, o mundo da vida (Lebenswelt) é uma cate- goria chave na filosofia de Habermas. Esse O reconhecimento não significa que a filosofia abandonou ou se afastou da questão da  fundamentação. Eu entendo que exatamente essa noção que aufere um protagonismo à própria filosofia.

Prova disso é sua popularização crescente, inclusive no Brasil.das multíplices modernidades dá outro caráter ao tema da laicização e a tese de uma filosofia mundana e profana. Essa Há, pois, uma espécie de ateísmo, rompendo com um modelo apriorístico – seja teogônico, apocalíptico ou de qualquer outra classe – para, então, procurar compreender as circunstancialidades independentemente de apriorismos ou pré-determinações alheias à mundanidade ou, então, livres dos academicismos e lógicas puramente abstratas e sem conexão com a vida prática.

É oportuno salientar o fenômeno da secularização como uma forma de ateísmo que não rechaça o âmbito religioso, nem as religiões em si. No entanto, as conse- quências do antropocentrismo sobre o pensamento moderno foi crucial. Por certo, a sobrevalorização do humano não é tema exclusivo da modernidade. Por isso, não há como negligenciar o completo abandono do aspecto ecológico. Essa discussão está relacionada com a concepção iluminista de sujeito; antropocentrada, portanto. Por um lado, essa moral iluminista e laica é pertinaz na sensibilização dos sujeitos diante das injustiças, mas, por outro, não impulsiona o agir solidário, e sequer se preocupa com a ecologia. Em outras palavras, ela é exitosa em comover os sujeitos diante da “injustiça social”, a marginalização de grupos, a perda da consciência de classe social de muitas categorias e, inclusive, avivar a sensibilidade em relação à extrema pobreza. No entanto, essa propensão  ou  sensibilidade  se  ressente  de um déficit motivador e, em grande parte, não consegue fazer com que os sujeitos assumam a responsabilidade pelas ações coletivas e na luta contras as injustiças.

Nesse sentido, vale insistir no fato de que a compreensão moderna do mundo suplantou cosmovisões míticas, religiosas e metafísicas (Habermas, 1988, p. 101). Com a “dissolução” das justificativas mítica-narrativas, o sujeito assumiu a total responsabilidade pela “validez das pretensões suscetíveis de crítica” (1988, p. 107). O nível pós-convencional dos estágios morais pressupõe como válidas normas que todos possam querer (Habermas, 1999). No âmbito das condições concretas, a racionalidade comunicativa conduz a inserção do sujeito no mundo (nos diferen- tes contextos do mundo da vida), de modo a unir e articular fala e ação. Esse é o horizonte no qual Habermas admite um espaço para o bom na teoria do justo, não enquanto submetida à lógica do direito positivo, mas concernente às “liberdades de sujeitos inalienáveis que se auto determinam “(1999, p. 70). As antinomias da racio- nalidade ilustrada e da moral laica revelam uma progressiva perda de solidariedade entre as pessoas e grupos, principalmente diante de situações de injustiça. Como já foi tema em outros momentos, em Habermas, a solidariedade é considerada como um conceito limite. Ele supõe uma abstração em relações às questões do bem viver, e conseguir reduzir as questões normativas a questões de justiça (1989, p. 432). No entanto, ao definir a justiça como a outra face da solidariedade, Habermas parece dirimir a justiça dos âmbitos da vida prática, isto é, ao horizonte do mundo da vida cotidiano. A garantia das liberdades individuais e a busca por justiça retrai o sujeito e limita o agir ao âmbito antropocêntrico, desconsiderando o ecossistema como tal. Além das “debilidades motivacionais”, essa perspectiva antropocentrada acaba gerando uma desconfiança na própria ética, consequência dessa antinomia interna. Se, por um lado, ela assegura a autonomia do sujeito diante das prerrogativas e dos deveres individuais, por outro, evidencia-se um déficit diante das exigências normativas frente ao meio ambiente e, inclusive, em relação à economia. O fato de a solidariedade ir se tornando cada vez mais escassa, parece indicar que a ética normativa, neutra e voltada a uma sociedade completamente laicizada, sente os efeitos de sua própria presunção.

 

3 O ABRASILEIRAMENTO DA MODERNIDADE OCIDENTAL

 

Como afirma Demenchonok, modernidade e o próprio a própria caracte- rização do Ocidente parece exibir mais de um protótipo, ou seja, o projeto da modernidade apresenta diferente nuances. Por isso, as críticas à  modernidade são, muitas vezes, ineficientes, porque não especificam  qual  das  modernidades está em questão. Além do mais, a substantivação necessita também de uma con- textualização, sem o que se corre o risco de esvaziar a própria análise crítica. Nesse sentido, gostaria de propor um quadro típico do contexto brasileiro com vistas a introduzir uma caracterização peculiar do estilo cultural que, às vezes, identifica o jeito brasileiro. Nesse sentido, quero apropriar-me do vocábulo de Ulrich Beck que, em seu livro Un nuevo mundo feliz (publicado na Alemanha em  1999, sem  tradução  ao  português), utiliza  a  expressão “o  abrasileiramento do Ocidente”. Beck trata do panorama relacionado à passagem da sociedade do trabalho para a sociedade do saber em escala mundial (2000, p. 9). As políticas liberalizantes do mercado afetam não apenas o âmbito econômico, mas o polí- tico, social e cultural. Não se trata, pois, de um problema regional, mas de um assunto que interfere na própria  noção  de  Ocidente. Para o sociólogo alemão, a “consequência involuntária da utopia neoliberal do livre mercado é o abrasi- leiramento do Ocidente” (Beck, 2000, p. 9).

A análise de Ulrich Beck relaciona a primeira modernidade com a ambição do “pleno emprego”, um dos bastiões defendido com unhas e dentes pela sociedade do trabalho. A esse ideal se juntava o Estado nacional e assistencial, o pacto social e o amordaçamento na exploração sem limites da natureza. No entanto, a “segunda modernidade” já não se caracteriza através da relação direta entre trabalho e emprego, mas pela crise ecológica, a involução do trabalho remunerado, a indivi- dualização, a globalização e a revolução sexual (Beck, 2000, p. 25). Para o autor, o próprio capitalismo foi oportunizando outras atividades, consideradas ocupações relacionadas a atividades produtivas e tarefas criativas. A diversidade de afazeres vai do rol familiar ao campo da prestação de serviços em organizações sem fins lucrativos e/ou com o ecologicamente limpo (Beck, 2000, p. 18). Na verdade, o ethos do trabalho (p. 23) perfaz o leque de atividades que rompe com a estabilidade da primeira modernidade para dar espaço ao provisional, temporário, ao migratório e sem lugar determinado. Essa mudança dá origem à perda de confiança e de auto- nomia da maioria das instituições. Enfim, a passagem da primeira para a segunda modernidade desmantelou pressupostos básicos e os fundamentos da modernida- de tradicional e, inclusive, fez desaparecer as pretensões de presumido monopólio dos países europeus ocidentais (Beck, 2000, p. 31).

Sem adentrar muito mais na discussão, eu gostaria de fazer uso da expressão para mostrar uma tendência muito forte nos dias atuais e destacar, de modo espe cial, a forma como ela se apresenta no Brasil. Trata-se, pois, de realçar uma tradi- ção político-cultura e econômica que perfaz o ethos de nossa gente e encontra-se, por assim dizer, instalada no ideário de um estilo de vida profícuo e sonoramente individualista. No sentido negativo, o vocábulo mais adequado seria brasileirice ou brasileirismo. Para explicar o significado dessa tendência, vou deixar de lado Ulrich Beck e utilizar a denominação para redesenhar o quadro filosófico brasileiro atual. Como já é conhecido, a ética habermasiana situa-se no  contexto  pós-metafísico e, por isso, se insere no horizonte de uma sociedade com sinais profundos de secularização. A razão secular consegue se apropriar, através dos recursos do pensamento pós-metafísico, dos conteúdos semânticos das tradições, sem renun- ciar jamais a autonomia que lhe é inerente. Esse é o sentido de uma metafísica pós-convencional, ou seja, de uma fundamentação capaz de garantir às circuns- tancialidades da vida cotidiana enquanto horizonte de interação e lugar privilegiado para o agir.

A noção de agir comunicativo tem, entre outras, um vínculo com a fenomeno- logia de Husserl (Pizzi, 2010, p. 130-134). Nesse sentido, vale a pena insistir que a compreensão das manifestações simbólicas e as vivências pressupõe um mundo com um plexo de sentido comum compartilhado entre os sujeitos coautores. Nes- te sentido, a contribuição do Lebenswelt à teoria do agir comunicativo assegura que as normas admitidas consensualmente e a autonomia dos sujeitos podem ser aplicados em uma comunidade de sujeitos emancipados. A perspectiva do sujeito participante oferece a possibilidade de uma representação linguística do mundo, sem a qual não poderíamos falar de pretensões de validez suscetíveis de crítica. Por isso, o fato de permanecer a tergo não significa que as vivências sejam secundárias ou se diluam em um universalismo abstrato, formal e idealizado.

Além disso, o mundo da vida é horizonte, com o qual o sujeito coautor se articula e articula seus interesses. Na verdade, trata-se de desmistificar a ideia da imagem enquanto mera representação dos fenômenos. A mera representação reforça as suspeitas e consagra a desconfiança frente à simples representação dos fenômenos. Na verdade, a representação está vinculada ao uma idealização que, às vezes, desqualifica as evidências da vida cotidiana. Essa ambivalência apresenta conotações que, no processo compreensivo do fenômeno, provoca o menosprezo e acaba gerando indícios enigmáticos a respeito da contextualidade vivencial das representações. Por um lado, há a referência idealizada do próprio fenômeno e, por outro, uma desconfiança desmedida. Nesse caso, a experiência vivencial cotidiana não passa de representações indecifráveis. Em Platão, por exemplo, a ideia de um mundo efêmero e visível indica o descrédito e o menosprezo ao mundano, isto é, ao horizonte ligado às circunstancialidades vivenciais. A realidade vincula- da à doxa, para utilizar a expressão mais pertinente, não passa de um horizonte inapropriado, isto é, um pseudo-horizonte e, portanto, completamente deslocado e esvaziado de qualquer sentido. Por isso, os que se detêm à realidade mundana vivem, segundo o filósofo grego, uma vida inautêntica e, em razão disso, suas pretensões podem ser simplesmente desqualificadas.

De acordo com Fornet-Betancourt, esse descrédito vai de “Platão, com o mito da caverna, até Heidegger com sua análise da cotidianidade como lugar de vida inautêntica” (2010, p. 39). Em vista disso, não há como superar o caráter alienador do mundo da vida, pois se trata do “lugar de alienação, falta de verdade, de sentido e de autenticidade” e, portanto, como lugar impróprio para alcançar a “verdadeira” vida (Fornet-Betancourt, 2010, p. 41).

Essa concepção alimenta uma “forte desvalorização da existência carnal e terrestre, rebaixada ao escalão de aparência ilusória da qual o homem deve buscar fugir se aspira a viver em conformidade com os impulsos superiores da alma” (Schimitt, 2006, I, p. 254). Assim, as circunstancialidades do mundo da vida não passam de empecilhos relacionados ao processo de racionalização sistêmica e, pois isso, elas bloqueiam a possível efetivação da justiça entre os sujeitos, permanecendo, portanto, em uma mera representação formal – quando não quantitativa e midiática.

Desta forma, é possível superar a dicotomização das representações da vida cotidiana e de suas relações. Por exemplo, a judicialização dos procedimentos, isto é, a hipertrofia do Judiciário e sua invasão das atribuições dos demais Poderes indica que, atualmente, a noção de justiça e injustiça não passa de conceituações, recusando o aspecto deliberativo que envolve o “quem” são os sujeitos (da justi- ça e da injustiça) e “como” ela pode conseguir uma efetividade prática enquanto compromisso social. Na verdade, o que temos hoje são procedimentos entre casos particulares, sem que isso resolva os problemas de fundo.

O abrasileiramento apresenta uma conotação bastante positiva no sentido de manifestar o modo de ser e o caráter de nossas gentes. Com frequência, esse ethos se vincula a uma tipologia oriunda do “jeitinho”, uma malfadada expressão cuja origem está ligada a práticas empenhadas em “levar vantagem em tudo”. Não há como negar a influência desse tipo de ideário, concebido a partir do estilo de vida eminentemente elitista. No decorrer do tempo, ele vai se alastrando e se consoli- dando nas diferentes esferas da vida pública e privada, solidificando a maneira ar- dilosa, esperta e astuciosa de conseguir algo através de procedimentos astuciosos e nada recomendáveis. Embora a habilidade em conseguir vantagens, a versão pode também ser vinculada ao conhecido conto do vigário, outro arremedo caricatural que manifesta o brasileirismo ou a brasileirice inerente a nosso ethos cotidiano. O item a continuação trata de aclarar isso.

 

4 O CONTO DO VIGÁRIO: ANTINOMIAS DE UM ETHOS ABRASILEIRADO

 

No Brasil, o ser moderno parece ser algo elegante, original, contemporâneo e, por isso, uma característica nitidamente atual. A minha indagação é a seguinte: O que temos de moderno? Qual seria a adjetivação de moderno na nossa tradição cultural? Então, se a modernidade europeia se reflete na Revolução Francesa, o desenho da cultura consolida um ethos com variantes díspares. Na verdade, são diferentes fontes originárias que vão conformando o estilo brasileiro. Nesse sentido, fora da afluência de ideais europeus, o resquício da modernidade bra- sileira encontra, no Conto do Vigário, um significado léxico congruente com a versão abrasileirada da modernidade brasileira. Ele pode ser considerado com um jeito brasileiro de prometer e não conceder a vantagem ou o benefício implícito à promessa manifesta.

Evidentemente, o ethos brasileiro se apresenta repleto de caricaturas, ao tem- po que é forte a incorporação de figuras exógenas e, portanto, alheias às nossas raízes histórico-culturais. Embora as diferentes versões da origem do termo conto do vigário, há em todas elas, um denominador comum evidenciando esperteza e a forma fraudulenta ligada à resolução de problemas. O nascimento dessa epopeia remonta ao século XVIII, traduzida como uma forma de encaminhar a resolução de um problema peculiar. A partir de então, a expressão reflete o agir utilizando a forma inteligentemente maliciosa, quase sempre com sutilezas em vistas a conse- guir algum benefício particular. No Brasil, o Conto do Vigário está relacionado com esperteza, atividade específica do malandro, no sentido de resolver situações ou disputas litigiosas. Em suma, uma narrativa breve e concisa, voltada a solucionar um conflito, cujos personagens têm em vista as vantagens individuais.

Esta seria uma das características da tradição moderna brasileira? Porque esse conto se transformou no uso de artimanhas que parecem ser inerentes ao ethos da vida cotidiana. Essa forma de jeitinho pode ser considerada, então, uma das caras da modernidade brasileira que ainda não desapareceu do imaginário e da cotidianidade de nossos mundos da vida. Na verdade, o Conto do Vigário se traduz atualmente nas diferentes maneiras de conduzir a política e de justificar padrões de comportamento. Em outras palavras, existe um abrasileiramento que perfaz o estilo de vida de nossa gente, a ponto de reforçar a malandragem (no seu sentido mais negativo) como procedimento propalado como “normal”. Ele persevera como a antípoda das exigências normativas.

Essa forma abrasileirada de conseguir vantagens se verifica nas mazelas políticas, recheadas de promessas não cumpridas. No conjunto da obra, participam instituições dos diferentes credos e partidos, revestidas de  boas  intenções, mas que, no fundo, buscam apenas o lucro e os benefícios próprios. Ela está presente nos diversos setores da sociedade, seja na política, na religião e vida cotidiana. Em outras palavras, a modernidade brasileira assume um viés sui generis, pois não consegue sequer converter as ofertas em benefícios para a coletividade.

Na prática, o abrasileiramento da cultura ocidental significa, segundo Beck, a passagem do mundo do trabalho para a sociedade do saber, é possível perceber também uma espécie de massificação cultural, cujo ethos tem relação não somente com o âmbito econômico, pois é concernente também ao político, ao social e ao cultural. No fundo, esse espírito aceita a liberalização do consumo – e da produção como tal – conquanto que, na outra ponta, se impõe um controle aos que excedem determinados limites. Neste caso, as restrições obedecem ao setor “serviços”, numa espécie de visibilidade invisível que controla e exige o cumprimento de normas relacionadas a estes setores. Quando ocorre a transgressão, há uma espécie de reeducação, cujas medidas se relacionam a pagamentos de taxas e nas distintas formas de reabilitação dos direitos suspensos.

Nesse processo de liberalização e, ao mesmo tempo, de aumento do controle, não há reação diante da exploração da mão de obra (alienação do trabalho), mas essas mesmas pessoas – que aceitam conviver com a injustiça – exigem acesso aos produtos a qualquer hora, em qualquer momento. Essa dicotomia é naturalizada sem qualquer ressentimento ou escrúpulo. O controle é reiterado sistematicamente Exemplo disso se relacionaao sistema viário de nossas cidades e estradas. Ao invés de garantir a acessibilidade e a segurança, o jeito é criar mais leis e multiplicar os controladores (pedágios, câmeras e pardais, etc.). Não há uma política sistemática de facilitação das pessoas e de adequação das vias, mas, simplesmente, a imposição de medidas restritivas, punitivas e controladoras dos sujeitos para, de maneira os- tensiva, multiplicar a vigilância em vistas a castigar quem ousar infringir a lei. Essa falsa “maneira hábil e madura” não visa o benefício coletivo, pois se traduz em uma forma astuciosa de garantir dividendos a grupos privados que exploram esse tipo de serviços e de muitos outros.

Em razão disso, a inquietude se relaciona a uma espécie de ataraxia,  no sentido de propalar um  ethos  ligado  a  um  ordenamento  livre  de  perturbações ou de inquietações. Na verdade, o Conto do Vigário, transfigurado em jeitinho, nada mais é do que o oposto do espírito da modernidade “adulta” e consciente do processo emancipatório do sujeito através de sua própria iniciativa. Esse ethos da brasileirice pode ser substantivado por infantilismo, ou seja, a persistência sistemática em cultivar características comportamentais próprias de um sujeito dependente e, portanto, incapaz de agir responsavelmente e, inclusive, impotente diante dos compromissos coletivos e solidários.

Nesse sentido, creio na possibilidade de reescrever o ideal kantiano da ilustra- ção e, ainda, a reelaboração de Foucault a respeito do mesmo tema. A modernidade brasileira está longe de seu refazimento enquanto pro-jeção de si mesma, isto é, a faculdade do sujeito capaz de governar-se a si mesmo. Existe, isto sim, a projeção personificada de indivíduos tratados como exemplares, ou seja, há uma diviniza- ção daqueles que são tratados como os redentores. Tais sujeitos são beatificados e transformados em espécie de heróis, cuja meritocracia é propalada através da mídia ou de rituais e símbolos desse tipo de brasileirice. No fundo, isso significa apenas a massificação de um ethos deficitário, pois cria dependência e sujeição, sem jamais pensar em mudanças.

Enfim, as antinomias da modernidade brasileira, além do antropocentrismo personalista e devocionístico, reafirmam o caráter infantilizado e sem qualquer indicativo que contribua no projeto emancipatório. Trata-se, pois, de alimentar a dependência e persuadir na tentativa de massificar a dependência. Esse foi o gran- de mote de nosso filosofar. Afinal de contas, o conto do vigário reflete o jeitinho brasileiro, um ideal coletivo que preza o forâneo e, em boa medida, despreza tudo o que diz respeito às tradições e valores autóctones.

 

5 O IMPERATIVO DA COTIDIANIDADE MODERNIDADE LIGADA AO SUJEITO NOMINATIVO

 

Na tentativa de avançar, é preciso mais um giro filosófico. O tema não é recorrente. Na verdade, a filosofia nunca abandonou seu aspecto antropocentrado, com o que não há como fugir do sentido das expressões gramaticais. Por isso, a pergunta a respeito do significado de qualquer locução demanda sempre um esforço por responder “o que é”. As alegações envolvem não apenas a análise gramatical e semântica dos lexemas, pois a compreensão do sentido implica também na discussão a respeito de seu aspecto pragmático. Em outras palavras, qualquer fenômeno não pode limitar-se às definições, pois há, em qualquer ato de falta ou expressão gramatical, requer uma referência prática ao agir. Por isso, além de ater-se à pergunta o que é a ideia remete a quem são os verdadeiros concernidos e como eles compreendem as designações nominativas no seu sentido prático. Nesse sentido, o fenômeno não é um fato, um acontecimento que possa ser considerado bom ou mau, mas pressupõe uma relação entre partes diferentes e diferenciadas, ou seja, desde uma relação dialógica entre sujeitos coautores. Tanto o eu-sujeito coautor como o outro-sujeito também coautor são partícipes da interação.

Então, o sentido das expressões gramaticais e dos atos de fala deve partir do como e não simplesmente ater-se ao que. Nesse sentido, é preciso não só averiguar o teor gramatical e semântico das expressões, mas ver sobremaneira quem são os coautores e como seu sentido está carregado de exigências normativas. Desta for- ma, os ideais da Ilustração ganham outra dimensão. Esse delineamento nos leva a insistir que as exigências de justiça deixam de ser uma questão apenas vinculada ao aspecto semântico (isto é, à sua definibilidade), mas ao aspecto pragmático. Essa pragmática pressupõe uma “neutralidade do procedimento” (Habermas, 1998, p. 386), porque ninguém pode garantir, por si só, sua autonomia moral. Ela de- pende da interação comunicativa, ou seja, dos esforços cooperativos que ninguém pode ser obrigado através das normas jurídicas, mas que todos são conclamados a seguir (ou obedecer). A ideia do sujeito coautor significa que todos podem contri- buir. O fato de saber quem são os sujeitos, e os próprios concernidos pela justiça, remete inclusive às futuras gerações.

Então, o fenômeno da laicização, desde uma moral secular, deve salientar o como se pode fundamentar o ponto de vista moral e como, de fato, os sujeitos coautores podem delinear uma sociedade secular. No caso, a filosofia não deve ape- nas averiguar o que significa laico ou secular, mas estudar também quem e como são configuradas as políticas de reconhecimento dos sujeitos coautores frente à na- tureza e aos não humanos. Assim, será possível uma educação comprometida com a justiça e a solidariedade, não somente em uma intersubjetividade antropológica, mas em uma relação entre todos os seres.

 

REFERÊNCIAS

 

BECK, Ulrich. Un nuevo mundo feliz: la precariedad del trabajo en la era de la globalizaci- ón. Barcelona; Buenos Aires; México: Paidós, 2000.

 

DEMENCHONOK, Edward. Introduction. In: DEMENCHONOK, Edward (ed.). Between glo- bal violence and the ethics of peace: philosophical perspectives. Malden and Oxford: John Wily & Sons, 2009.

 

DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das ciências humanas. Loyola: São Paulo, 1991.

 

FORNET-BETANCOURT, R. (Hrsg.). Dokumentation des XIV. Internationalen Seminars des Dialogprogramms Nord-Süd. Verlagsgruppe Mainz: Aachen, 2010, p. 193-201.

.

Grüner, Eduardo. La oscuridad y las luces: capitalismo, cultura y revolución. Buenos Aires: Adhasa, 2010.

 

HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa. Madrid: Taurus, 1988.

 

HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos, Ma- drid: Taurus, 1989.

 

MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. 2. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 85-111 (Coleção Os Pensadores).

 

MERLEAU-PONTY, M. Sobre a fenomenologia da linguagem. 2. ed., São Paulo: Abril Cul- tural, 1984, p. 129-140. (Coleção Os Pensadores)

 

PLATÓN. Obras completas. Aguilar: Madrid, 1972.

 

SCHIMITT, Jean-Claude. Corpo e alma. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J. C. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006.

 

TAYLOR, Ch. Uma era secular. São Leopoldo: Unisinos, 2010.

 


A TRANSMUTAÇÃO DA MORAL

releitura discursiva do legado nietzschiano[12]

 

Maribel da Rosa Andrade[13]

Universidade Federal de Pelotas

 

Jovino Pizzi[14]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO

 

Este artigo se apoia na releitura crítica da ética política de Adela Cortina, tendo como ponto de partida a sua reinterpretação da moral de transmutações. Seguido- ra da ética da discussão, a filósofa espanhola sintoniza com K.O. Apel, assumindo os pressupostos de uma fundamentação discursiva da moral. Na verdade, ela diz que a paternidade da ética da discussão cabe a Apel, quando, “no último capítulo de Transformation der Philosophie” ele esboça as grandes linhas de sua funda- mentação “para, em seguida, não fazer mais do que aprofundá-las e completá-las” (CORTINA, 2002, p. 155).

Na tradição kantiana, o domínio da razão prática envolve conteúdos de dife- rentes tipos de legislação, principalmente a forma moral e a questão jurídica. “Não se trata de dizer simplesmente que elas encerram conteúdos diversos, mas que a moral e o direito são dois tipos formalmente distintos de legislação” (CORTINA, 2002, p. 174). Mais do que salientar divergências, o aspecto convergente indica a superação da filosofia da consciência para, então, insistir na “relação da vontade e da razão” com o aspecto ilocucionário da linguagem orientados para a compreen- são intersubjetiva das pretensões de validade.

Face às novas exigências, a ética da discussão empreende uma reconstrução do ponto de vista moral. O “conteúdo das normas morais é social” (CORTINA, 2002, p. 185), no sentido de consolidar o compromisso do sujeito com o mundo social, pois todos pertencem e interagem em uma comunidade de sujeitos coauto- res. Nesse sentido, a “ética da discussão fornece um quadro ético, fundamentado filosoficamente, que deve ser desenvolvido e complementado para oferecer uma reconstrução fiel da racionalidade prática própria das sociedades situadas no nível pós-convencional” (CORTINA, 2002, p. 189). Para Adela Cortina, o aspecto deon- tológico da ética da discussão deve ser completado, de modo a poder “falar de valores, de fins e de virtudes” (CORTINA, 2002, p. 190).

Em vista dessas considerações, este trabalho pretende salientar o aspecto moral no horizonte da razão pública, tendo como elemento dialogante o legado nietzschia- no. Na verdade, pretende-se descrever a assunção de atitudes que, do ponto de vista moral, podem ser consideradas nocivas para a sociedade. Não se pretende, pois, discutir aspectos de fundamentação, mas indicar comportamentos que atestam dife- rentes posturas diante das exigências normativas. Para ilustrar os modos de proceder dos sujeitos, utilizou-se a analogia das três transformações do espírito, metaforica- mente apresentadas por Nietzsche em Assim Falava Zaratustra para através disso, evidenciar a crítica aos possíveis comportamentos morais dos sujeitos.

 

2 A ANALOGIA NIETZSCHIANA DA TRANSMUTAÇÃO

 

Na obra Assim Falava Zaratustra, Nietzsche revela as transformações do es- pírito que se modifica em camelo, de camelo a leão e de leão em criança. “Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente em criança (...) a força desse espírito está bradando sobre coisas pesadas e, das mais pesadas” (NIETZSCHE, 2002, p. 34).

A carga inerente desse espírito sólido e forte é por demais, pesada. Semelhante ao camelo, que anda carregado pelo deserto, assim diz Nietzsche: “corre o espírito sólido e forte pelo seu deserto, o deserto mais solitário” (NIETZSCHE, 2002, p.35). Essa situação dá origem à segunda transformação do espírito, passando, então, de camelo a leão que, não mais satisfeito com o peso de sua carga moral, procura con- quistar a liberdade e tornar-se senhor de seu próprio mundo. Esse fato faz alusão a uma luta com o grande dragão moral do tu deves, ao qual o espírito não quer mais chamar de Deus e nem Senhor. Em contraposição ao dever instituído por imposi- ção e obrigatório até o momento, o espírito do leão defende a moral do eu quero. Nessa alegoria, valores milenares reluzem nas escamas do dragão. Nele, estão refletidos os valores de todas as coisas. A moral do tu deves ressalta que todos os valores já foram criados e, por isso, no futuro o eu quero é impensável. Embora não exista, para o leão, a possibilidade de criar novos valores, é possível conceber a liberdade para a conquista de novos valores. Por isso, o leão torna-se imprescindível. Entretanto, o questionamento de Nietzsche é taxativo: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o leão se mude em criança? (NIETZSCHE, 2002, p. 37).

Na sua inocência, a criança representa um novo começar, uma roda que gira sobre si, ou seja, uma pura afirmação necessária para o ‘jogo da criação’. O espírito necessita, então, realizar a sua vontade. Daí, quem perdeu o mundo, deseja agora, alcançar o seu mundo. Dessa forma, o espírito leonino do eu quero se transforma na inocente criança que, na sua lúdica simplicidade, afirma eu sou. Através desse processo, Nietzsche deseja representar sua crítica à moral e utiliza, para tanto, as três transformações do espírito.

Em tempos de realismo político e no horizonte de uma sociedade complexa, poder-se-ia sintonizar com Adela Cortina e afirmar que o camelo está morto, enquanto o leão e a criança não obtiveram sucesso. No entanto, um animal despretensioso, nada peluginoso e, em certa medida, apocalíptico sobrevive. Trata-se do camaleão, que diz: eu me adapto. Na verdade, trata-se de mestres em disfarces que, no Brasil, pode estar relacionado à lagartixa que, segundo suas características, apresenta o qualificativo de satânico, porque transforma sua coloração de acordo com as circunstâncias. Daí, então a relação com a expressão eu me adapto.

Essa analogia pode também refletir-se no dito popular façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço. Traduzindo esse adagio em moralismo, o camaleão (ou a lagartixa satânica) evidencia a diversidade de posicionamentos e/ou atitudes do sujeito que, preocupado apenas com seus interesses privados ou de seu gru- po (agremiação, entidade, partido, empresa ou classe) aposta no jogo de buscar maiores vantagens, sem, para tanto, orientar seu agir de acordo com as exigências normativas mínimas[15].

A bem da verdade, esse realismo moral e político se sustentam em uma liberal tradição mercantilista, a qual presume um animal político convencional cada vez mais afastado dos ideais voltados à responsabilidade solidária com todos os sujeitos. De acordo com a filósofa espanhola, trata-se de um realismo fúnebre, pois inibe qualquer esperança e tolhe as expectativas relacionadas a valores éticos. Nesse senti- do, ela afirma ser uma forma de pensar e de atuar restrito a “números, cifras, estatísticas e probabilidades que podem converter a qualquer medíocre em um dissimulado do qual o presente de uma sociedade inteira dependa” (CORTINA, 1991, p.119).

Em uma época sem “utopias possíveis”, a luta pela liberdade em vistas uma humanidade mais consciente da necessidade de igualdade, existe o risco de tolher qualquer chance de reabilitar a dignidade humana. O preço da mediocridade indica a transformação de qualquer valor a simples cifras ou códigos numéricos. Por isso, o reavivamento do compromisso moral exige não apenas leis jurídicas, mas também o comprometimento com normas de vida social digna para todos, aspecto que nem de perto Freire salienta, com suas utopias possíveis.

De qualquer forma, o jogo moralista do camaleão, transformado em cálculos ou ao somatório dos dividendos, obstrui o compromisso social, pois o cálculo de interesses vai mermando a consciência coletiva como representação simbólica de um princípio de identidade. Segundo Adela, isso decorre do fato de não existir classes políticas, pois elas se vendem, ao mercado eleitoral, ligando-se apenas àqueles que oferecem melhor preço. Em suma, o jogo de interesses faz com que os políticos e os demais integrantes desse jogo leiloem-se a quem mais recursos sejam oferecidos, isto é, com as alternativas que garantem maiores vantagens e, assim, seja possível assegurar o triunfo. É politicamente evidente que

 

o dinheiro desonesto das campanhas é mais importante que o valor intrínseco das pessoas e de qualquer ideologia partidarista; enfim, trata-

-se apenas de um esporte, no qual a lucratividade do posto a ocupar é o menos importante, comparado com os contratos e acordos que serão assinados através da publicidade, direitos de imagem, transações, influências, impunidade, concessões de obras, e a garantia de fazer o sucessor da mesma estirpe (CORTINA, 1991, p. 123).

 

Não obstante, a transmutação camaleônica (ou do tipo lagartixa diabólica) da moral se torna felina enquanto as condições não favorecem o apetite individualista ou as exigências do grupo. Como ressalta Adela Cortina:

 

Quem poderá comprometer-se com a transformação do mundo se – como faz referência Nietzsche – o sujeito não mais se constitui no centro? Qual o compromisso do sujeito se houve um abandono da posição cen- tral para mover-se para não se sabe onde? Trata-se do adelgaçamento da política em ‘vistas ao jogo da economia, de maneira mais indiscriminada, jogando nos limites da lei da oferta e a demanda e do “deixar acontecer, deixar o tempo passar” smithiano. A favor de uma convivência sem emo- ções fortes, sem sobressaltos, resta silenciar as próprias convicções, para serem guardadas no profundo de seu coração, inclusive as razões que movem qualquer um a ser democrata (CORTINA, 1991, p.131).

 

Nesse sentido, Adela relembra Gehlen e Fukuyama que, aceitam o fato de que a história chega a seu fim e se faz visível através do “triunfo da liberalidade econô- mica sobre qualquer idílico pensamento igualitário, que está consumado” (PETO, 2012, p. 2). Diante disso, nem o transcendentalismo kantiano, retomado por Bloch, talvez de maneira um pouco ingênua, consegue hoje a validez confiável, sem ter que engolir o que se convencionou chamar de ingenuidade ou, então, pior ainda, de realista que, para Elster, não passa de “tolos racionais” (PETO, 2012, p. 2).

Portanto, é pertinente a afirmação kantiana de que o sujeito tem dignidade, e não preço. Nesse sentido, sua autonomia possui um valor intrínseco, o que não permite afiançar o “sem muito sentido para a política e inclusive para o social” (PETO, 2012, p. 2). A ironia da mutação de cores, representada pelo oportunismo eleitoral e o jogo politiqueiro dos que assumem o moralismo camaleônico denota a indiferença e a falta de compromisso político, com graves consequências sociais, políticas, culturais e ideológicas. A força dessa moral camaleônica, que insiste na adaptação ao mais conveniente, se traduz em comportamentos do dia a dia coti- diano, a ponto de a representação política tornar-se invisível. Desta forma, é im- possível responsabilizar alguém ou algum grupo diante do não cumprimento das promessas, porque um dia o compromisso aparece de uma cor e, no outro, já é de outra. Nas palavras de Cortina:

 

A moral do camaleão… é um estilo de vida ao qual aderimos os políticos e os cidadãos e, com isso, defraudamos ideais seculares, sonhos da humanidade, como o de uma sociedade de indivíduos autônomos, justos, como o sonho de uma paz universal (CORTINA, 1991, p. 130).

 

Como insiste a filósofa espanhola, esse estilo de vida perpassa o campo teóri- co e assume um caráter prático, isto é, ele faz parte da vida cotidiana dos sujeitos e orienta o agir desses. No Brasil, essa espécie de zoológico evidencia muito mais aspectos anômalos e moralistas, inibindo, muitas vezes, situações de hospitalidade e de congraçamento entre as pessoas. Na verdade, a representação da esfera da vida pública parece insistir muito mais no aspecto destruidor e nocivo de uma cultura que ainda não conseguiu sua maioridade. Há, inclusive, uma diversidade de modelos ou de pontos de vista tão diferenciados que torna impossível qualquer depuração.

Nessa representação díspar de situações, o dom da mutação permite a constante inconstância das pessoas. A própria inconsciência revela que não existe um ponto em comum ou uma exigência válida para todos, estigmatizando o registro de uma cultura adaptativa, mas que, no fundo, se distingue pela burla e pela traição com seu próprio eleitorado, com seus concidadãos, com as próprias convicções; enfim, com uma racionalidade pública. Enquanto vinculada ao moralismo da mutação, a identidade desses “camaleões” é efêmera, sem valor substantivo, apenas superficial. Para os adeptos dessa moralidade, continua a valer mais a política de que todos têm um preço. Nessa direção, tanto políticos quanto os cidadãos se adaptam às circunstâncias e aos fatos, anulando, com isso, a possibilidade de uma sociedade constituída por sujeitos autônomos e coautores.

Adela retraduz a leitura nietzschiana através das três transformações do espírito trabalhadas pelo filósofo alemão, na obra Assim Falava Zaratustra. Ela utiliza como ‘pano de fundo’ o conto sobre animais, que, em Zaratustra, revela a decadência da moral. Todavia, Cortina, ao inserir um quarto elemento, através do qual o aspecto moral pode ser atualmente representado, pretende enfatizar a questão de que esta- mos muito próximos de perder a possibilidade de renascimento da dignidade huma- na à custa do seu preço. O valor das pessoas se concentra na quantidade de votos que os partidos esperam conseguir ou do valor agregado que um determinado negó- cio representa. Essa é, sem dúvidas, a análise que esse trabalho pretende evidenciar, cujo estudo se atém à crítica a um comportamento moral que atualmente pode ser auferido em distintas situações da vida cotidiana. No fundo, o triunfo de um ou de outro modelo também revela as inquietações de um moralismo que, na maioria das vezes, é muito mais pernicioso, arrogante e avassalador do que construtivo e incre- mentador de laços de solidariedade e de compromissos com ideais coletivos.

Essa ironia da analogia da moral do camaleão (ou lagartixa satânica) com o legado nitzscheano representa em nosso país, o oportunismo eleitoral que se repro- duz cada vez mais e traz consigo uma indiferença frente aos interesses coletivos, como também, um nível de falta de compromisso político para com as pessoas, muito forte. Quantos animais políticos dessa espécie, sabemos da existência e que convivem cotidianamente na esfera pública em nosso país e em tantos outros? É interessante observar que mesmo possuidores do dom da transmutação constante, esses camaleões políticos não podem passar despercebidos, pois sua própria cons- ciência os revela. “levam um estigma visível em sua historia, o da burla e traição a seu próprio eleitorado, a seu próprio povo” (PETO, 2012, p. 2).

É possível perceber que a velha tentativa, já apontada por Schopenhauer, de encontrar um fundamento seguro para a moral, ter resultado na concepção de que “não há nenhuma moral natural, independente do estatuto humano, mas que esta é de ponta a ponta um artefato, um meio descoberto para a melhor domesticação do egoísta e maldoso gênero humano”. (SCHOPENHAUER, 2001, p.109). Portanto, parece-me haver certo fracasso nessa tentativa de domesticação, “as lagartixas sa- tânicas escapam a essa domesticação” e, nos encontraríamos num grande erro se acreditássemos que todas as ações humanas fossem de origem moral. Se assim fosse, não haveria espaço para a procriação, para a disseminação dos grupos da espécie de lagartixas satânicas, ou, dos camaleões políticos que se alastram no espaço público.

 

3 A ANTIMORALIDADE MOTIVACIONAIS[16]

 

A motivação principal tanto no homem como no animal é o egoísmo (ímpeto para a existência e o bem-estar). Podemos entender melhor se interpretarmos a pa- lavra “Eigennutz” (interesse próprio) como aquela que aponta o egoísmo enquanto guiado pela razão o torna capaz, por meio de reflexão, de perseguir seu alvo, ou seja, seu objetivo último, porém de maneira planejada (SCHOPENHAUER, 2001, p.120). Nesse sentido podemos chamar as ações dos animais de egoístas, mas não de interesseiras. No egoísmo humano parece estar fundamentado o cálculo de to- dos os meios necessários através dos quais o homem se conduz para alcançar seu alvo para acumular a maior soma possível de bem-estar. Tudo que se opõem a isso provoca má vontade, incompreensão, ira e revolta.

Ao que parece, já não importa mais a consciência histórica nem muito menos a consciência coletiva, como representação simbólica de um princípio de identidade (PETO, 2012, p. 1), as classes sociais, na verdade, deixaram de existir, pois, usam de camuflagens, se adaptam a melhor proposta do mercado eleitoral e se vendem ao melhor proponente, basta que ofereça os melhores recursos, maior quantidade de materiais que possa ser distribuído, garantindo o sucesso do investimento, para então após, recuperá-los em cifras numéricas bem mais atraentes.

São transações, influências, impunidades, concessões de obras, etc... Nesse sentido, as transmutações morais continuam fortemente articuladas, visto o ho- mem ser considerado o mais egoísta dos animais. O egoísmo humano faz com que muitos políticos, carentes de moralidade, e, encontrados em toda parte do mundo, inclusive no Brasil, sejam capazes de camuflar suas verdadeiras intenções ao in- gressar na política. É evidente que valores morais não fazem parte das ações desses políticos, moralidade é uma condição inexistente para esses camaleões. Tornou-se facilmente percebível que esse fator de corrupção política, isto é, o ingresso na po- lítica de camaleões políticos, vem a bastante tempo desestabilizando a Democracia.

 

Segundo Aleksandar Petrovich[17] (2011, p. 2).

 

Em países em desenvolvimento constante, os “camaleões políticos” cada vez aumentam mais e não existem filtros para evitá-los. O duplo padrão, o pagamento de suborno, o tráfico de influências políticas a ní- vel internacional, as concessões de monopólios camuflados, os lobbies para as empresas corruptas, não somente enriquecem esses “camaleões políticos”, como são causa de um grande atraso; prejudicial para o de- senvolvimento econômico, social e político de uma comunidade que pretende evoluir em um sistema democrático[18].

 

Se desejarmos um sistema democrático forte, construído a partir de um pro- cedimento dialógico intersubjetivo, gerador de benefícios comuns, é preciso não apenas saber fazer escolhas certas relacionadas ao tipo de político virtuoso, como também exigir que os que querem ingressar na política, tenham sim um preparo, uma formação em ciência política e em ética pública. Pois não podemos mais se- guir tolerando a presença de políticos “representantes da vontade pública” possui- dores da moral do eu me adapto, no estilo de lagartixas satânicas.

De momento, o povo brasileiro parece não ter argumentos, meios, para neutrali- zar a esses políticos. Para muitos de nossos jovens, os políticos não passam de “caça- dores de cargos públicos” que não merecem sequer respeito. Parece ser que a solução para o “político com moral de camaleão”, está em identificar os vícios ocultos nas estruturas dos partidos políticos. Trata-se de vícios ocultos que apresentam brechas para a entrada dos camaleões, que demonstram ineficácia, autoritarismo e desorganização.

 

4 O TRIUNFO DO CAMELO

 

Para Cortina, a constatação pode ser fundamentada, mas exige respostas a questionamentos tais como: a transformação política e econômica desejada modificou, por sua vez, as necessidades humanas? É supérflua a moral do dever porque os homens desfrutam de suas relações mútuas, sem submetê-las ao jogo mercantil do cálculo e da estratégia e sim ao jogo agradável e desinteressado?

As respostas a essas questões só poderão ser de forma negativa, pois, nem a revolução esperada veio e nem está por vir. Certamente, há recursos suficientes para que todos possam gozar de vida digna e, deste modo, desfrutar de seus direitos fundamentais. Nesse sentido, Adela acredita que Marcuse apresenta uma perspectiva plausível, pois ressalta que a sociedade atual não acredita mais no trabalho como o centro das questões humanas. Na verdade, vivemos em uma sociedade de ociosos, de especuladores, de espertalhões com uma retórica muito bem articulada. A felicidade consiste em conseguir o máximo com o mínimo de esforço. O conceito de homem virtuoso e feliz está à mercê da mais pura casualidade. Ou seja, o sujeito virtuoso é feliz se conseguir maximizar seus interesses e, então, pode considerar-se um sujeito de sorte, pois as condições apenas salientam que uns poucos conseguem vencer, mas à custa do esforço da grande maioria.

Nesse sentido, Cortina salienta que as éticas deontológicas, diante das grandes transformações do final do século passado, estão novamente no auge e refutam a falar de felicidade. A este respeito, tanto Apel como Habermas têm oferecido algumas das razões para semelhante redução que podem resumir-se no seguinte:

1.Uma ética crítico-universalista não pode sequer pré-julgar dogmaticamente a felicidade dos indivíduos, mas deixar a decisão em suas mãos;

2.          Uma ética crítico-universalista não se conforma com o relativismo ao aceitar a pluralidade de formas de vida nascidas dos diferentes ideais de felicidade, porque admite e potencia as diversas ofertas de «vida boa», mas não aceita diversos princípios da justiça; no caso de conflito entre distintas formas de vida, que devem ser submetidos às restrições impostas por princípios universais, legitimadores de normas;

3.          não são unicamente os filósofos quem se colocam a perguntar pela vida feliz, mas  também  os  psicoterapeutas, os  teólogos, os literatos, os criadores de  utopias  imaginarias. Os  modelos de felicidade não podem, portanto, serem universalizados, nem serem exigidos e, por isso, transcendem o domínio da ética (CORTINA, 1996, p. 138).

Como é possível perceber, Cortina afirma que, além destas, ainda cabe adicio- nar outras motivações, embora menos convincentes, para compreender ou justificar o deontologismo reinante e, ao mesmo tempo, submetê-lo dialogicamente à crítica. Para a filósofa, ninguém nega o evidenciamento do homo ludens em detrimento ao homo faber (CORTINA, 1991, p. 129). Nesse sentido, criança joga sentindo-se um camelo carregado de fardos. Assim, ninguém, sequer os partidários de uma ética deontológica, acreditam em uma sociedade pura, isto é, livre das patologias ou dos jogos nefastos dos que apostam em interesses imediatos e privados. Mesmo assim, é tempo de construir uma sociedade ideologizada. Para a filósofa, não se trata ape- nas de uma preferência estética, pois exige também uma perspectiva de felicidade. Essa idealização implica no enfrentamento com algumas questões inevitáveis: o que significa o termo ‘excelência’ em uma sociedade sem piedade e competitiva? Quais seriam as virtudes invejadas por uma sociedade consumista, estratégica e corporativista? Qual seria o ideal de felicidade, o ideal de uma imaginação bombar- deada por todo o gênero de propaganda?

Evidentemente, esses vestígios de ficção ética, levantadas por Adela Cortina suscita outra questão: Seria o homem motivado pelo ideal de felicidade, confor- mado por semelhantes virtudes, capaz de respeitar o princípio fundamental de igualdade e de solidariedade, uma das exigências morais imprescindíveis para os dias de hoje?

Nesse contexto, Cortina responde usando a seguinte argumentação:

 

[...] ao decidir quais normas devem regular a convivência social, é preciso ter em conta os interesses de todos os afetados no mesmo nível, e não de acordo com os fatos fáticos, que estão previamente manipula- dos. Na verdade, nenhum deles goza do mesmo nível material e cultural, nem da mesma informação. Por isso, – parafraseando John Rawls – você está convencido da igualdade humana quando fala, com convicção, so- bre a justiça; ou quando executa ações de fala com sentido, seguir a determinação da ética discursiva; faça, pois, do respeito à igualdade uma forma de discurso normativo e de vida (CORTINA, 1996, p.139).

 

A felicidade, que todos aspiramos, não é entendida da mesma maneira pelas pessoas em geral, nem pelos sábios, muito menos nem pelos jovens, adultos ou na relação entre as diferentes sociedades. Conforme a autora, talvez porque seja um conceito vazio. Enfim, porque não seja a filosofia que tenha de ocupar-se dela. En- quanto as ações possuírem motivos interessados, mesmo que único, o valor moral das ações estará totalmente suprimido, porque é na ausência de toda a motivação egoísta, como afirma Schopenhauer, que podemos encontrar o verdadeiro critério de uma ação dotada de valor moral.

A decadência da moral apontada por Nietzsche em Assim falava Zaratustra, parece prevalecer em tempos contemporâneos, e, além das alternativas apresen- tadas por Apel e Habermas a esse problema, Adela Cortina, em La educación del hombre y del ciudadano, artigo publicado na Revista Iberoamericana de educaci- ón; defende a tese de que a educação é o meio pelo qual podemos confrontar essa questão espinhosa.

A filósofa menciona também Hobbes, que desenvolve uma proposta filosófica calcado na ideia de que é preciso enraizar a moral no interesse egoísta dos sujeitos. Essa seria para Hobbes, a única forma de construir uma moral cimentada e está- vel. Dessa forma ganha ênfase a questão: como podemos conseguir que pessoas “sem” sentido moral possam vir a interessar-se e, a seguir normas morais em um país como, por exemplo, o Brasil? A alternativa trabalhada por Cortina está não em abandonar a louvável tentativa de convencer os indivíduos do sentimento moral, mas uma alternativa plausível estaria na educação; educando moralmente as crian- ças como homens e como cidadãos ao invés de primeiro levá-los a interessar-se por questões de moralidade, mesmo porque se bem trabalhada, a educação despertará naturalmente o interesse pela moral.

É possível perceber que estamos diante de outra questão: O que significa então, educar moralmente? Cortina tenta responder tal questão ressaltando que: “Creio que hoje em dia é necessário recorrer às contribuições de diversas tradições morais e não optar unicamente por alguma delas, descartando as restantes” (COR- TINA, 1995, p.46). Em seu artigo, Cortina articula um modelo de educação moral cujas peças vão sendo fornecidas por diversas tradições morais, desde a base antro- pobiológica, pela qual somos inevitavelmente seres morais (tradição zubiriana), até a capacidade de atuar de acordo com leis que, como seres humanos nos daríamos a nós mesmos (tradição kantiana). (CORTINA, 1995, p. 47).

No entanto, a moral encontra-se frente a uma desmoralização já evidenciada por Nietzsche, e nos dias atuais apresenta um sério agravante: a classe da morali- dade camaleônica e para enfrentar o problema, parece que a educação moral apre- senta a melhor alternativa. Segundo Cortina, para aqueles que querem educar com a moral, primeiramente é preciso saber o que entendemos por moral. Pode-se dizer que a expressão significa capacidade para enfrentar a vida frente à desmoraliza- ção (CORTINA, 1995, p. 49). Poderia pensar-se ser a primeira tarefa da educação moral; formar as crianças como homens para depois então, ensiná-los os valores da cidadania. Dessa forma a cidadania oferece duas vantagens específicas: a) o exercí- cio da cidadania é fundamental para a maturidade moral do sujeito, porque como ressalta a autora, a participação na comunidade destrói a inércia, a consideração do bem comum alimenta o altruísmo. (CORTINA, 1995, p.51). b) A cidadania por sua vez, também permite suavizar os conflitos que surgem entre os professantes de diferentes ideologias porque ajuda a cultivar a virtude política da conciliação responsável dos interesses em conflito. Para formar homens é necessário, pois, construir a classe dos cidadãos convictos do verdadeiro conceito de moralidade.

 

5 CONCLUSÃO

 

A filosofia nietzscheana consiste na ideia de que os seres humanos devem ser traduzidos de volta à natureza (LEITER, 2011, p. 2). Em síntese, Nietzsche foi um genealogista que prepara o terreno para os “filósofos do futuro” (LEITER, 2011, p. 6). Embora ele se afaste de qualquer tradição kantiana, Adela Cortina aproxima-se de sua teoria e refaz a leitura nietzschiana em vistas tratar questões morais, defendendo a tese de que é possível uma alternativa para a erradicação da “moral do camaleão”. A filósofa sustenta que a solução pode ser encontrada na educação. Sua reflexão sobre a transmutação da moral leva-nos a evidenciar a urgente neces- sidade de valores éticos imbricados com as ações morais. Do contrário, estamos fadados à vitória do “camelo”, que continuará a carregar fardos pesados, apontado por Nietzsche nas três transformações citadas em Zaratustra.

 

REFERÊNCIAS

 

CORTINA. A. Ética mínima. Madri: Tecnos, 1986.

 

CORTINA. A. Ciudadanos del mundo: hacia una teoria de la ciudadanía. Madrid: Alianza, 2009.

 

CORTINA. A. La Educación Del hombre y Del ciudadano. In: Biblioteca virtual de la OEI: Revista Iberoamericana de Educación, 1995, Edición PDF. Joaquim Asenjo. Disponível em: http://revistaiberoamericana. pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana. Acesso em: maio 2013.

 

CORTINA. A. La moral del camaleón: ética política para nuestra fin de siglo. Madrid: Espasa Calpe, 1991.

 

LEITER, B. O naturalismo de Nietzsche reconsiderado. In: Cadernos Nietzsche, n. 29, 2011.

 

NIETZSCHE, W. Friederich. Além do bem e do mal. São Paulo, SP: Schwarcz, 2009.

 

NIETZSCHE, W. Friederich. Assim falava Zaratustra. 2000. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org. Acesso em: maio 2013.

 

PETO, J.T. La moral Del camaleón: dignidad y precio.2012. Disponível em http://www. nssoaxaca.com. Acesso em: maio 2013.

 

PETROVICH, A. La Moral Del Camaléon. 2011. Disponível em: http://gonzalogamio.blo-gspot.com.br/2011/03/la-moral-del-camaleon-por-aleksandar.html. Acesso em: maio 2013.

 

SHOPENHAUER, A. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

 

 

 


O SUJEITO PRONOMINAL

uma questão em aberto para a teoria do agir comunicativo[19]

 

Jovino Pizzi[20]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO

 

Apesar da transformação que a teoria do agir comunicativo apresentou, ela ainda se ressente de um tratamento adequado ao sujeito pronominal. A relação intersubjetiva intercala ego e alter. A intersubjetividade comunicativa supõe a alternância de papeis entre sujeitos coautores da primeira e da segunda pessoa (singular ou plural). Todavia, quando se trata da terceira pessoa, há uma suposta impessoalidade ou imparcialidade. No nível gramatical, a terceira pessoa indica um sujeito não-presente ou, então, aparentemente sem qualquer intervenção direta. Contudo, as exigências pragmático-comunicativas presumem um tratamento pronominal a qualquer sujeito, de forma a reconhecer tanto o falante (singular ou plural = eu ou nós) quanto o ouvinte (singular ou plural = tu ou vós) o status de sujeito coautor, sem considerar as terceiras pessoas na sua completa impessoalidade.

Essa questão retoma um dos aspectos centrais do agir comunicativo. De fato, se os tipos de agir suscetíveis de racionalização seguirem o quadro desenhado por Habermas, não há como superar a dicotomia entre agir comunicativo e agir instrumental. Por isso, a revisão desse quadro tem dois aspectos fundamentais. Por um lado, averiguar como é possível levar em conta todos os pronomes pessoais no mesmo nível, sem, todavia, reduzir a perspectiva do pronome pessoal na terceira pessoa (singular ou plural) ele e/ou eles à esfera da imparcialidade. A impessoalidade pode caracterizar uma relação meramente objetual e, em razão disso, limitando a ação ao âmbito exclusivamente instrumental. Daí, então, o outro aspecto dessa reconsideração: a objeção em torno a própria noção de agir instrumental, de modo que a noção de mundo objetivo seja equacionada. Em outras palavras, a teoria do agir comunicativo necessita ainda de um aprimoramento no sentido de compreender que os não humanos e os elementos da natureza consigam também um reconhecimento como entes de direito.

Em vista disso, a correção da teoria de Habermas passa pela revisão da tipologia do agir, aspecto que requer um esforço considerável. Na tradição latina, por exemplo, a designação res é traduzida como “coisa”, mas que, numa releitura, assume a forma de sujeito concernido. Desse modo, na referência pronominal das terceiras pessoas, haveria a possibilidade de identificar não apenas um sujeito que não se resume a “bens inertes”, mas reconheça também sujeitos enquanto “entes de direito”.

 

2 O SUJEITO FRENTE A INTERAÇÃO COMUNICACIONAL

 

Em Teoria do Agir Comunicativo, Habermas transfere a centralidade do processo comunicativo e o realoca na linguagem. Na verdade, para fugir do solipsismo metodológico e da compreensão monológica do significado de qualquer expressão simbólica, o ponto de apoio para o agir comunicativo deixa de ser “a intenção” ou “o propósito” do falante (Habermas, 2012 I, p. 478), priorizando a “estrutura da expressão linguística” (2012 I, p. 479). Com isso, ele pretende mostrar que o agir comunicativo vincula o entendimento às ações de vários atores, e não simplesmente às intenções ou às pretensões subjetivas. Conforme o próprio autor, é preciso situar as “ações em uma rede de espaços sociais e tempos históricos” (2012 I, p. 479). Trata-se, pois de “atos de entendimento” entre sujeitos que interagem em um contexto social, de forma a garantir o um nexo imprescindível entre o “significado de uma expressão linguística e a validade”, isto é, sua pretensão de validez em “contextos situativos” (2012 I, p. 485).

No caso, Habermas indica uma abordagem interna (p. 480) e um horizonte (ou mundo) exterior (p. 484), deixando claro que toda teoria - comunicativa, no caso - deve pressupor um horizonte que possa “fundamentar os modos básicos de emprego da linguagem”. Ao convergir para a linguagem, Habermas reconhece que “há diversas maneiras de os participantes manifestarem pretensões normativas de validade”, pois os sujeitos sempre compartilham um mundo da vida e o que há de “comum” nesse Lebenswelt (Habermas, 2012 I, p. 484). Desse modo, continua o autor, os sujeitos conseguem não somente “coordenar ações”, mas também “contribuírem para que se construam interações” (Habermas, 2012 I, p. 485).

Como é possível perceber, essa “primeira consideração intermediária” da obra Teoria do Agir Comunicativo, Habermas procura salientar a força ilocucionária dos atos de fala (2012 I, p. 485). Em outras palavras, o delineamento de seu programa distingue “agir social, atividade teleológica e comunicação” (2012 I, p. 473 ss, cf. o próprio título da seção). Com isso, ele consegue desenhar os fundamentos da pragmática comunicacional, que permite “explicar, com base na relação ente o significado literal e o significado contextual das ações de fala, a razão pela qual é preciso adicionar a concepção de mundo de vida ao conceito de agir comunicativo” (Habermas, 2012 I, p. 486).

Esse é um dos pontos centrais da teoria do agir comunicativo de Habermas. Mas a debate inclui, atualmente, outros pensadores, como é o caso de Forst e sua discussão a respeito da contextualização ou descontextualização das pessoas e “não pessoas” (2010, p. 11). Ou seja, ao tempo que a teoria do agir comunicativo reforça a participação do sujeito e o trata como sujeito coautor, evidencia-se uma preocupação em torno à configuração de sujeito como tal. No caso de Forts, a “teoria da pessoa” encontra percepções diferenciadas, a ponto de possibilitar fundamentações que justifiquem o modo impessoal e imparcial. Mesmo assim, ele acredita que o tratamento impessoal e/ou imparcial apresenta uma dimensão moral. Todavia, o pano de fundo do “eu desvinculado” remete à consideração a respeito de todos os pronomes pessoais. Daí, a insistência de que a constituição do sujeito coautor perfaz um tipo de fundamentação concernente também às terceiras pessoas, de modo a conseguir o reconhecimento enquanto sujeitos concernidos na ação; e não, simplesmente, na sua neutralidade ou, então, a um sujeito não presente.

Na verdade, mais do que uma simples pretensão individual ou de um sujeito na sua constituição particular, a questão se circunscreve no horizonte das transformações que a filosofia sofreu na última metade do século passado. A mudança ressalta os giros analítico, linguístico, epistemológico, ético e, se quisermos, pode-se acrescentar também o giro aplicado. Todos eles estão relacionados, de uma forma ou de outra, ao abandono da filosofia da consciência. Daí, então, o interesse com o sujeito comunicativo e a intersubjetividade comunicacional. Nesse horizonte, a “constituição do eu” (Forst, 2010, p. 15 ss) passa a ser tema de estudo e preocupação de diversos pensadores.

De todos os modos, a plausibilidade dessa preocupação se reflete na teoria do agir comunicativo, mais precisamente no uso interativo da linguagem. Para Habermas, a linguagem não se limita aos traços fonéticos, sintáticos e semânticos, pois assume as características pragmáticas. Por isso, mais que o significado literal, há o aspecto contextual das ações de fala (Habermas, 2012 I, p. 486). Não se trata, pois, de processos simbólicos ou de expressões escritas como types, muito menos de tokens. Ou seja, o agir comunicativo vai além da idealização ou do caráter semântico dos significados linguístico, pois facticidade e validade penetram a “prática comunicativa”, coordenando a ação entre sujeitos participantes (Habermas, 1998, p. 97).

Em vista disso, o projeto não apenas evoca e persiste nas sendas do linguistic turn, pois pretende rever a forma pronominal inerente ao processo comunicativo, isto é, à interação entre sujeitos coautores. Em se tratando do agir comunicativo, não há como esquivar-se do sentido das expressões gramaticais. Mas isso não é o bastante. A pergunta a respeito do significado de qualquer locução demanda sempre o esforço por responder “o que significa” tal manifestação em um contexto de ação. As alegações envolvem não só a análise gramatical e semântica dos lexemas, pois a compreensão do sentido implica também na discussão de seu aspecto pragmático. Por isso, o fenômeno comunicativo entre sujeitos não pode limitar-se às definições dos signos e expressões, porque há, em qualquer ato de fala ou expressão gramatical, uma referência prática ao agir.

Para Habermas, a linguagem é o meio através do qual os “atores coordenam suas ações” em vistas a um entendimento (1998, p. 97). Além de ater-se à pergunta “o que significa”, a ideia remete a “a quem” são os verdadeiros concernidos e “como” eles utilizam as designações nominativas no seu sentido prático. O significado não é um fato, um acontecimento que possa ser considerado bom ou mau, pois pressupõe uma relação entre pontos de vista diferentes e diferenciados, ou seja, desde uma relação dialógica entre sujeitos coautores. Tanto o eu-sujeito coautor como o outro-sujeito, também coautor, não são simples partícipes na interação, mas também agentes que contribuem na reconstrução dos significados e do acordo concernente a todos.

A racionalidade comunicacional salienta, pois, um procedimento intersubjetivo, porque qualquer ator contribui e, portanto, é participante ativo. Esse caráter dialógico da razão supõe a linguagem como meio de coordenação das ações. Por isso, o reconhecimento recíproco perfaz a base da vida social. A contribuição diferentes autores, como é o caso de Honneth, reforça o fato de que a compreensão linguístico-comunicativa está ligada a um “potencial naturalmente determinado” livre de qualquer tipo de coação (2009, p. 351). Nesse caso, a formação individual do sujeito se vincula ao processo de emancipação, isto é, livre das coações inibitórias da sua capacidade de ação. O reconhecimento recíproco é uma das exigências na busca de um acordo comunicativo. Essa pressuposição requer, pois, uma simetria entre os sujeitos, aspecto indubitável no caso pronominal da primeira e da segunda pessoa (singular ou plural). Mas isso não fica evidente quando se trata da terceira pessoa (singular ou plural), cujo emprego traduz um sujeito não referencial e na forma impessoal, sem expressar, de fato, um vínculo direto com a ação.

O aspecto pragmático comunicacional evidencia, portanto, que todos os concernidos devem ser reconhecidos como coautores. Essa pragmática pressupõe uma “neutralidade do procedimento” (Habermas, 1998, p. 386), porque ninguém pode garantir, por si só, sua autonomia moral. Ela depende da interação comunicativa, ou seja, dos esforços cooperativos que ninguém pode ser obrigado através das normas jurídicas, mas que todos são conclamados a seguir (ou obedecer).

Por isso, a relação entre o significado contextual das ações de fala e a utilização de todos os pronomes pessoais, inclusive os das terceiras pessoas requer uma revisão. O sentido das expressões gramaticais e dos próprios atos de fala deve partir do “como” os concernidos podem reconhecer-se enquanto coautores, e não simplesmente ater-se ao “que” significa tal manifestação. Em razão disso, o pressuposto de universalidade deveria também explicitar o reconhecimento e o uso de todos os pronomes pessoais. Em outras palavras, no processo interativo, não há formas impessoais ou imparciais, inclusive quando se trata das terceiras pessoas. O “quem” são os sujeitos e como eles podem ser reconhecidos enquanto coautores requer um novo quadro tipológico em relação à teoria do agir. O “como” salienta a participação enquanto coautores, pois tanto falantes quando ouvintes são sujeitos ativos na reconstrução das exigências normativas.

 

3 O SUJEITO FRENTE A INTERAÇÃO COMUNICACIONAL

 

O ponto de partida da revisão da tipologia do agir de Habermas está na desconfiança a respeito da terceira pessoa, ressaltando sempre a possibilidade de ressaltar o seu uso relativo a uma relação instrumental. Ou seja, a centralidade do agir comunicativo está na alternância dos sujeitos enquanto atores dialogantes. A utilização do pronome pessoal ocorre sempre na primeira e na segunda pessoa (singular e plural). Todavia, as terceiras pessoas (ele ou eles) sofrem o estigma de atores não-presentes e, portanto, imparciais. Por isso, a pragmática comunicacional não pode considerar as terceiras pessoas como atores não concernidos ou completamente imparciais.

A teoria do agir comunicativo reforça a interação entre sujeitos. Todavia, é importante também ressaltar que, para Ricoeur (2007, p. 23), a “[...] forma pronominal”, de uma forma ou de outra, redimensiona a categorização do sujeito comunicativo. Na verdade, Ricoeur entende que o tratamento pronominal não se resume ao binômio falante-ouvinte, aspecto tão precioso para a teoria do agir comunicativo de Habermas. Em outras palavras, a forma pronominal requer que todos os pronomes pessoais sejam reconhecidos e admitidos como coautores. Por isso, no delineamento e na justificação do “significado contextual das ações de fala” não pode haver pronome pessoal neutro e, em decorrência, a concepção de sujeitos não- presentes, considerados na sua absoluta imparcialidade. Ainda que não-presentes, as “terceiras pessoas” indicam sempre atores que não podem ser ignorados. E isso pode ser admitido, por exemplo, em termos de “gerações futuras” – como entende Hans Jonas (2006) – ou, ainda, em relação aos não humanos – como justifica Peter Singer (2004) ou, até mesmo, em vistas à ecologia – como aparece e Dworkin (2003).

O nível gramatical suporta, por exemplo, que a terceira pessoa (singular ou plural) indique um sujeito não-presente ou aparentemente sem uma intervenção direta na ação. Todavia, as exigências pragmático-comunicativas presumem um tratamento pronominal a qualquer sujeito, de forma a garantir tanto ao falante (singular ou plural = eu ou nós) quanto ao ouvinte (singular ou plural = tu ou vós), sem ignorar as terceiras pessoas. Na verdade, trata-se de certificar a possibilidade de justificar a simetria de todos os pronomes pessoais, sem, portanto, reduzir a perspectiva do pronome pessoal ele e/ou eles ao âmbito meramente instrumental.

A pragmática comunicativa obedece, pois, a determinadas condições de fala em que todos os pronomes pessoais possam ter em vista um sujeito coautor. O abandono ou, então, a suposição de que há terceiras pessoas neutras apresenta consequências infelizes – para utilizar a expressão de Austin – para a fundamentação discursiva da moral e, inclusive, no reconhecimento do outro enquanto sujeito coautor. A persistência de um sujeito “neutro” ou imparcial no tratamento pronominal não é garantia para qualquer conceito de responsabilidade, de solidariedade pública, de justiça e assim por diante.

A co-originalidade dos participantes supõe uma atitude performativa. O sujeito assume, pois, o papel de participante. A coautoria se relaciona ao fato de ser sujeito ativo e contribuidor na reconstrução do entendimento. No processo dialógico, o sujeito assume o papel de primeira pessoa (ego) e instaura uma relação interpessoal com outro sujeito (alter). A constante alternância entre as posições de primeira e de segunda pessoa consagra a coautoria entre os concernidos. Todavia, as “vozes” dos sujeitos não-presentes continuam à margem. Às vezes, o abandono da terceira pessoa em favor da primeira pode indicar o menosprezo aos demais, pois trata de um sujeito não referencial. Nesse sentido, os próprios verbos indica a impessoalidade ou um tipo de informalidade, cuja posição fica à mercê dos atores diretamente concernidos.

Como foi destacado, o agir comunicativo faz parte do núcleo da ética discursiva. Isso evidencia que “o processo de reprodução material se apresente como dependente de um processo de entendimento intersubjetivo mediado por normas sociais” (Honneth, 2009, p. 358). Essa pauta não se refere apenas ao trabalho humano e social, pois, para Honneth, o entendimento deve traçar as linhas em torno da “organização da vida social no seu conjunto”. No caso, o “âmbito da reprodução material desenvolvida através das atividades instrumentais” (Honneth, 2009, p. 359). De qualquer modo, o desenvolvimento das atividades, ainda que instrumentais, está sempre vinculada a uma interação entre sujeitos coautores e, portanto, presumem uma interação mediada linguisticamente.

A inclusão do outro reitera a exigência no assentimento de todos os concernidos. Não se trata de um jogo qualquer, mas na possibilidade de os sujeitos coautores adotarem as perspectiva dos demais e, ao mesmo tempo, garantir a cada participante os seus interesses. Nesse caso, as regras da linguagem supõem o uso dos pronomes pessoais, aspecto que se evidencia no componente proposicional e no aspecto ilocucionário dos atos de fala. Por certo, é na oração principal que se encontra a inovação habermasiana. Essa experiência “proporcionada comunicativamente” significa que a linguagem não cumpre apenas a função de enunciativa, mas consolida uma relação interpessoal.

Até aqui, o foco é, por certo, antropocêntrico. Todavia, é pertinente a indagação a respeito das relações com os não humanos e outros elementos da natureza. Será possível evitar o tratamento ele ou eles para não humanos? Qual o pronome pessoal relativo a tais seres? Como proceder nesses casos?

Não há dúvidas de que tais questões precisam ser arrostadas. No caso de não humanos, é possível reconhecê-los como entes do direito (Onida, 2010, p. 180). Para Pietro Paolo Onida, a condição dos não humanos não pode ser reduzida à consideração de simples e meros objetos. Para ele, a perspectiva objetivista – e instrumental, no caso – parte do pressuposto equivocado de que os seres não humanos podem ser tratados enquanto “bens inertes” (Onida, 2010, p. 188). Na interpretação de Onida, a tradição latina diferencia res e pessoa. A tradução de res enquanto “coisa” assume a única versão para indicar qualquer “objeto material”. Todavia, é interessante perceber que res pode referir-se não apenas às coisas, mas também aos terrenos, edifícios, escravos e animais (Onida, 2010, p. 161). Ao mesmo tempo, Onida lembra ainda que a qualificação jurídica de servus abarca tanto a categoria moderna de objeto quanto de sujeito do direito. Para ele, foi na modernidade que ocorreu a separação entre sujeito e objeto, radicalizando e tornando a diferenciação entre personae e res inflexível, pois, na tradição romana, o ser humano é considerado, ao mesmo tempo, como pessoa e res (Onida, 2010, p. 164).

Nessa perspectiva, a fenomenologia – a começar com Husserl – também se insere em um debate que separa corpo (Körper) e corporalidade vivida (Leib). Na interpretação de Habermas, essa distinção realça a percepção de sujeito participante e sujeito observador e observado. Todavia, de forma alguma, o observador não participa menos que o observado (Pizzi, 2006, p. 125). Assim, o reconhecimento do outro, na sua originalidade de sujeito coautor, não admite qualquer tratamento ou relação instrumental.

Em outra vertente, Honneth afirma que há outro problema: a legitimação do poder (2009, p. 361). Essa “força” não regulamenta apenas entre os próprios humanos, mas também dos humanos em relação aos não humanos e à própria biosfera. Por outro lado, é possível insistir na “força da interação”, cujo interesse não está na capacidade de dominação instrumental, mas no potencial de interação entre todos os concernidos (sejam humanos ou não). Assim, o redimensionamento do âmbito moral, vinculado às exigências normativas (ou ao principialismo da vida como tal), reassume, na filosofia contemporânea, a exigência de atribuir uma dimensão não apenas jurídica, mas também moral a todos os sujeitos participantes; e se for o caso, inclusive as gerações futuras, como apregoa Hans Jonas (2006; 2013).

A tese está, então, em conseguir afiançar um papel participante e participativo aos não humanos e à biosfera (no caso). No âmbito jurídico, não há como fugir do reconhecimento de sua dimensão legal. Todavia, no âmbito moral, a auferibilidade de sujeito coautor parece um tanto perplexo. Como é possível perceber, na pluralidade de acepções e nos diferentes usos dos termos, poder-se-ia admitir como sujeitos não apenas os humanos, mas também outros seres isto é, outros sujeitos. Por mais controverso que isso possa parecer, esta seria a alternativa possível para situar a natureza, os não humanos e demais seres como coadjuvantes de uma ética que assume a responsabilidade presente e futura, com o objetivo de configurar um habitat planetário convivial e saudável entre todos os viventes da natureza. Por isso, na feitura de âmbito moral que não admite a terceira pessoa como neutra e, portanto, como ator completamente imparcial.

Em Ricoeur (2007), a exigência do pronome pessoal salienta a atitude reflexiva. A forma como ele justifica tem em vista três perguntas: o que; quem; e como. Segundo o autor, colocar a pergunta o que antes da pergunta quem implica na prevalência do “[...] lado egológico da experiência”, traduzindo-se em um impasse (Ricoeur, 2007, p. 23). Para ele, o agir delineado em termos do eu-sujeito deixa transparecer o aspecto coletivo a partir de um conceito analógico. De fato, o agir desde a primeira pessoa do singular pode presumir, no coletivo, uma compreensão analógica, às vezes até mesmo um corpo estranho, desenhado desde o falante sujeito-ator. E isso inibe o reconhecimento do outro enquanto sujeito coautor.

Em termos da teoria do agir comunicativo, o ato locucionário, na primeira pessoa do singular, indica que o falante não se comporta apenas como proponente, como também pode induzir à justificação do que seja a compreensão exclusiva do falante. No caso, o e os ouvintes nada mais conseguem a não ser assimilar e admitir tal proposição como se ela fosse expressão da vontade dos concernidos como tal. O aspecto locutório é resultante da ação de se emitir um enunciado, ou seja, do ato linguístico, locucional e locucionário concernente ao sujeito falante. E isso é concernente ao falante que se dirige a outros sujeitos proponentes.

Em vista disso, Ricoeur (2007) inverte a ordem das questões e coloca a pergunta “quem” antes do perguntar-se sobre o “que” isso significa. Para ele, uma boa doutrina fenomenológica deve preocupar-se em primeiro lugar com a questão intencional, isto é, com os sujeitos em “[...] todas as pessoas gramaticais” (Ricoeur, 2007, p. 23). Em outras palavras, o desdobramento da pergunta quem representa o lado pragmático, enquanto a pergunta o que revela o lado propriamente cognitivo. No fundo, a proposta aponta para a prevalência do lado pronominal, o que significa, em outras palavras, que nenhum dos pronomes gramaticais pode ser concebido e julgado como neutro, imparcial ou completamente desinteressado.

Em síntese, o binômio sujeito versus ouvinte caracteriza a terceira pessoa (singular e plural) enquanto pronomes de caráter neutro ou desinteressado. Assim, haveria a necessidade de um novo giro ao linguistic turn. No fundo, é necessário configurar uma teoria do agir que pudesse garantir um papel participante aos sujeitos coautores, mesmo que o pronome pessoal estivesse na terceira pessoa (singular ou plural). Em decorrência, poder-se-ia admitir como sujeitos não apenas os humanos, mas também outros seres. Por mais controverso que isso possa parecer, esta seria a alternativa possível para situar a natureza, os não humanos e demais seres como coadjuvantes de uma ética que assume a responsabilidade, presente e futura, na configuração de um habitat saudável; enfim, na feitura de âmbito moral que não admite a terceira pessoa como imparcial e, portanto, enquanto puro e simples objeto.

A perspectiva do agir instrumental deveria, portanto, ser modificada. Além de renegar a própria teoria dos interesses, a insistência de sujeitos na primeira e segunda pessoa (singular ou plural) atesta um público que deixa de lado os pronomes pessoais na terceira pessoa (singular e plural). Do ponto de vista gramatical, essa neutralidade poderia persistir, mas no âmbito moral, ela não se sustenta, pois o compromisso com a natureza e os não humanos exige seu reconhecimento enquanto sujeitos coautores. No caso, as gerações futuras não podem ser diretamente relacionadas enquanto egos ou enquanto alteres (outros) imparciais. Embora as formas de representatividade possam ser reivindicadas pelas gerações presentes, mesmo assim, elas continuam na conjugação da terceira pessoa, isto é, neutros e desinteressados.

Além do mais, é inapropriada a caracterização da terceira pessoa (do singular ou do plural) enquanto pronome pessoal vinculado à neutralidade ou do sujeito meramente observador. A pretensa neutralidade do sujeito inexiste. Ela sequer é plausível ou justificável, principalmente diante das novas exigências de um oikos-cosmos-logos (Pizzi, 2011). A insistência no binômio restrito a falantes e ouvintes e, no caso, a possibilidade do sujeito na terceira pessoa deixa de lado os coautores não participantes. Vale dizer, todos aqueles que não são reconhecidos como sujeitos caracterizados na primeira ou segunda pessoa ficam de fora da comunidade de comunicação, porque a pretensa neutralidade os caracteriza como não participantes.

 

4 CONCLUSÃO

 

A racionalidade ético-comunicativa proporcionou – e continua impulsionando – a releitura da filosofia, no sentido de redimensionar a própria noção de racionalidade, sem rechaçar o contexto de vida concernente ao Lebenswelt. Para tanto, as contribuições de Husserl e de Habermas são significativas, salientando não apenas os reducionismos, os formalismos e/ou procedimentalismos, mas também as implicações da categoria mundo da vida para a filosofia prática. Essa incursão torna claro o significado e as controvérsias da categoria mundo da vida, aspecto possibilita inclusive o questionamento a respeito das demandas ou das exigências de reconsiderar os diferentes horizontes da vida cotidiana.

Em relação a isso, cabe destacar a dicotomia que consagra a desconfiança desmedida em relação às experiências vivenciais e às contingencialidades relativas ao mundo da vida (tradicionalmente ligadas à doxa). De modo geral, a filosofia utilizou – ou utiliza – duas expressões para evidenciar essa classificação: episteme e doxa. Atualmente, essa divisão pode ser examinada em vistas a uma idealidade metafísica, isto é, a representação de uma plenitude frente a um mundo de circunstâncias concernentes às contingencialidades, ou seja, relativo ao habitual e ao mundo terrenal que, às vezes, é apresentado de um modo um tanto desfigurador ou, então, desacreditado.

Por isso, se a aproximação com Husserl possibilitou ampliar a compreensão do sentido concernente aos mundos de vida, o ensejo de uma racionalidade ético-comunicativa recupera da fenomenologia – de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Schütz, Parsons, Mead, entre muitos outros –, não apenas a crítica à unilateralidade de cunho nomológica e procedimentalmente monológico; ela permite, também, estudar e entender o significado e a importância desse saber intuitivo e pré-categorial relacionado às circunstancialidades do mundo da vida. Em outras palavras, essa incursão teórica, na perspectiva de uma teoria do agir comunicativo, abriu passo para resgatar e compreender o sentido concernente às circunstancialidades da vida cotidiana, algo nada ingênuo, desfigurador ou desmoralizado nem desmoralizável.

Em suma, a pragmática comunicacional se vê desafiada a entender os significados das ações de fala e de albergar, portanto, todos os pronomes pessoais. Trata-se, pois, de reconhecer o papel participativo de todos os sujeitos pronominais enquanto atores, sem considerar nenhum deles – no caso, as terceiras pessoas – como pronomes ligados a atores neutros ou imparciais. Ao salientar a força ilocucionária dos atos de fala, o sujeito assume o papel primordial. A relação intersubjetiva intercala ego e alter, isto é, o diálogo pressupõe a alternância de papeis entre sujeitos coautores da primeira e da segunda pessoa (singular ou plural). Todavia, quando se trata da terceira pessoa, há uma suposta impessoalidade ou imparcialidade. No nível gramatical, a terceira pessoa indica um sujeito não-presente ou, então, aparentemente sem qualquer intervenção direta. Contudo, as exigências pragmático- comunicativas presumem um tratamento pronominal a qualquer sujeito, de forma a reconhecer tanto o falante (singular ou plural = eu ou nós) quanto o ouvinte (singular ou plural = tu ou vós) o status de sujeito coautor, sem, no entanto, ignorar as terceiras pessoas. Daí, a proposta de averiguar como é possível levar em conta todos os pronomes pessoais no mesmo nível, sem, todavia, reduzir a perspectiva do pronome pessoal na terceira pessoa (singular ou plural) ele e/ou eles à esfera da imparcialidade. A impessoalidade pode caracterizar uma relação meramente objetual e, em razão disso, limitando a ação ao âmbito exclusivamente instrumental. Na tradição latina, por exemplo, a designação res é traduzida como “coisa”, mas que, numa releitura, assume a forma de sujeito concernido. Desse modo, na referência pronominal das terceiras pessoas, haveria a possibilidade de identificar não apenas um sujeito que não se resume a “bens inertes”, mas reconheça também sujeitos enquanto “entes de direito”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DO RECONHECIMENTO PARA PENSAR A EDUCAÇÃO PARA ALÉM DOS MUROS DA INSTITUIÇÃO[21]

 

Carline Schröder Arend[22]

Prefeitura Municipal de Pelotas

carlinearend@gmail.com

 

Jovino Pizzi[23]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO

 

O presente artigo emerge da necessidade de discutir e perceber a importância da inclusão de discussões sobre o reconhecimento no âmbito da educação. Mesmo sabendo que o principal teórico, Axel Honneth, que trata do reconhecimento, não aborde especificamente a educação em suas discussões, assim como sua teoria ainda não repercutiu amplamente nas considerações sobre educação, propõe-se a reflexão acerca de aspectos educacionais, como a formação e a inserção do pensamento sobre o reconhecimento para se pensar a educação, ampliando os horizontes de compreensão.

Nesse sentido, num primeiro momento, realiza-se uma breve reflexão sobre a fundamentação teórica do reconhecimento, bem como são pontuadas as categorias necessárias para que seja possível alcançar o reconhecimento recíproco. Em seguida, o papel do outro, já relacionado com o ambiente educativo, é discutido a partir do amor, a primeira categoria do reconhecimento. A partir disso, são apresentadas possíveis relações entre reconhecimento e formação, buscando salientar a importância da valorização dos ambientes sociais e dos movimentos sociais no âmbito de formação, principalmente a dos profissionais da educação, com o intuito de lançar o olhar para além das instituições educacionais.

 

2 TEORIA DO RECONHECIMENTO DO OUTRO EM HONNETH

 

A teoria do reconhecimento do outro tem sua base fundadora nas ideias do jovem Hegel, no período que esteve em Jena. Honneth (2003) parte da ideia de que a interação entre os sujeitos da sociedade se dá através do conflito, travando, assim, uma luta por reconhecimento. Ou seja, os sujeitos têm a possibilidade de reconhecerem-se mutuamente pelo fato de interagirem e pelo fato de nessa interação se depararem com particularidades e semelhanças, permitindo que haja esse encontro com o outro, que é diferente de si mesmo. Nas palavras de Honneth, essa complexa aproximação com o outro, mediante um processo que não é de todo pacífico, implica nada mais do que “fazer de si o outro de si mesmo e retornar para si mesmo” (2003, p.69). É nesse retorno que ocorre uma mudança no “si mesmo”, pois ao entrar em contato com o outro e o reconhecê-lo como tal, ao retornar a mim, já não sou mais o mesmo. Em outras palavras, posso deixar um pouco de mim no outro, assim como poderei trazer um pouco do outro para a constituição da minha identidade. Essa mudança ocasionada pelo contato com o estranho é que instiga as lutas por reconhecimento, percebendo que o conflito e o reconhecimento se condicionam um ao outro, impulsionando às mudanças sociais que os indivíduos tanto almejam.

Sendo assim, o conceito de reconhecimento recíproco, que está imbricado no reconhecimento do outro, o qual Honneth adota de Hegel, manifesta-se em três esferas sociais: nas relações afetivas ou no amor (família), nas relações jurídicas ou de direito (estado) e na  estima social ou na solidariedade (sociedade). Esferas essas que são pontuadas também por Werle e Melo (2007), quando dizem que:

 

Honneth encontra em Hegel três dimensões do reconhecimento distintas, mas interligadas. A primeira dimensão consiste nas relações primárias baseadas no “amor” e na “amizade”, e diz respeito à esfera emotiva, em que é permitido ao indivíduo, desenvolver uma confiança em si mesmo, indispensável para seus projetos de auto-realização pessoal. A segunda dimensão consiste em relações jurídicas baseadas em “direitos”. Trata-se da esfera jurídico-moral, em que a pessoa é reconhecida como autônoma e moralmente imputável e desenvolve sentimentos de auto-respeito. A terceira e última dimensão é aquela que concerna à comunidade de valores baseada na “solidariedade social”. Honneth está pensando, neste caso, na esfera da estima social, onde os projetos de auto-realização pessoal podem ser objeto de respeito solidário numa comunidade de valores.” (WERLE e MELO, 2007, p.15).

 

Na primeira esfera, o reconhecimento recíproco ocorre entre pais e filhos e está intimamente ligado às etapas de dependência absoluta e dependência relativa, o que possibilita o desenvolvimento da autoconfiança. Já, na segunda, ou na esfera do direito, esse reconhecimento ocorre quando o sujeito sai de seu contexto particular e ingressa em um contexto social ou universal, mediado por relações contratuais, ou seja, os sujeitos se reconhecem portadores de posse, percebem-se como proprietários e, principalmente, enquanto portadores de igualdade, possuindo, portanto, direitos iguais perante a sociedade. Na terceira, a esfera da estima social, as relações que ocorrem mediadas pela solidariedade, além de possibilitarem um respeito universal, possibilitam alguém se perceber como ser possuidor de suas particularidades a serem socializadas com os demais membros de determinada comunidade. Consoante Honneth, “para poderem chegar a uma autorrelação intangível, os sujeitos humanos precisam, além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (HONNETH, 2003, p. 198).

A ideia do reconhecimento intersubjetivo é constituída por uma filosofia idealista de Hegel a partir das reflexões apresentadas na dialética do senhor e do escravo. Assim, Honneth (2003) dá prosseguimento a essa reflexão sob a luz da teoria crítica dos frankfurtianos. A teoria do reconhecimento do outro, apesar de ser pouco conhecida no âmbito educacional brasileiro, transita livremente pela área do Direito, sendo que esta área originou as primeiras reflexões sobre tal teoria no Brasil. Como exemplo, citamos os autores Marcos Nobre (2003; 2008), Luiz Repa (2010), Emil Sobottka (2008; 2009), Giovani Saavedra (2008; 2009) Denilson Luis Werle e Rúrion Soares Melo (2007; 2008), entre outros, que discutem o reconhecimento do outro nas esferas jurídicas e sociais.

Honneth (2003) defende que a interação ocorre através do conflito e constitui a gramática moral dos conflitos sociais, ou seja, a luta por reconhecimento é a chave do entendimento de como se processa o desenvolvimento social, especialmente a constituição e a autocompreensão dos indivíduos em sociedade. Porém, Honneth não se alimenta apenas das fontes hegelianas, mas também busca aportes teóricos na psicologia social de G. H. Mead e sua principal obra - Espíritu, persona e sociedad (1973) e de Donald Winnicott – O brincar e a realidade (1975). A partir dessas proposições teóricas, ele constrói a hipótese da vivência do desrespeito, considerando ser o não reconhecimento “a fonte emotiva e cognitiva de resistência social e de levantes coletivos” (HONNETH, 2003, p.227).

 

 

 

 

2.1 AS ESFERAS DO RECONHECIMENTO SOCIAL DO OUTRO

 

Honneth (2003) propõe a explicação de sua teoria apresentando três esferas ou formas de reconhecimento, que são: o amor, o direito e a solidariedade. Para definir a primeira esfera, a do amor, Honneth parte de categorias defendidas por Winnicott (1975) para elaborar suas ideias. Num primeiro momento, Honneth reflete sobre a relação simbiótica existente entre mãe e filho, relação essa que ocorre ainda nos primeiros meses de vida do bebê. Mãe e filho vivem, nessa etapa, uma relação de dependência absoluta131: é como se eles vivessem um para o outro. Quando a mãe passa a retomar sua rotina diária, ambos percebem que conseguem viver um sem o outro, ou Segundo Honneth, “ela significa que os dois parceiros de interação dependem aqui, na satisfação de suas carências, inteiramente um do outro, sem estar em condições de uma delimitação individual em face do respectivo outro”. (HONNETH, 2003, p. 166). Então, que a mãe vai embora, mas retorna o que culmina em uma relação de dependência relativa. A criança passa a ter uma relação mais agressiva com a mãe nessa fase, pelo fato da mãe se ausentar em alguns momentos. São exatamente esses movimentos de agressão da criança ou, como Honneth mesmo afirma, “só na tentativa de destruição de sua mãe, ou seja, na forma de uma luta, a criança vivencia o fato de que ela depende da atenção amorosa de uma pessoa existindo independente dela” (Ibidem. p. 170). Do mesmo modo, a mãe também precisa compreender a independência da criança e seus ataques agressivos, de forma que “a mãe e a criança podem saber-se dependentes do amor do respectivo outro, sem terem de fundir-se simbioticamente uma na outra” (Ibidem. p.170). Honneth percebe então que há nesse momento o reconhecimento recíproco, pois mãe e filho possuem um enorme amor um pelo outro, mas, ao mesmo tempo, percebem que conseguem viver longe um do outro. Esse movimento de confiança entre ambos também resultará em autoconfiança.

Ainda na esfera do amor, Winnicott (1975) afirma que a criança precisa desenvolver dois mecanismos psíquicos: a destruição e os objetos transacionais. O mecanismo da destruição se desenvolve quando o bebê percebe que a mãe é independente e passa a agredi-la (mordendo, batendo). Esse momento de destruição é muito importante para o desenvolvimento da autoconfiança e da dependência da criança em relação à mãe. Já os objetos transacionais auxiliarão no processo de independência da criança em relação à mãe, pois aos poucos a criança transfere a ausência da mãe para esses objetos, como travesseiros, brinquedos, chupetas, etc. Quando a mãe desenvolve com a criança, de forma satisfatória, esse momento de separação, está contribuindo para o desenvolvimento da sua autoconfiança, o que poderá influenciar positivamente na relação de autonomia que ela poderá estabelecer mais tarde. Isso é de fundamental importância para, no futuro, essa criança obter êxito nos projetos de auto-realização pessoal, bem como conservar ou conquistar a sua identidade. É essa autoconfiança que possibilitará ao ser humano ter maior autonomia para participar ativamente na vida pública.

A assistência com que a mãe mantém o bebê em vida não se conecta ao comportamento infantil como algo secundário, mas está fundida nele ele de uma maneira que torna plausível supor, para o começo de toda a vida humana, uma fase de intersubjetividade indiferenciada, de simbiose, portanto. (HONNETH, 2003, p. 164). Para Honneth, a criança só consegue reconhecer o outro quando houver o amor e esse outro ser independente. No caso, em relação à mãe, isso acontece quando já ultrapassaram a fase de simbiose em que viviam. Sendo assim, o amor é a forma mais elementar de ocorrência do reconhecimento.

A segunda esfera de reconhecimento apontada por Honneth é a do direito ou do reconhecimento jurídico. Do mesmo modo que o reconhecimento recíproco acontece na relação entre mãe e filho, ou seja, nas relações que envolvem a esfera amorosa primária, ele também se manifesta na esfera do direito. Segundo Honneth, tanto Hegel quanto Mead apontaram que nós percebemos o direito que o outro possui a partir do conhecimento que possuímos de nossos direitos. Ou seja, “todo sujeito humano pode ser considerado portador de alguns direitos, quando reconhecido socialmente como membro de uma coletividade” (HONNETH, 2003, p. 180).

No direito, o reconhecimento é possível porque há respeito e, tanto no amor como no direito, a autonomia manifesta-se quando a liberdade do outro é reconhecida, do contrário não há tal autonomia. Na esfera do direito predomina o autorespeito. Nas sociedades tradicionais o reconhecimento jurídico se dava através do status ou estima social: o indivíduo só estaria habilitado a adquirir o reconhecimento jurídico caso possuísse uma boa posição na sociedade, ou então pelas atividades que desenvolvia na sua comunidade. Honneth afirma que com a modernidade há uma mudança na sociedade, ocasionando, assim, uma transformação também nas relações jurídicas. O reconhecimento jurídico deixa de valorizar única e exclusivamente o status da pessoa perante a sociedade e se torna algo mais geral, considerando os interesses da sociedade como um todo e, com isso, segue uma visão que parte do princípio de igualdade universal. Segundo Honneth (2003), a igualdade universal permite compreender que o indivíduo, como cidadão de uma sociedade, possui valor igual ao dos demais membros da coletividade. O fato de reconhecer-se juridicamente contempla também a questão moral do ser humano, a possibilidade de viver de forma digna, considerando as particularidades de cada ser. Assim, na esfera jurídica, a pessoa individual é reconhecida como autônoma e moralmente imputável, desenvolvendo uma relação de respeito consigo e com a sociedade. “É o caráter público que os direitos possuem [...] o que lhes confere a força de possibilitar a constituição do autorespeito” (Idem, p. 197).

A terceira esfera de reconhecimento sugerida por Honneth é a solidariedade. O reconhecimento se dá aí quando existe aceitação recíproca das individualidades, as quais são julgadas segundo os valores que a comunidade possui. Nessa esfera, é gerada a autoestima, isto é, a pessoa acredita no seu potencial e nas suas qualidades e, ao se deparar com outras pessoas, ela é reconhecida enquanto possuidora dessas características e assim é vista pela comunidade em que está inserida. Além disso, o indivíduo demonstra suas singularidades de forma intersubjetiva e universal, dentro de um meio social (SAAVEDRA e SOBOTTKA, 2008). Se as mudanças ocorridas ao longo da história também deixam suas marcas, a valoração social que havia através do status abre espaço para as manifestações individuais de valorização. Porém, Honneth assinala que tais manifestações individuais entram em atrito com a valorização coletiva: “o sujeito entra no disputado campo da estima social como uma grandeza biograficamente individuada” (HONNETH, 2003, p. 204). Portanto, nesse aspecto, a pessoa é reconhecida como digna de estima social, a qual ocorre em ambiente coletivo. Mas a vivência com seres singulares, na estrutura de um ambiente coletivo e plural, desencadeia um sentimento de tensão, de luta, pois estão todos em busca de autorealização. Dessa maneira, identificam-se com seus pares e desencadeiam um processo de reconhecimento de suas particularidades.

A esses três padrões de reconhecimento intersubjetivo correspondem três maneiras de desrespeito: a violação, a privação de direitos e a degradação, respectivamente. Em resistência a essas formas de não reconhecimento, é que se manifestam os conflitos sociais, tendo por resultado sua paulatina superação. Honneth entende por luta social “o processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” (Ibidem. p. 257). É nesse sentido que as lutas por reconhecimento passam a fundamentar os avanços normativos sociais.

Em síntese, cada uma das esferas do reconhecimento possui uma autorelação prática do sujeito: nas relações amorosas é a autoconfiança, nas relações jurídicas há o autorespeito, e na comunidade de valores há a autoestima. A partir do momento em que ocorre o desrespeito em alguma das esferas, gera-se o conflito ou o sentimento de luta, gestando-se, assim, as lutas sociais.

Quando o desrespeito ocorre na esfera do amor, ele ameaça a integridade física e psíquica, pois se manifesta por meio de maus-tratos e violação. Na esfera do direito, o desrespeito atinge a integridade social da pessoa, pois a mesma é privada de seus direitos e excluída do convívio social. E, por fim, na esfera da solidariedade, são as ofensas e infâmias que geram o desrespeito, afetando a dignidade da pessoa enquanto inserida em uma comunidade de valores. Logo, podemos compreender, aqui, as mudanças sociais como resultado de lutas ocasionadas pelo desrespeito às esferas do reconhecimento. É a partir do conceito de eticidade que se torna possível identificar as patologias sociais, ou seja, o pressuposto de um ideal de vida boa, que compreende valores éticos e morais, possibilita perceber a violação cometida contra a liberdade pessoal e os valores comunitários.

 

2.2 O PAPEL DO OUTRO NA EDUCAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DO AMOR NO CONTEXTO EDUCACIONAL

 

A possibilidade de abertura ao outro, ao diferente e ao estranho proporciona que a formação vá além dos limites técnicos, rigorosos e, talvez, até ortodoxos do pensamento transcendental que ainda perdura na educação, controlando e homogeneizando as ações pedagógicas. A partir das reflexões propostas por Hermann, em seu texto Breve investigação genealógica sobre o Outro (2011), são apresentados alguns passos que foram necessários percorrer para que a questão do outro se tornasse objeto de estudos na modernidade, bem como para que pudéssemos compreender o outro de forma que ele viesse a nos completar. Ou seja, na contemporaneidade, tomamos consciência da necessidade que possuímos do outro nos reconhecer para que nós mesmos possamos nos auto-reconhecer.

Nesse sentido, Hermann retorna a Platão e seu pensamento metafísico para explicar que, com a dualidade estabelecida entre corpo e alma, luzes e trevas, etc, o outro era compreendido como estranho e, portanto, era rechaçado. Ela afirma que “nessa concepção de natureza humana, o corpo é o outro da alma e tende a se tornar estranho à própria identidade de si” (HERMANN, 2011, p. 139). Nos tempos antigos, a separação entre corpo e alma remetia-se muito aos dogmas religiosos. Portanto, o que era considerado bom, se relacionava à alma, já o que se considerava ruim, ou perverso, pertencia ao corpo, pois esse, por possuir sensibilidade, permitia-se o estranho.

Já no século XIX, o outro passa a ter uma existência, pois o eu passa a ter outra identidade e nessa identidade ele se abre ao múltiplo e, assim, também ao diferente. É nesse sentido que Hegel o apresenta em sua Fenomenologia do Espírito:

 

Surgiu, porém agora o que não emergia nas relações anteriores, a saber: uma certeza igual à sua verdade, já que a certeza é para si mesma seu objeto, e a consciência é para si mesma o verdadeiro. Sem dúvida, a consciência é também nisso um ser-outro, isto é: a consciência distingue, mas distingue algo tal que para ela é ao mesmo tempo um não diferente. (HEGEL, 2008, p.135).

 

Portanto, essa consciência ainda não está totalmente aberta ao diferente, ao outro, mas ela já o percebe como tal, só não o reconhece. Hermann (2011) afirma que as reflexões realizadas no período do idealismo nos prepararam para ver o outro, de forma que a isso podemos remeter a dificuldade em nos reportarmos e reconhecê-lo nos planos culturais, políticos e éticos. A autora cita o exemplo da colonização de muitos países, que ignorou a cultura já existente e impôs a sua, o que configura-se como um exemplo de completa desvalorização da diferença e de imposição do outro.

Tomando como ponto de partida a primeira esfera de reconhecimento, o amor, e as relações afetivas, propostas por Honneth (2003), cabe ressaltar que “por relações amorosas devem ser entendidas aqui todas as relações primárias, na medida em que elas consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas [...] de amizades e de relações pais/filhos” (HONNETH, 2003, p. 159). Portanto, a reflexão a respeito da relação estabelecida entre teoria e prática, bem como entre educador e educando, se torna promissora quando pensada por esse viés compreensivo. Logo, “em sua efetivação os sujeitos confirmam mutuamente na natureza concreta de suas carências, reconhecendo-as assim como seres carentes” (HONNETH, 2003, p. 160).

Nesse sentido, pensando na relação existente entre teoria e prática, ela passa, em um primeiro momento, por uma relação de certa dependência, ou seja, “na experiência recíproca da dedicação amorosa, dois sujeitos se sabem unidos no fato de serem dependentes, em seu estado carencial, do respectivo outro” (HONNETH, 2003, p. 160). Mas é a partir do reconhecimento da independência do outro que o conflito é gerado e se desencadeia a luta pelo  reconhecimento, em que teoria e prática segue por um caminho de forma independente, desenvolvendo à sua maneira o processo educativo.

Ao trazer esta situação para o cotidiano de uma instituição escolar, ou então, para dentro do contexto acadêmico, há possibilidades de relacionar tais ideias com a situação em que estão envolvidos igualmente professor e aluno. Para que teoria e prática aconteçam de forma simétrica e recíproca, é preciso haver a construção de uma relação que envolva o desenvolvimento da afetividade e do amor. Sendo assim, na relação existente entre professor e aluno há a implicação do afeto e da confiança, que envolvem a valorização do conhecimento, da compreensão por parte do professor e também do aluno, dos interesses e das intenções a serem construídos ao longo do processo educacional, pois tal construção também diz respeito à esfera amorosa.

O professor desempenha um trabalho que inclui o cuidado com seu aluno, tanto ao estimulá-lo para buscar o conhecimento e ampliar seu pensamento ou sua cognição, como quando o orienta no sentido de ter mais paciência, não desistir, chamar a atenção para o que está realizando de forma equivocada, etc. Sabemos que o conhecimento não é algo inato, por conseguinte ele é resultado de um processo que envolve dedicação, paciência, reflexão, curiosidade, descoberta e, principalmente, desejo de aprender e de pesquisar.

No entanto, do mesmo modo que a mãe constrói com a criança, aos poucos, um processo de afastamento ou de dependência relativa, o professor precisa construir esse distanciamento com seu aluno, considerando obviamente que este deverá ser independente do professor no processo de busca de novos conhecimentos. Mesmo porque, ele vai estar frente aos seus próprios alunos ao exercer sua profissão, precisando ter adquirido autonomia profissional para isso. Desse modo, essa relação exige afeto e cumplicidade, embora existam momentos em que o professor irá causar desconfortos e o aluno se sentirá irritado, incomodado, aborrecido, chateado, tanto com o professor quanto consigo mesmo. Nesse momento é perceptível a semelhança existente com a teoria do reconhecimento e, nesse caso, com a primeira esfera, a do amor, quando ocorre a agressão do filho com sua mãe, pois esta se afastou dele por um período. O filho está compreendendo a independência da mãe e, por isso, inicia um processo de conflito, ou seja, uma luta por reconhecimento. Da mesma forma pode ocorrer com o aluno em relação ao professor, em que o primeiro irá esbravejar, reclamar, duvidar do seu mestre, pois está em busca do seu próprio reconhecimento.

Ao refletir sobre a relação professor/aluno, na qual o professor exerce a autoridade e a dominação sobre o aluno, o professor detentor e o aluno receptor do conhecimento, é possível associar tal discussão à reflexão realizada por Flickinger (2010a), em seu texto Senhor e escravo: uma metáfora pedagógica. Nesse artigo, o autor comenta que o senhor, ao exercer o poder sobre o escravo, busca o reconhecimento de sua dominação: “Pela sua experiência no convívio com o escravo [...] o senhor vê-se continuamente exposto à situação de ter de assegurar a subordinação do outro [...] ele precisa do outro e, já nesse sentido, não se poderia considerar autossuficiente” (FLICKINGER, 2010a, p. 129). Na dialética hegeliana do Senhor e do Escravo, o senhor só se reconhece como senhor por existir algo ou alguém, no caso o escravo, que o reconhece como tal e permite que haja essa dominação, a qual permanece ou perpetua-se, uma vez que há uma relação de dependência. O senhor é dependente do escravo, mas este último não compreende dessa forma e permite a dependência, o acarreta sua continuidade. Portanto, o senhor torna-se dependente do trabalho de seu escravo, bem como de sua obediência. Ou seja, tanto nas relações de força ou de dominação, quanto nas relações amorosas, o processo de libertação é o mesmo: existe a necessidade de compreender até que ponto a submissão é importante para a constituição da própria identidade e autonomia, mas também até onde ela se torna um empecilho e um risco. No contexto pedagógico, deveríamos estar mais atentos a esse fato para que os alunos não sejam simples clones de seus professores, robotizados ou automatizados, repetindo um discurso e uma prática pré-estabelecida.

Mas o que pode estabelecer este diferencial entre teoria e prática, dando o tom necessário para a aproximação, além da necessidade de afastamento entre professor e aluno, é a constituição da terceira esfera do reconhecimento: a solidariedade, ou estima social, relacionada ao reconhecimento não restrito exclusivamente ao âmbito familiar e jurídico, mas sim que avança para a esfera da convivência em sociedade. Para adentrar nesse universo do reconhecimento, é preciso sair do intra-acadêmico e intraescolar para ampliar os horizontes de compreensão e passar a entender a sociedade. Nesse sentido, é a partir do reconhecimento que se dá entre os indivíduos em um espaço mais amplo da convivência humana que devemos tomar como referência, para trabalhar, o conhecimento em sala de aula. Ou seja, a partir da forma como as coisas ocorrem no mundo da vida, o modo como o reconhecimento do outro se dá na esfera social em que estamos inseridos, possibilitar-se-á uma maior compreensão do trabalho a ser desenvolvido no espaço intraescolar e intra-acadêmico. O reconhecimento do outro aí ocorre levando em consideração os ambientes e espaços não formais de aprendizagem, conforme aduz Flickinger (2010b), observando como os novos grupos sociais estão construindo a sua identidade. Ele cita o caso dos grupos de motoqueiros, pois aí não há uma simples instrumentalização de técnicas, já que eles conseguem manter seus ideais e objetivos de encontros, lançando-se em busca da conquista da liberdade.

Flickinger (2010b) finaliza dizendo que a Pedagogia deveria observar esses novos movimentos e tentar trazer essas experiências “do outro” para si, como forma de entender o que acontece na realidade, fora de seus esquemas conceituais e operacionais de trabalho. Para isso, a teoria do reconhecimento do outro pode possibilitar uma visão e uma compreensão mais ampla da sociedade e a Educação vem perceber a importância de lançar esse olhar para os espaços não formais de aprendizagem e formação. Essa forma de ver e sentir – sob o prisma do outro – pode alavancar a compreensão para além do entendimento da práxis pedagógica como algo restrito ao intraescolar ou intramuros da escola e da universidade.

 

 

2.3 A FORMAÇÃO NO RECONHECIMENTO DO OUTRO

 

Flickinger (2011) acredita que com a compreensão da herança que a educação possui do processo de secularização, vivenciado concomitantemente ao Iluminismo, é possível entender grande parte dos problemas enfrentados, inclusive da predominância, ainda hoje, pelas ideias iluministas no cerne das reflexões e ideais da pedagogia. Segundo o autor, “a pedagogia contemporânea ainda está longe de enxergar e atender às demandas de uma formação não reduzida à tarefa de profissionalizar o educando para integrá-lo o mais rápido possível ao mercado de trabalho” (2011, p.164). Nesse sentido, complementa:

 

É a integração do indivíduo no mercado de trabalho que lhe providencia não apenas os meios materiais para sua subsistência, senão, antes de tudo, o reconhecimento como membro valioso da comunidade. Quem não consegue acesso a este mercado corre o risco de sua exclusão social, seja ela causada por doença, por deficiência física ou psíquica, por idade, por falta de qualificação ou por outros motivos. [...] quem quiser alcançar um mínimo de independência pessoal terá de concentrar todo o esforço no aperfeiçoamento das condições que o acesso ao mercado de trabalho exige. (FLICKINGER, 2010b, p. 179).

 

Essa formação para o mercado de trabalho está culturalmente arraigada aos meandros das políticas públicas e às bases curriculares nacionais dos cursos de formação. Isso deixa evidente a postura política da legislação ao estabelecer diretrizes que, através da formação educativa, legitimem os interesses de setores da sociedade que dependem da instituição educacional para manter e acelerar a incorporação dos ideais capitalistas na sociedade.

Sendo assim, são as necessidades econômicas que ditam as formas de entrada na sociedade, pois a busca pela qualificação é guiada por tais prerrogativas, ou seja, a formação adquire como ideal os ditames da sociedade competitiva na qual está inserida. Do mesmo modo, a educação agrega nos seus ideais de formação tais ditames, objetivando resultados imediatos, deixando de considerar os meios e processos da construção de conhecimento para se ater a resultados e fins. Por esse caminho, “o processo de formação vê-se guiado pelas diretrizes da racionalidade econômica que servem também de critérios para a avaliação dos resultados” (FLICKINGER, 2010b, p. 180).

Porém, ainda segundo Flickinger (2011), a pedagogia não tomou consciência plena da influência desse processo, e por isso não consegue corrigir os problemas que surgiram a partir disso. Com a crença irrestrita na razão humana, a educação, com o intuito de conquistar a autonomia e a liberdade, exerceu papel muito importante para chegar a esse objetivo. A partir dessa consideração, Flickinger (2011) utiliza-se de um exemplo da criança quando vivencia a fase de descoberta de sua individualidade. Ele destaca os momentos em que a criança se depara com suas fraquezas e dificuldades, e assim busca forças dentro de si para superar tais obstáculos: “insistindo na sua capacidade de dominar o ambiente [...] ela finge ser autônoma, buscando comprovar sua soberania tanto para os adultos, quanto para si mesma” (FLICKINGER, 2011, p. 155). Por conseguinte, o homem que vive a secularização, ao perder a crença na proteção divina, preenche esse vazio crendo em sua capacidade de determinar sua vida, conferindo a si os poderes que anteriormente eram de um Deus. Tal situação ocorre, “porque a formação abrange o ser humano na sua íntegra e não somente como elemento funcional em um sistema por ele vivido como um mundo a ele impingido” (FLICKINGER, 2010b, p. 193).

Com o processo da secularização e do advento dos ideais iluministas, o homem, ao perceber o vazio deixado pela desvalorização de Deus como o ser todo poderoso, conhecedor de tudo, projeta na racionalidade humana a possibilidade de alcançar a liberdade e a autonomia. Portanto, o homem passa a construir a ideia de senhor de si mesmo, preenchendo assim o espaço antes ocupado pela ideia de Deus. Nesse sentido, tomando a ideia de onipotência, o homem se enredou em um narcisismo, percebendo em sua racionalidade a solução para os problemas. Essa referência à crença na onipotência do ser humano recaiu em um ideal de dominação do universo por meio do desenvolvimento do conhecimento científico, o que resultou em grandes guerras e conflitos globais pela hegemonia de uns sobre os outros.

Para Flickinger (2011), tais resquícios da secularização e do Iluminismo refletem seus ideais nas diretrizes e pensamentos que norteiam a educação atualmente. O autor destaca que o principal conceito que retrata a vertente iluminista e a secularização é a busca da autonomia, ou seja, o homem “senhor de si mesmo”. Com essa crítica que faz à pedagogia e seu ideal de formação, ele tenta abalar as certezas racionais daqueles que acreditam que a formação está somente nos ambientes escolares. Na verdade, como preconiza a teoria do reconhecimento, a prática da educação está também nas famílias, na sociedade em geral e no compromisso do estado, através da cultura, dos valores morais, estéticos e éticos vivenciados no mundo. É assim que a formação, enquanto reconhecimento, revela à educação a necessidade de transcender os muros escolares e acadêmicos e de permitir o contato com o estranho, o outro e o diferente, para então reconhecê-lo.

Honneth afirma que “experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” (HONNETH, 2003, p. 257). Portanto, na teoria do reconhecimento, é possível perceber um ideal de formação que envolve os processos sociais de luta. Do mesmo modo, Flickinger (2010b) realiza uma reflexão estabelecendo relação com os grupos sociais. Esse autor afirma que a Pedagogia deveria se espelhar na organização desses grupos como forma de ampliar os horizontes formativos, sendo necessário que a educação precisa se permita lançar um olhar para fora do ambiente única e exclusivamente acadêmico e escolar. A sociedade oferece uma infinidade de nuances que podem servir de exemplo para a organização e planejamento do aspecto pedagógico.

 

3 CONCLUSÃO

 

Assim como a teoria do reconhecimento, no âmbito educacional também se percebe a necessidade de ampliar a discussão para além da sala de aula, considerando a educação como um fenômeno social, em que participam e interferem a família, o estado e a sociedade como um todo. Afinal, essas instâncias estão envolvidas na gênese da constituição educacional e, principalmente, nas possibilidades que surgem para pensar e refletir sobre o operar pedagógico.

A proposta da teoria do reconhecimento do outro apresenta-se como uma possibilidade de redimensionamento da problemática Tal teoria vem contribuir no que diz respeito a compreender e reconhecer as três esferas em que se dá o reconhecimento: no âmbito da família, com a vivência do amor; do direito, através do cultivo do respeito; e da sociedade, por intermédio da solidariedade.

Em um segundo momento, o reconhecimento ocorre na esfera do amor, categoria na qual a relação entre teoria e prática pode ser refletida, pois não são apenas os conhecimentos que deixam subentendida uma relação de amor semelhante à vivida pela mãe e pelo filho, mas também as relações entre professor e aluno. Por último, o reconhecimento social permite ampliar a esfera da formação para o reconhecimento das experiências não formais de aprendizagem, que ocorrem na vivência da solidariedade dos grupos e associações que compartilham valores comuns, como os que acontecem nas redes sociais e nas mídias ou, presencialmente, nos grupos de motoqueiros, por exemplo, pois, há, dentro dos grupos, relações intersubjetivas que mediam a convivência entre os pares. É a intersubjetividade que direciona para o reconhecimento.

Desse modo, os movimentos sociais e os desafios que se apresentam na sociedade atual, ao serem levados em consideração, podem contribuir para a formação, pois tais questões fazem parte do cotidiano dos indivíduos e complementam o debate sobre a educação atual. Ou melhor, estaremos buscando, assim, princípios e ideais de formação que estejam à altura dos problemas e desafios enfrentados na atualidade.

Por isso, o reconhecimento na esfera da solidariedade ocorre no momento em que teoria e prática ultrapassam os muros escolares e acadêmicos e se deparam com a sociedade e o mundo da vida, buscando aí vestígios do ideal de formação humana e a possibilidade de teoria e prática poderem se reconhecer e andar no mesmo sentido e caminho. Ao propor a abertura ao outro, o professor e o aluno poderão aprender a enfrentar as dificuldades e a mediar conflitos, percebendo e reconhecendo o outro na sua alteridade de forma intersubjetiva. Amplia-se, por esse itinerário, as compreensões formativas, abandonando ideais que se pautam em meras aprendizagens de técnicas e métodos. A formação ultrapassa os muros da escola e da universidade e, ao se utilizar dos exemplos dos grupos sociais e associações que se organizam na sociedade, buscam seu reconhecimento e, principalmente, livram-se das amarras impostas pela sociedade. Sociedade essa que preza pelo narcisismo, pelo individualismo e que se direciona cada vez mais para a instrumentalização da razão. Se a formação dos profissionais da educação ainda apresenta muitos déficits ou lacunas em consequência da submissão a um modelo de racionalidade fechado e excludente, que segrega o pedagógico ao ambiente puramente escolar e acadêmico, quem sabe tal formação possa buscar inspiração para sua mudança nos múltiplos caminhos e possibilidades abertos pelo reconhecimento do outro.

 

REFERÊNCIAS

 

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HERMANN, Nadja. Breve investigação genealógica sobre o outro. In: Educação e Sociedade. Campinas, v. 32, n. 114, p. 137-149, jan.-mar. 2011. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br

 

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SAAVEDRA Giovani A., SOBOTTKA, Emil A. Discursos filosóficos do reconhecimento. In: Civitas, Porto Alegre, v.9, nº3, p. 386-401, set/dez, 2009. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=74213095004

 

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WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Trad. Jose O. de A. Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA, 1975.

 

 

 

 

 

 


A PERSPECTIVA PÓS-METAFÍSICA DO AGIR COMUNICATIVO

a superação dos limites de uma fundamentação da ontoteológica e as restrições ao empoderamento do sujeito monológico[24]

 

Jovino Pizzi[25]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO

 

A teoria do agir comunicativo de Habermas resgata um déficit filosófico sem precedentes. A mudança evidenciou não apenas as limitações da filosofia da consciência, mas realçou – e de forma irrefutável – o “conceito fenomenológico de mundo da vida” (Habermas, 2012 I, p. 4). Essa questão é tema recorrente, com o que, por um lado, é possível insistir nas formas de colonização das esferas da vida cotidiana – isto é, não somente em relação aos bloqueios impostos pelo sistema – e, por outro, reaver e compreender o sentido do agir comunicativo e seus diferentes plexos “de racionalidade e respectivos aspectos de validade” (Habermas, 2012 I, p. 4). Nesse sentido, é importante estudar o significado não de uma metafísica dos costumes, como presumia Kant, mas em situar as referências ao aspecto vivencial e a própria fundamentação do âmbito moral no nível pós-convencional. Em outras palavras, as pretensões de validade não estão previamente determinadas, conquanto os sujeitos coautores são os responsáveis para as deliberações acordadas intersubjetivamente.

Em relação a isso, não quero aprofundar os aspectos concernentes à fundamentação propriamente dita. A tentativa cogita salientar os déficits da filosofia ocidental e, ao mesmo tempo, destacar a demanda que a própria filosofia apresenta em relação às circunstancialidades da vida cotidiana. Embora os “imperativos do mundo da vida” (Habermas, 2012 I, p. 5) apresentam um alcance limitado, é nesse horizonte que os sujeitos se reconhecem como coautores. Por isso, os imperativos resguardam um sentido que não pode ser simplesmente rechaçado, pois suas pretensões de validade se inserem em um nível pós-metafísico, o que não significa a recusa peremptória de seu aspecto ontológico. A perspectiva pós-metafísica da teoria do agir comunicativo representa, para a filosofia e para as ciências em geral, a certificação de que as questões da vida cotidiana têm um significado imprescindível, às vezes, com antipatias substanciais à lógica do direito ou às formulações sistêmicas do poder e do dinheiro.

Com o fim de ressaltar o significado das questões relacionadas à vida cotidiana (every day life), o primeiro item deste texto mostra as duas leituras que a filosofia expõe diante do tema. O segundo ponto trata de aclarar aspectos relacionados ao individualismo e sua relação com a filosofia da consciência. Em terceiro lugar, gostaria de fazer alusão ao excessivo empoderamento do invididualismo na sociedade atual e a decorrente perda da confiança e da solidariedade entre as pessoas. Por fim, apontar-se-á algumas consequências que esse debate tem para com a filosofia, principalmente em relação aos aspectos relacionados com o every day life.

 

2 ROMPENDO COM AS IDEALIZAÇÕES

 

Nas Teses contra Feuerbach, um dos aspectos chaves relaciona-se à necessidade de transformação da realidade (Marx, 1985, p. 52). Para tanto, é necessário desvencilhar-se dos resquícios teológicos de uma filosofia voltada à idealidade e às idealizações de um mundo, cujos fundamentos advém do horizonte ontoteológico. Por isso, a questão não é religiosa ou ligada a uma ontologia preocupada com as provas da existência de Deus, mas como “atividade humana sensível”. O argumento ontológico ligado ao Monologion e a suas interpretações posteriores, indica uma “essência absolutamente perfeita”, conquanto a existência se refere às contingencialidades da vida cotidiana. Nessa relação, o máximo que pode ocorrer é a identificação, a coerência e/ou a correspondência entre a idealização e fato concreto, isto é, a realidade circunstancial como tal.

A tradição ocidental se enfrenta constantemente a esse tipo de argumentação. Não apenas Marx, mas outros filósofos procuram também escapar desse ontologismo, uma espécie de doutrina que sustenta que o conhecimento advém de uma idealidade ontoteológica e serve como fundamento das circunstancialidades da vida cotidiana. Com sua origem na Patrística, essa ontologia foi nutrida e amplamente divulgada no período moderno. Os exemplos mais destacados estão em Descartes, Leibniz e Kant, entre outros. Cada um com sua forma de argumentar, a tese de uma “teologia racional” chega a ser um dos pontos chaves da filosofia moderna, esforço que apresenta também uma versão laica da ontologia.

Sem maiores aprofundamentos, a questão está diretamente relacionada com o pensamento de Habermas. Evidentemente, as perspectivas são relativamente diferentes, principalmente no aspecto da fundamentação. Mas há, creio eu, um aspecto que me parece salutar. A ideia de “transformação do mundo” – como pregava Marx – passa por uma mudança na própria filosofia. Na verdade, quando Habermas fala na transformação da filosofia, ele está mencionando o comprometimento da filosofia com a realidade de nosso tempo. Essa parece ser a pedra de toque de uma filosofia preocupada em assegurar a fundamentação de um pensamento não apenas idealizante, mas de uma práxis voltada realidade cotidiana da convivência social.

Não desejo aprofundar o tema desde a perspectiva de Marx, muito menos de uma ontoteologia. A proposta se volta a salientar a contribuição de Habermas à medida que ele admite o mundo da vida como uma categoria chave para a filosofia e, por isso mesmo, advoga por uma racionalidade comprometida com as circunstancialidades da vida cotidiana. Sem dúvidas, o tema mundo da vida navega entre duas margens e os diferentes contornos se deparam, na tradição europeia e ocidental, com pelo menos duas interpretações diferenciadas. De um lado, a compreensão um tanto contraproducente em relação à razoabilidade terminantemente filosófica; e, de outro, a disposição em considerá-lo fundamental para compreender o agir comunicativo. Nas duas correntes, o mais significativo se relaciona ao reconhecimento de que o mundo da vida se transformou em uma categoria que a filosofia não pode simplesmente ignorar.

Como bem salienta o próprio Habermas, no prefácio à terceira edição da obra Teoria do Agir Comunicativo, as contestações “me desafiam sobretudo a continuar desenvolvendo minhas teses e a torná-las mais precisas, e não tanto da correção de erros” (2012 I, p. 5). Como é possível perceber, Habermas não abandona determinadas categorias e as conserva como peças chaves no delineamento de seus pressupostos filosóficos. Por isso, a noção de Lebenswelt (mundo da vida – e não mundo vivido) é extremamente significativa no sentido de assegurar, às contingencialidades da vida cotidiana, o lugar imprescindível para a teoria do agir comunicativo. A via de racionalização através do processo comunicativo requer, pois, a compreensão do mundo da vida, categoria fundamental na obra de Habermas.

Apesar disso, continua vigente a dupla interpretação da categoria Lebenswelt. Para Ivan Canales, por exemplo, Habermas não consegue responder adequadamente ao que se propõe, na medida em que sua proposta “não é factível”, pois a noção de mundo da vida exclui aspectos importantes. Canales se reporta à heurística negativa, conquanto núcleo duro de uma teoria capaz de dar conta da pluralidade de contextos auxiliares, isto é, ao cinturão que garante a solidez e a consistência desse núcleo duro.

Em sentido oposto à análise de Ivan Canales, é evidente que a proposta de Habermas apresenta um núcleo duro, ou seja, é possível afirmar que a teoria do agir comunicativo apresenta uma “fundamentação teórico-linguística” vinculada a “uma teoria social que se empenha por demonstrar seus parâmetros críticos” (Habermas, 2012 I, p. 9). Em outras palavras, o núcleo sólido da teoria do agir comunicativo salienta uma metodologia reconstrutiva que não depende das idealizações ontoteológicas, pois o processo de entendimento decorre da capacidade interativa dos sujeitos participantes. Eles são, pois, os coautores do entendimento.

De acordo com Lakatos, o núcleo duro é irrefutável “por decisão metodológica de seus defensores; as anomalias devem apenas originar mudanças no cinturão protetor” (2009 I, p. 67). Trata-se, pois, de um exercício metodológico voltado a reafirmar o núcleo sólido ou, então, exigir uma mudança na fundamentação teórica. Em termos discursivos, a metodologia reconstrutiva (Pizzi, 2005, p. 47 ss) pode afiançar as bases racionais do agir comunicativo. Deste modo, é possível garantir um procedimento que não desvincula a fundamentação das circunstancialidades circunscritas no every day life. Em outras palavras, conteúdo das contingencialidades não pode ser simplesmente refutado ou tratado como insignificante, pois é, exatamente, esse o contexto vivencial inerente ao agir comunicativo.

Nesse sentido, a heurística negativa consolida “o núcleo firme” do programa de fundamentação, o qual, por questões metodológicas, se torna irrefutável (Lakatos, 2009 I, p. 68). Por outro lado, a heurística positiva “consiste de um conjunto, parcialmente estruturado, de sugestões ou pistas a respeito de como modificar e desenvolver as interpretações refutáveis do programa de pesquisa, sobre como modificar e conduzir o cinturão protetor contestável” (Lakatos, 2009 I, p. 69). A heurística negativa garante as bases racionais do agir comunicativo – delineado como aspecto de fundamentação –, enquanto a heurística positiva se encarrega de conduzir o debate em torno às contingências e especificidades relacionadas à multiplicidades relativas à vida cotidiana.

Aplicada à teoria do agir comunicativo, a heurística apresenta, pois, um delineamento epistemológico que comporta um aspecto teórico ligado à fundamentação e, ao mesmo tempo, um horizonte consagrado ao habitat ou ao habitual. Nessa configuração, o conceito de mundo da vida funciona como pano de fundo que possibilita a inter-relação entre sujeitos coautores. Essa exigência presume que o procedimento comunicativo não poderia efetivar-se sem as duas dimensões. Por isso, a operacionalidade do agir comunicativo está vinculada ao próprio procedimento comunicativo. O processo de compreensão e de interação comunicativa não pode desvincular-se de seu horizonte originário, isto é, do mundo da vida, até mesmo porque não há como negar as divergências e contradições inerentes às diferentes concepções de bem viver e da própria justiça. Na verdade, a multiplicidade consegue ganhar mais destaque quando esse cinturão se limita a sinalizar as pretensões plausíveis das pseudopretensões. Além do mais – e principalmente – trata-se de reafirmar as contrastações e os apoiamentos (sustentáculos) plausíveis a qualquer processo de fundamentação.

Não se trata aqui de um convencionalismo ou de uma epistemologia com dois níveis ou horizontes diferenciados, mas de um procedimento capaz de garantir a fundamentação em torno às exigências normativas e, ao mesmo tempo, em reconhecer as eventualidades, na sua indeterminação e imprevisibilidade. A plausibilidade do núcleo duro garante um tipo de fundamentação que não abandona ou refuta as contingencialidades concernentes ao every day life, isto é, à cotidianidade da intersubjetividade relacional.

Essa arquitetura procedimental repara o déficit a respeito da noção contraproducente, específica de uma tradição que salienta o ponto de vista extremamente nocivo ou malvisto em relação às diferentes dimensões da vida cotidiana. Porém, a tendência parece impregnar e/ou reforçar a desconfiança desmedida em relação às experiências vivenciais e às contingencialidades relativas ao mundo da vida. Como outras vezes já mencionamos, em Platão, por exemplo, a ideia de um mundo efêmero e visível recomenda o descrédito e o menosprezo ao horizonte ligado à vida cotidiana (every day life). A realidade vinculada à doxa não passa de um horizonte inapropriado, isto é, um pseudo-horizonte e, portanto, nada confiável e esvaziado de qualquer sentido. No caso, a vida inautêntica evidencia pretensões que podem ser simplesmente desqualificadas. Em suma, as circunstancialidades representam empecilhos ao processo de racionalização sistêmica e, pois isso, elas impedem a possível emancipação dos sujeitos.

Nessa contraposição, há uma espécie de dilema ligado ao modo “habitual” da vida, mas que, no fundo, insiste que a realidade cotidiana não passa de um horizonte ligado ao perecível e, por isso, não serve como ponto de partida – e, ao mesmo tempo, ponto de chegada – para qualquer tentativa de fundamentação racional. Em Descartes, por exemplo, a dicotomização entre res extensa e res cogitas realça o dualismo entre a idealização metafísica e a realidade circunstancial.

Essa discussão é deveras profunda. Todavia, este texto é uma oportunidade para insistir no vínculo da filosofia com o mundo habitual, isto é, às cotidianidades da vida social, ou seja, esse horizonte de vida e os diferentes estilos de vida. Sem isso, não há como compreender o apelo de Marx para transformar a realidade. Alguém poderia pensar que se trata, por exemplo, de uma questão entre liberais e comunitaristas. No meu ponto de vista, não é esse o mote, até mesmo porque, na tradição norte-americana, o termo liberal alude, embora de forma vaga, a uma posição classificada como de “esquerda”. Isso equivale ao que se costuma entender como sendo uma atitude “progressista” (Vallespín, 1993, p. 13). Em teoria política, a expressão liberal assume “um caráter mais plural e carregado de matizes, a ponto de, às vezes, ser difícil compreender quais são os critérios de distinção mais precisa, nem se existe realmente – por parafrasear Habermas – um liberalismo na pluralidade de suas vozes” (Vallespín, 1993, p. 13). A distinção entre as diversas “teorias liberais” e a diferenciação entre liberalismo e comunitarismo parece, de acordo com Fernando Vallespín, uma “estratégia de justificação moral dos distintos princípios fundamentais que os corroboram, sem propriamente discutir o conteúdo de tais princípios ou nas consequências político-prática que possam implicar” (Vallespín, 1993, p. 14). Por isso, na linha de Habermas, proliferam vozes que clamam por uma revisão do individualismo, especialmente na perspectiva de Hume.

 

 

3 A REVISÃO DO INDIVIDUALISMO E/OU DA FILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA

 

Na tradição liberal inglesa, David Hume (1711-1776) é, sem dúvida, um dos expoentes mais sugestivos para delinear o sistema das liberdades individuais. Para um leitor de Habermas, existe uma considerável desconfiança em elação a Hume. Trata-se de entender Hume desde uma razão centrada exclusivamente no sujeito. Esse seria, pois, o postulado básico face ao pensamento do filósofo inglês.

A “razão centrada no sujeito” aufere, para Habermas, uma sobrecarga excessiva ao sujeito individualizado e, em decorrência, mantém o sujeito metafisicamente isolado do seu contexto intersubjetivo. É evidente que Habermas não está se referindo a Hume. A inferência é nossa, presumindo a possibilidade de uma interpretação da filosofia em torno às três etapas do seu desenrolar: a era do ser, a era da consciência e a era da linguagem.

No desenho apresentado por Habermas – entre as três diferentes eras da filosofia –, Hume permanece na era da consciência. Na verdade, os substratos da filosofia da consciência encontram seus limites na própria designação de sujeito. A “transição para o paradigma da compreensão” (Habermas, 1990, p. 277) aponta para outra percepção de sujeito, a qual deve ser designada por sujeito coautor. A exaustão dos arquétipos da filosofia da consciência decorre principalmente da pressuposição “sentimental de solidão metafísica” e da discrepância existente entre as “oscilações febris” e

 

as maneiras de ver transcendentais e as empíricas, entre a auto-reflexão radical e um incompreensível que não pode ser recuperado reflexivelmente, entre a produtividade de um gênero que se gera a si próprio e um original anterior a todo a produção (Habermas, 1990, p. 277).

 

Essas considerações podem auxiliar no balizamento do lugar que Hume ocuparia no pensamento de Habermas. Em primeiro lugar, o ato ou o efeito das “oscilações febris” denota a forma de compreender o transcendentalismo relacionado a uma idealização carregada de paixões. Em outras palavras, trata-se de algo que ofusca a razão comunicativa. Em segundo, esse turvamento decorre da autorreflexão individual, próprio do solipsismo, que também pode ser nomeado de individualismo metodológico ou, ainda, na esteira de Macpherson (1979), de “individualismo possessivo”. Em terceiro lugar, a citação acima reforça esse individualismo na medida em que a origem e a supervisão dos fundamentos estão centradas apenas no indivíduo em si. Dessa forma, as formulações e as postulações relacionadas a qualquer argumento seguem as “ilusões isoladas”, de forma a impedir a transparência da “totalidade de uma vida ou de um modo de vida coletivo” (Habermas, 1990, p. 280).

Mais uma vez, é preciso frisar que tais considerações de Habermas não têm Hume como foco. Em outras palavras, não há qualquer menção a Hume; apenas se trata de situá-lo no contexto da filosofia da consciência. Suas considerações apontam para dois tipos de racionalidade: a comunicativa e a razão centrada no sujeito monológico. Para Habermas, de Platão a Popper, há uma espécie de logocentrismo limitado apenas a uma de suas dimensões; no caso de Hume, aos sentimentos. Tal concepção impede a compreensão da globalidade do mundo da vida (Habermas, 1990, p. 291).

Na linha de Habermas, a filosofia da consciência apresenta outro aspecto preocupante. Trata-se da exclusiva compreensão de saber como “saber de algo no mundo objetivo” (Habermas, 1990, p. 291). Em outras palavras, a racionalidade monológica “encontra seus critérios em padrões de verdade e fatos que regulam as relações do sujeito que conhecesse e age com o mundo dos objetos possíveis ou dos estados de coisas” (Habermas, 1990, p. 291). Deste modo, a concepção de bem e do justo encontram respaldo somente quando houver uma correlação entre o idealizado pela consciência do indivíduo e a sua demonstração empírica, ou seja, a evidência dos fatos comprovados cientificamente.

Apoiado nessa perspectiva, Hume (1984) afirma haver uma vantagem das ciências matemáticas sobre as morais. Em outras palavras, “a exatidão é sempre proveitosa à beleza e o raciocínio justo ao sentimento delicado. [...] O caminho mais suave e pacífico da vida humana segue pelas avenidas da ciência e da instrução” (Hume, 1984, p. 135). No caso, Hume está procurando justificar a considerável vantagem da “filosofia exata” em detrimento ao obcurantismo da “filosofia profunda e abstrata”, uma “fonte inevitável de incerteza e erro” (Hume, 1984, p. 135). Em decorrência, o substrato do conhecimento evoca a causalidade e a substância dos fatos, a ponto de rejeitar a teoria das ideias gerais. De acordo com Hume, a ideia geral (ou universal) deveria representar todos os indivíduos de determinado tipo.

Então, se, por um lado, haveria uma aproximação entre os pressupostos de Hume e Habermas – no que tange à desconfiança e à recusa da metafísica – o abismo entre eles se torna ainda mais profundo, pois Hume defende a subjetividade da mente, enquanto Habermas propõe a intersubjetividade relacional.

Para Hume, a conexão “que sentimos na mente – essa transição costumeira da imaginação passando de um objeto para o seu acompanhante usual – é o sentimento ou a impressão que nos leva a forma a ideia de poder ou conexão necessária. Nada mais há que descobrir aí” (Hume, 1984, p. 163). As provas da existência de um objeto particular está na sua conexão com outro, uma evidência suficiente que a mente deve ter e, portanto, prova da compreensão de cada fenômeno em si. Nesse caso, a prova é da experiência cujo processo faz com que a mente consiga identificar a passagem do pensamento de um objeto para outro (Hume, 1984, p. 164).

Evidentemente, há, no acima exposto, um estudo mais que procedente. Não é intenção defender ou acusar Hume. Apenas deseja-se mostrar qual interpretação seria possível caso as três eras (da filosofia), supostas por Habermas, sejam plausíveis. O abando dos pressupostos da filosofia da consciência reclama, pois, a revisão do papel das ciências empírico-formais e da própria razão centrada exclusivamente no sujeito individualizado (e individualista). Em outras palavras, “o princípio da subjetividade e a estrutura da autoconsciência” (Habermas, 1990, p. 30) não são suficientes para a filosofia prática. Na verdade, poder-se-ia afirmar que os pressupostos da filosofia da consciência se associa a uma concepção tecnocrática, “segundo a qual o processo de modernização é orientado por imperativos de ordem objetiva, sobre os quais não é possível exercer qualquer espécie de controle” (Habermas, 1990, p. 78).

Ao constatar essa estrutura funcional do pensamento moderno, cuja base está na contraposição entre a subjetividade monológica e o procedimento  comunicativo, pode-se entender, então, a distância – ou o completo abandono – de Habermas em relação a Hume. No entanto, a tentativa de aproximação significa o reconhecimento dos dois enquanto pensadores de épocas distintas. Habermas insiste no diagnóstico de nosso tempo e Hume retrata um contexto inglês do século XVIII, o que significa, em outras palavras, o possível empoderamento excessivo do sujeito monológico.

 

4 O PROBLEMA DA AUTORREGULAÇÃO: O EMPODERAMENTO INDIVIDUALIZADO

 

Como foi salientado, Hume se insere em um contexto moderno. Entre outros aspectos, os acontecimentos ligados à religião e seus desdobramentos na sociedade inglesa são de per si significativos, pois podem contribuir para entender não apenas a religião como tal, mas também suas consequências. Por exemplo, a queima dos hereges (aqueles que não acreditam na doutrina católica) fez com que a religião passasse a receber, principalmente na Inglaterra, um tratamento diferenciado. Não se trata apenas da antipatia em relação aos católicos. O impulso religioso substancial da reforma protestante deixou patente que as famílias que continuassem no credo católico fossem cosideradas adoradores da “velha religião”. Na prática, a convenção designava a continuidade da orientação religiosa, mas em condições de máximo sigilo. No caso, além de proibir a construção de igrejas, os cristãos eram impedidos de celebrar sua fé em lugares públicos e, nessa situação, desautorizados a exercer atividades sociais. A transgressão era castigada com penalidades, às vezes, extremadamente severas.

Com o tempo, essa orientação possibilitou novas compreensões do papel da religião a ponto de o culto e a adoração referirem-se a questões ligados à consciência individual de cada sujeito ou dos simpatizantes de cada credo ou orientação religiosa. Esse é um fator importante para entender, ainda hoje em dia, a disposição em considerar a fé como um ato voluntário de caráter particular. Em outras palavras, a religião e todas as matérias concernentes à fé devem reservar-se ao âmbito da consciência particular.

O tema apresenta, sem dúvida, desdobramentos dos mais variados. Mas há, de certa forma, um elemento importante: o dilema entre a consciência individual e as objetivações práticas. Em outras palavras, a releitura de Hume desde a perspectiva habermasiana situaria Hume no horizonte da filosofia da consciência e, por isso, seus pressupostos não compactuam com o procedimentalismo intersubjetivo. Neste sentido, não só a religião, mas também o âmbito moral passaria a ser um tema de índole subjetiva. Com isso, entende-se também as raríssimas menções de Habermas a Hume.

Essa perspectiva resulta ser deveras controversa, não apenas para o âmbito moral, mas também para a política e para a convivência social. No fundo, a concepção de liberdade de Hume defende a autorregulação, uma espécie de força natural que ordena as transações entre os indivíduos e, por isso, o parâmetro na orientação do agir obedece a conjuminância dos interesses particulares. No espaço familiar, os atores são identificáveis. Todavia, em um horizonte mais amplo, os atores não podem precisar os limites de seu agir. Por isso, os sujeitos experimentam a sensação de estarem livres de qualquer imposição, isto é, uma independência de qualquer constrangimento físico ou moral.

Tal estado de disponibilidade dos sentimentos revela uma atitude de confiança no próprio indivíduo, ao tempo que sobrecarrega o sujeito, auferindo-lhe uma responsabilidade absoluta por seus atos. A capacidade individual de autodeterminação é, por assim dizer, um desígnio “natural”, capaz de compatibilizar autonomia e livre-arbítrio. Por isso, esse peso excessivo – ou como diz o título deste texto, o empoderamento individual – pode gerar um sentimento de descompromisso pela situação dos demais sujeitos. Assim, hão haveria e nem caberia qualquer exigência de reciprocidade mútua.

Esse seria o sentimento ou a percepção do individualismo monológico. Em outras palavras, a autonomia representa uma forma audaciosa de agir, um empoderamento do sujeito individualizado, transformando-o apenas em mero empreendedor (individual e individualista). Na verdade, as decisões têm em vista a execução de planos privados. Assim como a religião, as metas obedecem convicções privadas. Esse condicionamento natural afasta-o dos compromissos recíprocos com os demais, conquanto o agir se transforma em atividade voltada à satisfação de suas necessidades materiais. Nesse caso, a distribuição dos bens não ocorre devido ao senso de justiça, mas motivados por uma espécie de “providência” encarregada de mover e ordenar os “esforços dispersos dos indivíduos na busca de seus próprios benefícios e com sua própria – particular – intenção” (Conill, 2004, p. 102).

A solução das disparidades de interesses viria dessa liberdade natural, como “se” a espontaneidade refletisse apenas uma intenção da vontade irrefletida. Essa inclinação aparece também em Adam Smith. O modelo smithiano entende o indivíduo enquanto alguém que não presume de objetivos comuns. Há, pois, a consolidação dos alicerces do individualismo metodológico, tal como foi delineado por Macpherson, centrando-se muito mais no alvitre individual de cada sujeito que na responsabilidade moral do agir.

Na perspectiva está delineada por Macpherson, a “posição niveladora” garante a todos os indivíduos enquanto possuidores de sua própria liberdade, uma exigência para, através disso, aceitar a sociedade de mercado. Para Macpherson, o liberalismo insiste “em que o ser só é humano enquanto único proprietário dele mesmo. Só enquanto é livre de tudo, menos das relações de mercado, deve-se converter todos os valores morais em valores de mercado” (Macpherson 1979, p. 278). Em sua análise, Macpherson menciona Hobbes, Harrington, Hume e Bentham consolidaram as suposições de que o indivíduo “é humano” enquanto “proprietário de sua própria pessoa”, aspecto que, no fundo, fortalece e solidifica “relações de mercado” (Macpherson, 1979, p. 283).

Em razão disso, a propositura de uma legislação para regular a conduta apresenta, ainda hoje em dia, duas direções: por um lado, um ceticismo radical e, por outro, da urgência em buscar e definir uma base normativa para a convivência. Para os céticos, a sociedade está submetida a uma série de tiranias, dominadas por oligopólios privados e por megacorporações (midiáticas, sindicatos, organizações da sociedade civil etc.) – às vezes mais poderosas que os Estados nacionais –, com o qual não há possibilidade nenhuma para uma aposta politicamente democrática; apenas a auto-regulamentação do mercado consegue equilibrar o jogo de interesses individuais. Os que insistem em uma normatização evidenciam um conjunto de “ideias reguladoras”, as quais servem para orientar a ação dos sujeitos e, ao mesmo tempo, definem critérios para validar as diferentes práticas, sejam elas relacionadas a ação individual, de gestão, as profissionais e, inclusive, as de controle regulamentário.

A concepção de um sujeito coautor sublinha a segunda perspectiva, ou seja, insistir em um marco normativo capaz de indicar critérios de ação – plausíveis, portanto – e com idoneidade para valorizar as distintas práticas. Na verdade, o dilema concerne à questão: o “que significa responder por...?” O individualismo possessivo (ou metodológico) alimenta uma perspectiva aterradora em relação à democracia política e à racionalidade pública. Os liberais mais persuadidos enxergam, na intersubjetividade comunicativa e no compromisso público, um fantasma, isto é, algo que pode ser ameaçar suas pretensões particulares e, por isso, a democracia, participação política, opinião pública e, inclusive, os movimentos reivindicatórios se transformam em temas incômodos. Nesse sentido, alguns setores – como é o caso dos mass media – disseminam uma espécie de fobia ao social, ao coletivo, às políticas distributivas, ao Estado social etc. Não poucas vezes, os próprios meios de comunicação se transformam em veículos dessa espécie de satanização das manifestações de minorias ou, inclusive, de lutas reivindicatórias de entidades, associações ou grupos que aspiram por justiça social.

Seguidor da tradição libera, Hume argumenta que, embora seja difícil, talvez impossível admitir, é necessário, todavia, propor um remédio adequado a ilimitada liberdade de expressão (2004, p. 105). No caso, a aspiração de liberdade se reflete na manifestação individual a respeito de qualquer assunto ou tema. Nesse sentido, sua preocupação a respeito da liberdade de expressão é uma inquietude que não trata exatamente de impor limites, mas de estabelecer regras orientadoras não somente para as manifestações particulares e quaisquer governos democráticos, mas também para os mercados. Sem regras mínimas, existe somente desconfiança entre todos, um caminho aberto para a in-solidariedede. A falta de regras e princípios indica que as bases das relações intersubjetivas permanecem nutridas por um individualismo radical, ou seja, por um egoísmo sem dialogicidade. Daí, então, a mão invisível, encarregada garantir o “bem geral”.

 

5 A ALTERNATIVA DA TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO

 

Por mais que se possa discutir, o mundo da vida (Lebenswelt) é uma categoria chave na filosofia de Habermas. Esse reconhecimento não significa que a filosofia abandonou ou se afastou da questão da fundamentação. Essa vinculação aufere um protagonismo à própria filosofia. No Brasil, a filosofia deixou de ser especialidade voltada à formação seminarística para realocar-se e encontrar seu lugar entre as diferentes áreas do conhecimento. Nesse movimento, é possível reconhecer uma espécie de ateísmo, que rompendo com um modelo apriorístico – seja teogônico, apocalíptico ou de qualquer outra classe – para, então, assumir seu compromisso com as circunstancialidades da vida cotidiana, independentemente de pré- determinações alheias à mundanidade e, inclusive, livres dos academicismos e lógicas puramente abstratas e sem conexão com a vida prática. Na verdade, trata-se de pensar e modificar o mundo terrenal, sem que seu fundamento esteja fixado “nas nuvens como terreno autônomo”, aniquilando, portanto, o horizonte do vivencial e circunstancial.

Essa seria, pois, a compreensão inerente à quarta tese contra Feuerbach (Marx, 1985, p. 52).

A aplicação do modelo ontoteológico provoca o autodilaceramento         e a autocontradição do “fundamento terreno.” O caráter pós-metafísico desloca a fundamentação e pode, então, abraçar as exigências de mudança na própria filosofia e, ao mesmo tempo, retomar o processo de transformação da própria noção de agir humano.

Em se tratando de agir humano, a questão não é apenas de uma ética antropocêntrica. Mesmo entre os mais críticos, as discursividades salientam um diagnóstico de nosso tempo e, ao mesmo tempo, apontam para alternativas. Mas isso, a grosso modo, parece ineficaz e não propulsiona as mudanças sinalizadas.

Nesse sentido, vale insistir no fato de que a compreensão moderna do mundo suplantou cosmovisões míticas, religiosas e metafísicas (Habermas, 1988, p. 101). Com a “dissolução” das justificativas mítica-narrativas, o sujeito assumiu a total responsabilidade pela “validez das pretensões suscetíveis de crítica” (1988, p. 107). Então, para Habermas, o nível pós- convencional dos estágios morais pressupõe como válidas normas que todos possam querer (1999). No âmbito das condições concretas, a racionalidade comunicativa reafirma a inserção do sujeito no mundo (nos diferentes contextos do mundo da vida), de modo a unir e articular fala e ação. Esse é o horizonte no qual Habermas admite um espaço para o bom na teoria do justo, não enquanto submetida à lógica do direito positivo, mas concernente às “liberdades de sujeitos inalienáveis que se autodeterminam” (1999, p. 70).

A razão secular consegue se apropriar, através dos recursos do pensamento pós- metafísico, dos conteúdos semânticos das tradições, sem renunciar jamais a autonomia que lhe é inerente. Em linhas gerais, esse é o sentido de uma metafísica pós-convencional, ou seja, de uma fundamentação capaz de garantir às circunstancialidades da vida cotidiana enquanto horizonte de interação e lugar privilegiado para o agir.

Essa perspectiva indica que Habermas vai buscar, na fenomenologia, o ponto de apoio importante (Cf. Pizzi, 2010). Nesse sentido, vale a pena insistir que a compreensão das manifestações simbólicas e as vivências pressupõe um mundo com um plexo de sentido comum compartilhado entre os sujeitos coautores. A contribuição do Lebenswelt à teoria do agir comunicativo assegura que as normas admitidas consensualmente e a autonomia dos sujeitos podem ser aplicados em uma comunidade de sujeitos emancipados. A perspectiva do sujeito participante enquanto coautor oferece a possibilidade de uma representação linguística do mundo, sem a qual não poderíamos falar de pretensões de validez suscetíveis de crítica. Por isso, o fato de permanecer a tergo (situado a dorso) não significa que as vivências sejam secundárias ou se diluam em um universalismo abstrato, formal e idealizado.

Além do mais, o mundo da vida é horizonte, no qual o sujeito coautor se articula e articula e reivindica sua liberdade participativa (ou criativa). Na verdade, trata-se de desmistificar a ideia da imagem enquanto mera representação dos fenômenos. A mera representação reforça as suspeitas e consagra a desconfiança frente à simples representação dos fenômenos. A representação está vinculada ao uma idealização que, às vezes, desqualifica as evidências da vida cotidiana. Essa ambivalência apresenta conotações que, no processo compreensivo do fenômeno, provoca o menosprezo e acaba gerando indícios enigmáticos a respeito da contextualidade vivencial das representações. Por um lado, há a referência idealizada do próprio fenômeno e, por outro, uma desconfiança desmedida. Nesse caso, a experiência vivencial cotidiana não passa de representações indecifráveis. Em Platão, por exemplo, a ideia de um mundo efêmero e visível indica o descrédito e o menosprezo ao mundano, isto é, ao horizonte ligado às circunstancialidades vivenciais. A realidade vinculada à doxa não passa de um horizonte inapropriado, isto é, um pseudo-horizonte e, portanto, completamente deslocado e esvaziado de qualquer sentido. Por isso, os que se detêm à realidade mundana vivem, segundo o filósofo grego, uma vida inautêntica e, em razão disso, suas pretensões podem ser simplesmente desqualificadas.

Então, como é possível superar a dicotomização das representações da vida cotidiana e de suas relações? A título de exemplo, pode-se dizer que a judicialização dos procedimentos, isto é, a hipertrofia do Judiciário e sua invasão das atribuições dos demais Poderes indica que, atualmente, a noção de justiça e injustiça não passa de conceituações, recusando o aspecto deliberativo que envolve o “quem” são os sujeitos (da justiça e da injustiça) e “como” ela pode conseguir uma efetividade prática enquanto compromisso social. Na verdade, o que temos hoje são procedimentos entre casos particulares ou a respeito da legalidade – ou não – de um ato em si, sem que isso resolva os problemas de fundo.

Por isso, se a mudança na filosofia exige um processo de fundamentação, o qual não considera as circunstancialidades como algo relacionado ao fugaz e ao sem sentido. Então, nada mais pertinente do que considerar o mundo da vida e as próprias contingencialidade como um imperativo e, além disso, que tal horizonte é intrinsecamente valioso em si. É isso que buscaremos aclarar a continuação.

 

6 AS CONSEQUÊNCIAS FILOSÓFICAS: MUDANÇAS PROFUNDAS

 

A interpretação de Hume pode ser exagerada. Mas há, sem dúvida, motivos para a desconfiança. Os sintomas concernentes às “convicções morais privadas” (Habermas, 2000, p. 385) fazem parte de um procedimento particularizado e, por isso, seus pressupostos não se aproximam à filosofia da linguagem. No âmbito do agir comunicativo, é necessário “uma fundamentação substancial que escape da concepção da filosofia da consciência” (Habermas, 1997, p. 184). Ou seja, a preocupação consiste em consolidar as bases de uma “sociedade e a racionalidade comunicativa” (Habermas, 2000, p. 185). Nessa perspectiva, as estruturas da cultura burguesa da França e da Inglaterra dos séculos XVIII e XIX perderam seu lugar proeminente. Todavia, o tipo de liberalismo pressuposto por Hume – e, inclusive, por Smith – não encontra mais plausibilidade, pois carece sobremaneira de um componente linguístico- comunicativo.

Por isso, mais que outra coisa, a tentativa de Habermas consolida um giro filosófico, com mudanças profundas. O tema não é recorrente. Na verdade, o aspecto antropocentrado da filosofia não permite renunciar ao sentido das expressões gramaticais. Por isso, a pergunta a respeito do significado de qualquer locução demanda sempre um esforço por responder “o que é”. As alegações envolvem não apenas a análise gramatical e semântica dos lexemas, pois a compreensão do sentido implica também na discussão a respeito de seu aspecto pragmático. Em outras palavras, qualquer fenômeno não pode limitar-se às definições, pois há, em qualquer ato de falta ou expressão gramatical, exigindo, então, uma referência prática ao agir e ao conviver. Daí, além de ater-se à pergunta o que é, a ideia remete a quem são os verdadeiros concernidos e como eles compreendem as designações nominativas no seu sentido prático. Nesse sentido, o fenômeno não é um fato ou um acontecimento que possa ser considerado bom ou mau, mas pressupõe uma relação entre partes diferentes e diferenciadas, ou seja, desde uma relação dialógica entre sujeitos coautores. Tanto o eu-sujeito coautor como o outro-sujeito também coautor são partícipes da interação mediada linguisticamente.

Então, o sentido das expressões gramaticais e dos atos de fala deve partir do como e não simplesmente ater-se ao que. Nesse sentido, é preciso não só averiguar o teor gramatical e semântico das expressões, mas identificar e reconhecer quem são os coautores e como sua coautoria demanda por exigências normativas. Esse delineamento nos leva a insistir que as exigências de justiça deixam de ser uma questão apenas vinculada ao aspecto semântico (isto é, à sua definibilidade), pois a questão se situa no campo pragmático. Essa pragmática pressupõe uma “neutralidade do procedimento” (Habermas, 1998, p. 386), porque ninguém pode garantir, por si só, sua autonomia moral. Ela depende da interação comunicativa, ou seja, dos esforços cooperativos que ninguém pode ser obrigado através das normas jurídicas, mas que todos são conclamados a seguir (ou obedecer). A ideia do sujeito coautor significa que todos podem contribuir. O fato de saber quem são os sujeitos, e os próprios concernidos pela justiça, remete inclusive às futuras gerações.

Nesse sentido, o fenômeno da laicização, desde uma moral secular, salienta o como se pode fundamentar o ponto de vista moral e como, de fato, os sujeitos coautores podem fundamentar princípios normativos em uma sociedade secular. No caso, a filosofia não se atém apenas na averiguação do que significa laico ou secular – ou seja, apenas de ordem terminológica –, mas estudar também quem e como são configuradas as políticas de reconhecimento dos sujeitos coautores em um horizonte em que a natureza e os não humanos apresentam um “valor adicional” ao tratamento meramente instrumental e/ou subjetivo.

Em decorrência disso, há outra consequência fundamental para a filosofia. Trata-se de revisar seu aspecto antropocentrado. Na verdade, esse delineamento requer a ampliação da noção de intersubjetividade, pois a sobrevivência do planeta está pautada pela conservação dos recursos naturais e das espécies, uma vez que as gerações futuras e a preservação das culturas dependem desse habitat intrinsecamente valioso. Nesse sentido, o sagrado se distingue do religioso. A ideia do sagrado se relaciona ao inviolável, isto é, que não se pode deixar de lado, que não se deve trocar ou profanar, nem instrumentalizar.

No caso, vale lembrar Dworkin para salientar as duas características a respeito do sagrado e do inviolável: a) as graduações a respeito do intrinsecamente valioso e b) o aspecto seletivo das convicções em torno da inviolabilidade (2003, p. 111). A este respeito, é necessário salientar a “reconsideração do natural” (Dworkin, 2003, p. 111) para entender, então, a dimensão do oikos-cosmos-logos (Pizzi, 2011) de uma filosofia preocupada em responder às demandas que vão além da simples razão. Em outras palavras, a racionalidade comunicativa convoca a assumir o ônus de um compromisso que vai além do antropocentrado e defender, inclusive, a diversidade das espécies e o próprio futuro do planeta.

Outra consequência dessa tentativa remete ao direito. Nesse caso, aparece novamente o enigma antropocentrado, mas que, aos poucos, concede lugar a outras vozes, como o direito dos animais, a conservação ou a preservação ambiental e – se quisermos delirar um pouco – a atração por outros planetas. A analogia de Dworkin a respeito de valores internos e valores externos da vida permite transgredir a dimensionalidade dos horizontes dos atuais mapeamentos e configurações para presumir aspectos que parecer ser ainda um tanto difusos ou controversos.

Por isso, a resposta dos defensores de um Estado de direito – ou simplesmente do direito positivo – requer também um olhar ampliado para, deste modo, responder a concepções abrangentes do justo e do bem. A gravitação em torno a questões meramente antropológicas ou antropocêntricas do direito e da própria concepção moral é, sem dúvida, ineficaz e, portanto, não responde às exigências desse aspecto “adicional” relacionadas às exigências de justiça e de bem viver.

Por fim, a última consequência refere-se à própria noção de modernidade. Nesse sentido, a configuração do cosmos das essências, dividido entre um âmbito permanente e invariável desenhado em contraposição ao aspecto relacionado as mutações, começa a ruir. Na realidade, a ambivalência de mundos diferentes deu prioridade a uma epistemologia transformada em porta-voz oficial de uma compreensão unilateral, homogênea e deveras antropocentrada de mundo. O ideal de plenitude extra-terrenal converteu o mundo terráqueo em algo estúpido, pois este desenho sublinha que “a vida não tem sentido” (Domingues, 1991, p. 287).

Por um lado, a representação das “multíplices modernidades” supera, segundo Demenchonok, os estereótipos da “modernização como ocidentalização”, pressupondo uma “crítica pós-moderna/pós-colonial às metanarrativas da globalização, aos conceitos de heterogeneidade, indigenismo e hibridização” (Demenchonok, 2009, p. 19). Por outro lado, a tese da ruptura ou da continuidade da modernidade ocidental se vincula ao processo de reconstrução das identidades, apoiadas na reinterpretação da interpretação do “ocidente uniforme” e na reconsideração da multiplicidade, da interculturalidade, hibridização e outros conceitos.

Nesse sentido, o reconhecimento das multíplices modernidades confere um outro caráter ao tema da laicização e da tese de uma filosofia mundana e profana. Isso quer dizer que ela aponta para uma espécie de ateísmo, pois rompe com um modelo apriorístico – seja teogônico, apocalíptico ou de qualquer outra classe – para, então, procurar compreender as circunstancialidades independentemente de apriorismos ou pré-determinações alheias. Essa tentativa pode gerar um desconforto ou uma espécie de insegurança, especialmente aos que ainda preconizam uma fundamentação eminentemente metafísica. Na nossa interpretação, a heterogeneidade permite compreender a diversidade das contingências do mundo da vida, sem reduzir as circunstancialidades à clivagem dicotômica entre o ideal e o circunstancial e, assim, poder consolidar o reducionismo de justificar as diferentes dimensões do Lebenswelt a apenas uma interpretação.

 

7 CONCLUSÕES

 

Considerando as consequências desse tipo de “ateísmo filosófico”, a conclusão retoma Adorno e sua suspeita a respeito da possibilidade da poesia após Auschwitz. Todavia, essa ideia também coaduna com a responsabilidade de pensar a filosofia depois de Hiroshima. Porém, há, ainda, uma terceira referência, que toma conta do contexto latino-americano: a impostura das ditaduras. No horizonte de uma violência global e na perspectiva qualquer perspectiva ético-moral dos direitos humanos e da própria cidadania, a filosofia se defronta com diferentes contextos e situações. Por um lado, é no período pós-segunda que análises e propostas salientam preocupações relacionadas aos diferentes âmbitos da vida prática. Para a América Latina, esse é um dos períodos mais emblemáticos de sua história recente.

Por isso, o diagnóstico de nosso tempo não é suficiente, nem as genealogias ou as arqueologias são eficazes, pois remover as gavetas e revisitar cemitérios pode ser apenas uma das etapas do processo reconstrutivo. O abandono das perspectivas metafísicas e a assunção da prospectiva pós-metafísica reorganizou a universalidade enquanto pretensão vinculada a idealizações alheias ao Lebenswelt. O “medo dos demônios” e suas “conjurações mágicas” não é inerte, mas pertence ao horizonte das potências extrínsecas ao sentido do agir humano. A mudança da filosofia prática redireciona o ponto de vista moral, abandonando o âmbito “externo”, para centrar o poder nas capacidades humanas.

Em suma, é importante entender a perspectiva de uma filosofia pós-ditaduras latino- americanas. Na sua origem, razões desconhecidas pelos próprios séquitos, são tentativas de justificar o terror, o temor e a angústia, pois os patrocinadores dessa violência se viram enrascados pelas próprias peripécias de suas malogradas pretensões. Diante disso, a filosofia não pode limitar a “monografias” sobre sistemas de pensamento, nem deve abstrair-se da problemática concreta das correntes de pensamento no contexto das conjunturas político- intelectuais. Em outras palavras, o debate filosófico obedece “a uma temporalidade específica, ou seja, as problemáticas nascidas da tradição e de sua reelaboração” (Raulet, 2009, p. 12). Essa reelaboração, no entanto, não pode ser indiferente às expectativas do âmbito público, nem aos discursos das ciências e da política.

Enfim, não se trata apenas de romper os diques do silêncio, mas de assumir seu papel crítico, a filosofia se defronta também à necessidade de respostas. Na verdade, a ordem lógica de um sistema que cria dependência, concatenação e vinculações entre o poder e a obediência não tem outro objetivo senão a manutenção do próprio sistema. Na orientação de Horkheimer, quando essa lógica sucumbe, a primeira reação volta-se à “capacidade de pensar”. Essa redescoberta, por assim dizer, é o pretexto para a afirmação de um comportamento comunicativo – oposto, portanto, ao agir instrumental, que conduz ao quietismo e ao conformismo – na “luta contra o estabelecido”, sem permanecer, portanto, na contraposição entre teoria e práxis.

 

REFERÊNCIAS

 

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O SUJEITO PRONOMINAL E A GRAMÁTICA COMUNICATIVA

elementos para uma gramática da justiça[26]

 

Jovino Pizzi[27]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

Delamar José Volpato Dutra[28]

Universidade Federal de Santa Catarina

djvdutra@yahoo.com.br

 

1 INTRODUÇÃO

 

O terreno pós-metafísico da filosofia contemporânea assume uma importância cada vez mais destacada. Nessa perspectiva, a fundamentação do âmbito moral exige uma teoria do agir capaz de garantir as condições de possibilidades inerentes aos três pronomes pessoais, sem apoucar nenhum deles. Trata-se, então, de aceitar o vínculo entre os três pronomes pessoais. Essa gramática pronominal tem implicações não apenas morais e políticas. Nesse ínterim, o aspecto elementar apresenta uma questão taxativa: como os três pessoas pronominais podem ser utilizadas de forma a garantir as exigências formais do reconhecimento comunicativo?

A gramática dos pronomes pessoais não se refere à análise gramatical propriamente dita. Não é, pois, uma simples questão lexical, porque ela diz respeito ao uso relacional da linguagem. Por isso, o sentido das expressões gramaticais e dos atos de fala está ligado ao seu uso pronominal. A exigência está vinculada a uma forma gramatical do uso dos pronomes e da equidade entre os três pronomes pessoais. Da mesma forma que há um sujeito pronominal, há também uma vinculação com o verbo pronominal. Na verdade, a arquitetura da linguagem presume o uso dos três pronomes pessoais, de modo que nenhum deles seja neutro ou não participativo, porque as exigências pragmáticas presumem os três pronomes pessoais na voz ativa. Aí está, então, a exigência normativa com um senso equitativo em relação aos três pronomes pessoais (singular e/ou plural). Essa gramática da compreensão (Ferry, 2004) tem efeitos muito importantes para qualquer teoria social, política, moral etc.

Em relação a isso, o primeiro aspecto pretende delimitar a gramática pronominal relacionado a uma questão bem simples: como é possível um tratamento equitativo aos três pronomes pessoais? A resposta requer uma gramática pronominal de forma a conferir um tratamento equitativo aos três pronomes pessoais. No horizonte de uma teoria do agir comunicativo, não há como conceber nenhum pronome como presumivelmente neutro, isto é, sem tomar partido, indefinido e, portanto, descomprometido ou descompromissado. A ideia, então, retoma o significado pronominal relativo às três pessoas, de modo a garantir que todos os sujeitos pronominais adquiram o status de sujeitos reconhecidos moralmente. Por isso, a experiência comunicativa (Ferry, 1991) requer a equidade entre os três pronomes pessoas, algo inerente à gramática pronominal.

O terceiro ponto destaca a ideia do sujeito na voz passiva, a porta de entrada para a indiferença ou a designação de alguém como antissocial. Nesse sentido, a gramática do sujeito pronominal se defronta a coreografia mecanicista do “sistema”. Em outras palavras, a metodologia voltada à eficiência perfeita do sistema, na medida em que a otimização das ações assegure a máxima eficácia e o máximo de rendimento. Nesse sentido, a contribuição de Habermas é deveras fundamental, uma vez que a metodologia reconstrutiva supõe um “certo” abandono da teoria do sistema. Em relação a isso, há outro assunto, pois a gramática comunicativa situa os sujeitos coautores enquanto pertencentes a um mundo da vida. No entanto, a suspeita inerente à metodologia reconstrutiva, com um caráter procedimental, aufere um caráter menos seguro às intuições compartilhadas no mundo da vida. Ao consolidar, portanto, uma arquitetura que diferencia a fundamentação das considerações cotidianas, há também um hiato entre os princípios normativos e as motivações práticas (relacionadas ao mundo da vida cotidiano). A superação dessa limitação aponta para a gramática pronominal e o uso relativo aos três pronomes pessoais, de forma a garantir a todos os sujeitos o reconhecimento de sujeitos coautores.

Daí, então, o quarto aspecto, isto é, a necessidade de consideração equitativa aos três pronomes pessoais, na medida em que a gramática comunicativa assegure, aos três pronomes, o reconhecimento equitativo. A gramática comunicativa exige, pois, que os três pronomes devam ser considerados como essenciais, cujas implicações políticas não admitem a indiferença, a neutralidade ou, inclusive, a ameaça ou a violência. Isso aufere a todos os sujeitos o status de coautores, ao tempo que a experiência comunicativa é inerente ao estilo de vida moralmente justificado e, portanto, o horizonte ético do reconhecimento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

A RACIONALIDADE ÉTICO-COMUNICATIVA E AS ESFERAS DO RECONHECIMENTO INTERSUBJETIVO DO SUJEITO PRONOMINAL

análise crítica[29]

 

Jovino Pizzi[30]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

Quem Sou Eu?

Luiz Gama

1 INTRODUÇÃO

 

A linguagem como “meio” garante ao agir comunicativo um status sui generis. A realocação do entendimento para a comunidade de comunicação realça o giro linguístico e, com isso, supera o solipsismo metodológico e a compreensão monológica do significado de qualquer expressão simbólica. O ponto de apoio para o agir comunicativo deixa de ser a simples intencionalidade, priorizando, portanto, a “estrutura da expressão linguística” (2012 I, p. 479). Com isso, Habermas pretende mostrar que o agir comunicativo vincula o entendimento às ações de vários atores, e não simplesmente às intenções ou às pretensões subjetivistas.

No horizonte da teoria do agir comunicativo, discorrer sobre o sujeito pareceria, em certo sentido, restabelecer os imperativos da filosofia da consciência e, então, minimizar a força do giro linguístico. Afinal, o fato de evidenciar o sujeito participante poderia trazer de volta a noção de um cogito que não condiz com a noção explícita na teoria do agir comunicativo. Nesse ínterim, a preocupação em indicam quem realmente são os sujeitos de direito remete à gramática do sujeito pronominal. A interação comunicativa deve romper com o binômio falante versus ouvinte, pois, na gramática pronominal, o quem pode abarcar outros sujeitos de direito, tese que amplia a estrutura lógica dialogal entre falantes e ouvintes.

Na intenção de aclarar essa questão, o primeiro passo se centra na noção dialógica de racionalidade, aspecto fundamental para a teoria habermasiana (1). O passo seguinte desta a questão do reconhecimento intersubjetivo, aspecto ligado a questão pronominal dos sujeitos, cuja gramática questiona o binômio sujeito-falante, uma vez que a escala pronominal presume o uso de mais de duas pessoas pronominais (2). Em terceiro lugar, o texto se volta à questão da identidade e da alteridade, destacando principalmente a noção de alteridade e a diversidade pronominal (3). Como ponto final, as considerações críticas para um aprofundamento, uma vez que a gramática do sujeito pronominal potencializa a experiência comunicativa desde uma dimensão quadrimensional, e não apena restrita ao binômio Ego versus Alter Ego (4).

 

2 A NOÇÃO DE RACIONALIDADE COMUNICATIVA

 

A teoria do agir comunicativo salienta que as ações situam-se “em uma rede de espaços sociais e tempos históricos” (2012 I, p. 479). Trata-se, pois de “atos de entendimento” entre sujeitos que interagem em um contexto social, de forma a garantir o um nexo imprescindível entre o “significado de uma expressão linguística e a validade”, isto é, sua pretensão de validez em “contextos situativos” (2012 I, p. 485).

Diante disso, parece abrir-se um horizonte no qual os sujeitos consigam apresentar-se desde sua identidade pronominal. Ou seja, na sua enunciação, o sujeito pronominal não aparece como um simples Ego que se apresenta locucionariamente diante de um Alter Ego. Desde modo, a noção de falante e de ouvinte se restringe à lógica pronominal dos elementos binários Ego versus Alter Ego. Diante disso, há duas alternativas possíveis. Por um lado, a insistência de que os demais sujeitos pronominais estejam absorvidos por um dos dois pronomes ou, por outro, a recusa da terceira pessoa (singular ou plural).

No caso, Habermas indica uma abordagem interna (p. 480) e um horizonte (ou mundo) exterior (p. 484), deixando claro que toda teoria - comunicativa, no caso - deve pressupor um horizonte que possa “fundamentar os modos básicos de emprego da linguagem”. Ao convergir para a linguagem, Habermas reconhece que “há diversas maneiras de os participantes manifestarem pretensões normativas de validade”, pois os sujeitos sempre compartilham um mundo da vida e o que há de “comum” nesse Lebenswelt (Habermas, 2012 I, p. 484). Desse modo, continua o autor, os sujeitos conseguem não somente “coordenar ações”, mas também “contribuírem para que se construam interações” (Habermas, 2012 I, p. 485).

Como é possível perceber, essa “primeira consideração intermediária” da obra Teoria do Agir Comunicativo, Habermas procura salientar a força ilocucionária dos atos de fala (2012 I, p. 485). Em outras palavras, o delineamento de seu programa distingue “agir social, atividade teleológica e comunicação” (2012 I, p. 473 ss, cf. o próprio título da seção). Com isso, ele consegue desenhar os fundamentos da pragmática comunicacional, que permite “explicar, com base na relação ente o significado literal e o significado contextual das ações de fala, a razão pela qual é preciso adicionar a concepção de mundo de vida ao conceito de agir comunicativo” (Habermas, 2012 I, p. 486).

De todos os modos, a plausibilidade dessa preocupação se reflete na teoria do agir comunicativo, mais precisamente no uso interativo da linguagem. Para Habermas, a linguagem não se limita aos traços fonéticos, sintáticos e semânticos, pois assume as características pragmáticas. Por isso, mais que o significado literal, há o aspecto contextual das ações de fala (Habermas, 2012 I, p. 486). Não se trata, pois, de processos simbólicos ou de expressões escritas como types, muito menos de tokens. O imperativo da interação comunicativa salienta que o agir comunicativo vai além da simples idealização ou do caráter semântico dos significados linguísticos, pois facticidade e validade penetram a “prática comunicativa”, coordenando a ação entre sujeitos participantes (Habermas, 1998, p. 97).

Deste modo, a racionalidade comunicacional salienta um procedimento intersubjetivo, pois qualquer ator é sujeito participativo e, portanto, um concernido. Esse caráter dialógico da racionalidade comunicativa supõe a linguagem como meio de coordenação das ações. Por isso, o reconhecimento recíproco entre os atores participantes perfaz a base da vida social. Afinal, o agir implica na interação entre os concernidos enquanto falante e ouvintes ativos.

A compreensão linguístico-comunicativa está ligada, pois, a um “potencial naturalmente determinado” livre de qualquer tipo de coação (Honneth, 2009, p. 351). Nesse caso, a formação individual do sujeito se vincula ao processo de emancipação, isto é, a teoria do agir comunicativo prospera à medida em que os sujeitos interagem livres das coações inibitórias da sua capacidade de ação. O reconhecimento recíproco é uma das exigências na busca de um acordo comunicativo. Todavia, faz-se necessário identificar quem são esses sujeitos coautores da interação comunicativa, pois os sujeitos coautores têm nome, isto é, devem ser apresentados e identificados como alguéns situados. Sem isso, não há como auferir-lhes responsabilidade por seus enunciados e suas posições diante das “ofertas” de ação. Nesse sentido, não há, portanto, a suposição de sujeitos neutros ou indiferentes.

Evidentemente, a pressuposição de sujeitos coautores como alguéns – coautores, portanto, da dialogicidade comunicativa – requer uma simetria entre os sujeitos, aspecto indubitável no caso pronominal da primeira e da segunda pessoa (singular ou plural). Todavia, a centralidade em Ego e em Alter Ego – falantes e ouvintes, portanto – não deixa evidente a participação da terceira pessoa (singular ou plural), cujo emprego traduz um sujeito não referencial e uma forma impessoal, sem expressar, de fato, um vínculo direto com a interação. Então, a referência Ego e Alter Ego – ou seja, falantes e ouvintes – consegue dar conta de todos os sujeitos pronominais? Como considerar todos os pronomes pessoais? Haveria, então, algo a acrescentar à teoria do agir comunicativo habermasiana?

 

3 O RECONHECIMENTO “INTERSUBJETIVO” DOS SUJEITOS PRONOMINAIS

 

O tema do reconhecimento está relacionado com os pressupostos de Axel Honneth, que reconstrói as linhas argumentativas de Hegel. A ideia destaca o papel da filosofia prática, especialmente em relação aos indivíduos ou grupos sociais que precisam obter reconhecimento ou respeito devido a sua diferencia. Embora com significativas variações, Habermas e Honneth têm sido, no pensamento alemão atual, protagonistas de uma mudança substancial da filosofia. Para Habermas, “não existe um saber não mediado”, pois o saber se vincula a um contexto social e aos interesses inerentes à experiência originária. Honneth, por sua vez, afirma que as contribuições epistemológicas levam a Habermas a abandonar o “marco conceitual procedente da filosofia da história.” Para Honneth, na abordagem do âmbito social, o problema do poder permanece à margem, ou seja, Habermas não se preocupa com a origem “da dominação e, com isso, da legitimação do poder.”

Em Habermas, essa preocupação já aparece no texto Trabalho e interação. Notas sobre a filosofia hegeliana do período de Jena. Evidentemente, a categoria reconhecimento está diretamente relacionada com Hegel. Todavia, Habermas vincula a luta por reconhecimento no horizonte de uma “situação de diálogo” e, ao mesmo tempo, frente aos perigos “de uma comunicação distorcida pela violência” (1997, p. 19). Os contornos de uma inter-relação, desfigurada pela violência, situa os sujeitos “de costas” uns aos outros (Habermas, 1997, p. 20). Em sua análise crítica, Habermas sustenta que “o jovem Hegel” entendia esse estranhamento (ou distanciamento) do outro como fruto “de uma causalidade do destino” (1997, p. 20).

 

Nesse sentido, a luta por reconhecimento se separa do contexto dos fatos, cuja atitude dos sujeitos, uns frentes aos outros, se transforma no esforço pela sobrevivência, isto é, em “luta por vida ou morte” (Habermas, 1997, p. 21). Esse “menosprezo entre as partes” é inerente à “consciência prática”, isto é, ao “contexto de interação” (Habermas, 1997, p. 23), cuja noção de sujeito pronominal permanece na pura e absoluta abstração. Essa espécie de distanciamento – ou melhor, de desgarramento – também ocorre em Kant (Habermas, 1997, p. 22), dando ênfase a uma perspectiva monológica do agir (Habermas, 1997, p. 24).

Sem entrar em mais detalhes, a questão de uma “consciência astuta” (Habermas, 1997, p. 30) e, ainda, frente ao condicionamento dos “imperativos condicionados” (Habermas, 1997, p. 31), a noção de sujeito participante remete ao problema da identidade e da alteridade dos próprios sujeitos. No caso específico de Habermas, o problema apresenta distintas noções, uma de caráter kantiana e outra hegeliana. Para ele,

 

Kant parte da identidade do eu como o de uma unidade originária da consciência transcendental. Hegel, pelo contrário, vê-se conduzido por sua experiência fundamental do eu como identidade do universal e do particular, de modo que a identidade da autoconsciência não pode ser entendida como algo originário, mas apenas como algo derivado. (Habermas, 1997, p. 33).

 

Em relação a essas duas tendências, o primeiro aspecto a salientar se vincula ao giro linguístico. Ou seja, com a teoria do agir comunicação, ganha força a interação intersubjetiva. Daí, a linguagem como médium aufere aos sujeitos um papel essencial. Através da metodologia reconstrutiva, os participantes conseguem pôr à prova as pretensões de validade e, tudo o que for motivo de dissenso, pode ser reconstruído dialogicamente. Por isso, no caso da teoria do agir comunicativo, não há motivos para continuar sustentando uma perspectiva transcendental e, muito menos, uma autoconsciência associada ao binômio universal versus particular.

Na proposição de Habermas, a conformação da identidade dos sujeitos coautores se efetiva em uma comunidade de comunicação. Tal perspectiva aponta para um “centro gravitacional”, que é a experiência compartilhada em uma comunidade de comunicação. No caso da experiência de vida em uma comunidade comunicativa, há sempre uma relação simétrica em os sujeitos, o que representa uma descentralização da compreensão de mundo. Nesse sentido, a singularidade do sujeito aparece nas referências pronominais, isto é, a todas as formas pronominais (singular e plural).

Por isso, frente à astúcia da razão em administrar a “submissão do indivíduo à universalidade” (Habermas, 1991, p. 188) e, ao mesmo tempo, de uma consciência transcendental, a perspectiva pós-metafísica oferece outra arquitetura para os sujeitos coautores. Daí, então, a exigência de todo ato ilocucionário em presumir o significado do “eu” na sua forma performativa. Essa alternativa nos leva ao capítulo oito (8) do livro Pensamento Pós-Metafísico: Individuação através da socialização (Habermas, 1990, p. 183 ss). Não é o único texto, pois também os livros Escritos sobre moralidade e eticidade (1991), Textos e contextos (2001), entre outros, salientam essa performatividade do sujeito coautor. No fundo, eu penso que a obra de Habermas, como um todo, realça essa perspectiva pós-metafísica, o que permite não só salientar “o processo de emancipação” do sujeito das coerções de um espírito universal e do transcendentalismo convencional, mas também – e principalmente – desenhar uma gramática do sujeito pronominal para a teoria do agir comunicativo.

 

4 CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS E INDICATIVOS PARA APROFUNDAMENTO

 

Em primeiro lugar, é importante salientar que a palavra gramática faz parte da linguagem filosófica. Talvez isso não seja tão significativo assim. Todavia, o seu uso pode contribuir para delinear um desenho no qual os pronomes pessoais sejam diretamente ligados aos sujeitos coautores. Nesse processo, a liberdade criativa deixaria de ser uma referência ao aspecto estético e criativo do artista individualizado, para ganhar corpo na coparticipação interativa na busca de princípios e, ao mesmo tempo, na definição de estilos de vida saudáveis. O importante é, então, compreender e garantir a equidade entre todos os pronomes pessoais. Ou seja, em uma comunidade de comunicação na qual não apenas o pronome da primeira e a segunda pessoa (singular e plural) tenham protagonismo – isto é, ego e alter ego –, mas que a terceira pessoa faça referência a um sujeito coautor na voz ativa. Essa perspectiva deveria convergir a um “nós”, horizonte no qual a comunidade de comunicação alcançaria um nível de reconhecimento, sem riscos de abandonar ou classificar alguém como ninguém.

Em segundo lugar, parece evidente que o aspecto pragmático-fenomenológico da linguagem rechaça a atitude neutra e imparcial, isto é, a gramática comunicacional não pode aceitar o modo, tempo e sujeito pronominal isolado e, portanto, na completa impessoalidade. O pretenso alheamento caracteriza uma relação meramente objetual e, em razão disso, reforçando o aspecto instrumental do agir. Em compensação, o compartilhar da experiência comunicativa reivindica, pois, uma gramática inter-relacional vinculados a uma validez discursiva (Ferry, 2004). A consideração a respeito de todos os pronomes pessoais “potencializa a experiência” interativa, ou seja, garante – de acordo com Ferry (1991) – a “potencialização da experiência” comunicativa entre sujeitos coautores.

Por um lado, Ferry afirma que a percepção do outro sujeito está relacionada pela simpatia, a qual pode estar ligada a uma figuração ou imagem do outro (Ferry, 199, p. 164). Mas isso não é o aspecto fundamental, pois a interação comunicativa não é simples intercâmbio de informações. Por isso, a intersubjetividade comunicativa salienta a coparticipação do outro enquanto sujeito, de forma que Alter ego “não possa ser substituído” por nenhum outro pronome pessoal. Sem isso, o sujeito não pode garantir sua autoafirmação enquanto sujeito coautor. Ou seja, Ferry afirma que no processo interativo, a participação não pode ocorrer via “procuração”, pois a autocompreensão e a heterocompreessão se vinculam ao “reconhecimento e a anuência recíprocas” (Ferry, 199, p. 167) de modo que permita a intercompreensão através do processo de autoapresentação de todos os concernidos.

Então, se não é possível participar “por procuração”, o sujeito concernido ausente não pode estar incorporado em um tu presente. Ao mesmo tempo, as terceiras pessoas não são um tu, ao tempo que não podem ser consideradas como ninguéns. Há, portanto, uma exigência pronominal que esteja evidenciada, sem subsumir um pronome no outro. O ausente poderia, deste modo, ser considerado como um “você” não presente, mas concernido. Deste modo, a alternativa mais plausível seria no reconhecimento de que o uso dos pronomes pessoais salienta uma gramática que não exclui ou, então, como subsumido ou dependente de outro. Como metodologia concernida ao agir comunicativo, há a exigência de uma consideração a todos os pronomes pessoais.

A terceira consideração final é concernente à questão da autoapresentação dos sujeitos enquanto coautores e da receptividade dessa autoapresentação perante os demais. Na verdade, a interação não é um mecanicista, muito menos “instituição da identidade do eu” cujo “de reconhecimento recíproco é garantido apenas pela relação formal entre pessoas jurídicas” (Habermas, 1997, p. 47). A autoapresentação do eu e, ainda, as preferências individuais estão vinculadas a uma rede de interações e de reconhecimentos livres do “núcleo intersubjetivo do eu” (Habermas, 1990, p. 234).

Nesse sentido, é importante diferenciar uma lógica da representação de uma lógica da interação. Na autoapresentação de uns perante os outros, é possível o reconhecimento, mas nem sempre a interação. Como afirma Ferry, “eu percebo que meu interlocutor me conhece como diferente do que eu seja, ou seja, através de um discurso que foi produzido” (Ferry, 1991, p. 164). Habermas também fala da “adaptação inteligente à realidade exterior”, isto é, de ego que “executa a tarefa do teste-de-realidade e da censura pulsional” (1982, p. 259).

Mais uma vez, retomo a noção de propriocepção, conceito muito próximo à ideia da heteropercepção. Por certo, a propriocepção é inerente à percepção inconsciente do ponto de vista imediato, ou seja, uma espécie de sensibilidade capaz de receber os estímulos internos do corpo, mas que são traduzidos sem que o próprio sujeito se dê conta do que realmente ocorre. Ampliando o significado oriundo da fisiologia, é possível deduzir que há movimentos, interpretações e proposições relacionadas a autoapresentação do sujeito, mas que passam desapercebidas ao próprio sujeito. Com isso, a noção do sujeito, tanto em relação a si mesmo quanto aos demais e, inclusive, no concernente às proposições de fala, carregam um determinado conteúdo imperceptível e, por isso, ultrapassa a noção do que é dito através da fala. Nesse caso, a perspectiva de um sujeito lithos consciente é apenas um dos elementos essências da autocertificação da autoapresentação de ego perante os demais.

De uma forma ou de outra, a pergunta Quem sou eu? (de Luiz Gama) remete a outros sujeitos coautores. Neste caso, o quem se refere também ao pronome da segunda e terceiras pessoas (singular e plural). Daí, então, quem é ou são ele (s)? Quem somos nós? Enfim, quem são realmente os concernidos?

Frente a isso, pode-se dizer que a teoria do agir comunicativo se atém no nível antropocentrado. É difícil pressupor o âmbito relacionado aos “sujeitos de direitos” não humanos. Esse seria, então, o último aspecto do texto. O âmbito da antropocentralidade é, sem dúvida, um dos focos importantes. Mas continua em aberto o horizonte da ecologia. Para instigar alguns de nós, Georg Herbert Mead diz que a base da sociedade humana está constituída pelo “homem e os insetos” (1999, p. 249 ss).

Aproveitando a indicação de Nadja Hermann, creio que a comparação entre humanos e não humanos de Luiz Gama é deveras sugestiva:

 

[...] O que sou e como penso. [...] Eu bem sei que sou qual Grilo [...]

Se negro sou, ou sou bode, Pouca importa. O que isto pode? Bodes há de toda a casta, Pois que a espécie é muita vasta...

 

Com as contundentes e cada vez mais reincidentes debates em torno da ecologia, a teoria do agir comunicativo poderia ser uma alternativa plausível para contribuir com a causa. Ater-se ao formalismo não significa apenas recusar a noção de Lebenswelt – com seu rosto multifacético e carregado de conflituosidades, própria de razão impura. De todas as formas, a consideração aos não humanos e a outros aspectos da natureza – enquanto sujeitos de direitos também é um tema que não pode ser rechaçado peremptoriamente.

Será que a vida boa ou o bem viver não depende também dos não humanos? Como tratar a questão? A teoria do agir comunicativo não é deveras inflexível diante da designação de “agir instrumental”? É possível romper com o antropocentrismo da TAC?

Como se trata de um tema deveras controverso, ele necessitaria de, no mínimo, alguns seminários específicos.

 

REFERÊNCIAS

 

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TEORIA DO RECONHECIMENTO E O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIApossibilidades educacionais na perspectiva da justiça social[31]

 

Carline Schröder Arend[32]

Prefeitura Municipal de Pelotas

carlinearend@gmail.com

 

Jovino Pizzi[33]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO

 

O presente texto tem como tema o estudo da teoria do reconhecimento de Axel Honneth, apresentando o desenvolvimento teórico que inicia com a obra a Luta por reconhecimento e chega até a recente versão apresentada em O direito da liberdade. O estudo tem como objetivo a averiguação da política social de redistribuição de renda para famílias pobres no Brasil, o Programa Bolsa Família. Com isso, pretende-se demonstrar que a política de reconhecimento de Axel Honneth apresenta um suporte teórico importante que permite entender o reconhecimento como uma forma de solidariedade, seja ela política ou moral. Ao mesmo tempo, busca-se também identificar possíveis "patologias" do Bolsa Família, a medida que os sujeitos podem mover-se por interesses egoístas.

O ponto de partida está na seguinte indagação: Como as políticas distributivas, elaboradas dentro do contexto do “novo capitalismo”, estão contribuindo na consolidação de relações solidárias? Este questionamento emerge frente às evidências de in-solidariedade. Ou seja, uma reação sistemática frente ao programa, fruto de um determinado individualismo possessivo que não admite a solidariedade, mesmo quando se trata de uma questão humanitária. Por isso, a motivação em compreender os vínculos de uma perspectiva teórica do reconhecimento – nos moldes da proposta de Honneth – com as circunstancialidades de quem é beneficiado pelo programa. Deste modo, deseja-se identificar se ele não se resume apenas ao repasse de renda, sem, portanto, construir laços de solidariedade social entre os participantes e os demais atores sociais.

Diante disso, o texto se atém aos aspectos teóricos de Honneth, no sentido de mostrar os dois momentos de seu pensamento: a concepção de reconhecimento na sua primeira obra – A luta pelo reconhecimento; o passo seguinte salienta o novo delineamento que aparece em O direito da liberdade. Na continuação, este texto expõe o Programa Bolsa Família, realçando principalmente seu caráter voltado ao combate à fome e à preservação da segurança familiar. Neste caso, a referência não é apenas Honneth, mas também o documentário Informe sobre la Inequidad, salientando que esse programa brasileiro pode ser considerado e tratado como um projeto humanitário.

Deste modo, deseja-se ressaltar que o Programa Bolsa Família não pode ser considerado apenas como filantropia ou uma comiseração, isto é, de um simples assistencialismo, mas de políticas de reconhecimento irrenunciáveis. Em outras palavras, trata-se não apenas de combater a fome e a pobreza, mas de garantir as condições essenciais para a vida e a convivência a qualquer sujeito humano.

 

2 HONNETH E A LUTA POR RECONHECIMENTO

 

Honneth (2003) aponta o conflito como inerente a qualquer interação intersubjetiva, como uma possibilidade de romper com pressupostos de um individualismo possessivo e monológico. Ele constitui a gramática moral das relações sociais, ou seja, a luta por reconhecimento é a chave do entendimento de como se processa a interação social, especialmente ao que concerne a constituição e a autocompreensão dos indivíduos em sociedade. Através das políticas de reconhecimento, é possível entender as patologias desse individualismo cuja in-solidariedade se traduz no desrespeito. Daí que o não reconhecimento seja “a fonte emotiva e cognitiva de resistência social” tanto a grupos ou coletividades (HONNETH, 2003, p. 227) considerados como invisíveis ou vulneráveis, entre outros qualificativos.

Honneth compartilha com a ideia de que a teoria crítica apresenta um déficit sociológico. Ao propor uma política de reconhecimento, é possível salientar, então, o caráter negativo da noção de justiça. Tal noção viola as expectativas de reconhecimento e desencadeia, então, sentimentos de desprezo e de injustiça. Por isso, sua insistência no debate público e democrático, cujas motivações se vinculam às esferas estruturais da sociedade e, ainda, diante da própria natureza da consciência de injustiça (HONNETH, 2011b).

O sentido negativo da justiça é um entrave ao reconhecimento. Por isso, a mudança requer não apenas políticas públicas e/ou sociais, mas também a luta pelo reconhecimento das conflitividades imanentes às relações intersubjetivas. Para Honneth, essa complexa aproximação com o outro, mediante um processo que não é de todo pacífico, implica nada mais do que “fazer de si o outro de si mesmo e retornar para si mesmo” (2003, p. 69). Ou seja, um compartilhar solidário entre sujeitos, cuja solidariedade mútua requer reciprocidade tanto no horizonte moral e político, como também nas garantias de alimentação, de estima social, de afetividade etc. Através dessa interação, processa-se a mudança do “si mesmo”, pois ao entrar em contato com o outro e o reconhecê-lo como tal, ao retornar a si, já não é mais o mesmo.

O contato, isto é, a interação entre sujeitos sociais instiga as lutas por reconhecimento, percebendo que o conflito e o reconhecimento se condicionam um ao outro, impulsionando às mudanças sociais que os indivíduos tanto almejam. Nesse processo, há uma espécie de coautoria entre os sujeitos, pois a intersubjetividade comunicativa promove mudanças tanto em relação ao próprio sujeito como também em relação ao ponto de vista e, inclusive, na compreensão dos fenômenos e fatos. Mais especificamente, a interação não é via de mão única, pois se trata de uma reciprocidade que afeta todos os concernidos e, ao mesmo tempo, se consolida em compromisso para transformar e superar as patologias que geram in- solidariedade.

Na sua conformação teórica, o reconhecimento recíproco, imbricado na conflitividade do reconhecimento do outro, manifesta-se em três esferas sociais: nas relações afetivas ou no amor (família, amizade), nas relações jurídicas ou de direito (estado) e na estima social ou na solidariedade (sociedade). Esta apresentação está na obra A luta pelo reconhecimento. No próximo subitem, explicamos as três esferas de reconhecimento.

 

3 O PRIMEIRO ESBOÇO DO RECONHECIMENTO SOCIAL DO OUTRO

 

Como foi salientado, Honneth propõe, na obra A luta pelo reconhecimento, três categorias de reconhecimento, que são: o amor, o direito e a solidariedade.

Na primeira esfera, o reconhecimento recíproco ocorre na esfera íntima, entre familiares, amigos e filhos e está intimamente ligada a ideia de que o sujeito é um objeto de cuidado de pessoas próximas. Essas relações afetivas de reconhecimento que possibilita o desenvolvimento da autoconfiança.

Nesse quesito, Honneth utiliza, entre outras fontes, categorias defendidas por Winnicott. Desta forma, Honneth (2003) consegue matizar a relação simbiótica existente entre mãe e filho, relação essa que ocorre ainda nos primeiros meses de vida do bebê. Nesta etapa, mãe e filho experimentam uma relação de dependência absoluta; é como se eles vivessem um para o outro. Quando a mãe passa a retomar sua rotina diária, e mãe e bebê percebem que conseguem viver um sem o outro, ou então, que a mãe vai embora, mas retorna, eles passam para uma relação de dependência relativa.

Para Honneth (2003), a criança só consegue reconhecer o outro quando houver o amor e esse outro ser independente; no caso, em relação à pessoa de referência[34], isso acontece quando já ultrapassaram a fase de simbiose em que viviam. Sendo assim, o amor é a forma mais elementar de ocorrência do reconhecimento. E para além da relação dos primeiros meses de vida, conforme abordado acima, o reconhecimento afetivo é de fundamental importância para o desenvolvimento da autoconfiança desse indivíduo, de modo que ele se perceba como ser amado.

A segunda categoria de reconhecimento apontada por Honneth (2003) é a do direito ou do reconhecimento jurídico. Esse reconhecimento ocorre quando o sujeito sai de seu contexto particular e ingressa em um contexto social ou universal, mediado por relações entre sujeitos livres e iguais, ou seja, os sujeitos se reconhecem portadores de posse, percebem-se como proprietários e, principalmente, enquanto portadores de igualdade, possuindo, portanto, direitos iguais perante a sociedade.

Segundo Honneth, tanto Hegel quanto Mead salientam a percepção do direito que o outro possui como ponto de partida do conhecimento que possuímos de nossos direitos. Em outras palavras, “todo sujeito humano poder ser considerado portador de alguns direitos, quando reconhecido socialmente como membro de uma coletividade” (HONNETH, 2003, p. 180). Nesse horizonte, o reconhecimento é possível porque há respeito e, tanto no amor como no direito, a autonomia manifesta-se quando a liberdade do outro é reconhecida, do contrário não há tal autonomia. Por isso, na esfera do direito predomina o autorrespeito.

Há, pois, uma diferença fundamental frente às sociedades tradicionais, pois nelas, o reconhecimento jurídico, ocorria através do status ou estima social. No caso, o indivíduo só estaria habilitado a adquirir o reconhecimento jurídico caso possuísse uma boa posição na sociedade, ou então pelas atividades que desenvolvia na sua comunidade.

A modernidade representou, segundo Honneth, uma mudança importante, proporcionando, assim, uma transformação também nas relações jurídicas. O reconhecimento jurídico deixa, então, de valorizar única e exclusivamente o status da pessoa perante os demais, para se tornar algo mais geral, considerando os interesses de todos os integrantes da sociedade. Ao considerar os interesses de todos, ganha força o princípio de igualdade universal. Para Honneth (2003), a igualdade universal permite compreender que o indivíduo, enquanto cidadão de uma sociedade, possui igual valor que os demais membros da coletividade.

O fato de o sujeito reconhecer-se juridicamente contempla também o âmbito moral do ser humano, realçando a possibilidade de viver de forma digna, sem denegrir as particularidades de cada ser. Por isso, na esfera jurídica, o indivíduo é reconhecido como autônomo e moralmente imputável, desenvolvendo uma relação de respeito consigo mesmo e com os demais membros da sociedade. Para Honneth, “é o caráter público que os direitos possuem porque autorizam seu portador a uma ação perceptível aos parceiros de interação o que lhes confere a força de possibilitar a constituição do autorrespeito” (HONNETH, 2003, p. 197).

Na terceira esfera do reconhecimento, Honneth situa a estima social. Aqui, as relações são mediadas pela solidariedade. Entra em cena o respeito universal, possibilitando aos sujeitos a se perceberem como seres possuidores de suas particularidades a serem socializadas com os demais membros de determinada comunidade. Consoante Honneth, “para poderem chegar a uma autorrelação intangível, os sujeitos humanos precisam, além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir- se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (HONNETH, 2003, p. 198).

Segundo Honneth para os sujeitos “poderem chegar a autorrelação infrangível” (2003, p. 198), eles “precisam ainda, além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (2003, p. 198).

O reconhecimento se efetiva quando existe aceitação recíproca das individualidades, as quais são julgadas segundo os valores que a comunidade possui. Nessa esfera é gerada a autoestima, isto é, a pessoa acredita no seu potencial e nas suas qualidades e, ao se deparar com outras pessoas, ela é reconhecida enquanto possuidora dessas características. Nessa esfera, o indivíduo demonstra suas singularidades de forma intersubjetiva e universal, dentro de um meio social (SAAVEDRA, SOBOTTKA, 2008). Se as mudanças ocorridas ao longo da história também deixam suas marcas, a valoração social que, antes se considerava através do status, reassume, agora, um novo padrão. Porém, Honneth assinala que, tais manifestações individuais, entram em atrito com a valorização coletiva, isto é, “o sujeito entra no disputado campo da estima social como uma grandeza biograficamente individuada” (HONNETH, 2003, p. 204). Mesmo que haja conflitividade, nesse aspecto, a pessoa é reconhecida enquanto digna de estima social e tal estima ocorre no horizonte da intersubjetividade coletiva.

Para Honneth, a estima social se vincula à experiência com:

 

[...] uma confiança emotiva na apresentação de realizações ou na posse de capacidades que são reconhecidas como ‘valiosas’ pelos demais membros da sociedade; com todo o sentido, nós podemos chamar a essa espécie de autorrealização prática, para a qual predomina na língua corrente a expressão “sentimento do próprio valor”, de “autoestima”, em paralelo categorial com os conceitos empregados até aqui de “autoconfiança” e de “autorrespeito”. (HONNETH, 2003, p. 210).

 

Como é possível perceber, “uma pessoa só pode se sentir “valiosa” quando se sabe reconhecida em realizações que ela justamente não partilha de maneira indistinta com todos os demais”. (2003, p. 204). Mas a estrutura vivenciada de um ambiente coletivo e plural com seres singulares desencadeia um sentimento de tensão, de luta, pois estão todos em busca de autorrealização, e assim se identificam com seus pares e desencadeiam um processo de reconhecimento de suas particularidades.

Em síntese, essas seriam as três esferas do reconhecimento, detalhadas na obra A luta pelo reconhecimento. Trata-se de três padrões de reconhecimento expostos na primeira obra. Eles correspondem a três maneiras de desrespeito: a violação, a privação de direitos e a degradação, respectivamente. Conforme Honneth, “na autodescrição dos que se veem maltratados por outros, desempenham até hoje um papel dominante categorias morais que, como as de ‘ofensa’ ou de ‘rebaixamento’, se referem a formas de desrespeito, ou seja, às formas de reconhecimento recusado” (2003, p. 213). Em resistência a essas formas de não reconhecimento é que se manifestam os conflitos sociais, tendo por resultado sua paulatina superação. Honneth entende por luta social “o processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” (Ibidem. p. 257). É nesse sentido que as lutas por reconhecimento passam a fundamentar os avanços normativos sociais.

Por isso, cada uma das esferas do reconhecimento possui uma autorrelação prática do sujeito (nas relações amorosas é a autoconfiança, nas relações jurídicas há o autorrespeito, e na comunidade de valores há a autoestima). A partir do momento em que ocorre o desrespeito em alguma das esferas, gera-se o conflito ou o sentimento de luta, gestando-se, assim, as lutas sociais.

Quando o desrespeito ocorre na esfera do amor, ele ameaça a integridade física e psíquica, pois se manifesta por meio de maus-tratos e violação. Na esfera do direito o desrespeito atinge a integridade social da pessoa, pois a mesma é privada de seus direitos e excluída do convívio social. E, por fim, na esfera da solidariedade, são as ofensas e infâmias que geram o desrespeito, afetando a dignidade da pessoa enquanto inserida em uma comunidade de valores. Logo, podemos compreender aqui as mudanças sociais, como resultado de lutas ocasionadas pelo desrespeito às esferas do reconhecimento. Mas é a partir do conceito de eticidade que se torna possível identificar as patologias sociais; ou seja, o pressuposto de um ideal de vida boa, que compreende valores éticos e morais, possibilita perceber a violação cometida contra a liberdade pessoal e os valores comunitários.

 

4 O RECONHECIMENTO EM O DIREITO DA LIBERDADE

 

Na obra Luta por reconhecimento, Axel Honneth afirma que o reconhecimento ocorre através de três categorias: a categoria do amor ou das relações íntimas; a categoria do direito ou das relações jurídicas; e a categoria da solidariedade ou das relações que resultam na estima social, conforme discutido anteriormente. Todavia, em Direito da Liberdade estas categorias sofreram modificações. A primeira categoria mudou do amor para o “nós” das relações pessoais; a categoria do direito deu espaço para o “nós” do agir em economia de mercado; e, por fim, a categoria da solidariedade transformou-se no “nós” da formação da vontade democrática.

Na referida obra, Honneth retoma alguns aspectos da teoria do reconhecimento desenvolvida em A Luta por reconhecimento. A novidade em O Direito da Liberdade concerne ao mercado, pois é a primeira vez que Honneth enxerga no mercado um âmbito de reconhecimento. Assim, o conceito de luta perde seu protagonismo (MADUREIRA, 2015). Em relação a isso, Durkheim se torna uma referência fundamental para discutir as questões referentes a liberdade social.

Para dar uma ideia comparativa mais específica, pode-se evidenciar as diferenças do seguinte modo:

 

1. A esfera das relações íntimas/interpessoais é a única que não sofre grandes mudanças; 2. Ocorre um deslocamento do reconhecimento das capacidades e características individuais, entendido anteriormente como associado ao desempenho e à solidariedade/valoração social, da terceira a segunda esfera, tendo como resultado: a) O desaparecimento do direito como esfera da liberdade social (O direito aparecerá em Das Recht der Freiheit como “possibilidade” de liberdade, não como liberdade “efetiva”, associado à liberdade negativa; b) O surgimento de uma esfera de reconhecimento propriamente política, que não existia na teoria “originária”; c) A localização do reconhecimento das capacidades, associado ao trabalho, em conjunto com os interesses particulares, numa esfera de reconhecimento própria: a economia de mercado (MADUREIRA, 2015, p. 364- 365).

 

Essas modificações remetem a outra questão importante. Em O direito da liberdade, Honneth procura desenvolver “os princípios de justiça social diretamente sob a forma de uma análise da sociedade” (HONNETH, 205, p. 9). Para essa finalidade, o autor insiste em quatro premissas: a primeira delas destaca que a reprodução social está vinculada e se orienta por ideais e valores, ou seja, “essas normas éticas não apenas determinam [...] quais as medidas ou desenvolvimentos sociais podem ser concebidos, mas também são determinados […] como objetivos de educação mais ou menos institucionalizados, pelos quais se organizaria a vida do indivíduo no seio da sociedade” (HONNETH, 2015, p. 19).

A segunda premissa é uma proposta que “se deve tomar apenas os valores ou ideais como ponto de referência moral de uma justiça que, como pretensões normativas, a um só tempo constitui reivindicações normativas e condições de reprodução de cada sociedade” (HONNETH, 2015, p. 21).

Honneth ressalta que a justiça não é independente e, portanto, tais valores e ideais não podem ser determinados de modo descontextualizado, resultando então, de uma análise concreta. Com isso, Honneth traz a reconstrução normativa, como a terceira premissa, como modo de validação do procedimento metodológico, considerando que os “valores justificados de modo imanente são, de maneira direta, tomados como fio condutor da elaboração e classificação do material empírico” (HONNETH, 2015, p. 24). Para então analisar criticamente o procedimento da reconstrução normativa, sendo esta a quarta premissa, partindo da ideia de que “não pode se tratar apenas de desvelar, pela via reconstrutiva, as instâncias da eticidade já existentes, mas deve também ser possível criticá-las à luz dos valores incorporados em cada caso” (HONNETH, 2015, p. 29).

Neste livro, Honneth apresenta a teoria do reconhecimento tendo como ponto central de sua discussão a liberdade, principalmente, a defesa de uma ideia de liberdade social. Com uma organização do livro muito semelhante ao livro Princípios da Filosofia do Direito de Hegel, Honneth defende a ideia de que a liberdade de um indivíduo apenas se efetiva quando este estiver em contato e relacionar-se com outros indivíduos, ou seja, é a ideia de que o sujeito só conquistará sua liberdade quando o outro o auxiliar a realizar sua liberdade e, do mesmo modo, o outro só se tornará livre, quando outro sujeito o auxiliar a realizar a sua liberdade. Assim, não há uma liberdade a perder, e sim uma liberdade a ser construída.

Em síntese, Honneth (2015) apresenta três diferentes modelos de liberdade: liberdade negativa; liberdade reflexiva; e, liberdade social. Estes modelos seguem uma dinâmica organizacional muito semelhante a utilizada por Hegel, portanto, a liberdade negativa relaciona-se com o direito abstrato discutido por Hegel; a liberdade reflexiva está relacionada com a moralidade subjetiva e, por fim, a liberdade social é correspondente as esferas da moralidade objetiva: família, sociedade civil e o Estado. De acordo com o que Pinzani também apresenta, “A parte sobre família do texto hegeliano corresponde, no texto de Honneth, a parte sobre relações pessoais; aquela sobre sociedade civil corresponde a parte sobre o mercado; finalmente, a parte sobre o Estado corresponde a parte sobre o Estado democrático” (PINZANI, 2012, p. 207).

Para discutir a liberdade negativa, Honneth retoma a compreensão de liberdade apresentada por Hobbes, sendo esta uma liberdade individual que não enfrenta resistências externas, ou seja, não há obstáculos para a realização da vontade do indivíduo. Havendo assim a possibilidade do indivíduo agir sem a interferência de outrem, ou então, sem a necessidade de prestar explicação sobre suas ações individualistas, Honneth ressalta que “a ideia de que a liberdade do indivíduo consiste na busca de seus próprios interesses sem que haja impedimentos ‘de fora’ repousa numa arraigada intuição do individualismo moderno” (2015,

p. 46). Essa liberdade é negativa, pois “já que não se deve voltar a questionar seus objetivos quanto à sua capacidade de satisfazer ou não suas condições de liberdade; [...] bastando o ato puro e desimpedido do decidir para que a ação resultante seja qualificada como ‘livre” (HONNETH, 2015, p. 49). Assim, esta liberdade permite a legitimação do desejo de distinção do indivíduo, tornando o indivíduo livre, quanto mais desejos e objetivos ele pudesse vir a realizar, porém, sem interferir na liberdade dos demais. Para Honneth, essa liberdade não é suficiente, pois “todas as insuficiências reveladas pela liberdade negativa remetem, em última instância, ao fato de ela cessar antes do limiar legítimo da autodeterminação individual”, não sendo assim, propositiva.

A liberdade negativa, posteriormente é discutida como liberdade jurídica, e então, ressaltam-se as possíveis patologias que tal liberdade pode vir a causar, segundo Pinzani (2012, p. 209): “a total identificação, pelos indivíduos, de sua liberdade com a liberdade jurídica, isto é, com seus direitos negativos e que, portanto, tais direitos acabem sendo os elementos constitutivos do plano de vida de seus titulares”.

Na liberdade reflexiva, partindo desde a Idade Antiga e Média, para um indivíduo ser livre ele “tinha de chegar às suas próprias decisões e poder realizar sua vontade” (HONNETH, 2015, p. 58). Desse modo, a relação que é estabelecida na liberdade reflexiva é de um sujeito que age segundo suas próprias intenções. Para tanto, Honneth busca em Rousseau, Kant e Herder, suas concepções de liberdade reflexiva. Sendo esta liberdade, perpassada pela ideia de que o agir do indivíduo só é permitido sem que a consciência e a reflexão imponham obstáculos.

A liberdade social se desenvolve nas três esferas, reorganizadas da luta pelo reconhecimento, a saber: as relações pessoais, economia de mercado e formação da vontade democrática. Nesse sentido, a liberdade social pode ser “entendida como um resultado de um esforço teórico de compreender que o critério subjacente ao pensamento da liberdade reflexiva amplia-se até mesmo às esferas que tradicionalmente se contrapõem ao sujeito como realidade externa" (HONNETH, 2015, p. 81). Ao final da descrição dos três modelos de liberdade, Honneth apresenta a ideia de uma eticidade democrática, destacando que uma concepção de justiça que supere o distanciamento da teoria normativa com a realidade social necessita “de uma reconstrução normativa do desenvolvimento social conduzida de maneira normativa” (HONNETH, 2015, p. 112).

Após a atualização histórica que retoma os modelos de liberdade negativa, reflexiva e social, Honneth apresenta como possibilidade de liberdade a liberdade jurídica e a liberdade moral. Destacando para cada uma dessas liberdades sua razão de ser, seus limites e suas patologias.

Honneth (2015) salienta que nas sociedades liberais os indivíduos apenas compreendem-se como pessoas detentoras de vontade própria quando possuidoras de direitos subjetivos, direitos estes concedidos pelo Estado para explorarem suas preferências, constituindo deste modo uma autonomia privada garantida juridicamente. Porém, estes direitos passaram a ser questionados por organizações e movimentos sociais, num sentido de buscar o reconhecimento intersubjetivo e a busca de direitos que atendam a todos os indivíduos. Sob a influência das mudanças ocorridas no âmbito econômico. Corrobora com este posicionamento de Honneth, o pensamento de Sennett (2006; 2009), no contexto do novo capitalismo prevalece uma organização voltada cada vez mais para o individualismo, pois as relações, bem como, o trabalho são organizadas de modo que não se crie expectativas de longo prazo. O que conduz, ilusoriamente, os indivíduos a entenderem-se como pessoas independentes, com vontade própria, gerando uma grande confiança no próprio indivíduo. Essa excessiva responsabilização do sujeito pelos seus atos pode vir a gerar a sensação de que não possui nenhum compromisso com os demais sujeitos.

A tese de que a sociedade passa por uma prevalência do individualismo, segundo Honneth (2014) também passa pelas discussões que contemplam o conceito de autonomia. Conceito este, amplamente discutido tanto no campo filosófico, como no educacional, que não contemplou a discussão sobre as vulnerabilidades sociais, segundo Honneth (2014), esse conceito voltou seu entendimento e discussão muito mais para um aspecto individualista. Concepção esta que também entranhou-se em alguns aspectos das discussões sobre justiça social, mas principalmente, desenvolveu-se um ideal de sociedade justa que “passou a ser compreendida como a de permitir que as pessoas que sejam dependentes o mínimo possível de outros” (ANDERSON; HONNETH, 2011, p. 83).

Essa ideia de que o social está sendo envolvido por aspectos egoístas, também é compartilhado por outros autores. Conforme Macpherson, as sociedades envolvidas por políticas liberais, salientam uma concepção de indivíduo como proprietário de sua pessoa e de suas capacidades, não sendo percebido como um integrante de um todo social, nos direcionando assim, a um individualismo possessivo (MACPHERSON, 1979). Ideia esta que é discutida na obra “Teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes até Locke”, na qual é apresentado o surgimento e o desenvolvimento do individualismo possessivo na Filosofia política do século XVII. Tendo como modelo de sociedade “como sendo uma série de relações de mercado entre esses indivíduos”, sendo esse um dever político suficiente, ou seja, “não eram necessários conceitos tradicionais de justiça […] o dever do indivíduo para com o estado era deduzido dos fatos supostos, como estruturados em um modelo humano materialista e no modelo da sociedade de mercado” (MACPHERSON, 1979, p. 277).

Do mesmo modo, Sennett (2006, 2009) afirma que o sistema capitalista corroeu o caráter das pessoas, ocasionando uma perda de senso de comunidade. Para Sennett (2009), a lógica do curto prazo e a necessidade de adaptar-se constantemente está retirando valores como lealdade e confiança, e desse modo, acaba interferindo na esfera da solidariedade. Consoante Sennett, a cultura do novo capitalismo está diretamente ligada a fragmentação e uma nova organização cultural das instituições. Sennett ressalta que os indivíduos tiveram que aprender a cuidar das relações e empregos de curto prazo e, em meio a isso, também cuidar de si mesmos podendo “ser obrigado a improvisar a narrativa de sua própria vida” (SENNETT, 2006, p. 13). Em meio a esse reinventar-se a curto prazo, também emerge a necessidade de “descobrir capacidades potenciais, à medida que vão mudando as exigências da realidade” (idem. p.13). Com uma estrutura muito dinâmica e que se altera rápida e constantemente, é necessário “permitir que o passado fique para trás” (idem., p. 14). Com tais mudanças nesse cenário, Sennett (2006) afirma que há necessidade de mudanças no caráter das pessoas para poder adentrar nestas instituições e adaptar-se a elas. Assim, “o ideal cultural do novo capitalismo […] o novo homem enriqueceria pensando em termos de curto prazo, desenvolvendo seu próprio potencial e desapegando-se de tudo” (SENNETT, 2006, p. 16).

Assim, Honneth (2014) salienta a ideia de que apenas a auto-regulação do mercado consegue equilibrar o jogo de interesses individuais. E, portanto, direitos coletivos possibilitados pelo Estado como uma alternativa para diminuir as desigualdades sociais causam grande estranheza e críticas pelas partes que não podem utilizar desses direitos, tratando aos dependentes de benefícios provindos do Estado como desvalidos e parasitas sociais. Este estado de desconfiança entre os indivíduos sociais deixa aberto um caminho para o desenvolvimento cada vez maior para o individualismo e a solidariedade torna-se dia após dia um elemento raro entre alguns indivíduos que ainda reconhecem o outro e buscam por justiça social para os menos favorecidos.

Na tentativa de melhorar e tornar prevalentes os direitos subjetivos, acreditamos que a sociedade acabe manifestando cada vez mais um sintoma de in-solidariedade, reforçando as patologias sociais constituídas ao longo do tempo. Assim, como uma possibilidade de superação do individualismo possessivo, busca-se com essa pesquisa a ampliação do debate sobre discriminação, justiça social e, principalmente, em possibilidades de reconhecimento social das crianças e famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. Assim, tem-se como hipótese que, as políticas distributivas sofrem da apatia devido a cultura do novo capitalismo que tem uma marca do individualismo que estimula a in-solidariedade. Por fim, nosso esforço é buscar no pensamento de Axel Honneth, elementos teóricos que subsidiem uma leitura da implementação da política social de distribuição de benefício financeiro no Brasil.

 

5 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: A DIMENSÃO HUMANITÁRIA

 

O Programa Bolsa Família foi instituído pela Lei nº 10.836[35] de janeiro de 2004 e regulamentado pelo Decreto nº 5.209/2004. Ele é um dos programas sob a responsabilidade da União, dos Estados, dos Municípios e Distrito Federal (BRASIL, 2004a; 2004b). Trata-se de um programa de transferência direta de renda, que integra o Plano Brasil Sem Miséria (BRASIL, 2011). Ele busca atender milhões de brasileiros que vivem em situação de pobreza e de extrema pobreza, com vistas a garantir renda, inclusão produtiva e acesso aos serviços públicos.

O Programa como tal tem como objetivo principal combater a pobreza, através da transferência direta de renda às famílias situadas ou classificadas como pobres e de extrema pobreza (BRASIL, 2003). Estas famílias, para que possam receber o benefício, devem possuir renda per capita de até R$ 85,00 – famílias consideradas em situação de extrema pobreza – e renda a partir de R$ 85,01 até R$ 170,00 – família em situação de pobreza (BRASIL, 2016). O programa pretende, com isso, auxiliar na superação da pobreza. A manutenção do benefício está atrelada a condicionalidades, tais como a frequência das crianças e adolescentes na escola e o acompanhamento da saúde das crianças e gestantes beneficiárias.

O Programa Bolsa Família, ao direcionar o benefício às famílias que vivem em situação de pobreza e de extrema pobreza, associou a transferência do benefício à saúde, alimentação, educação e assistência social – direitos sociais básicos. A frequência e permanência das crianças e adolescentes na escola, cuja frequência deve ser igual ou superior a 85% para as crianças com idade entre 6 e 15 anos, enquanto que a frequência igual ou superior a 75% concerne aos adolescentes com idade de 16 e 17 anos (BRASIL, 2015). Além da frequência à escola, o compromisso também envolve a questão relação da saúde, uma vez que as mulheres favorecidas devem realizar o pré-natal (no caso de gestantes), acompanhamento nutricional e da saúde (no caso das crianças com até 7 anos de idade) (BRASIL, 2004a; 2004b).

O acompanhamento dá-se pelo Censo Escolar, atestando a frequência e permanência na escola. Os dados referentes aos alunos são enviados bimestralmente; em relação à saúde, os dados são repassados pelos agentes de saúde dos postos de saúde, com envio semestral. Tanto o acompanhamento da saúde das crianças como o pré-natal e o acompanhamento das nutrizes tem o objetivo diminuir a mortalidade infantil, a desnutrição das crianças e a diminuição no desenvolvimento de doenças como, por exemplo, diarreia, dentre outras.

Esta condicionalidade é fundamental, pois contribui de forma significativa para o desenvolvimento saudável das crianças, favorecendo a conclusão da educação básica em melhores condições, desta forma, vencer o ciclo de pobreza.

Além do mais, é importante ressaltar que o cartão do Programa Bolsa Família, com o qual as famílias podem realizar o saque do benefício, está, em sua maioria, no nome das mulheres. Ou seja, as mães das crianças são as encarregadas de gerir o dinheiro, uma maneira de garantir a participação da mulher/mãe na vida pública. Em relação a isso, Rego e Pinzani afirmam que “as mulheres, a partir do recebimento da renda monetária, se apoderam de alguma forma de capacidade humana, como a de escolher certas opções, inclusive as de ordem moral” (2013, p. 204).

Para Rego e Pinzani (2013), a educação das mulheres reforça a cultura “voltada para a valoração suprema das virtudes e dos valores ligados à vida privada e destituído de conteúdos vinculados aos princípios da autonomia moral e do autogoverno” (2013, p. 51-52). Para esses autores, “essas contrapartidas possuem caráter republicano e contribuem para o processo de formação de cidadãos e indivíduos responsáveis perante sua comunidade política” (2013, p. 70-71). Em outras palavras, através do programa de distribuição de renda, percebe-se também a possibilidade de mudança na autoestima e no amor próprio dessas mulheres, ao possibilitar- lhes não apenas o acesso a renda, mas reforçando também interação social e a solidariedade compartilhada.

Em se tratando de combater a fome e na promoção da segurança alimentar e nutricional, vale a pena destacar alguns dados do documentário argentino Informe sobre la inequidade[36]. Esse documentário relata a distinção entre duas jovens a partir das aptidões e características que diferenciam uma da outra. As questões principais buscam responder algumas perguntas, como: Que atitudes e características diferenciam uma da outra? Quais as circunstancias específicas de cada uma?

Por meio da amostra da realidade das duas jovens – sendo uma – Maria - de classe média-alta (Nível C1) e outra – Angela - de classe baixa (Nível D2) – o documentário tem como objetivo observar tanto o coeficiente intelectual como a interação com a família e o desempenho educacional. Além do mais ele procura comprovar, através da clínica médica e genealógica das duas jovens, a premissa de que, no decorrer do crescimento o corpo humano, há uma diversidade de fatores. Tais fatores são fundamentais, pois são determinantes nas transformações e no desenvolvimento de aptidões, as quais estão diretamente ligadas à nutrição, cujo fator é extremamente determinante[37].

A demonstração dos resultados dos testes e exames indicam que Angela apresenta dificuldades de conexão entre os dois hemisférios do córtex cerebral. Ela é uma menina tímida, com dificuldades para se conectar com suas emoções e, inclusive, para expressá-las. De acordo com o Informe, se a criança não recebe os nutrientes necessários, isto determinará o seu futuro. Aqui existem diversos níveis deficitários: proteínas, glóbulos brancos, tiamina, que determinam uma maior vulnerabilidade a doenças e dificuldades no crescimento e no desenvolvimento cognitivo.

É claro que uma única fonte é relativamente suspeitável. Mesmo assim, é inegável que “a nutrição tem um papel muito importante na promoção do crescimento físico, no desenvolvimento neuropsicomotor e no combate às doenças infecciosas que afetam, principalmente, as crianças” (2011, p. 160). Para Figueroa Pedraza e Queiroz não há dúvidas de que esse fator é determinante na vida das pessoas; no caso, nos primeiros anos de vida.

O fato é que o corpo humano, para ter um desenvolvimento aprazível ou, senão, saudável, necessita de nutrientes. Sendo os nutrientes tanto macronutrientes compostos por: carboidratos, proteínas e lipídios; como por micronutrientes, tais como: vitaminas hidrossolúveis – vitaminas C e do Complexo B – e as lipossolúveis – vitaminas A, D, E e K e os minerais, sendo eles – macrominerais – Ca, P, S, Mg, Na-Ci-K[38] – e microminerais – Fe, Zi, I, F, Mn-Cu-Se[39] (TIRAPEGUI, 2002). Nesse sentido, apenas para citar um exemplo de falta de determinados nutrientes, Figueroa Pedraza e Queiroz (2011, p. 168) ressaltam que “o ferro, o zinco e a vitamina A são os micronutrientes que mais limitam o crescimento infantil e o desenvolvimento cognitivo”. A partir deste exemplo acima citado, é possível mensurar a grande importância da condicionalidade da saúde para o bom desenvolvimento dos filhos e filhas dos beneficiários do Programa Bolsa Família.

Além disso, outro aspecto tornou-se relevante. No documentário há um momento em que é solicitado as meninas pesquisadas para relatarem um pouco da relação com seus familiares. Maria diz que sua relação é muito boa, ama seu pai e que ele é genial. Por outro lado, Angela inicia sua fala afirmando ter bem claro o que seja sua família. Ela odeia sua mãe, sua mãe engravidou aos dezessete anos e foi mandada embora de casa, tendo assim que começar a trabalhar. Angela continua seu depoimento dizendo que havia dias em que ficava trancada em um quarto, triste e chorava durante horas até adormecer chorando. Ela sentia que ninguém lhe dava carinho e ficava de mal com todo mundo. Angela finaliza dizendo: Eu não gostaria de morar na minha casa.

Ao trazer as esferas do reconhecimento de Honneth para, com isso, compreender as situações vivenciais, é possível vincular as emoções e os estímulos afetivos em conexão com as experiências vivenciais. Ou seja, os níveis de amor e de afeto são inerentes à noção da importância de si mesmo. Por isso, a autoestima está ligada à relação de amor, ou seja, há um espaço no qual o ser humano pode desenvolver-se a partir desse cuidado afetivo. Para Honneth (2003), a manifestação afetiva e o cuidado expressa o reconhecimento recíproco. Tal manifestação afetiva de confiança que se estabelece com as pessoas do círculo familiar e de amizades. Honneth (2003) denomina de uma autorrelação prática que, na criança, desenvolve o sentimento de autoconfiança.

Na relação com o Documentário, poder-se-ia, então, afirmar que a autoconfiança está também vinculada aos nutrientes – ou sua ausência – os quais influenciam sobremaneira na consolidação, ou não, desse âmbito relacionado ao que Honneth diz ser o âmbito do afeto e do amor, isto é, de um comportamento ligado às relações primárias. Mais uma vez, ressalta-se que essa relação deveria ser mais aprofundada.

Além da ausência do afeto, o sujeito pobre é silenciado e se torna, assim, alguém invisibilizado. Honneth discute o aspecto da invisibilidade em seu ensaio Invisibilidad: sobre la epistemologia moral del ‘reconocimiento’ (2011). Ele inicia a discussão tomando como referência o romance O homem invisível, de Ralph Ellison (1980). Através desse texto, Honneht realça o sentimento de desprezo frente aos indivíduos que não exercem protagonismo ou que vivem à margem da sociedade. Tal sentimento é nutrido por meio de um “olhar através” (looking through). Para Honneth: “[...] nós dispomos da capacidade de demonstrar nosso desprezo a pessoas presentes mediante o fato de comportarmo-nos frente a elas como se elas, fisicamente, não existissem no mesmo espaço” (HONNETH, 2011, p. 166). Trata-se, pois, de uma percepção física no sentido de ignorar essas pessoas. Desse modo, a atitude revela a invisibilidade, não reconhecendo a relevância social deste outro. Em outras palavras, “o sujeito concernido é observado por outra persona como se não estivesse presente no espaço correspondente” (HONNETH, 2011, p. 169). Desse modo, evidencia-se o aspecto negativo do reconhecimento, pois não há valorização e nem a percepção deste sujeito. No sentido contrário, a visibilização do sujeito indica sua valoração. Esse ato público salienta a sua apreciação, reconhecendo-o como tal. A sua invizibilização designa a negação do reconhecimento social.

 

6 CONCLUSÃO

 

As considerações apresentadas acerca do programa Bolsa Família, com base na teoria do reconhecimento de Axel Honneth – começando pela luta por reconhecimento e salientando também a teoria da justiça desenvolvida em o direito da liberdade – possibilitou traçar algumas considerações a respeito da política social de redistribuição de renda para famílias pobres no Brasil, especificamente do Programa Bolsa Família. Por certo, os desdobramentos do Programa Bolsa Família, no cenário do “novo capitalismo”, permite diferentes interpretações. Mesmo assim, não há dúvidas de que se trata de uma política de reconhecimento voltada a oferecer condições de sustentabilidade mínimas de sobrevivência. Como foi destacado, um dos aspectos relevantes concerne a âmbito humanitário, isto é, de alimentação e de nutrição garantidoras de uma vida saudável e aprazível.

A simples análise do Programa Bolsa Família enquanto apenas transferência de renda, com um viés assistencialista, nega, em boa medida, a necessidade de recursos alimentares e oportunidades de consumo que viabilizam aspectos relacionados ao bem viver, isto é, à vida saudável. Sem dúvidas, as políticas redistributivas podem reforçar ou, então, criar estigmas sociais. Os beneficiários podem ser considerados como, financeiramente, dependentes do Estado. Eles podem ser considerados como privilegiados ou, de outro modo, como incapazes de prover seu sustento por conta própria. Desse modo, a política de redistribuição de renda pode provocar a marginalização dos beneficiários de programas de distribuição de renda, criando e desenvolvendo um círculo vicioso de discriminação. Em seu diálogo com Fraser, Honneth (2007) define que as políticas distributivas não são apenas políticas de redistribuição de renda, mas também são políticas de reconhecimento. Para o autor, não se trata apenas de suprir as necessidades materiais, mas também de possibilitar a conquista da dignidade e maneiras de serem estimadas no meio social. No caso, a autoestima é um dos fatores ligados à humanização do sujeito.

Sem dúvidas, o documentário Informe sobre la inequidad apresenta duas situações distintas. Nele, evidencia-se um contexto de desrespeito, de humilhação e de não reconhecimento, inclusive no âmbito familiar. Tais conceitos negativos não estão relacionados apenas a maus comportamentos e que expressam injustiça, mas, sim, na linha de Honneth (2003), as patologias não se relacionam apenas ao comportamento que é prejudicial. A autoestima, o amor próprio, o cuidado, enfim, a dinâmica das relações primárias podem estar relacionadas a nutrientes e a dietas de alimentação que interferem na autocompreensão de si e, ainda, na forma intersubjetiva de conviver. Às vezes, esta compreensão positiva de si mesma, para as pessoas que vivem em situação de extrema pobreza e na marginalização, sequer existe. Ou seja, o processo de violência, falta de afeto e de não-reconhecimento vai passado de geração em geração. Nos contextos em que não há afeto e muito menos carinho, não há autoestima, o que acaba produzindo, nas pessoas, o não reconhecimento de si mesmas enquanto sujeitos coautores e, portanto, enquanto seres intersubjetivamente relacionais.

A ideia de reconhecimento, defendida por Honneth, principalmente na Luta por reconhecimento, indica a relevância de um bom relacionamento com os íntimos. Isso nos conduz a refletir e perceber que, muitas vezes, as vivências das crianças, provindas de famílias pobres, interfere diretamente no desempenho escolar das mesmas. Muitas famílias, que vivem em situação de pobreza ou de extrema pobreza, não possuem a plena consciência de sujeitos coautores, pois sua alimentação é deficitária.

Muitas vezes, discute-se a frequência e permanência das crianças na escola, pois ela é uma condicionalidade para a manutenção do benefício do Programa Bolsa Família. Esse é, sem dúvida, um quesito importante. Tal condicionalidade é uma possibilidade para a quebra deste círculo intergeracional de pobreza. Todavia, para além da negligência por parte dos agentes e das instituições públicas de ensino, as crianças também precisam lidar com a falta  de autoestima e de amor próprio, muito presente nas famílias de baixa renda, aspecto que se traduz no gosto pelo estudo.

Em suma, as políticas distributivas, elaboradas dentro do contexto do “novo capitalismo”, aparecem como duas faces da mesma moeda. O retumbante discurso de assistencialismo, atribuído às políticas de distribuição de renda, ofusca, por vezes, o direito de uma vida digna. Nesse caso, a in-solidariedade está presente naqueles que estão acima da linha da pobreza. Eles realizam juízo de valor a partir do princípio do mérito, desconsiderando a pobreza extrema como fator preponderante na constituição do reconhecimento intersubjetivo dos beneficiários do Programa Bolsa Família.

 

REFERÊNCIAS

 

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PINZANI, Alessandro. Alcances e limites de um CCT Program: quão justificadas são as críticas ao Bolsa Família? In: Cadernos de Filosofia Alemã. v. 19; nº 2, jul-dez, 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v19i2p149-163. (Acesso em 13/08/2016).

 

TIRAPEGUI, Julio. Nutrição: fundamentos e aspectos atuais. São Paulo: Atheneu, 2002.

 


HONNETH FRENTE À VIRTUALIDADE NA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA[40]

 

Vanessa dos Santos Nogueira[41]

Universidade Federal de Santa Maria

snvanesa@gmail.com

 

Jovino Pizzi[42]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO

 

Busca-se nesse trabalho apresentar uma reflexão acerca das relações sociais de reconhecimento intersubjetivo, valendo-se de espaços virtuais, especificamente em um curso de formação de professores, na modalidade de Educação a Distância (EAD), no âmbito do Sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB). A base teórica que guia essa investigação está na luta pelo reconhecimento, proposta pelo filósofo alemão Axel Honneth.

Parte-se do pressuposto de que os estudantes do Curso de Pedagogia EAD/UFSM/UAB lutam por reconhecimento no entrelaçamento do virtual com o presencial. Nesse processo, apresentam padrões de reconhecimento intersubjetivo, embora haja variações conforme a trajetória pessoal e o percurso de formação de cada estudante. O Reconhecimento Intersubjetivo Virtual apresenta uma dinâmica social cuja mediação ocorre através da internet e tem como base os papéis sociais institucionalizados ao longo da história. Esses papéis passam a se modificar com as vivências dos envolvidos tanto no virtual quanto no presencial.

Assim, a internet representa tanto o lugar onde acontece o fenômeno pesquisado, quanto o lugar em que se desenvolve a pesquisa empírica. Nesse estudo considera-se a internet tal como se configura atualmente, enquanto uma representação simbólica, tanto quanto o presencial. A partir do entendimento de que é possível, ao mesmo tempo, habitar diferentes espaços, também somos compelidos a aprender como e onde habitá-los.

2 PERCURSO METODOLÓGICO

 

A elaboração da reflexão acerca do Reconhecimento Intersubjetivo Virtual se deu a partir da teoria do reconhecimento de Honneth aliada a uma pesquisa empírica, realizada no ambiente virtual de aprendizagem Moodle, tendo como público os estudantes do Curso de Pedagogia a Distância da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no âmbito da UAB.

A coleta de dados para constituição do corpus de análise foi desenvolvida através da entrevista semiestruturada. No sentido definido por Triviños, “[...] aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa [...] fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as repostas do informante” (TRIVIÑOS, 1987, p. 146).

A opção pelas entrevistas via internet justifica-se, principalmente, por dois motivos: (1) a localização geográfica dos sujeitos de pesquisa; (2) o potencial de comunicação e a fluência digital dos sujeitos. Em relação ao primeiro, procuramos levar em conta que os participantes da pesquisa estavam em diferentes lugares. O segundo motivador se deve ao fato de acredita- se na potencialidade da Comunicação Mediada por Computador (CMC). Assim, a escolha pelas entrevistas on-line justifica-se à medida que a CMC é a forma de comunicação mais utilizada nos processos de ensino e aprendizagem à distância. Através dela, os sujeitos da pesquisa comunicam-se com seus professores, realizam suas atividades e criam laços afetivos. Por fim, consideramos também que os sujeitos da pesquisa, estudantes da modalidade de Ensino a Distância, possuem fluência digital para utilização desse recurso.

Neste estudo, para pesquisar o movimento constitutivo das relações sociais de reconhecimento intersubjetivo dos estudantes do Curso de Pedagogia a Distância, optou-se pela utilização do espaço virtual do Moodle para a realização das entrevistas.

Os sujeitos participantes da entrevista online foram estudantes matriculados no Curso de Pedagogia EAD/UFSM/UAB, no segundo semestre de 2014, oriundos de dois grupos: uma turma do quarto e outra do sexto semestre do curso. O primeiro grupo era formado por 232 alunos matriculados na disciplina de Didática. Ao segundo pertenciam 175 estudantes matriculados na disciplina de Pesquisa em Educação II: Bases Epistemológicas da Pesquisa.

Os estudantes foram convidados a colaborar com a pesquisa através de mensagem enviada via Moodle. Dos 232 estudantes matriculados em Didática, 13 responderam a entrevista. Na disciplina de Pesquisa em Educação II: Bases Epistemológicas da Pesquisa, 20 alunos, dos 175 matriculados, aceitaram responder a entrevista. Assim, em um universo de 407 alunos matriculados, 33 concordaram participar da pesquisa e responderam a entrevista online. Desse universo, foram selecionados doze entrevistas para constituição do corpus da pesquisa, seis de cada disciplina. Para definir as entrevistas a serem analisadas, priorizou-se o seguinte critério: estudantes que não tiveram contato com ambientes virtuais antes de ingressarem no Curso de Pedagogia EAD/UFSM/UAB e que ainda não atuavam como professores da Educação Básica.

Para analisar os dados empíricos da pesquisa, utilizou-se noções da teoria do reconhecimento, apresentada de forma sistemática na obra Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, a partir de um projeto descritivo-normativo das relações sociais de reconhecimento intersubjetivo, organizado a partir de três esferas, a saber: amor, direito e solidariedade. Como objeto de estudo tomamos o movimento constitutivo das relações sociais de reconhecimento intersubjetivo dos estudantes do Curso de Pedagogia a Distância da Universidade Federal de Santa Maria, utilizando como método de coleta de dados a realização de entrevistas semiestruturadas online e uma Autoetnografia Virtual. A interpretação do corpus teve como base a Análise Textual Discursiva (MORAES, 2005).

 

3 LUTA POR RECONHECIMENTO: A GRAMÁTICA MORAL DOS CONFLITOS SOCIAIS

 

A gramática moral dos conflitos sociais proposta por Honneth oferece elementos teóricos para uma leitura da sociedade atual, bem como suas relações de reconhecimento intersubjetivo. Contudo, a intenção dessa pesquisa é realizar um deslocamento dessa estrutura das relações sociais de reconhecimento para uma leitura das relações de reconhecimentos que são desencadeadas em espaços virtuais institucionalizados de formação de professores a distância, especificamente no âmbito da UAB. Acredita-se que a organização dos modos de reconhecimento de Honneth oferecem elementos teóricos capazes de mobilizar os saberes e determinar o movimento constitutivo das relações de Reconhecimento Intersubjetivo Virtual.

Destaca-se que as relações de Reconhecimento Intersubjetivo Virtuais e presenciais estão entrelaçadas, pois as duas fazem parte do mesmo mundo da vida. A organização das relações de reconhecimento virtual se dá, em um primeiro momento, com a transposição dos modelos presenciais, que vão paulatinamente sendo alterados pela permanência e conexões estabelecidas no virtual, passando a refletir e modificar as relações presenciais. O Reconhecimento Intersubjetivo Virtual se dá num movimento espiral de aprendizagem dos elementos necessários para a comunicação e luta por reconhecimento no entrelaçamento dos espaços online e offline do mundo da vida.

Busca-se na obra Luta por reconhecimento: uma gramática moral dos conflitos sociais, insumos teóricos que sustentem a relação prática das esferas de reconhecimento a partir análise da pesquisa empírica desse trabalho. Para tanto, considera-se que: “A teoria de Honneth é explicativa, pois busca esclarecer a gramática dos conflitos e a lógica das mudanças sociais com a finalidade de entender a evolução moral da sociedade [...]” (SALVADORI, 2003, p. 195).

Honneth organiza sua proposta de uma teoria normativo-descritiva baseada na atualização da teoria do reconhecimento proposta por Hegel, retomando as teorias de George Herbert Mead e Donald Woods Winnicott. A psicologia social, para Honneth, oferece uma materialidade para o movimento constitutivo das relações sociais propostas pelo jovem Hegel e permite o aprofundando das três esferas de reconhecimento e seu funcionamento no mundo da vida.

A teoria do reconhecimento, através do reconhecimento intersubjetivo, surge como uma possibilidade para repensar as relações sociais estabelecidas pelos indivíduos na sua organização social. Além disso, auxilia na fundamentação do ponto de vista moral e normativo, encarnado no cenário histórico, cultural e politico da sociedade e no movimento de reconhecimento recíproco dos autores e co-autores sociais.

Nesse sentido, é possível perceber as três esferas da teoria do reconhecimento: o amor (relações primárias), o direito (relações jurídicas) e a solidariedade (comunidade de valores) como categorias abrangentes que, de certo modo, garante uma leitura da organização social, a construção da identidade dos sujeitos e o balizamento jurídico dos princípios e regras colocados em funcionamento a partir da validação dos indivíduos e instituições sociais.

A primeira esfera de reconhecimento, descrita por Honneth, é o amor. Em especial, trata-se da relação primária estabelecida entre mãe e filho baseada na noção de maternagem de Winnicot. Honneth apresenta o amor a partir do processo de maternagem como uma representação simbiótica. Ao descrever a simbiose Honneth fala que “[…] os dois parceiros de interação dependem aqui, na satisfação de suas carências, inteiramente um do outro, sem estar em condições de uma delimitação individual em face do respectivo outro. Pois, por um lado, a mãe vivenciará o estado carencial precário do bebê” (HONNETH, 2009, p. 166).

Cabe destacar que, embora Winicott entenda a maternagem como circunscrita a relação entre mãe e filho, nessa pesquisa, entende-se que a relação de maternagem pode ser vista de forma mais ampla, pois outra pessoa, além da mãe, pode desempenhar o papel afetivo correspondente a esfera do amor, oportunizando à criança pequena as experiências de autoconfiança necessárias nessa fase da vida humana.

Além das relações primárias de maternagem, a esfera do amor abrange relações amorosas da vida adulta, incluindo contato intimo, relações sexuais e também relações de amizade. Contudo, o processo de maternagem é base para as outras relações de reconhecimento dessa e das outras esferas. O amor é o “[…] cerne estrutural de toda eticidade: só aquela ligação simbioticamente alimentada [...] cria a medida de autoconfiança individual, que é a base indispensável para a participação autônoma da vida pública” (HONNETH, 2009, p. 178).

Honneth considera que toda relação amorosa está ligada à empatia e à atração, numa relação simultânea da afirmação da autonomia apoiada pela dedicação (HONNETH, 2009). Ao falar sobre a experiência do amor, o referido autor explica que: “Um semelhante modo de auto-confiança constitui o pressuposto elementar de toda espécie de auto-realizacão, na medida em que faz o indivíduo alcançar aquela liberdade interior que lhe permite a articulação de suas próprias carências " (HONNETH, 2009, 276).

A vivência do amor, como relação simbiótica expressa no sujeito as primeiras experiências de reconhecimento. A esfera do amor serve como base para o desenvolvimento das outras formas de reconhecimento. Quando o processo de maternagem não é satisfatório: “[...] a criança torna-se um acumulado de reações à violação; o self verdadeiro da criança não consegue formar-se, ou permanece oculto por trás de um falso self que a um só tempo quer evitar e compactuar com as bofetadas do mundo” (WINNICOTT, 2005, p. 17).

A experiência do amor na maternagem funciona como base tanto o desenvolvimento de uma vida plena, pautada na busca por um projeto de vida boa, tanto como para desencadear processos de reificação. Considera-se aqui a reificação como o esquecimento do reconhecimento social, onde: “[...] o outro não é apenas imaginado como um simples objeto, mas perde-se efetivamente a percepção de que ele seja um ser com características humanas” (HONNETH, 2008b, p. 78).

A esfera do amor proposta por Honneth baseada no pensamento hegeliano ganha novos elementos quando entrelaçada ao pensamento de Mead e Winnicot. Esses autores consideram que o reconhecimento do amor “[...] é a função especial que lhe há de caber no processo de formação da autoconsciência de uma pessoa de direito” (HONNETH, 2009, p. 79). Nessa perspectiva, o amor é a esfera basilar para formação das outras esferas de reconhecimento, quando o processo de maternagem oportuniza relações de afeto e autoconfiança necessária para a formação de novos esquemas de aprendizagem.

A segunda esfera de reconhecimento é a do direito, que se diferencia do amor, no sentido que “[...] só pode se constituir na sequência de evolução histórica” (HONNETH, 2009, p. 180). Ainda sobre a diferenciação entre o amor e o direito:

 

Da forma de reconhecimento do amor, como a apresentamos aqui com o auxílio da teoria das relações de objeto, distingue-se então a relação jurídica em quase todos os aspectos decisivos; ambas as esferas de interação só podem ser concebidas como dois tipos de um mesmo padrão de socialização porque sua lógica respectiva não se explica adequadamente sem o recurso ao mesmo mecanismo de reconhecimento recíproco (HONNETH, 2009, p. 179).

 

O mecanismo de reconhecimento recíproco proposto por Honneth, com base na dinâmica de reconhecimento de Hegel, não é um encontro superficial de interesses próprios ou ainda a representatividade de uma ideologia para sustentar a cultura vigente. O funcionamento de cada uma das categorias carrega consigo como pré requisito um movimento de alteridade, onde o reconhecimento só é válido se um sujeito é capaz de encontrar no outro a reciprocidade no deslocamento da sua consciência de si no confronto da consciência de si de um outro. Assim: “[…] só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos como portadores de direitos quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais obrigações temos de observar em face do respectivo outro” (HONNETH, 2009, p. 179).

Honneth esclarece que existe uma diferenciação entre as propostas de Mead e Hegel sobre o funcionamento da esfera jurídica. Enquanto para Hegel a esfera jurídica funciona “[…] quando ela se torna dependente historicamente das premissas e dos princípios morais universalistas” (HONNETH, 2009, p. 181), para Mead o reconhecimento jurídico se materializa a partir de um 'outro generalizado' atrelado ao funcionamento jurídico tradicional. “Diferentemente das definições de Mead, as de Hegel só valem para a ordem social do direito na medida em que esta pôde se desligar da autoridade natural de tradições éticas, adaptando- se ao princípio de fundamentação universalista” (HONNETH, 2009, p. 181).

A organização da esfera jurídica apresenta uma questão central para seu pleno funcionamento, onde é necessário “definir a capacidade pela qual os sujeitos se respeitam mutuamente, quando se reconhecem como pessoas de direito” (HONNETH, 2009, p. 187). Assim como a esfera do amor contém em si elementos de aprendizagem sociais desencadeados a partir do processo de maternagem, que funcionam na interação e reconhecimento reciproco dos envolvidos, a esfera jurídica também carece de elementos fundamentais para que os sujeitos sustentem seu amplo funcionamento.

As ações que competem a esfera do direito são embasadas na capacidade de agir racionalmente. Para tanto, os sujeitos necessitam aprender ao longo da vida os valores considerados universais e ter conhecimento do sistema de comunicação que coloca em funcionamento as normas e princípios sociais.

Esse processo de aprendizagem ganha novos elementos com as transformações históricas que resultam de conflitos sociais e lutas por um lugar melhor para viver. Não se nega que essa elaboração é atravessada por sintomas e patologias sociais que dificultam a elaboração de um projeto de bem viver. Contudo, as relações negativas carregam em si um potencial de contra-identificação que mobiliza o cenário cultural e social a partir dos conflitos sociais. Nesse cenário de mudanças, houve um aumento das capacidades que garantem ao sujeito sua atuação como cidadão. Nesse sentido: “[...] um sujeito é respeitado se encontra reconhecimento jurídico não só na capacidade abstrata de poder orientar-se por normas morais, mas também na propriedade contrate de merecer o nível de vida necessária para isso” (HONNETH, 2009, p. 193).

No modo de reconhecimento do direito, o que garante a não violação da integridade social a partir da constituição do auto respeito é o ordenamento jurídico, aliado a sua materialidade no funcionamento das relações sociais encarnadas no mundo da vida. Diante disso, “[...] um sujeito é respeitado se encontra reconhecimento jurídico não só na capacidade abstrata de poder orientar-se por normas morais, mas também na propriedade concreta de merecer o nível de vida necessário para isso (HONNETH, 2009, p. 193).

O direito e o desenvolvimento de autorrespeito moral alteram-se conforme o período histórico, transcendendo o ordenamento abstrato ao entrar em funcionamento gerando autorrespeito nos sujeitos e, por conseguinte, refletindo nas instituições sociais. Quando o autorrespeito é comparado a autoconfiança da esfera do amor, Honneth diz que: “O autorrespeito é para a relação jurídica o que a autoconfiança era para a relação amorosa é o que sugere pela logicidade com que os direitos se deixam converter como signos anonimizados de um respeito social […]” (HONNETH, 2009, p. 194).

O que em determinada época era considerado válido enquanto normas e princípios apropriados não são permanentes. Ainda assim, o modelo referencial para formação de direitos permanece. Nessa direção: “[…] podemos conceber como “direitos”, grosso modo, aquelas pretensões individuais com cuja satisfação social uma pessoa pode contar de maneira legitima [...]” (HONNETH, 2009, p. 216).

Sobre a variação dessa esfera de reconhecimento a partir do cenário histórico, o autor faz referência a uma aplicação específica: “[...] um direito universalmente válido deve ser questionado, à luz das descrições empíricas da situação, no sentido de saber a que círculo de sujeitos ele deve se aplicar, visto que eles pertencem a classes de pessoas moralmente imputáveis” (HONNETH, 2009, p. 186).

A terceira esfera de reconhecimento é a estima social. Ela se distingue do amor e do direito, pois trata das propriedades particulares que definem o sujeito na sua singularidade, pois: “[...] diferentemente do reconhecimento jurídico em sua forma moderna, a estima social se aplica às propriedades particulares que caracterizam os seres humanos em suas diferenças pessoais […] (HONNETH, 2009, p. 199). Assim, o direito caracteriza o reconhecimento do sujeito valendo-se das normas da sociedade.

A forma de reconhecimento de uma comunidade valores (solidariedade) se organiza por uma integração do processo de formação individual e cultural, operando numa via de mão dupla onde individual e coletivo integram-se e alteram-se mutuamente. Para descrever o funcionamento normativo-descritivo desse modo de reconhecimento, Honneth recorre ao pensamento de Hegel e Mead.

A partir das formulações de Hegel (sobre o sistema de eticidade) e Mead (divisão democrática do trabalho), Honneth conclui que essa esfera só funciona de forma adequada quando os sujeitos: “[…] sob a condição de partilharem a orientação dos valores e objetivos que lhes sinalizam reciprocamente o significado ou contribuição de suas propriedades pessoais para a vida do respectivo outro.” (HONNETH, 2009, p. 198-199). Para Honneth, Hegel e Mead “tentaram caracterizar apenas um tipo, particularmente exigente em termos normativos de comunidade de valores, em cujo quadro toda forma de reconhecimento por estima está incrustada de modo necessário” (HONNETH, 2009, p. 199).

A estima social é um modo de reconhecimento de mediação que funciona: “no nível social, por um quadro de orientações simbolicamente articulado, mas sempre aberto e poroso, no qual se formulam os valores e objetivos éticos, cujo todo constitui a autocompreensão cultural de uma sociedade” (HONNETH, 2009, p. 200). Essas orientações simbólicas que articulam os valores e objetivos éticos são alteradas com as transformações sociais, onde: “[…] se a estima social é determinada por concepções de objetivos éticos que predominam numa sociedade, as formas que ela pode assumir são uma grandeza não menos varável historicamente do que as do reconhecimento jurídico” (HONNETH, 2009, p. 200).

A estima social passou por um processo de transformação histórica, assim como a esfera do direito. Os conceitos mudam com o passar o tempo e isso provoca um deslocamento das características atribuídas ao que é culturalmente importante e tende para um entendimento universal válido. Como exemplo dessas alterações, Honneth cita a transformação da honra para prestigio social e na sequência histórica em integridade. Nesse sentido: […] o 'prestígio' ou a 'reputação' referem-se somente ao grau de reconhecimento social que o indivíduo merece para sua forma de autorrealização, porque de algum modo ela contribui com ela à implementação prática dos objetivos da sociedade, abstratamente definido [...]. (HONNETH, 2009, p. 206).

O valor de uma reivindicação dos grupos sociais está ligado ao alcance das suas reivindicações realizadas de forma coletiva. Nesse cenário: “[...] o que decide sobre o desfecho dessas lutas, estabilizado temporariamente, não é apenas o poder de dispor dos meios da força simbólica, específico de determinados grupos, mas o clima, dificilmente influenciável, das atenções públicas [...]” (HONNETH, 2009, p. 207).

Essa luta por reconhecimento de caráter social na sociedade moderna representa, por exemplo, a busca por equilíbrio econômico, relações de gênero e igualdade racial. Desse modo, “[…] as interpretações culturais que devem concretizar em cada caso os objetivos abstratos da sociedade no interior do mundo da vida continuam a ser determinadas pelos interesses que os grupos sociais possuem na valorização das capacidades e das propriedades representadas por eles […]” (HONNETH, 2009, p. 208).

Essa relação dos sujeitos que pertencem ao mesmo grupo social, compartilhando questões de reivindicação por alguma violação de direitos, encontra uma relação assimétrica de reconhecimento. O outro que divide das mesmas aspirações de mudança social se iguala a mim, no sentido de pertencimento e interesse em comum. Os interesses em comum de um grupo sustentam o conceito de solidariedade que aplica “[…] às relações de grupo que se originam na experiência de resistência comum contra a repressão política […]” (HONNETH, 2009, p. 209).

As relações sociais modernas se desencadeiam num reconhecimento recíproco, que Honneth chama de uma estima simétrica, onde: “[…] simétrico significa que todo sujeito recebe a chance, sem graduações coletivas, de experiências a si mesmo, em suas próprias realizações e capacidades, como valioso para a sociedade” (HONNETH, 2009, p. 211). Esse movimento de reinvindicações coletivas remete ao encontro do individual com o grupo, onde as violações de autoestima unem os sujeitos num movimento de encontro com o coletivo e com a sua consciência individual.

Cada um dos três modos de reconhecimento oferece um potencial descritivo-normativo das relações sociais, apresentando um horizonte prático que desencadeia experiências tanto positivas, quanto negativas. Ainda que cada modo de reconhecimento tenha suas características próprias, eles se articulam, integradas entre corpo e pensamento de cada sujeito e sua práxis social.

Em síntese, a busca por reconhecimento se apresenta como “[…] uma luta (que) só pode ser caracterizada de ‘social’ na medida em que seus objetivos se deixam generalizar para além do horizonte das intenções individuais, chegando a um ponto em que eles podem se tornar a base de um movimento coletivo” (HONNETH, 2009, p. 256). Além do mais, as três esferas do reconhecimento, fundadas na luta de classes e no desrespeito, buscam descrever as formas de como o sujeito se reconhece na medida em que reconhece o outro, ao mesmo tempo em que se reconhece na sociedade.

Desde essa vertente teórica, a partir das três esferas de reconhecimento abre-se a possibilidade de reconstrução de uma teoria social abrangente. As formas de reconhecimento apresentadas por Honneth possuem, em seu interior, uma estrutura de funcionamento com características próprias. As referidas esferas de reconhecimento de forma integrada entre as particularidades de aprendizagem e desenvolvimento da personalidade de cada sujeito. Constituindo-se em sua relação com o outro a partir da interação sócio-histórica e o seu funcionamento prático no interior de cada grupo social, considerando seus costumes, sua cultura, suas normas e princípios que refletem na organização jurídica.

A partir das ponderações descritas até aqui, acredita-se que a teoria do reconhecimento oferece um potencial normativo-descritivo capaz de sustentar uma interpretação dos modos de reconhecimento intersubjetivos, constituídos em espaços virtuais de formação de professores, institucionalizados a partir da política de reconhecimento da UAB.

 

4 RECONHECIMENTO INTERSUBJETIVO VIRTUAL

 

Entende-se que a internet é um meio de comunicação em potencial. Mas não só isso. O sistema da internet oferece recursos que permitem um sentimento de pertencimento, onde: “Fazer coisas online é parte e parcela do dia a dia” (MILLER, 2015, online). Destaca-se ainda que as vivências em espaços virtuais não podem ser generalizadas, elas representam uma transnacionalidade, mas preservam muito da cultura local. Conforme o pensamento do antropólogo Daniel Miller:

 

[…] em estudos da internet que procuram observar quantos amigos uma pessoa tem que ter numa rede social para ser considerada muito popular pelos outros. E, então, eles extrapolam disso para uma declaração geral sobre a amizade no Facebook. Mas eu sei que esse experimento daria um resultado diferente para qualquer outra população. Então, quase todos os estudos recorrentes sobre o uso de tecnologias digitais falham em mostrar o que nós sabemos sobre o uso da internet (MILLER, 2015, online, grifo nosso).

 

O referido autor levanta questões sobre os resultados de pesquisas onde a internet é descrita como universal, baseada em estudos de caso específicos, sem considerar que, se fossem pessoas de outra cultura utilizando a mesma mídia, os resultados poderiam ser muito diferentes. Ao iniciar suas pesquisas voltadas para a internet, Miller questionava-se: “Mas toda vez que lia algo, ficava pensando: mas isso se mantém igual tanto para chineses quanto para brasileiros? Essa “internet” é a mesma para mulheres e homens, pessoas mais velhas e mais novas?” (MILLER, 2015, online).

As pesquisas desse autor apontam para resultados diferentes, que nos interessam na medida em que deslocam os estudos atuais sobre o uso da internet e consideram o virtual como um artefato cultural. Ele esclarece que “estudos sociológicos implicam que o uso da internet tem levado a uma abordagem da rede mais focada no ego, e, ao mesmo tempo, com forças de estado e superestado cada vez mais poderosas, que constituem a nova infraestrutura digital” (MILLER, 2015, online).

Ao mencionar seu estudo sobre redes sociais, o autor destaca que, com a pesquisa “mostramos que a casta é central na forma como a rede social é usada, enquanto nos estudos na Turquia ela é mais tribal e, em outros estudos, tem mais base na família” (MILLER, 2015, online). Ao ser questionado sobre o uso das tecnologias digitais e sua contribuição para as tensões entre cultura global e local e como esses aspectos se articulam cultural e socialmente, o autor se reporta ao fenômeno da selfie: “Porque a selfie parece, a princípio, ser um exemplo extremamente claro de homogeneização global rápida”. O gênero se espalhou por todo o mundo através da internet, mas apresentou especificidades. Para ilustrar, cita sua pesquisa realizada na Inglaterra e em Trinidad:

 

Por exemplo, a maior parte das selfiesem nosso site britânico é de grupos de pessoas, enquanto em Trinidad são individuais. Em nossa amostra sistemática, 557 das amostras de Trinidad são individuais, enquanto apenas 138 das amostras inglesas apresentam o mesmo formato. Em contrapartida, 474 das amostras inglesas são de várias pessoas juntas, enquanto o mesmo acontece apenas com 116 das amostras de Trinidad. Na verdade, gêneros inteiros de selfie, como as selfie-sem- maquiagem e selfie-falsa-lésbica, são importantes na Inglaterra, mas inexistentes em Trinidad. Então não é realmente uma questão de mais global ou mais local, mas, como observei acima, nosso ponto teórico sobre tecnologias digitais é de que elas simultaneamente ampliam a possibilidade não só da universalidade como da particularidade (MILLER, 2015, online).

 

Em virtude dessa dimensão de simultaneidade entre o universal e o particular remete também aos usos que são feitos desses espaços virtuais, à facilidade de ampliação do acesso ao conhecimento, como também da possibilidade de reforçar padrões de preconceito e desrespeito. Para pensar as relações intersubjetivas dos espaços virtuais recorremos a teoria do reconhecimento, como alternativa de interpretação dessa nova realidade.

Na dedicação emotiva (relações primárias), de natureza carencial e afetiva, são mobilizadas na medida em que os estudantes passam a desenvolver uma fluência tecnologia que de suporte a uma comunicação mediada pela internet. A comunicação com o outro, mesmo sem a sua presença física, oportuniza relações de afeto e amizade entre os participantes do curso, Assim como, a percepção que essas relações podem ser superficiais. Essas vivências de formação pessoal desencadeaiam uma autorrelação prática de autoestima.

Nessa direção a Estudante H relata sua percepção acerca das relações de afeto no virtual como positivas enquanto a Estudante I acretida que as relações virtuais são superficiais:

Acredito que as relações virtuais podem ter afeto sim. Eu criei um vínculo afetivo muito legal com as tutoras de seminário, é uma pessoa que adorei, parecia que falávamos pessoalmente, pareciam às professoras conselheiras, eu contava meus conflitos, minhas dúvidas e ela me entendia, me respondia. Depois foi a Mariane no semestre passado e nesse de novo. Ela é uma amiga que posso contar sempre. A maioria dos tutores é legal, com uma ou duas exceções, que eram "curtas e grossas" e às vezes estúpidas, mas cada um é cada um (Estudante H).

 

Minha interação com os demais colegas que ocupam o espaço virtual é muito superficial. Discutimos apenas o necessário através dos fóruns, mas sem poder aprofundar além do superficial, até mesmo pela falta de tempo. Contribui também para isto o fato de eu morar em uma cidade um tanto quanto distante do polo (Estudante I).

 

As relações primárias emergem da fala dos sujeitos quando descrevem as relações de afeto e amizade criadas a partir do convívio virtual. A relação com os colegas também vai além do convívio no ambiente virtual de aprendizagem, expandindo-se para outras redes sociais e aplicativos multiplataforma de mensagens instantâneas. Contudo, nem todos os estudantes percebem o virtual como um espaço de convivência evidente, descrevendo essa convivência como superficial.

Quanto ao respeito cognitivo (relações jurídicas), ele é mobilizado, na questão dos estudantes, pela apreensão dos saberes curriculares que permitem uma compreensão de mundo diferenciada, oferecendo novos elementos para que esse sujeito se reconheça como membro de uma comunidade e portador de direitos. Reconhecer-se como um estudante, nesse caso, um estudante virtual, é legitimar o acesso ao ensino superior como um direito válido, sentindo-se como um membro de igual valor na sociedade. Podemos visualizar isso na fala da Estudante L:

Ter um diploma modifica sim o reconhecimento por parte das pessoas, você passa a ser apresentada não apenas como fulana, mas sim como, esta é fulana, ela é formada em..., A sociedade age diferente. Mas eu, particularmente, não acho que uma pessoa não é melhor que a outra pelo simples fato de ter um diploma (Estudante L).

 

O respeito cognitivo aparece na fala dos estudantes ao relatarem que fazer um curso superior é ter novas oportunidades na vida, projetando na sua inserção no mercado de trabalho. Ter uma colocação como professor no mercado de trabalho é para eles uma etapa importante para realização do seu projeto de bem viver. O amor também está presente nos arranjos familiares que compõem a vida dos estudantes, ao relatarem o apoio ou as dificuldades enfrentadas, nas relações familiares, para continuar estudando.

A estima social (comunidade de valores) se reorganiza no virtual com a formação de um grupo de estudantes, separados fisicamente, mas reconhecidos pelo outro na sua singularidade Seu funcionamento no virtual se dá na articulação entre individual e coletivo, onde o individual encontra no coletivo a chance de uma realização individual a partir das suas capacidades. Esse pertencimento sinaliza a formação de comunidade de valores que permite ao estudante da EAD uma autorrelação prática de autoestima.

 

Geralmente as pessoas perguntam qual o curso superior que você tem, e muitas vezes a gente acaba se sentindo diminuído ao perguntarem isto e não haver uma resposta. Primeiramente mudam as nossas atitudes, a gente aprende sobre comportamento, a melhor maneira de tratar o outro, sobre questões realmente objetivas que desconhecemos. Enfim, para mim está mudando em tudo a minha vida, inclusive o meio que eu frequento para trabalhar já mudou bastante, eu era taxista em tempo integral e agora estou como monitora em uma escola municipal (Estudante J).

 

A estima social é caracterizada pelos estudantes na medida em que relatam seu esforço para a obtenção de um diploma de curso superior, tanto pela expectativa de uma nova realidade de vida, oportunidade de trabalho e acesso ao conhecimento. O ingresso na universidade promove um novo papel social. Estudar é um passaporte para uma vida nova, é um reconhecimento do ser humano, na sua singularidade, pelo seu esforço e dedicação na luta pela superação das dificuldades.

Mesmo com uma categorização das esferas de reconhecimento, entende-se que elas não acontecem separadamente, existe uma coexistência entre elas. Como por exemplo a normatividade das relações jurídicas. Essa esfera é uma via de mão dupla ao passo que sustenta uma garantia de oportunidade de acesso ao ensino superior, criada por uma demanda social, também molda as referências para a formação de uma comunidade de valores.

Cabe destacar que a busca por reconhecimento acontece tanto presencial como virtualmente. No entanto, o Reconhecimento Intersubjetivo Virtual constitui-se diferente do presencial. Ele não ocorre de forma isolada na vida do ser humano, mas no entrelaçamento dos diversos espaços, apresentando algumas características específicas ao oferecer outros recursos e possibilidades de comunicação e linguagens diferenciadas. Além disso, as discussões nos espaços virtuais são propensas a ocasionar uma desconexão dos fatos, os quais podem gerar ruídos e, não raro, a crítica pela crítica. Desse modo, distancia a união de esforços para uma efetiva mudança social e a luta pela garantia da manutenção das políticas que garantam uma justiça coletiva e não individual (NOGUEIRA; PIZZI, 2012).

A interpretação de determinado fenômeno pode divergir muito de acordo com o arcabouço de vivências e teorias de quem o analisa. Quando se fala da internet, essa interpretação é deveras complexa. Usar a internet como recurso simples de comunicação ou perceber mudanças significativas no seu dia-a-dia, na medida em que a representação simbólica do que acontece no virtual passa a alterar os sentidos do corpo e das relações sociais. É possível produzir sentidos, tantos quantos o sujeito for capaz de imaginar/suportar, transitar por tempo/lugares/espaços virtuais e alterar as reações corporais que produzem emoções, angústias, indignação, medo... Tanto como em experiências presenciais.

Ler um livro ou falar ao telefone também produz sentidos e sentimentos, ainda sim, o virtual difere desses recursos, na medida em que congrega diversas mídias e apresenta modos de representação da identidade. Eu não existo dentro da história do livro que me provoca medos ou desejos. Ainda que “entre” na história, outra pessoa, ao abrir o mesmo livro, não vai me encontrar ali. A conversa ao telefone se esvai no tempo/espaço, mas um telefone conectado a internet pode guardar parte da composição do que torna o sujeito como ele é. Somos a soma de uma complexa produção de sentidos das histórias vividas e sonhadas, ou, ainda, carregamos a possibilidade de ser/estar em mais de um lugar presencial e virtualmente, de representar mais de um papel (pai/mãe/filho/amigo/estudante/trabalhador). Nesse sentido:

 

Os limites externos, fluidos, que não podem ser estumados nem por seus próprios membros, são um traço característico dessas novas vidas públicas na rede, como também a capacidade de estar apartadas de todos os espaços de comunicação racionais (HONNETH, 2015, p. 576-577).

 

Desde modo, em meio a essa nova dinâmica de subjetivação do sujeito, nosso esforço foi analisar, como acontece o movimento constitutivo das relações de reconhecimento em espaços virtuais, valendo-se da Teoria de Reconhecimento do Outro de Axel Honneth. Esse novo horizonte de possibilidades de reconhecimento é caracterizado nessa pesquisa como Reconhecimento Intersubjetivo Virtual. O Reconhecimento Intersubjetivo Virtual define-se no movimento constitutivo do entrelaçamento do presencial e do virtual utilizando-se de padrões normativos e modelos institucionalizados fundados ao longo da história.

As esferas de reconhecimento (HONNETH, 2009) foram fundadas na luta de classes e no desrespeito e buscam descrever as formas como o sujeito percebe-se na medida em que reconhece o outro e se reconhece na sociedade. Nesse sentido, considera-se a virtualidade real (CASTELLS, 2005), como lugar/espaço que também apresenta formas para os sujeitos se movimentarem e lutarem por reconhecimento. Esse espaço virtual, presente na vida de professores e estudantes, que além de mediar os processos de ensino e aprendizagem, oferece possibilidades de comunicação para além do ensino formal. O movimento de reconhecimento produz sentimentos, incertezas, estranhamentos e angústias. Essa dinâmica atravessa o sujeito e organiza sua atuação no mundo da vida e do sistema.

O espaço virtual oferece ao sujeito outros recursos de comunicação para lutar por reconhecimento, para se reconhecer e reconhecer o outro ou ainda elementos que produzem sintomas e patologias, provocando um processo de reificação. No entanto, os parâmetros para mobilizar essas ações ainda funcionam com a matriz original oferecida por Honneth.

Essa produção de sentidos presentes na virtualidade real se constitui, paulatinamente, na mescla de experiências presenciais e virtuais. Ora acontece porque a outra é preexistente, ora somente existe em um desses lugares/espaços, gerando um movimento constantemente alternado. Por sua vez, essas experiências influenciam tanto o reconhecimento intersubjetivo presencial como o Reconhecimento Intersubjetivo Virtual.

Acredita-se que essa produção de sentidos, presente na virtualidade real, constituída gradativamente, se estrutura em um processo de organização e adaptação dos sujeitos. Ao refletir sobre a organização da aprendizagem, considera-se que as experiências com a virtualidade real produzem outros sentidos e novos esquemas intelectuais no processo de desenvolvimento do ser humano. As relações sociais de reconhecimento intersubjetivo que funcionam mediadas pela internet não se configuram como um mundo separado do dia-a-dia  do individuo, dessa forma o Reconhecimento Intersubjetivo Virtual faz parte do mundo da vida.

A virtualidade oferece uma elasticidade nos tempos e limites de cada sujeito, mobilizando outras possibilidades de se comunicar e ser no mundo. As ações sofrem uma mutação da maneira tradicional de ensinar e aprender, da própria linguagem e da relação com os saberes. Ainda assim, acredita-se que os traços de reconhecimento vivenciados pelos sujeitos no virtual seguem os mesmos padrões das formas de reconhecimento normativo já institucionalizado ao longo da história. Esses padrões são ampliados com o tempo de uso e a mescla das vivências on-line e off-line, onde virtual e presencial passam a representar uma via de mão dupla.

 

5 APONTAMENTOS FINAIS

 

Os estudantes encontram no virtual um espaço de reconhecimento na medida em que conseguem apreender os saberes propostos no currículo do curso, recebem um retorno constante dos professores e tutores, percebendo nesse processo de comunicação tanto uma empatia como também descaso ou rispidez. Esses sentimentos, tanto positivos como negativos, só podem ocorrer se o sujeito estabelece uma comunicação e um pertencimento ao espaço virtual.

A relação de reconhecimento mobilizada a partir da mediação da internet resulta numa via de mão dupla para estudantes e professores. Nesse sentido, as práticas online e off-line são afetadas. A uma alteração no dia-a-dia do estudante e da sua família, estudar ou voltar a estudar, para quem estava a algum tempo afastado da educação formal viabiliza uma autorrelação prática de autoestima, autorrespeito e autoconfiança.

Ao analisar as possibilidades e limitações da teoria do reconhecimento para uma leitura das relações de Reconhecimento Intersubjetivo Virtual percebe-se que ela vem se moldando, no caso do espaço virtual formal da EAD, no âmbito da UAB, no tensionamento entre a criação e implementação de políticas públicas e a demanda dos sujeitos por acesso e permanência ao ensino superior.

Essa pesquisa ocupou-se de uma parte do virtual, uma parte que oferece o respaldo de que os sujeitos possuem uma identidade verdadeira e pertencem a um grupo com objetivos em comum. Contudo, entende-se que o virtual é atravessado também por uma diversidade de sujeitos e espaços desprovidos de normas e princípios vinculados a uma organização social balizada pelo Estado.

Assim como o manejo dos conhecimentos técnicos necessários para utilizar a internet, o virtual ainda carece de normatividade que ofereça segurança. Com esse desregramento é possível reproduzir sintomas das diversas patologias sociais e ainda ter acesso a outras experiências de violação de da integridade social e dignidade dos sujeitos.

Transitar pelo virtual é uma prática que, enquanto sociedade, estamos aprendendo. Nesse sentido, percebe-se a EAD como uma modalidade educacional que apresenta um potencial de comunicação e interação de grande alcance para que se mobilizem essas questões. Para tanto, é preciso uma interação que supere a superficialidade da comunicação.

As relações sociais produzidas pelos estudantes do Curso de Pedagogia EAD/UFSM/UAB a partir da ocupação do espaço/lugar virtual do curso e suas conexões com outros espaços/lugares virtuais e presenciais apresentam traços significativos das categorias de reconhecimento propostas por Honneth. A estrutura das relações sociais de Reconhecimento Intersubjetivo Virtual se constitui de forma integrada com as relações presenciais, ainda que o contato seja somente virtual, a base para que isso ocorra está nas relações pré-existentes. A partir daí, podem surgir novos arranjos de relações intersubjetivas e percepções de si e do outro.

REFERÊNCIAS

 

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. v. 1. 8º ed. Paz e Terra, 2005.

 

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. 2. ed. Editora 34: São Paulo, 2009.

 

HONNETH, Axel. O direito da liberdade. Trad. de Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

 

MELO, Rúrion. Da teoria à práxis? Axel Honneth e as lutas por reconhecimento na teoria política contemporânea. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 15, p. 17, 2014. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/rbcp/article/view/12888. Acesso em: 01 de mar. de 2016.

 

MILLER, Daniel. A Antropologia Digital é o melhor caminho para entender a sociedade moderna. Z Cultural. Ano X 01 1° semestre de 2015. Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/daniel- miller-a-antropologia-digital-e-o-melhor-caminho-para-entender-a-sociedade-moderna/f. Acesso em: 18 de jan. de 2016.

 

MORAES, Roque. Uma Tempestade de Luz: A compreensão possibilitada pela análise textual discursiva. Ciência & Educação. V. 9, n.2. Bauru, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ciedu/v9n2/04.pdf.  Acesso em 18 de abril de 2016.

 

NOBRE, Marcos. Apresentação. In: HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. 2. ed. Editora 34: São Paulo, 2009.

 

NOGUEIRA, Vanessa dos Santos ; PIZZI, J . Reconhecimento Intersubjetivo em Redes Sociais na Internet. In: VII Ciclo de Estudos Educação e Filosofia: tem jogo nesse campo? Pedagogia como Ciência da Educação, 2012.

 

SALVADORI, Mateus. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. CONJECTURA: filosofia e educação, v. 16, n. 1, p. 189-192, 2011.

 

WINNICOTT, W. D. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes; 2005.

 


A CONSOLIDAÇÃO DA INTERSUBJETIVIDADE FORMAL KANTIANA NA DIALOGICIDADE HABERMASIANA[43]

 

Fernando Amaral[44]

Universidade Federal do Rio Grande

nandoamaral@gmail.com

 

Jovino Pizzi[45]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO

 

O presente artigo busca investigar na moral kantiana uma possível intersubjetividade bem como a reconstrução discursiva habermasiana desta moral verificando possibilidades e limites desta reformulação. Para tanto o trabalho é desenvolvido em três partes. Uma primeira parte onde se tentará verificar a presença de intersubjetividade formal na teoria moral de Kant, A ampliação dialógica do formalismo moral kantiano em Habermas através da reformulação discursiva do imperativo categórico e uma terceira parte apresentar a consolidação da intersubjetividade dialógica kantiana e habemasiana bem como a atualidade deste autor no que tange a relação entre moral e dignidade da pessoa humana.

 

2 OS INDÍCIOS DE UMA INTERSUBJETIVIDADE FORMAL NA MORAL KANTIANA

 

A Fundamentação da Metafisica dos Costumes (GMS)[46] é a principal obra e Kant em relação a sua filosofia moral, nela ele procura apresentar e fundamentar leis morais independente da experiência (a priori, portanto). A ética de Kant busca ser uma ética normativa, mas pouco usa o termo ética.[47] Prefere o termo moral e metafisica dos costumes. Ética em Kant é a metafísica dos costumes (ou da moral). O pensamento de Kant era muito influenciado por Rousseau e foi de onde ele partiu para fundamentar a sua autonomia[48] moral (autônomo é aquele que segue leis que ele mesmo criou, em Rousseau o criminoso também é autor da própria punição porque ele é autor da lei devido a “vontade geral” instrumentalizada pela democracia). Dado este panoarama geral e estreito, veremos se é possível encontrar na moral kantiana alguma intersubjetividade.

Porque agir moralmente? Kant responde por que no fundo é aquilo que nós queremos. Esta concepção de que o agir correto está no senso comum já era encontrado em Hume, um antecedente de Kant, a diferença era que para Hume a resposta para as ações morais está no empirismo e para Kant na fundamentação metafisica (VOLPATO, 2002, p. 114). Assim, Kant conceitualiza uma noção de razão prática[49]. Ela deve ser pura, independente de pressupostos empíricos ou religiosos.

A tarefa da GMS é a investigação e estabelecimento do princípio supremo da moralidade demonstrando que ela existe como realidade objetiva (GMS, Prefácio, Ak 392). Neste ponto o que Kant oferece é um critério para testar as nossas máximas (principio subjetivo da vontade), mas não responde, obviamente, apesar dos exemplos desenvolvidos, os  quais muitas vezes mais confunde do que elucida, como se deve agir para qualquer circunstância o que muitas vezes é criticado por ter deixado os problemas de aplicação a um domínio insignificante na doutrina moral (VOLPATO, 2002, p. 128). Deve o agente investigar as razoes morais da ação, pois se Kant desse resposta para situações concretas definidas estaria traindo a sua fonte principal da razão que é a metafisica (de onde vem o fundamento racional).

Máxima é o princípio subjetivo para agir e tem de ser distinguida do principio objetivo, a saber, a lei prática. Aquela contem a regra pratica em que a razao determina em conformidade com as condições do sujeito (muitas vezes em conformidade com a ignorância ou também com as inclinações do mesmo) e é, portanto, o principio segundo qual o sujeito age; a lei, porem, é o principio objetivo, valido para todo ser racional, e o principio segundo o qual ele deve agir, isto é, um imperativo. (GMS II, nota Ak 420-421, ênfase de Kant).

 

O que seria bom absolutamente? O argumento da vontade boa é a fundamentação pura da moral de Kant. Uma boa vontade kantiana não está na finalidade ou no resultado da ação mas não vontade de realizar a ação pouco importando para ter valor moral o que a ação promove ou realiza. Neste sentido Kant está longe de ser um filósofo consequencialista pois:

 

A boa vontade é boa, nao pelo que efetua ou consegue obter, nao por sua aptidão para alcançar qualquer fim que tenhamos proposto, mas tao somente pelo querer; isto é, em si, e, considerada em si mesma, deve ser tida numa estima incomparavelmente mais alta do que tudo o que jamais poderia ser levado a cabo por ela em favor de qualquer inclinação ou até mesmo a soma de todas as realizações. (GMS I, Ak, 394, minha ênfase).

 

Portanto se acho que devo agir por expectativa social ou obrigação legal é um dever contra a minha vontade pura, logo, estou no plano da heteronomia ainda que isso me seja agradável[50]. O dever de Kant é ao contrario disso, tem razão na liberdade e na autonomia. Quem age “por exibição” ou “por medo”, não age por dever e esta ação, destarte, não tem valor moral. Isso não significa que não deva ser praticada, apenas não é uma ação pura; isso não quer dizer que não seja boa e não seja um dever, apenas não é moral pois não é por devermas meramente conforme ao dever[51].

Por isso ele argumenta que uma vontade autônoma concede a si a sua própria lei e é distinguida de uma vontade heterônoma cuja lei é dada, por exemplo, pelo objeto, sendo a heteronomia da vontade a fonte de tudo que afasta o individuo da moralidade e da maioridade.

 

Se a vontade busca a lei que deve determiná-la em qualquer outro lugar que não seja a aptidão de suas máximas para uma legislação universal própria, por conseguinte, se, indo além de si mesma, vai buscá-la na qualidade de qualquer de qualquer um de seus objetos, o resultado então será sempre heteronomia. (GMS II, Ak 441, ênfase de Kant).

 

Mas o que fazer quando o querer moral encontrar limite numa lei da natureza? Como buscar autonomia nessas condições? Kant neste ponto se utiliza de um artifício conceitual de dois mundos. A heteronomia que Kant admite como limite da autonomia pertence ao mundo inteligível e não ao mundo sensível – fenomênico - que sempre produzirá heteronomia pois

 

Por tudo isto é que um ser racional deve considerar-se a si mesmo, como inteligência (portanto não pelo lado das suas forças inferiores), não como pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao mundo inteligível; tem por conseguinte dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a si mesmo e reconhecer leis do uso das suas forças, e por tanto de todas as suas ações: o primeiro, enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis naturais (heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na razão (GMS III, Ak 452).

 

Höffe destaca que segundo Kant o querer não é um simples desejo mas “no emprego de todos os meios na medida em que estão no nosso poder” (GMS I, Ak 397, destacamos) “mas a vontade não é de modo algum indiferente em relação a sua manifestação no mundo social e político, ela não é nenhum além da realidade efetiva, muito antes, é o seu fundamento determinante e ultimo” (HÖFFE, 2005, p. 195, destacamos). O moralmente valioso, em ultima instância, não está na realização prática da ação mas sim o querer em de fato empreende-la:

 

Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a despeito dos seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade (é claro que não se trata aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que as nossas forças disponham), ela ficaria brilhando por si mesma como um jóia, como alguma coisa que em si mesma tem o seu pleno valor. (GMS I, Ak 394, minha ênfase).

 

Kant afirma que inclusive a regra de ouro, que ele cita apenas em sua formulação negativa, só pode ser entendida como derivada do imperativo categórico, não o contrário, pois faltaria o querer:

 

 

Não se pense que o trivial: quod tibi non vis fieri etc. possa servir aqui de norma ou princípio. Pois ele é, se bem que com diversas restrições, tão-somente derivado daquele; não pode ser uma lei universal, visto que não contém o fundamento dos deveres para consigo mesmo, nem dos deveres do amor aos outros (pois muitos topariam de bom grado que os outros não lhes fizessem o bem desde que pudessem se dispensar de se mostrar benfazejos a eles), nem tampouco, por fim, dos deveres exigíveis de uns para com os outros; pois o criminoso argumentaria com base nisso contra o juiz que lhe dita uma pena, etc. (GMS II, nota Ak 430).

 

O agir racional também não se confunde com a busca da felicidade e inclusive pode entrar em desacordo com este querer, pois a felicidade é algo empírico e conforme os anseios a sua perseguição poderia gerar atos imorais portanto deve-se er prudência na busca de uma vida feliz. No âmbito da GMS esta relação da prudência com a felicidade irá resultar inclusive como forte critério na distinção entre o imperativo hipotético e categórico. Para Kant a prudência é tomada em sentido duplo. Há prudência mundana (a habilidade de uma pessoa no exercício de influência sobre outras para as utilizar para as suas intenções) e a prudência privada (o discernimento em reunir todas estas intenções para alcançar uma vantagem pessoal durável). A prudência privada é propriamente aquela sobre que reverte mesmo o valor da primeira, e quem é prudente no sentido mundanomas não no sentido privado, é considerado “...inteligente e astuto, mas no todo imprudente.” (GMS II, nota Ak 416, ênfase de Kant).

Após tratar da possibilidade (autonomia) e limite (heteronomia) da vontade para esta ser moralmente boa Kant desenvolve deve três proposições: 1) agir por dever e não por inclinação[52]; 2) Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende portanto da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do querer segundo o qual a acção, abstraindo de todos os objectos da faculdade de desejar, foi praticada. (GMS I Ak, 399, ênfase de Kant); e consequentemente 3) Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei[53].   (GMS I Ak, 400, nossa ênfase).

Ou seja, quem age por inclinação ou pelas conseqüências pode variar nos desejos e anseios o que afasta a necessidade e universalidade da ação, logo, pratica ações sem valor moral (ainda que possam ter outros valores bons em que pese não-morais). Para Kant, ações boas que não são um fim em si mesmo tendem a ser abandonadas:

 

Notemos no entanto provisoriamente que só o imperativo categórico tem o caráter de uma lei prática, ao passo que todos os outros se podem chamar em verdade princípios da vontade, mas não leis; porque o que é somente necessário para alcançar qualquer fim pode ser considerado em si como contingente, e podemos a todo o tempo libertar-nos da prescrição renunciando à intenção, ao passo que o mandamento incondicional não deixa à vontade a liberdade de escolha relativamente ao contrário do que ordena, só ele tendo portanto em si aquela necessidade que exigimos na lei. (GMS II, Ak 420, ênfase de Kant).

 

Dessas proposições – agir por dever, por querer é agir necessário - segue-se então que a lei moral, isto é o principio de uma vontade moralmente boa, nas palavras de Kant, o imperativo categórico ou da moralidade (GMS II, Ak 420) na sua fórmula universal (forma básica): age apenas segundo a máxima pela qual possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal (GMS II, Ak 421); na forma da lei universal da natureza: age como se máxima de tua ação deve-se se tornar por tua vontade uma lei universal da natureza (GMS II, Ak 421)[54] ou na formula da humanidade como fim em si mesma: age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio[55]. Kant destaca (GMS II, Ak 436) que apesar da variação as três maneiras de apresentar o princípio da moralidade são no fundo a mesma lei, e todas as “máximas”[56] têm, com efeito: 1) uma forma, que consiste na universalidade, ou seja as máximas têm de ser escolhidas como se devessem valer como leis universais da natureza; 2) uma matéria, isto é, o ser racional, como fim em si mesmo segundo; 3) uma determinação completa de todas as máximas por meio daquela fórmula, onde todas as máximas por legislação própria, devem concordar entre si para um possível reino dos fins[57].

Por fim, em relação aos imperativos destaca-se que os Imperativos Categóricos são a priori, pois ordenam ações desprovida do interesse empírico de seus agentes, e são sintéticos (ou progressivos) pois a vontade de um ser racional-sensível nem sempre quer o moralmente bom, é necessário conecta-la ao agente (nem todo ser livre agirá moralmente, pois somos seres racionais imperfeitos)[58]. Os imperativo hipotéticos, por sua vez, são empíricos e analíticos (ou regressivo, pois o ato de estabelecer o fim já este já contido no meio correspondente) (SHONECKER, WOOD, 2014, p. 154).

Assim, Kant responde na sua filosofia moral a pergunta “O que devo fazer?” determinando que a conduta moralmente correta deve ser praticada mediante o Imperativo Categórico, que é o seu imperativo moral.

Com base na demonstração aqui feita é possível verificar, ainda que de forma indiciária, que dentro da moral kantiana há uma intersubjetividade. Conceitos como vontade perfeitamente boa, prudência para se buscar a felicidade ou ate mesmo a dignidade da pessoa humana. Höffe (2005, p. 207) diz inclusive que Kant tinha uma certa concordância com utilitarismo pois considera a promoção do bem-estar de outros como moralmente requerida e que isso pressupõe que as pessoas reflitam a luz do bem estar alheio e das conseqüências de suas condutas. Quando Kant trata dos exemplos de universalização, o quarto exemplo (GMS II Ak 430) é uma proibição da indiferença para com a necessidade alheia (HÖFFE, 2005, p. 209) onde Kant defende que a felicidade é fim que deve ser por todos buscado mas não egoisticamente e há, portanto, uma intersubjetividade solidária como limitação da liberdade das ações humanas. Diz ainda que se “...se um sujeito é um fim em si mesmo, os seus fins têm de ser quanto possível os meus...” e que “...Este princípio da humanidade e de toda a natureza racional em geral como fim em si mesma...” [ênfase de Kant] é a priori pois “...nada é tomado de empréstimo à experiência ... por causa da sua universalidade, pois que se aplica a todos os seres racionais em geral, acerca do que nenhuma experiência é suficiente para tornar o que seja...tendo por conseguinte de originar-se da razão pura”.

Dessa forma a teoria moral kantiana, mesmo se só analisarmos a GMS, possui uma dimensão aspectos intersubjetivos ainda que no seu sentido formal o que impede de dizer que ela é monológica na sua totalidade. Ainda que conceitos como “autonomia”, “liberdade”, “máximas” e “querer” dêem um escopo solipsista da consciência do agente para resolver dilemas morais, por outro lado ela também traz uma dimensão intersubjetiva formal para esta decisão como visto acima.

 

3 A AMPLIAÇÃO DIALÓGICA DO FORMALISMO MORAL KANTIANO EM HABERMAS

 

Habermas busca uma reformulação do agir moral através de uma reconstrução discursiva do imperativo categórico, ou seja, a proposta habermasina procura mostrar como é possível superar o solipsismo, tendo presente um procedimento discursivo (PIZZI, 2005, p. 256). Para Habermas o imperativo categórico adota o papel e um princípio de justificação, selecionando e distinguindo como “válidas as normas suscetíveis de universalização, qual seja, o que no sentido moral esta justificado deve ser desejado por todos os sujeitos racionais” (PIZZI, , 2005, p. 264). Para ele é ilegítimo que as máximas que o agente busque a universalidade fique apenas no monólogo solitário do foro interior do ser racional (VOLPATO, 2002, p. 134). Quer Habermas, portanto, uma reconstrução discursiva da moral kantiana, um deslocamento da ênfase do querer autônomo para a concordância discursiva consensual de todos como requisito de validez universal do agir. Um giro gramatical onde sai “eu quero” e entra o “nós concordamos”. Para Habermas os testes objetivos das máximas subjetivas do querer devem ser filtrados pelo consenso dos envolvidos através do discurso, por meio do agir comunicativo teoria que ele desenvolveu no inicio da década de 80.

Para Pizzi (2005, p. 265) a reinterpretação habermasiana substitui o solipsismo moral pelo acordo consensual entre todos, independentemente dos interesses ou das preferências particulares. Em outras palavras, destaca, que a pragmática habermasiana representa a tradução procedimental do imperativo categórico de Kant: mais do que atribuir como válida as demais, qualquer máxima que eu possa querer que se converta numa lei universal “tenho que submetê-la a todos os demais, com a finalidade de examinar discursivamente sua pretensão de universalidade.” (2005, p. 265). Nesse sentido, portanto, a ética discursiva de Habermas é uma reconstrução processual da moral kantiana (VOLPATO, 2002, p. 132), um algo mais para resolver dilemas morais para além do teste unipessoal de máximas   para o filtro intersubjetivo.

O meio deste consenso em Habermas, e na sua teoria do agir comunicativo, é através de um discurso pautado pela ética, conhecimento do mundo vivido e linguagem.

Nessa mediação entre hermenêutica e ação comunicativa habermasina o discurso prático exige simetria entre os participantes, porque a luta pela emancipação passa por uma experimentação das condições reais dos sujeitos enquanto implicados no processo. As resoluções dialógicas recebem um reforço regulativo que serve de marco objetivo de referência e ação social, pois estão sempre voltadas para o ideal do consenso. Em outras palavras, surge a forma da intersubjetividade, onde o sujeito particular faz sentido enquanto é capaz de linguagem e ação, mediados por uma moralidade que unifique, ao mesmo tempo, a lógica do discurso e a práxis da vida (PIZZI, 1994, p. 51), portanto exige um agir não de um mero observador que interpreta o mundo mas, para além, de um ator que participa comunicativamente afastando, assim, a decadente filosofia da consciência e introduzindo o paradigma da comunicação (PIZZI, 2005, p. 45). A teoria do agir comunicativo não caracteriza a linguagem apenas como instrumento para entender as orações e expressões gramaticais, a linguagem passa a ser um médium para o entendimento entre sujeitos que pensam e agem comunicativamente. O ato de fala transforma-se em agir comunicativo (PIZZI, 1994, p. 108), assim, pode-se dizer, que em Habermas, para se ter intersubjetividade o foco deve ser nas relações comunicativas e não na consciência solitária.

Ao contrário do que ocorre com a racionalidade instrumental, a noção de interesse prático comunicativo requer como condição um contexto interativo, no qual, além da auto referencia, é necessário um “medium” dos vínculos lingüísticos. Como Kant, Habermas sustenta a universalidade do principio da razão, suscetível de ser assumido – ou não – por todos (consenso ou dissenso). A situação dialógica, porém, na qual os indivíduos se põem de acordo com relação às normas de conduta social, deve ser antecipada “a priori” como sendo um interesse prático que orienta o conhecimento em direção de um reconhecimento recíproco. A validade das máximas individuais são como que mediadas pela máxima universal, que se redefine dialogicamente como consenso verificado “a posteriori” (PIZZI, 1994, p. 52). Para Habermas toda discussão moral deve estar inserida num contexto, esta análise leva em consideração o mundo da vida no seu sentido subjetivo, objetivo e social (PIZZI, 2005, p. 13). Destaca Pizzi (2006, p. 160) que meios como dinheiro e poder passaram a subordinar a ação aos interesses meramente econômicos e um outro contexto de ações com fins comunicativos se faz necessário.

O mundo da vida (ou mundo vivido) fenomênico de Hurssel (o Lebenswelt) é o contexto do agir comunicativo habermasiano que é composto pela totalidade (1) das vivências a que tem acesso privilegiado (mundo subjetivo próprio), (2) das relações interpessoais legitimamente regulados de um grupo social (mundo social comum) e (3) dos estados de coisas existentes (mundo objetivo) (HABERMAS, 1989, p. 79) e o campo dos objetos de pesquisa (HABERMAS, 2009, p. 151). Com a categoria do mundo da vida destaca Pizzi que Husserl quer significar o amplo espaço de experiências mostrengas, certezas pré-categoriais, relações intersubjetivas e valores que nos são familiares no trato do cotidiano com os homens e com as coisas (PIZZI, 2006, p. 63) passando a se constituir no “único espaço de uma racionalidade em que todas as questões, os métodos e teorias tem sentido (PIZZI, 2006, p. 107).

Mas Habermas reconstrói a proposta husserliana por considerar uma fonomelogia ainda dentro de uma “Filosofia da consciência” pois tem como ponto de partida esquemas de interpretação, centrados no eu, com os quais se constroem os mundos da vida dos sujeitos agentes; “esse ego se encontraria, pois, desvinculado do entorno social” (PIZZI, 2006, p. 132) e para ele o que une o “eu” com o “outro” e o eu com o “mundo” é a intersubjetividade através de um ambiente de comunicação pois assim afasta as deficiências monológicas do enfoque fenomenológico (PIZZI, 2006, p. 141). O recurso ao Lebenswelt como pano de fundo do agir moral se dá porque meios como dinheiro e poder passaram a subordinar a ação aos interesses meramente econômicos coordenando de forma sistêmica a integração social (PIZZI, 2006, p. 160). O recurso ao mundo da vida se transforma, portanto, também em uma “capa fundamental para a constituição de uma teoria da ação” (PIZZI, 2006, p. 163) mas dentro de uma reformulação comunicativa. Assim “o mundo da vida, do qual as instituições fazem parte, manifesta-se como um complexo de tradições entrelaçadas, de ordens legítimas e de identidades pessoais – tudo reproduzido pelo agir comunicativo” (HABERMAS, 2012a, p. 42) pois o sentido orientado pelo agir só é acessível na experiência comunicativa (HABERMAS, 2009, p. 159).

 

 

 

 

 

 

A ação comunicativa é uma categoria que se encontra, portanto, entre o discurso e o mundo vivido e Habermas estrutura “sociedade” e “sistema” como dois conceitos do mundo da vida no entanto o diferencia de sistema[59]:

 

Eu entendo a evolução social como um processo de diferenciação de segunda ordem, porque o mundo da vida e o sistema se diferenciam não somente à proporção que a racionalidade de um e a complexidade do outro crescem, mas também a medida que um se diferencia do outro. (HABERMAS, TAC II, p. 277).

 

No desenvolver da teoria do agir comunicativo Habermas (1990, p. 65) separa ações em sentido estrito (atividades não lingüísticas orientadas para um fim onde um ator, intervém no mundo, a fim de realizar fins propostos, empregando meios adequados) de proferimentos lingüísticos (atos através dos quais um falante gostaria de chegar a um entendimento com um outro falante sobre algo no mundo). Em que pese o agir finalístico (ou estratégico) e o agir comunicativo serem ambos mediados pela linguagem (1990, p. 82)

 

somente o agir comunicativo é aplicável o principio segundo qual as limitações estruturais de uma linguagem compartilhada intersubjetivamente levam os atores – no sentido de uma necessidade transcendental tênue – abandonar o egocentrismo de uma orientação pautada pelo fim racional de seu próprio sucesso e a se submeter aos critérios públicos da racionalidade do entendimento (HABERMAS, 1990, p. 82-83; ênfase de Habermas).

 

Enquanto no agir comunicativo os agentes estão predispostos ao entendimento e buscam o acordo ou revaleçao de dissensos, no agir estratégico não há esta predisposição e os participantes almejam a vantagem ou a manipulação (TAC I, p. 574)[60] pois “a ação estratégica tem como ponto de referencia o êxito do falante diante de um oponente racional” (PIZZI, 2005, p. 82). Pizzi (2005, p. 86) destaca que o agir comunicativo refere-se àquela forma de interação na qual os participantes definem e coordenam, de comum acordo, seus planos de ação. Esse processo demanda expectativas recíprocas de reflexão e ação, ao passo que o agir estratégico almeja a vitória. A validez dos enunciados empiricamente verdadeiros ou corretos e a validez das normas sociais são asseguradas por um reconhecimento intersubjetivo, sempre fundado no entendimento lingüístico. Para Habermas se quisermos estabilização social a sociedade deve ser integrada pelo agir comunicativo, pois ações orientadas para o sucesso não possuem este efeito (HABERMAS, 2012a, p. 45). A experiência comunicativa emerge, tal como o nome indica, de contexto de integração, que liga no mínimo dois sujeitos no quadro da intersubjetividade linguisticamente produzida do entendimento quanto as significações constantes (HABERMAS, 2009, p. 147-148)

Habermas para distinguir os discursos dentro do âmbito da teoria do agir comunicativo se utiliza, cm algumas variações, da teoria dos de fala de Austin. Austin (1990, p 95-96) sugere uma lista de verbos performativos (que indicam ação) explícitos onde se encontram algumas dificuldades para determinar se um ato de fala é ou não performativo, ou pelo menos puramente performativo. Para tanto Austin distinguiu três atos de fala com sentido de ação: atos locucionários, atos ilocucionários e atos perlocucionários.

Em primeiro lugar    há     um     conjunto     de     coisas     que     fazemos     ao dizer    algo,    que    sintetizamos    dizendo    ao    realizar    um     ato    locucionário,     o que vale, a grosso modo, a proferir determinada sentença com determinado sentido e referência, o que, por sua vez, equivale ao "significado" no sentido tradicional do termo. Em segundo lugar, afirma Austin, que também realizamos atos ilocucionários tais como informar, ordenar, prevenir, avisar, comprometer-se, etc., isto é, proferimentos que têm uma certa força (convencional). Em terceiro lugar também podemos realizar atos perlocucionários, os quais produzimos porque dizemos algo, tais como convencer, persuadir, impedir ou, mesmo, surpreender ou confundir. Destaca Austin que aqui temos três sentidos ou dimensões diferentes, senão mais até, da frase "o uso de uma sentença" ou "o uso da linguagem". Todas essas três classes de fala estão sujeitas, simplesmente por também serem ações, às dificuldades e reservas costumeiras que consistem em distinguir uma tentativa de consumação, um ato intencional de um não-intencional. Austin descrevia como falácia descritiva o entendimento que de que a linguagem só descreve o mundo[61] pois para ele o dizer também contém o fazer.

Habermas destaca que quando na situação de fala a linguagem for empregada para o entendimento mútuo (ainda que seja tão somente para constatar um dissenso), logo com pretensões convencionais, haverá então três relações pois “ao dar uma expressão de aquilo que tem em mente, o falante comunica-se com um outro membro de sua comunidade lingüística sobre algo no mundo” (HABERMAS, 1989, p. 40). O acordo alcançado será medido pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez do ato de fala (HABERMAS, 1989, p. 79). No agir comunicativo, portanto, o ato de fala é ilocucionario, pois nele o falante tem a intenção de buscar o entendimento com o ouvinte, e no agir estratégico ele é perlocucionário devido ao intento não estar voltado para consenso mas para um efeito finalístico. No entanto se falar nestes casos é agir é preciso um elemento de concreção para que a fala se consume de fato, uma pretensão validade. Para Habermas a ação regulada por normas (como as morais), os atos de (1) fala são regulativos, se referem ao (2) mundo social, tem a (3) função lingüística de criar relações interpessoais, a (4) orientação das ações são voltadas para o entendimento, as (5) atitudes básicas estão conforme as normas e a

(6) pretensão de validade esta na correção. Por sua vez num tipo de ação estratégica (ou manipuladora), os atos de (1) fala são perlocucionários e se referem ao (2) mundo objetivo, tem a (3) função lingüística de influência no oponente, a (4) orientação das ações é voltada para o êxito, as (5) atitudes básicas são objetivadoras e a (6) pretensão de validade é a eficácia (TAC I, p. 565). Assim, se no agir estratégico a pretensão de validade, aliada a outras características, a pretensão de validez esta na eficácia no agir comunicativo esta validade está na retidão, o que conforme se destacou acima, na justificativa com razões morais.

Por isso, conforme as características acima (1-6), o procedimento comunicativo ultrapassa os discursos e opiniões monológicas para atingir um entendimento descentrado de mundo preservando, assim, a igualdade e a originalidade dos três elementos do mundo vivido (PIZZI, 1994, p. 78). Percebe-se, portanto, que Habermas deposita nos atos ilocucionarios de Austin o conteúdo comunicativo, porque eles se centram no sujeito que diz algo e também na certeza de que isso é entendido pelos demais (PIZZI, 1994, p. 124-125) devido ao forte conteúdo convencional. A teoria da ação comunicativa postula uma situação ideal de compreensão, que é a condição de possibilidade da comunicação e do reconhecimento intersubjetivo (RAULET, 2009, p. 273)

Para Habermas o conceito “agir comunicativo” faz com que as suposições contrafactuais dos atores que orientam seu agir por pretensões de validade adquiram relevância imediata para a construção e a manutenção de ordens sociais: pois estas mantêm-se no modo do reconhecimento de pretensões de validade normativas. Isso significa que “a tensão entre facticidade e validade embutida na linguagem e no uso da linguagem retorna no modo de integração de indivíduos socializados” (HABERMAS, 2012a, p. 35). O direito positivo tem uma função especial nessa relação pois cabe a ele estabilizar esta tensão de forma socialmente integrada (2012a, p. 35), pois percebida uma incompatibilidade entre

 

 

Agir orientado pelo sucesso e agir orientado pelo entendimento e, deste modo, sob a condição de uma incompatibilidade percebida facticidade e validade. (...) encontramos a solução desse enigma no sistema de direitos que provê as liberdades subjetivas de ação com a coação do direito objetivo (HABERMAS, 2012a, p. 47).

 

No que diz respeito ao direito um dos propósitos de Habermas é introduzi-lo o direito moderno na ótica da teoria do agir comunicativo, pois a tensão entre as pretensões normativas democráticas e a faticidade do contexto social, que é inerente ao direito, pode receber da teoria do agir comunicativo um contributo positivo (HABERMAS, 2012a, p. 113). Para o autor são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais (2012a, p. 142). Para Habermas no que tange a ética do discurso não há uma distinção satisfatória entre principio moral e principio do discurso, uma vez que ela parte da idéia de que o próprio princípio está fundado nas condições simétricas de reconhecimento de formas de vida estruturadas comunicativamente (2012a, p. 142).

Assim, a resposta para “O que devo fazer?” em Habermas toma uma outra configuração e pode ser (re)formulada como age moralmente quem age de acordo com uma norma de ação que possa ser universalizada, isto é, que possa obter o consenso de uma comunidade de comunicação (VOLPATO, 2002, p. 140). Destaca Volpato (2002, p. 140) que Habermas busca através da intersubjetividade consensual uma universalidade que não pode concordar com determinações estranhas a comunicação como, por exemplo, dinheiro e poder.

 

4 A CONSOLIDAÇÃO DA INTERSUBJETIVIDADE DIALÓGICA

 

Kant não estava tão longe da intersubjetividade como vimos, mas ela ainda ficou num estado formal, dentro de um paradigma da  Filosofia da consciência onde há uma única consciência ainda que com bases racionais e metafísicas. O grande mérito de Habermas foi, através da paradigma da linguagem reforçada pelo giro lingüístico, trazer ela para uma dimensão dialógica colocando o sujeito, através do discurso, num teste de máximas para alem da solidão de uma racionalidade instrumental pois Habermas o falante “deve entender-se a si mesmo a partir da perspectiva de seu destinatário” (PIZZI, 2005, p. 111).

A dimensão dialógica está no ponto desta constante alternância entre a primeira pessoa do dialogo (ego) e a outra pessoa (alter ego). O falante ao fazer uma afirmação assume uma posição e o ouvinte outra, papéis estes que serão alternados e isso é o aspecto miais mportante dos atos de fala em que pese não existir uma posição intersubjetiva-comunicativa privilegiada para o terceiro que não participa do diálogo como há para o falante e ouvinte (PIZZI, 2005, p. 111). Esta situação (ideal) de diálogo em um ambiente comunicativo produzirá, nos termos da teoria do agir comunicativo de Habermas, formulação morais para alem da consciência monologica e, por esta razão, com uma carga maior de validez.   Assim, o novo para uma teoria moral em Habermas está no ponto de que a intersubjetividade, ainda em estado formal em Kant, ganha contornos dialógicos entre os atores morais.

A reformulação de Habermas do imperativo moral kantiano não escapou a críticas. Uma delas está no fato de que esta formulação é, na verdade, a fundamentação de uma ação e não a proposição de uma norma moral, ela diria respeito aos “motivos que as pessoas podem ter e requerer para, reciprocamente, poderem atuar de uma forma determinada umas com respeito as outras” (VOLPATO, 2002, p. 140) o que não escapa do foco de Habermas - processualizar a justificação de uma norma moral através do discurso – e se lermos Kant com olhar de alguns de seus comentadores ele também teria falhado em não fornecer regras morais positivas. Destaca Volpato, ainda, que fundamentar uma norma é uma tarefa “mais ou menos hipotética” (2002, p. 276) e, de fato, Habermas ao processualizar o imperativo categórico de Kant, através de um procedimento intersubjetivo e comunicativo, está mais para um meio de se atingir um consenso (ou identificar dissensos) do que demonstrar materialmente um direito moral propriamente dito afinal “No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético (GMS II, Ak 414, ênfase de Kant).

Além desta critica, que consideramos razoável, apesar das vantagens do procedimento discursivo, é possível identificar ainda, segundo Pizzi com base em Cortina, limitações ou inconvenientes nesse processo, pois limitar a tarefa da razão pratica à produção de premissas geradoras de consensos apresenta sérias repercussões nos campos em que se expressa especialmente no da filosofa moral. Por isso reduzir, o âmbito da ética aos procedimentos legitimadores de normas supõe renunciar a elementos que vieram constituindo parte imprescindível do saber ético, limitando o aspecto moral a uma forma deficitária do direito (PIZZI, 2005, 269-270). Em outras palavras, é necessário se ter um “mínimo moral pétreo” que não pode ser objeto de mutilação por consensos até porque, questões consensuais ou não sofrem a corrosão do tempo e como enuncia Volpato “Habermas esquece que houve muitas questões não consensuais em ética que se tornaram consensuais, como por exemplo, o repúdio a escravidão, a tolerância religiosa, o trabalho das crianças” (2002, p. 199). Portanto se o “livre arbítrio” kantiano tem o “vício” de deixar a intersubjetividade num esta formal, o “livre consenso” habermasiano sem um mínimo moral pode ser berço de injustiças ou intolerâncias. O que se pode dizer é que Habermas reformulou o Imperativo Categórico de Kant, mas com contornos mais hipotéticos que morais o que para uma dimensão pratica para alguns nao tem tanta importância[62].

Habermas em um escrito atual de 2011 - “O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos” in “Sobre a Constituição da Europa” - sobre a dignidade da pessoa humana ele realiza uma conexão entre moral e direito e não traz mais como destaque o consenso como fundamento da determinação moral e lê em Kant um “reconhecimento recíproco da vontade legisladora de cada um quando Kant escreve que ‘jamais deve tratar a si mesmo e todos os outros como meio, mas sempre ao mesmo tempo como fim em si mesmo‘ (HABERMAS, 2012, p. 26)[63] o que parece reconhecer que de fato em Kant já havia a intersubjetividade ainda que em fase embrionária. Destaca que em Kant os direitos humanos derivam de seu conteúdo moral. Trata os direitos humanos como próprio objetivo ideal de uma sociedade justa nas instituições de um Estado constitucional (HABERMAS, 2012, p. 31). O autor enfatiza que:

 

As próprias pretensões normativas fundamentam-se a partir de uma moral universalista cujo conteúdo há algum tempo foi introduzido, por meio da idéia de dignidade da pessoa humana, nos direitos humanos e nos direitos dos cidadãos das constituições democráticas. Somente esse vínculo interno entre dignidade humana e direitos humanos produz aquela fusão explosiva da moral no médium do direito, no interior do qual deve ser efetuada a construção das ordenes políticas justas. Essa carga Moral do direito é o resultado das revoluções constitucionais do século XVIII. Quem neutraliza essa tensão abandona também uma compreensão dinâmica que sensibiliza os cidadãos de nossas próprias sociedades parcialmente liberais para uma exploração sempre mais intensiva dos direitos fundamentais existentes e para o perigo cada vez mais agudo de erosão dos direitos de liberdade. (HABERMAS, 2012, p. 37).

 

Se ele ainda tem em mente a validade da sua teoria do agir comunicativo construída na década de 80, Habermas agora retorna a Kant na GMS e coloca um núcleo moral material intangível na elaboração intersubjetiva dos direitos humanos que é a dignidade da pessoa humana. Este conteúdo não pode ser, assim parece no seu atual pensamento, erodido sequer por um consenso sobreposto e racionalmente construído dialogicamente salvo se a construção de uma sociedade, global ou doméstica, não queira ser considerada justa. Habermas retorna mais uma vez a Kant para reconstruir a sua teoria, de onde ele parece também ter saído, para consolidar a intersubjetividade dialógica conectando o formalismo social kantiano ao seu materialismo comunicativo.

Se partimos da interpretação de Allen W. Wood (2005, p. 167) que a FH dos imperativo(s) categórico(s) é a escolhida por Kant para aplicar o principio moral em A metafísica dos Costumes assim como não é a FA nem a FLU que é usada na sua tentativa de estabelecer o princípio da moralidade na terceira seção da Fundamentação, bem como na Critica da Razão Pratica, parece que a humanidade como um fim em si mesma esvazia um pouco a crítica, assim pensamos com Allen Wood, que os críticos dão vazio do imperativo categórico e a acusação do formalismo aos imperativos morais.

Portando, uma consolidação possível entre a intersubetividade formal kantiana com a intersubjetividade discursiva habermasiana pode-se dar no terreno da dignidade da pessoa humana como uma ponte entre este dois paradigmas, afinal é um topoi fundamental nos dois referencias para desenvolver tanto a filosofia moral metafísica de um como a sua reformulação discursiva de outro consolidando, assim, a intersujetividade dialógica.

 

5 CONCLUSÃO

 

Vimos que Kant desenvolveu uma teoria moral onde tenta se afastar de argumentos empíricos para determinar regras morais. Com isso ele entra num inevitável formalismo pois através deste procedimento em priorizar a distancia dos contextos para desenvolver metafisicamente imperativos morais ecai no terreno formal para desenvolver a sua ética. Mas dizer que nao há intersubjetividade na sua teoria é um exagero discursivo, ainda há, de acordo com a leitura que aqui propomos, uma interatividade subjetiva ainda que em estado formal.

Habermas aposta na intersubjetividade comunicativa para se afastar do formalismo e reformular o imperativo categórico kantiano mas, como pensamos, não inaugura plenamente a intersubjetividade na teoria moral kantiana pois coloca uma ênfase através do discurso com foco no entendimento e trazendo, assim, o empirismo para desenvolver juízos morais.

Assim, a intersubjetividade se consolida com dimensão formal kantiana e a intersubjetividade discursiva habermsiana e o medium interativo desta ponte está no destaque à dignidade da pessoa humana que tanto Kant e Habermas valorizam nos seus paradigmas pois seja em sentido formal ou em sentido material ela está presente fortemente nos dois modelos que são indispensáveis para o desenvolvimento de dilemas morais.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

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HABERMAS NA ESTEIRA DO PENSAMENTO PÓS-METAFÍSICO II

bipolarismos simplificados[64]

 

Jovino Pizzi[65]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

A insistência em “tradições fortes” vem sendo uma das questões importantes dos textos recentes de Habermas. A obra Nachmetaphysiches Denken II. Aufsätze und Repliken (Pensamento pós-metafisico II. Ensaios e réplicas) apresenta, em diferentes momentos, o fluxo e o influxo de tradições inerentes à cultura ocidental. Na sua retrospectiva histórico-genealógica, o “diagnóstico do tempo” presente exige a compreensão das tradições e seus elementos constitutivos, uma herança que, de uma forma ou de outra, continua exercendo uma influência significativa na justificação dos pressupostos normativos. O vigor se manifesta na articulação do poder, confluindo em um eixo central e, assim, articula os diferentes subsistemas do mundo da vida.

Nesse sentido, a configuração de um “centro e uma periferia” (Habermas, 1989, p. 403), isto é, um eixo central e suas ramificações alimenta uma força legitimadora a comandar os distintos âmbitos da vida social. Habermas insiste em fortes e poderosas influências da tradição ocidental. Ou seja, a referência a constelações históricas salienta legitimações contundentes e determinantes, às vezes eminentemente metafísicas. Essas forças são determinantes no momento de consolidar as justificações, com influências decisivas nos diferentes âmbitos (ou subsistemas) do mundo da vida.

Se, por um lado, a influência de uma racionalidade ético-comunicativa assume um significado inquestionável, por outro, prospera uma legitimidade que não abandonou as influências de tradições que permanecem vivas e inspiram justificações determinantes para a vida prática. Não poucas vezes, o entrechoque entre salvação e condenação (Heil und Unheil) continua demarcando e estabelecendo os contornos do agir social. O bipolarismo entre agraciados versus increpáveis indica, pois, duas formas de especificar condição do sujeito enquanto pertencente aos salváveis ou aos desgraçados (na verdade, demoníacos).

A bipolarização aparece como forças contrapostas, divergência que afetam as questões políticas, sociais, culturais e econômicas, entre outros aspectos. Assim, evidencia-se a característica patológica de nossos tempos, cujo padrão salienta forças diametralmente opostas. A existência de dois polos se defronta a diagnósticos que exigem alternativas capazes de superar tais patologias. Do ponto de vista político, o embate se refere ao horizonte da necrópole versus o mundo das acrópoles.

 

1 TRADIÇÕES FORTES PRODUZINDO BIPOLARIDADES

 

A perspectiva pós-metafísica se enfrenta ao constante revivescimento de justificativas que, de uma forma ou de outra, remetem a forças legitimadoras em constante reatualização. Essa noção está presente na obra Nachmetaphysiches Denken II. Aufsätze und Repliken (Pensamento pós-metafisico II. Ensaios e réplicas), traduzida ao castelhano como Mundo de la vida, política y religión (2015). Uma das questões importantes do texto refere-se ao poder, ou seja, da justificação do poder e sua força legitimadora.

Para Habermas, na história-evolutiva da tradição ocidental, existem forças de um sistema-mundo voltado à coesão social. Elas têm o poder de justificar, de “forma intencionada” o nomos, ou seja, um sistema de leis, regras e um estatuto capaz de garantir a unidade – às vezes, um tanto difusa – não apenas do aspecto organizativo e administrativo da sociedade, mas também na governabilidade e no exercício do poder. Em relação à herança contestável e irresoluta da “teologia política”, Habermas menciona algumas referências importantes, como Israel, Mesopotâmia, Grécia e Egito (2015, p. 208).

De acordo com Habermas, justificação através “das imagens de mundo metafísicas e religiosas” não se limitam a culturas e sociedades do período antigo, mas estão presentes também no modelo específico da Idade Média. Como afirma Habermas:

 

Por um lado, o poder político gerenciava a política religiosa para assegurar o consentimento das instituições e dos grupos religiosos; por outro, as convicções religiosas, a causa de sua referência individual de salvação, mantiveram um momento de indisponibilidade: a crença na legitimidade sem qualquer abertura de transformação. Este precário equilibro pode ser rastreado até o início da Idade Média europeia, nas relações entre o imperador e o papa (2015, p. 209).

 

Para Habermas, este modelo apresenta vínculos potentes e fortes, com efeitos na vida prática. A política e a religião assumem um protagonismo destacado, “uma vinculação de efeitos legitimadores” sem qualquer possibilidade de mudança. A fusão entre política e religião assegura um poder extraordinário ao soberano. Esta concepção concebe uma imagem de si mesma a partir de uma “lei sagrada”. A conjuminância de poderes foi criando uma conformação homogênea em torno a um nomos, garantidor e legitimador do poder, representada na figura do soberano, a representação simbólica da magistralidade de seu poder e, portanto, inerente à inviolabilidade de sua legitimidade e valimento.

Para Habermas, nesse modelo,

 

a autoridade política devia alimentar-se da força legitimadora de uma lei sagrada para ser aceita como justa. Deste modo, o direito e o poder administrador de justiça do rei se caracterizam por sua aura sagrada, herança dos relatos míticos que as dinastias dominantes amalgamaram com o divino. Ao mesmo tempo, as práticas rituais tradicionais se transformaram em ritos políticos, isto é, em formas de auto-representação coletiva de uma soberania política exercida de forma administrativa (2015, p. 208).

 

Ao tratar-se de uma figura com emanação do sagrado, ou seja, uma autoridade com impulso divino, as representações mundo-vivenciais conformam uma polaridade ambivalente. Como enfatiza Habermas, existe uma “alimentação” entre a autoridade e a lei sagrada, de modo que a justiça transpareça esse poder divino, inerentes à figura do soberano, cujas cerimônias, ritualizações e símbolos da vida cotidiana reluzem o simbolismo dessa sacralidade. Essa forma organizativa e administrativa se apresenta como um produto homogêneo, pois se reproduz nos subsistemas funcionais autopoiéticos. Em outras palavras, esse sistema-mundo se rege “através de sua própria lógica” (Habermas, 2015, p. 205), transformando a figura do soberano em um código que comanda e administra a estrutura da sociedade e a vida das pessoas.

O fato de coadunar narrativas míticas e religiosas garante, então, a legitimidade do poder do soberano, subtraindo qualquer tentativa de mudança. A homogeneidade se transfigura no poder do soberano, persistindo como absoluto, cujas forças centrífugas absorvem o conjunto das relações humanas. Em outras palavras, o centro do poder aglutina qualquer movimento, um eixo convergente e ponto de referência para todas as decisões.

As consequências, afirma Habermas, realçam dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, a legitimação vinculada ao nível metafísico, completamente independente das circunstancialidades do mundo da vida, ou seja, a autonomia do soberano permanece totalmente descolada e desarraigada do contexto social e vivencial dos sujeitos. Ao tratar-se de um horizonte alheio da realidade mundana, as formas e estilos de vida passam a ser simples cópias do espectro idealizado. Na verdade, o pertencente ou relativo ao mundo é reflexo peculiar das narrativas mítico-religiosas. Quando não se encaixa no protótipo idealizado, passa a ser qualificado como mau, daninho ou demoníaco.

 

Para Habermas, essa divisão conforma uma justificação e encontra sua força legitimadora sempre que ela possuir uma raiz própria, independente da política, nas ideias de salvação e condenação (Heil und Unheil) e as práticas de consideração com os poderes redentores e conjuradores do mal (2015, p. 207).

 

Neste sentido, Heil und Unheil (salvation and evil) passam a conformar dois opostos a interferir na identidade coletiva. Os símbolos e ritos servem para indicar quais ações são específicas de abençoamento e quais condizem com a condenação. A quem não se enquadra no modelo, recai increpações como terroristas, demoníacos e, no caso de brasileiros, comunistas. Essa designação aufere ao monarca um poder conugando o político e o divino, de forma a estabelecer os limites e a deliberações entre uma e a outra polaridade.

A segunda consequência se refere à ideia de salvação, um modo de tratar o abençoamento como algo particular. Sem afastar-se da tensão entre o humano e o divino, o verticalismo monológico supõe a salvação como algo eminentemente particularista. Em outras palavras, a característica fundamental exibe uma força impulsora “ordenada narrativamente de um advir dominado pelos poderes míticos para iniciar a procura individual de salvação […]” (Habermas, 2015, p. 209). A referência particular de salvação exalta um humanismo individualista. O tensionamento entre religião e política consolida, portanto, um estilo de vida que, de acordo com Habermas, foi o eixo a costurar a era axial fundamentada nas narrativas mítico-religiosas e com uma tonalidade metafísica.

 

 

2 O FLUXO E O INFLUXO DAS NARRATIVAS METAFISICAS

 

A filosofia moderna colocou o referencial teológico no limbo. Em outras palavras, a laicização da sociedade garantiu a “razão” no púlpito das reivindicações humanas, auferindo- lhe a possibilidade de, inclusive, relegar a religião ao âmbito do privado. Para Claude Lefort, o século XIX representou um período em que o teológico parecia não apenas envelhecer, mas definhar completamente (1998, p. 213). Os efeitos da Revolução Francesa e das lutas religiosas na Inglaterra, por exemplo, evidenciaram uma maneira sui generis de política, realçando a perspectiva secularista a ponto de restringir a religião ao domínio privado (Lefort, 1998, p. 214). No entanto, o confinamento do âmbito religioso não significou sua eliminação ou a destruição de seus fundamentos, mas o surgimento de uma nova religiosidade. Assim, restrito ao campo privado, o âmbito teológico permanece em standby, à espreita de oportunidades propícias para retornar e reaparecer na interface com a política.

De uma forma ou de outra, os princípios de cunho religioso continuam, ainda hoje, como elementos fortes. A auto-compreensão da sociedade e, principalmente, da política, mantém traços representativos da “teologia política”, mormente da tradição judaico-cristã. Apoiando-se em Claude Lefort, Habermas afirma que os discursos públicos conservam fortes resquícios da religião, um assédio que aproxima e, ao mesmo tempo, induz e oscila entre a imanência da objetividade autorreferencial e o transcendentalismo metafísico (2015, p. 207).

O debate se refere à distinção entre “a política” (la politique) e “o político” (le politique). Para Lefort, a permanência do discurso “teológico-político” prescinde da filosofia, ou seja, vai definhando a distinção entre as duas concepções de forma a consolidar a inviolabilidade do poder representado pelo soberano. Para Habermas, os “processos de mando e o exercício do poder” implica na diferenciação entre a “secularização do Estado” e a “secularização da sociedade” (2015, p. 216). Com isso, abre-se o debate em torno a “um ressentimento soterrado contra a justificação dos princípios constitucionais a partir da razão” humana (Ibidem).

Desta forma, configura-se uma “liberdade” para que as comunidades religiosas se assegurem dos mesmos direitos que a “sociedade civil”. Em que pese às divergências e blindagem da coletividade frente às influencias religiosas, a ressonância dos discursos religiosos se mantém pari passu com o realismo político. A mudança advém das “respostas insatisfatória do laicismo” frente às demandas das comunidades religiosas. O papel do discurso religioso deixou de lado sua atitude competidora de modo a apresentar uma versão mais colaborativa para com a política (Habermas, 2015, p. 218). Desenha-se, então, um discurso político-teológico com a imagem da prosperidade material. Desta forma a política parece diminuir sua capacidade de influenciar a coordenação do agir, limitando-se a cumprir os mandamentos dos “meios dinheiro e poder, os quais representam um fragmento da socialização, isentos de conteúdo normativo” (Habermas, 2989, p. 408). Para garantir seu espaço e a simpatia, as religiões assumiram uma característica “mundana”, incorporando também, aos seus dogmas, aspectos ligados aos direitos humanos (Habermas, 2015, p. 219).

Ao mesmo tempo, os sujeitos adeptos à secularização se deparam com a consciência genealógica de uma moral com vertentes religiosas. No nosso caso, de “conteúdos semânticos procedentes da tradição judaico-cristã” (Habermas, 2015, p. 219). No uso público da razão, a interface entre secularidade e religiosidade representa, de acordo com Habermas, um estímulo positivo. Trata-se, pois, de um potencial a impulsionar os cidadãos a atuarem de acordo com as exigências normativas e em vistas a deliberações racionalmente motivadas.

Se, por um lado, haveria um “vazio” entre os dois polos, por outro, há uma articulação sistêmica. O avivamento do discurso escatológico reclama procedimentos democratizantes e, então, se torna um aliado do discurso político para o enfrentamento das problemáticas terrenais.

Os “direitos da sociedade civil” presume, pois, uma “sensibilidade” a esse espólio religioso, ou seja, de um patrimônio capaz de um aggiornamento. As decisões do “Estado constitucional democrático” reconhecem essa herança que, apesar do ceticismo, sofre o assédio do referencial teológico. Na verdade, não há como fugir e nem se pode ignorar “as contribuições das comunidades religiosas e dos cidadãos religiosos” (Habermas, 2015, p. 216).

Em suma, o postulado da tradição mítico-religiosa apresentava uma configuração assincrônica, mas, com o passar do tempo, seu aggirornamento tornou-a operante na interação social, ou seja, uma presença concomitante com outras forças justificadoras. Isso não significa a eliminação das tensões entre os dois polos. No contexto de uma sociedade multi- e intercultural, os distintos discursos contribuem na costura um processo democrático. Nesse ínterim, as distintas narrativas refazem e reconstroem seus pontos de vista, de modo a influenciar a coordenação do agir.

 

3 OS EFEITOS DA BIPOLARIDADE OU O MONOLINGUISMO PAROQUIALISTA

 

A expressão monolingües indica o uso de apenas uma linguagem, salientando a impossibilidade da diversidade pública das vozes, atitude que realça e consolida o unilateralismo dogmático. Em boa medida, as justificativas restritas ao discurso teológico seriam típicas de contribuições do tipo monolíngues (Habermas, 2015, p. 218). Em uma democracia deliberativa, a ressonância das contribuições de “cidadãos religiosos” supõe a retradução de seus pontos de vista para, então, cooperarem na consolidação de uma polifonia de vozes (Habermas, 2015, p. 218).

Para Habermas, “os cidadãos religiosos que se consideram membros leais à constituição de um Estado democrático devem aceitar a dita cláusula de tradução como exigência relativa à neutralidade ideológica do poder do Estado” (Habermas, 2015, p. 218). Por outro lado, corresponde, aos cidadãos laicos, o dever de um reconhecimento similar. Assim, no uso público da razão, a reciprocidade entre os cidadãos (religiosos ou seculares) se converte em equidade no tratamento (tu a tu, na mesma medida), pois “para o processo democrático, as contribuições de uma das partes não são menos relevantes que as da outra” (Habermas, 2015, p. 218).

Todavia, em um sistema globalizado, a orientação do agir obedece às disposições de um sistema-mundo integrado com a totalidade (Habermas, 2015, p. 206). No horizonte do embedded capitalism, traduzido como “capitalismo incrustado”, os imperativos econômicos exercem um domínio cada vez mais decisivo, confinando as esferas da vida social e privada aos subsistemas atrelados às ordens centrais. Sua dinâmica supõe a divisão das esferas em subsistema relativamente independentes uns dos outros, de modo que o vínculo entre eles apenas ocorre em relação com o eixo central.

Essa configuração concebe uma estrutura com um “poder” central, sustentado por diversos subsistemas. Os diferentes satélites, embora com relativa independência, estão submetidos as determinações do eixo central. A força gravitacional impede a autonomia de qualquer um deles, subtraindo as possibilidades de independência ou de soberania. A distinção funcional realça a força do núcleo central frente aos distintos subsistemas, mas que, ao final de tudo, sustenta e nutre a integração sistêmica. Em outras palavras, “a sociedade diferenciada funcionalmente e condensada sistemicamente” se articula em forma de rede ou de constelações, com um centro gravitacional gerador de coesão e de integração.

A coesão social, desenhada em forma “malhas” de uma rede, vincula e interconecta a constelação de subsistemas sob um único comando. Nessa direção, “os subsistemas funcionais autopoiéticos, que se regem através de sua lógica própria e constituem entornos uns para os outros”, há algum tempo são presumidamente considerados como independentes uns dos outros, conformando “redes subcomplexas do mundo da vida” (Habermas, 2015, p. 205).

Para Habermas, ainda persistem imagens fortes de um agente visível e que, ao mesmo tempo, penetra violentamente nas “mentes” dos sujeitos. A estrutura bipolar alimenta uma concepção dualista sem alternativas. O poder do “centro” se apresente como um agente com a capacidade de compelir e, ao mesmo tempo, desvincular. Seu vigor é determinante a ponto de ameaçar os “satélites” com sua desintegração. Em outras palavras, a desvirtuação coloca em perigo os subordinados, a ponto de supor sua desintegração, ou seja, o risco de fragmentá-los e destruí-los por completo. Sem qualquer autonomia individual, esse poder consegue determinar, com firmeza, as estruturas gerais e particulares, formando um sistema no qual os setores periféricos aderem e se adaptam a um centro gerador de coerções esmagadoras.

Entre o passado e o presente, o diagnóstico de nosso tempo salienta uma “força legitimadora do poder”, a qual se alimenta na esteira de um “capitalismo incrustado”. Habermas, quanto utiliza o termo “era axial”, trata de identificar as constelações históricas da tradição Ocidental, indicando a Mesopotâmia, o Egito e a Grécia como modelos de tradições mítico-religiosas. Essa retrospectiva abre caminho para o debate e as vinculações entre o teológico e o político. Na verdade, trata-se de perceber o fluxo e o refluxo entre os dois horizontes, ora centra mais em um e momentos mais em outro. Para Habermas, atualmente, no horizonte de um capitalismo globalizado,

 

as capacidades da política de influenciar conscientemente na integração social estão se reduzindo perigosamente. No transcurso da globalização parecem delinear-se, cada vez com maior nitidez, os contornos de uma imagem que a teoria de sistemas desenhou acerca da modernização social (2015, p. 205).

 

Na verdade, a diminuição da capacidade da política em influenciar a vida das pessoas indica um revigoramento de outro modelo, no qual a tradição teológica reaparece como força impulsionadora. As “comunidades religiosas” reafirmam suas exigências de forma a reivindicar um reposicionamento do Estado em relação às justificações e ao uso do poder. Em outras palavras, a propensão do movimento pendular indica um “fluxo indômito” a interferir na condução das decisões, muitas vezes sem qualquer transparência (Habermas, 2016, p. 133). O perigo está no monolinguísmo paroquialista (Pizzi, 2017), ou seja, a restrição das justificativas a um provincialismo teocrático, sem abertura à pluralidade das vozes. A versão monolíngue indica a tendência a limitar interesses, atividades, pensamentos, opiniões etc. a uma esfera restrita e restritiva, sem atenção à diversidade e mais abrangentes. Por um lado, a política permanece como referência importante, mas renasce e ganha corpo a justificação com base no ponto de vista teológico.

Nessa direção, “a política, entendida como meio de autoinfluxo democrático tornou- se não apenas impossível como também supérflua” (Habermas, 2015, p. 205). O ato de influir e a inspiração encontra seu amparo em uma referência externa, alheia aos sujeitos involucrados. Por isso, minha acepção de “democracia sem sujeitos” ou democracia sob os efeitos clickbait, um processo ligado à virtualidade tecnocrática (Pizzi, 2018). A virtualidade se transforma em único meio para manipular os temas de interesse público, sem compromisso moral.

Com a espiral da tecnocracia, alguns políticos de profissão, economistas e tecnocratas, especializados em manipular informações (Habermas, 2016, p. 69), direcionam as decisões de acordo com os interesses de especuladores, rentistas e do mercado financeiro. Nesse rol, seria importante acrescentar também alguns jornalistas e/ou meios de comunicação, preocupados apenas em “satisfazer, de maneira lucrativa a demanda por informação e por educação” (Habermas, 2016, p. 130).

A dependência sufocante do eixo central vai definhando o horizonte político, acentua- se o desencanto pela democracia. Não apenas isso, mas o que era considerado como antivalor ganha destaque em determinadas mídias. O deflate (do latim, deflatum) do mundo da vida (Lebenswelt) significa um servilhismo patologizante, cada um voltado a ver se consegue uma fatiazinha do bolo (ou algumas migalhas). A deflação cria, portanto, as condições para confinar os indivíduos “a “borbulha do egoísmo racional” (Habermas, 2015, p. 206). Nessa espécie de bolha, o sujeito de isola de seu entorno, alienando-se também das exigências de uma racionalidade ético-comunicativa.

Os tempos atuais tornam claro essa espécie de paralisia social, transfigurada em patologia, culminando com homenagens a quem mata[66].Se não bastasse esse exemplo, as discussões recentes sobre aborto, a diferença entre Brasil e Argentina é mais que sintomático.[67]No nosso país, o debate se limita a ministros do Supremo Tribunal, ouvindo alguns pareceres prós e/ou contra; na Argentina, houve uma mobilização nacional e – o que é mais importante – o palco foi o parlamento (senadores e deputados).

Ante essas considerações, fica evidente o monolinguísmo paroquialista, tão incrustado que a força legitimadora e as justificativas emanam de pequenos grupos, com plenos poderes para decidir sobre qualquer matéria. Se o modelo mítico-religioso configurou uma forma organizativa e administrativa da sociedade, o modelo atual não é muito diferente. Além do mais, permanece vigorando os extremos entre salvation and evil, ou seja, a tensão entre abençoamentos e condenações a ponto de determinar e definir o justo, o bom e os estilos de vida a partir da submissão – ou não – ao centro do poder e sua inviolabilidade. E quem não compartilhar desse modelo, poderá ser considerado nada mais que um conspirador ou terrorista, enfim, um indesejado e execrável.

 

4 O MUNDO DA VIDA: ENTRE LEILÕES E CINZAS

 

A conversão do âmbito político em “código de um subsistema administrativo governado pelo poder” (Habermas, 2015, p. 205) promoveu uma deflação e a diminuição das motivações coletivas. Os ideais de uma sociedade justa e solidária foram perdendo seu significado, levando os indivíduos a um esclaustramento na borbulha do egoísmo racional (Idem, p. 206). As alternativas possíveis seguem o mesmo esquema do modelo mítico-religioso. O refrão “salvar-se ou morrer” está relacionado ao “senso depreciativo” em relação à capacidade de, como sujeitos, atuarmos no mundo.

A violência (Gewalt) como alternativa ou mecanismo da coordenação do agir se associa ao poder (Macht), atrelando dois sistemas: o econômico e o administrativo. Como centro de um sistema de vasos sanguíneos, os meios representados pelo “dinheiro e o poder” formam esse plexo funcional separados do mundo da vida (Habermas, 1989, p. 472). Na perspectiva do mercado livre, tudo pode ser leiloado, isto é, nada escapa do leiloamento. Em outras palavras, aquilo que não pode ser comercializado e colocado em liquidação, simplesmente vira cinzas.

Em razão disso, o “sistema jurídico” também se submete aos “imperativos funcionais da economia e da administração” (Habermas, 1989, p. 473). Neste caso, a legitimidade democrática não passaria de supremocracia ou da ministrocracia. Na expressão de Habermas, o modelo salienta uma

 

violência patógena que, inadvertidamente, penetra nos poros da prática comunicativa cotidiana e pode caracterizar-se como um poder de persuasão na medida em que o mundo da vida permaneça alienado aos imperativos de subsistemas funcionais autonomizados e, então, coisificado através dos hábitos de uma racionalidade instrumental (1989, p. 459).

 

Como é possível perceber, a submissão do agir aos imperativos de sistemas funcionais autonomizados inibe o agir comunicativo, levanto ao enjaulamento dos sujeitos e, em decorrência, seu afastamento da convivência com os demais. No caso, é possível também falar em “bolhas informacionais” se tal referência estiver ligada ao monolinguísmo paroquialista, classificando os “a favor” e os “contra”. Na verdade, evidencia-se a bipolorização entre imperativos funcionais do sistema e as demandas sociais. A bipolarização significa, então, desequilíbrios ou, então, patologias que separam o “sistema econômico e o político” dos fenômenos relativos ao mundo da vida (Habermas, 1989, p. 473). Mais incisivamente, o ímpeto e o “regresso da metafísica” (Habermas, 2015, p. 12), com novas roupagens, estrangula a racionalidade comunicativa. Deste modo, os subsistemas deformam o mundo da vida, de forma a anquilosar e imobilizar as forças impulsoras do agir comunicativo.

Frente a isso, Habermas aposta por uma retomada e um aprofundamento do papel do conceito de Lebenswelt. O cenário filosófico atual demanda por uma compreensão com os pés no chão. Em outras palavras, a racionalidade comunicativa se articula e se processa em contextos concretos do mundo da vida, pois linguagem quer dizer ação.

O mundo da vida não é decorrência de uma interpretação alheia; externa, portanto. A noção de Lebenswelt não derivada de um ordenamento cósmico ou de acontecimentos voltados à escatologia. Para Habermas, o Lebenswelt não possui um significado sublime ou indica um ordenamento modelar das coisas, muito menos representa “um saeclum ou uma etapa profetizante” (Habermas, 2015, p. 23). Essa teorização é típica de uma perspectiva metafísica muito mais preocupada com a dimensão de totalidade do mundo e do cosmos, típica de uma história universal com características sagradas. Na retradução atual, o cosmológico assume a figura de uma teologia da prosperidade.

Na metodologia reconstrutiva de Habermas, a representação do mundo da vida ocorre através de uma gramática vinculante, consolidada em ações linguísticas. No mundo da vida, há sujeitos implicados que tematizam as referências ao mundo e com as quais estabelecem e consolidam vínculos. No caso, poder-se-ia também relevar as conflituosidades ou, como menciona Honneth, uma gramática do conflito moral. O certo é que os sujeitos se referem a “algo como presente no mundo”, porque as tematizações dizem respeito a fenômenos ou situações “existentes no mundo” (Habermas, 2015, p. 28). Não se trata, pois, de simples “unidade imaginária da consciência” transcendental, restrita ao horizonte monológico ou, então, a partir da noção de universalidade versus particularidade.

O mais importante está no fato de que “o processo de comunicação” exige que as referências ao mundo evidenciem e se processem “no mesmo mundo no qual ocorrem as referências” e ao qual os sujeitos pertençam (Habermas, 2015, p. 28). O fato de realçar a imbricação entre sujeito e referência ao mundo se torna em condição sine qua non de uma gramática pronominal entre sujeitos coautores. Evidentemente, essa condição abre um leque de representações, aspecto ligado a uma fenomenologia concernente ao Lebenswelt. Todavia, a gramática do sujeito pronominal garante a depuração progressiva (Habermas, 2015, p. 31) da imagem de mundo como cópia ou de simples reprodução, para dar caminho a uma noção de mundo referenciado, isto é, do mundo ao qual o sujeito realmente pertence e no qual age.

Continuando com essa distinção habermasiana, permanece, na tradição ocidental, uma peculiar conexão entre uma imagem do mundo teocêntrico com a cosmológica. Para Habermas, essa vinculação “é responsável pela polarização entre ciência e crença”. Em boa medida, o cientificismo assumiu ares de doutrina, uma espécie de discurso inviolável. Seja em relação à ciência como tal ou aos aspectos teológicos, o dualismo realça uma “atitude extramundana” frente a noção de mundo vivencial, ou seja, os contextos mundo-vivencias. Mas qual é mesmo o problema?

Nesse sentido, Habermas menciona a objetivação bipolar (2015, p. 45 e p. 47). A resposta está na divisão do mundo da vida em subsistema (relativamente ou supostamente) isolados e sua “subordinação” aos controles objetivados. Em contrapartida, a rede de relações inerente ao mundo da vida “continua conformando a caixa de ressonância”[68]através da qual os sujeitos obtêm a consciência de si mesmos. Embora difusa “esta consciência pode articular-se nos círculos de comunicação das esferas públicas políticas” (Habermas, 2015, p. 206). O mundo da vida não se reflete de forma teorética e/ou idealizada. Nele, os sujeitos de descobre dentro de um horizonte mundo-vivencial como sujeitos coautores.

O locus é, portanto, ambiente e habitat, com uma perspectiva claramente representada pela noção de acrópole no sentido de estar. Nesse sentido, é significativa a retradução de sein (to be, être) como estar, uma versão diferente da tradução “ser”. A representação de ser pode simplesmente relacionar-se com o “monismo ontológico” (Habermas, 2015, p. 49). Todavia, o estar significa fazer parte, pertencer, encontrar-se e marcar presença ou ter a companhia de alguém. No gerúndio, o vocábulo estar indica ação, condição típica do sujeito que pertence a uma comunidade de interação.

A coautoria significa protagonismo dos sujeitos, direta ou indiretamente, envolvidos na interação, ou seja, em uma comunidade de comunicação na qual a pluralidade de autores ou dos agentes sejam os responsáveis na busca e na execução dos fins. Para tanto, a consciência de estar remete ao pertencimento e à intersubjetividade comunicativa, justificada através do processo comunicativo no qual todos os sujeitos não são reconhecidos como falantes ou ouvintes, mas coautores.

Em vista, a reconstrução das estruturas gerais do mundo da vida faz parte de um “processo de aprendizagem”. Em outras palavras, trata-se de um procedimento “deste dentro” do próprio mundo da vida (Habermas, 2015, p. 50). O núcleo central e as constelações adjacentes têm em vista os destinatários, ou seja, os sujeitos coautores. Insistindo novamente com Habermas: o agir comunicativo vincula os planos de ação dos sujeitos somente quando torne possível as interações sociais (Habermas, 2015, p. 55). Enfim, não se trata de uma “comunicação extracotidiana” (Habermas, 2015, p. 82).

Ao considerar, então, a comunicação intramundana, a noção de locus aparece como um dos aspectos fundamentais do agir comunicativo. Desta forma, a justificação encontra na coautoria do sujeito o caminho metodológico para redefinir o “poder comunicativo” como coordenador do agir (Habermas, 1989, p. 418). Em outras palavras, um poder “sem influências externas” a não ser dos implicados. O sujeito coautor representa, pois, a referência catalizadora das interações.

 

REFERÊNCIAS

 

LEFORT, Claude. Democracy and political theory. Cambridge: Polity Press, 1988.

 

HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: complementes y estudios previos. Madrid: Cátedra, 1989.

 

HABERMAS, Jürgen. Mundo de la vida, política y religión. Madrid: Trotta, 2015.

 

HABERMAS, Jürgen. En la espiral de la tecnocracia. Madrid: Trotta, 2016.

 

PIZZI, Jovino. Parochial monologuism under the guise of “universal dialogue” (ISUD). In: Topologik. Collana di Studi internazionali de Schienze Filosofiche e Pedagogiche. N. 21, first semester 2017, p. 30-45.

 

PIZZI, Jovino. Democracias bajo efectos clikcbait. La gramática pronominal como respuesta a la virtualidad tecnocrática. In: Veritas. Revista de Filosofía y Teología. Santiago de Chile, N. 39, abril de 2918, p. 33-53.

 

PIZZI, Jovino. Post-Dictaduras en América Latina. Capitalismo, políticas distributivas e interculturalidad. In: Revista Tefros. V. 16, N. 1, enero-junio del 2018, p. 127-147

 

PIZZI, Jovino. Esferas del reconocimiento intersubjetivo. El pensar latino-americano desde un sistema-mundo abierto a la interculturalidad. In: Revista Logeion. Filosofia da Informação. V. 4, N. 2, 2018, p. 17-30


EL PAPEL SOCIAL DEL INTELECTUAL ANTE EL OVERLAPPING MALICIOUS

el homenaje a Habermas como un intelectual que marcó época[69]

 

Jovino Pizzi[70]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

Ricardo Salas Astrain[71]

Université Catholique de Louvain la Neuve

rsalas@uct.cl

 

1 INTRODUCCIÓN

 

En su texto La crítica de la sociedad en la era del intelectual normalizado, Axel Honneth discute el papel del intelectual y sus idiosincrasias. Por otro lado, Jürgen Habermas también se refiere al tema en tiempos de exasperación y de la institucionalización del papel del intelectual. La relación entre Honneth y Habermas es más sencilla, pues se trata de discutir el papel de los intelectuales ante la idea de reconocimiento.

La cuestión a ser debatida tiene relación con una ética del mal. La segunda mitad del siglo XX ha sido fecundo en teorías éticas. Aunque con distintas posibilidades de fundamentación, esas teorías han proporcionado un optimismo sin precedentes. En general, ellas han apuntado hacia nuevas alternativas a los problemas de nuestros tiempos. Sin embargo, ese período ha sustentado también una predisposición al disforme, o sea, a la inautenticidad. Entonces, si Rawls ha tenido la habilidad de hablar sobre el overlapping consensus, ahora se podría añadir otra versión, el overlapping malicious.

De una forma o de otra, la idea de una ética del mal no disminuye el homenaje a Habermas; sino al contrario. Encontramos en Habermas argumentaciones muy consistentes para afirmar que se trata de un pensador comprometido con las posibilidades de reconstrucción de las condiciones de habla y de acción. Su propuesta no se atiene a los déficits o a la maldad. Por eso, el homenaje incita a discutir la noción de intelectual en sí mismo, una expresión que adquiere una importancia más amplia con el caso Dreyfus, en 1898. Por otro lado, la finalidad de las investigaciones y el papel de la ciencia cambian, de forma a tener – o no – sintonía con el conjunto de circunstancias o patologías de la sociedad avanzada (problemas políticos, económicos, sociales, culturales, etc.). Esa doble perspectiva subraya la preocupación en torno a soluciones de los problemas de la sociedad, en vistas a una vida más equitativa entre los humanos, los no humanos y la ecología como tal.

Para presentar el tema, el primer punto trata de subrayar la crítica social como aspecto motivador para la formación y las buenas prácticas en investigación, y no solamente un análisis de las patologías como tal. A continuación, se destacará una tendencia muy fuerte hoy día, algo relacionado a la diversidad de recetas, con gurús de todos los colores, una multiplicidad enorme de guruzeimas. De ahí, entonces, la discusión sobre el papel de los intelectuales y sus responsabilidades (investigativas y sociales).

 

2 LA CRÍTICA SOCIAL Y LA GRAMÁTICA DEL CONFLICTO SOCIAL

 

En su texto sobre la crítica de la sociedad en la era del intelectual normalizado, Axel Honneth subraya la necesidad de una crítica social que “puede contribuir a cambiar el estado de una sociedad” (2011, p. 207). En este sentido, el autor toma ejemplo de la industria cultural que, en un primer momento, influyó “sobre un pequeño círculo de intelectuales, estudiantes y productores culturales” pero que, con el tiempo, “generó un sentido más agudo de los peligros vinculados con la infiltración de imperativos del mercado y criterios de rentabilidad en la esfera cultural” (ídem). Al final de todo un proceso, la repercusión ha sido una “conciencia política de un público que razona” (Honneth, 2011, p. 208).

Aunque el largo proceso antes de materializar una “modificación de las percepciones sociales”, los cambios de orientación indican la profundidad de una noción que persiste y sigue manteniendo su validez a lo largo del tiempo. Según Honneth, la idea de una industria cultural ha provocado cambios sustanciales no solamente en los estándares culturales de la producción radiofónica, televisiva y editorial, sino también en las políticas y en el control jurídico de los medios culturales. Además, en Alemania, ha representado también “proceso de aprendizaje público” (Honneth, 2011, p. 208).

En este sentido, parece importante preguntar si esta repercusión ha encontrado resonancia en otros ambientes fuera de Alemania. Sin embargo, habría que investigar si hay otras categorías que han logrado eco social tan importante. Por ejemplo, el feminismo y las cuestiones de género representan, hoy día, otro ámbito o categoría con una profunda resonancia, mucho más que la perspectiva de la industria cultural. Al mismo tiempo, cuestiones étnicas también resuenan con repercusiones en diversas esferas de la vida social. Mientras tanto, sería importante identificar también las perspectivas necrófilas, o sea, concepciones que incitan a la violencia, el temor y el odio. En otras palabras, fórmulas que sirven de leitmotiv para la inhospitalidad y el rechazo a las nuevas formas de comprender los hechos y los cambios, de forma que la unilateralidad imponga sus pugnas e incentive la universalización de un único y homogéneo estilo de vida.

En tiempos de crisis o de profundas transformaciones, el papel del intelectual cobra un sentido pragmático. Es decir, el diagnóstico de crisis pone en evidencia deformaciones de la vida individual y/o social, con lo cual las neurosis y las patologías exigen también tratamientos adecuados. Entre otras cuestiones, la indagación sobre ¿cómo los intelectuales pueden confiar en encontrar alternativas saludables a las supuestas experiencias patológicamente deformadas? En otras palabras, las experiencias de sufrimiento y de mal estar son síntomas de una patología social, pero “ningún individuo puede evitar verse menoscabado o ser descrito como menoscabado por las consecuencias de la deformación de la razón” (Honneth, 2011, p. 47).

El sufrimiento no representa apenas un aspecto somático, sino como “una instancia en la que se experimenta la interacción de las fuerzas intelectuales y físicas” (Honneth, 2011, p. 47). En otras palabras, se trata de experiencias dolorosas, pues “la sensación de no poder” indica la perdida de la capacidad de reacción. De este modo, predomina la imposibilidad de transformar el estado patológico y modificar las deformaciones, sin reaccionar frente a los males que azotan el individuo, el grupo social o a la sociedad misma. Al final, el darse por vencido indica, pues, la sumisión al sufrimiento y, entonces, negar el interés de curarse, de liberarse de los males. La resignación indica, por tanto, la sujeción sin resistencia a las deformaciones, una recusa al “deseo de emanciparse del sufrimiento” (Honneth, 2011, p. 47).

Por eso, los distintos niveles de las patologías sociales, con lo cual los intentos de cura alcanzan tanto lo personal como lo social. Sin embargo, el ámbito social sería un punto central de la intersección entre las distintas ciencias, pues se trata de un “interés” por la emancipación del sufrimiento, adhiriendo a experiencias saludables, o sea, en condiciones equitativas hacia la convivialidad saludable. En efecto, “el deseo de emanciparse del sufrimiento sólo puede satisfacerse recuperando una racionalidad intacta”, es decir, el impulso y la persistencia por experiencias, prácticas y exigencias por liberarse del sufrimiento, “pese a todas las deformaciones o parcializaciones de la racionalidad social” (Honneth, 2011, p. 51).

 

3 EL PAPEL SOCIAL DEL INTELECTUAL SEGÚN HABERMAS

 

Habermas discute el papel del intelectual en el horizonte de un Estado Constitucional. El filósofo alemán se reporta a la función específica en el cual es posible una esfera pública política como médium e, al mismo tiempo, de una opinión pública volcada a la formación democrática de la voluntad. Para Habermas, el lugar del intelectual adquiere un reconocimiento importante en el área social, pero debe evitar caer en un oportunismo de turno.

Para señalar esa interpretación, Habermas se reporta al caso Dreyfus. En 1898, Émile Zola publica, en un periódico francés, una carta abierta al Presidente de la República, con graves acusaciones en contra la justicia y los militares. Al día siguiente, el mismo impreso publica un manifiesto contra las violaciones de derecho ocurridas durante el proceso Dreyfus, condenado por espionaje (Habermas, 2005, p. 39). Tal manifiesto tenía la firma de más de cien autores, mucho de ellos escritores y cientificistas. Este documento ha pasado a llamarse de “manifiesto de los intelectuales”, entendidos como investigadores, artistas, poetas y eruditos, los cuales no tenían ningún cargo político. Se trata de actores de relieve que no buscan sus propios intereses, sino se utilizan de su reputación y se manifestaban en torno a un tema más allá de sus profesiones, o sea, cuestiones de interés público.

En aquél momento, los efectos de la manifestación ha hecho con que se hayan cambiado el dictamen inicial de Dreyfus. Por un lado, la repercusión ha sido tallada como una irresponsabilidad diletante, peyorativamente calificada como una excitación estéril. En otra dirección, el hecho consolida el papel del intelectual como forma de participación activa, “mediante argumentos retóricos, en favor de derechos violados y verdades reprimidas, en favor de innovaciones necesarias y progresos entorpecidos” (Habermas, 2005, p. 39). Según Habermas, a través de manifestaciones de este tipo, los intelectuales “están realizando una publicidad bien informada, atenta y con capacidad de tener resonancia”. En otras palabras, ellos se apoyan en valores universalistas, creyendo en el vigor del “Estado de derecho, al menos en un nivel razonable, y en una democracia que, por su turno, se mantiene viva a través de la participación activa de los ciudadanos, pero que al mismo tiempo esos ciudadanos desconfían de las decisiones” (Habermas, 2005, p. 40).

Lo que dice Habermas subraya un reto importante, modificando la noción peyorativa e, incluso, la oportunista. Es decir, la idea de que el intelectual se preocupa solamente con los aspectos negativos y que, por tanto, el tono de sus manifestaciones sería siempre destructivo. La crítica negativa no tendría un carácter activo, pues se traduce en proposición deconstructiva,  y nada más. El argumento peyorativo se apoya en la tesis de que la crítica revela una disposición sin ninguna sensibilidad, cargada de frustración, victimista, con vicios y con el intento de reducir todo a cenizas. Al fin, se trata de un hablar sin credibilidad, por tanto sin valor alguno.

Un segundo aspecto relacionado a la crítica social está vinculado a los oportunistas de turno. Ellos están anclados en la voluntad de la minoría. Ellos se creen los perfectos y los demás son considerados como enemigos que hay que eliminar. Se presentan como héroes y luchan para obtener un protagonismo sin precedentes, con el fin de dominar y controlar los demás. El adoctrinamiento se transforma en principio, una tarea volcada a salvar el presente de las amenazas de seres peligrosos, sean ellos de la misma cultura o sociedad o extranjeros. La militancia se transforma entonces en método para convertir y salvar o, entonces, para condenar los diferentes y disidentes. A veces, se utilizan de la ciencia para justificar sus pretensiones, colmando con una Eugenia social discriminatoria y peligrosa.

Para Habermas, los intelectuales desempeñan un papel genuino, o sea, positivo. Ellos no deben abandonar sus tareas específicas. Mientras tanto, al hacer un análisis del caso Dreyfus, el resultado del manifiesto de los intelectuales ha sido la revisión de la condena, pues se trataba de una acusación falsa. Para Habermas, los intelectuales han sabido mantener la separación entre sus actividades específicas y la cuestión política, sin mezclar dos “categorías que deben permanecer separadas” (Habermas, 2005, p. 45). Sin embargo, los intelectuales no pueden dejar de reconocer su papel social para, entonces, “ejercer influencia en la esfera pública política” como promocionadores de una “publicidad bien informada, atenta y con capacidad de tener resonancia”. Al fin, los intelectuales complementan las instituciones del Estado, sin reducir la política a una actividad específica del Estado mismo. O sea, las ciencias y las artes siguen con su autonomía, pero los profesionales (es decir, los intelectuales) no rechazan y tampoco renuncian su dimensión social.

 

4 LA CRÍTICA PERSUASIVA A TRAVÉS DE GURUZEIMAS: EL OVERLAPPING MALICIOUS

 

Un homenaje a Habermas, en sus 90 años de vida, no puede olvidarse del aspecto deficitario de muchas propuestas o falsas propuestas. Las éticas clásicas tratan del “bien contra el mal, del héroe frente al dragón, de lo formal frente a lo material (informe)” (Ortiz-Osés 2004, p. 124). Sin embargo, las nociones de bien se oponen, de una forma o de otra, al mal o lo malo, simbolizado por lo negativo, defectuoso o lo destructivo. El dilema trata de entender el bien “siempre como explicativo (logos), pero su explicación arriba al límite inexplicable del mal (mythos, pathos). Implicar este límite del mal es ahora implicar la implicación, en donde el mal funge intrigantemente como implicatio de toda explicatio” (Ortiz-Osés, 2004, p. 125). En otras palabras, se trata de admitir la coimplicidad fatídica del mal o malo, el mal maléfico y, por tanto, en dirección opuesta a la gran mayoría de las éticas clásicas – de todas las éticas de nuestros tiempos.

La noción de una ética del mal, que se expresa a través de distintos autores, con sus puntos de vista diversificados, encuentra hoy día un eje común: el overlapping malicious. Se trata de una versión opuesta a la de Rawls, en este caso como un punto de intersección que incorpora diversas éticas del mal. Es decir, “de la lucha contra el mal hemos pasado aquí a su asunción, integración y amor […]. Algo nunca explicable en una ética del bien, pero implicable en una ética del mal” (Ortiz-Osés, 2004, p. 125).

En este sentido, es posible entender la inflación de intelectuales, muchos de ellos volcados en sembrar ideas necrófilas. De una forma o de otra, son intentos que no pasan de gurizeimas. Lo que se quiere subrayar son esfuerzos que causan más daños que soluciones. Para eso, presentamos la expresión que une el sustantivo guru con gulodice, es decir, en portugués sería una especie de iguaria apetitosa. En castellano, algo cercano a chuchería. Las dos palabras señalan, entonces, un tipo de mentor o líder espiritual que aconseja y recomienda cómo conviene o convendría actuar.

Ante el riesgo o los daños de una intelectualidad vinculada a guruzeimas, parece imprescindible hoy la responsabilidad del intelectual como un agente específico y, al mismo tiempo, como sujeto social, es decir, su lugar como investigador y sujeto coautor social. El doble papel significa que sus competencias van más allá de las “fronteras institucionales y profesionales” (Berten, 2004, p. 109). En efecto, la tendencia a encerrar el intelectual en una cueva supone un estrechamiento demasiado peligroso, actitud que aparta el quehacer intelectual de la realidad social. De ahí que la pregunta sobre la función del intelectual en tiempos de incertidumbres parece ser uno de los interrogantes esenciales en la actualidad. De hecho, los intelectuales “ocupan una posición institucional privilegiada, una especie de función sacerdotal investidos de una misión específica, reconocida por no se sabe cuál poder” (Berten, 2004, p. 109).

Por otro lado, la discusión actual sobre el papel del intelectual supone que sea un sujeto que ocupa una función, en general en tiempo parcial – porque se dedica también a otras cosas y tiene su vida particular – pero siempre con una actitud positiva. Es decir, tiene que responder por sus acciones y dar cuentas de su labor. La interpelación exige de cualquier intelectual una respuesta a la sociedad por sus funciones. De ahí su responsabilidad humana, antes de cualquier responsabilidad investigativa.

En este sentido, el intelectual es parte de la sociedad; y nunca una mónada. Su labor hace parte de la historia y su trabajo estará presente en el proceso histórico de su tiempo. En este sentido, más que crisis, el intelectual revela el diagnostico de su tiempo, los cambios de la vida social. Al tener presente su horizonte específico – su talante de expert – él se acerca también a los cambios sociales, que no significan necesariamente un paso adelante, o sea, avances hacia lo mejor y lo más saludable. Las variaciones indican retrocesos, una idea opuesta al progreso linear y hacia adelante. Por cierto, el cuadro general de las mudanzas supone el paso de un estadio al otro, pero no necesariamente desde una linealidad. Las oscilaciones son, por tanto, una de las características fundamentales de las transformaciones sociales.

En este sentido, el papel de los intelectuales asume también una función social. El rol que este grupo asume tiene una implicación sustancial en las conductas sociales. Ese papel puede contribuir en la manutención y profundización de las patologías, como también estimular conducta emancipadoras del sufrimiento. Esas dos posibilidades califican el marco conceptual en dos índoles distintas de la actividad del intelectual. De un lado, la crítica social, con lo cual loa crítica va más allá de opiniones o concepciones relativas a un grupo o una situación.

En tiempos de dudas y de transformaciones, aumenta el número de intelectuales, con lo cual las recetas también aparecen con distintos colores y sabores. En esta dirección, parece importante señalar dos actitudes fundamentales. Es decir, la cantidad de opiniones invade los medios y las redes, en donde mentores influyentes (del tipo especialistas) dan informaciones y orientan lo que podría ser mejor o peor para cada uno y a la sociedad como tal. No pocas veces, ellos aparecen como gurús, travestidos de maestros o guías con recetas para todo lo que uno puede pensar o soñar. Su argumentación se acerca a un tipo de persuasión que “impone un modelo de praxis, un esquema de necesidades o un síndrome de posturas” (Honneth, 2011, p. 202). Es decir, sus recetas no permiten otra alternativa sino la sumisión a sus pronósticos.

En primer lugar, la sumisión supone una neutralidad científica. Entonces, el resultado sería una ciencia transformada en ideología. Y eso sirve para todas las tendencias, de modo que los que no están de acuerdo sean tratados como enemigos. En este sentido, el intelectual no investiga, pues reduce su labor a combatir los que se van en contra sus presuposiciones. Al final, tratase de calificar y eliminar los contrincantes, o sea, transformarlos en inútiles y, así, hacerlos desaparecer (Berten, 2004, p. 114).

Esa tendencia señala un tipo de idiosincrasia, de forma que los

 

presupuestos conceptuales que estipulan a nuestras espaldas lo que se considere que puede decirse y que no puede decirse públicamente; en ese sentido, tal vez incluso sería mejor hablar de una imagen registrada conceptualmente o de un dispositivo que nos mantiene atados en el sentido de que, por la fijación de nuestras descripciones, determinados procesos nos parecen un fragmento de naturaleza del que ya no podemos desprendernos (Honneth, 2011, p. 200).

 

En efecto, los intelectuales ofrecen sus recetas, pero sus argumentos están ligados a un punto de vista particular o de grupos restrictos, una representación que pretende ser universalista. Como indica Honneth, no son pocos los mensajeros ligados a iglesias, empresas, partidos políticos, sindicados como se ellos representasen la universalidad de puntos de vista. Por cierto, no se trata de callar esos actores, sino de exigir coherencia con sus argumentaciones. A veces, los intelectuales e investigadores también pueden expresar sus puntos de vista, pero nunca deben omitir su lugar y sus pretensiones.

Las vinculaciones pueden evidentemente influenciar en la opinión pública, pero siempre y desde una pluralidad de puntos de vista. Entonces, si la perspectiva de una masificación de la sociedad, como plantearan, por ejemplo, Adorno y Horkheimer diseñaba una sociedad de masas, el riesgo actual está en considerar una sociedad “sin sujetos” (Pizzi, 2018). En otras palabras, una sociedad completamente manipulada por determinados puntos de vista o pretensiones que no pueden ser universalizadas.

En este sentido, es importante diferenciar entre una perspectiva superficialista de otras más profundas o, incluso, un tanto turbas. Para comprender esa distinción, me parece sugestivo el design utilizado por expertos de la informática. En ello, hay tres niveles: a) la suface, es decir,

el nivel superficial de las opiniones y argumentaciones; b) el nivel deep, o sea, un nivel más profundo, cargado de contenido; c) por fin, el ámbito dark, relacionado al nivel poco alumbrado o un tanto cargado de oscuridad.

Tal design también puede ser utilizado en el momento de identificar e calificar las patologías sociales. El malestar social podría tener un nivel superficial, con lo cual las patologías están más cerca de la superficie. Ellas son salientes y, por tanto, no tocan la base que sostienen la convivencia. En segundo nivel ya remonta a lo más cargado, o sea, con una densidad más amplia y que afecta las dimensiones generales de la sociedad. Aunque la amplitud, en gran parte esas patologías pueden ser superadas. Todavía, un tercer nivel llega a la base, es decir, toca los principios de la convivencia y, en buena medida, no presentan soluciones razonables.

Ante todo eso, la propuesta de un Observatorio de Patologías Sociales, así como propone un grupo de investigadores de la Universidad Federal de Pelotas, es un desafío. No se trata de una novedad como tal, sino de sumarse a otros grupos e instituciones de investigación para, así, investigar no solamente las patologías en sí mismas, sino en intentar soluciones. Ese sería el mayor desafío, de modo que se pueda comprender el futuro como posibilidad de un convivir más saludable entre humanos, no humanos y la naturaleza.

 

5 PARA FINALIZAR: UN HOMENAJE A HABERMAS

 

En relación a Habermas, un justo homenaje remite al reconocimiento de un pensador que ha tenido una vinculación a los problemas de su tiempo. En el libro Mundo de la vida, política y religión hay, sin dudas, indicaciones muy significativas de lo que significa estar al día con su tiempo. La primera subraya la profundidad y el significado de la teoría de la acción comunicativa. Por cierto, esta es una de las referencias más brillantes de Habermas, una contribución que simboliza todo lo que ha significado el giro lingüístico de la filosofía.

El segundo remite a la cuestión de la era axial. Al hablar de las doctrinas proféticas, Habermas elucida un punto importante de la tradición occidental. Se trata de entender cómo la política ha tenido un papel importante. Todavía, la cuestión central subraya una concepción de política que se ha separado del mundo social. El hecho de apartase del mundo social ha significado una escisión profunda entre la voluntad de las gentes y los intereses de una minoría que se ha apropiado del poder. Como dice Habermas, bajo las condiciones del capitalismo globalizado, las capacidades de la política de influir conscientemente en la integración social se están restringiendo peligrosamente. En el transcurso de la globalización parecen perfilarse cada vez con mayor nitidez los contornos de una imagen que la teoría de sistemas bosquejó acerca de la modernización social (2015, p. 205).

En otras palabras, la transformación de la política en un subsistema aislado ha transformado el poder en el arte de la dominación, es decir, en necropoder. En otras palabras, la usurpación del poder sirve a los intereses de una minoría, ajena y en completa enajenación de la sociedad como entidad social. Los dueños del poder, además de alejarse de las gentes, siembra la división, el odio y las bipolaridades.

El necropoder utiliza el derecho como instrumento de sus intereses. La disminución o la eliminación de los derechos sociales es uno de los retos fundamentales de la política como necropoder. Con este fin, el modelo de democracia acaba por someter la voluntad de las gentes a un gobierno de minorías.

Para Habermas, la política “se ha convertido regresivamente en el código de un susbsistema administrativo dirigido por el poder, hasta el punto de que la democracia solo aparece ya una engañosa fachada que el poder ejecutivo muestra a sus indefesos clientes por el lado del input” (2015, p. 2015). En el otro lado, o social como una dimensión separada de la política. Es decir, el mundo social deflacionado, bajo la coacción de los imperativos políticos y económicos.

Sin dudas, el aporte habermasiano no significa simplemente el reconocimiento de un autor con una enormidad de publicaciones y seguidores por el mundo todo. Su contribución nos enseña que el gran problema de la modernidad está en la separación de lo político y de la política como tal del mundo social. Se trata de una perspectiva deficitaria y, por tanto, un modelo que intoxica no solamente la política como tal, sino también la convivencia social. En este sentido, la necesidad de una teoría política que posibilite la hospitalidad, con lo cual la idea de Kant permitiría una convivialidad saludable.

 

REFERÊNCIAS

 

BERTEN, A. Filosofia social. A responsabilidade social do filósofo. São Paulo: Paulus, 2004.

 

FROMM, E. O coração do homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1965.

 

HABERMAS, Jürgen. Diagnósticos do tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.

 

HABERMAS, Jürgen. Mundo de la vida, política y religión. Madrid: Trotta, 2015.

 

HONNETH, A. Crítica del poder. Madrid: Antonio Machado Libros, 2008.

 

HONNETH, A. La sociedad del desprecio. Madrid: Trotta, 2011.

 

PIZZI, J. Democracias bajo efectos clikcbait. La gramática pronominal como respuesta a la virtualidad tecnocrática. In: Veritas: Revista de Filosofía y Teología. Santiago de Chile, N. 39, abril de 2018, p. 33-53.

 

 

 

 

 


A NORMALIDAD Y SUS PATOLOGÍAS

 la polifonía de la esfera pública ante el colapso pandémico[72]

 

Jovino Pizzi[73]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUCCIÓN

 

El texto de Quidel – un señor mapuche del sur de Chile – diseña cómo la pandemia ha ido extendiéndose, alterando la normalidad de un estilo de vida ya colapsado. No lo esperaba nadie, pero ha cambiado las posibilidades humanas de actuar en el mundo. Sin dudas, la esfera pública se enfrenta a una polifonía, donde la normalidad implica en naturalizar las anomías de un estilo de vida saturado por un antropocentrismo insostenible. O sea, para mucha gente, el Covid-19 es un actor que ha promocionado enfermedad, dolor y muerte. Para Habermas (2020), se trata de una “experiencia nada común” cuyas marcas profundas seguirán presentes “en la conciencia pública.”

Este “actor” no humano exige, pues, una revisión de categorías y dinámica de la esfera pública. Además de generar una pandemia, todo indica la normalidad pre- pandemia ya no sirve, pues “nada será igual como antes”. Aunque todos los interrogantes sobre su procedencia, la pandemia subraya el hecho de que la normalidad resulta ser muy distinta de regularidad. La redefinición de las bases de la “nueva” normalidad supone, entre otras cosas, cambios significativos en las personas y en las instituciones. Por eso, el proceso exige readecuar la comunidad de sujetos coautores, todos ellos directamente relacionados a las tomas de decisiones.

Entre otras cosas, el texto se centra en la cuestión de la normalidad, una referencia para entender las anomías de una pandemia con alcance mundial. La expresión supone un antes y un post-pandemia, con lo cual las formas de pensar el ser humano se han visto infringidas. El análisis indica, pues, un análisis crítico de la normalidad, pero con la intención de señalar la necesidad de garantizar una morada o un hábitat saludable para, entonces, con-vivir en la normalidad.

Para intentar aclarar esas cuestiones, la primera parte se centra en la intromisión de un “actor” inesperado, un agente que, apenas conocido, está ya determinando toda toma de decisiones (1). El punto dos se atiene a distinción y consecuencias entre las nociones de crisis y de colapso, de forma a entender la pandemia como una cuestión que exige cambios profundos, y no simplemente un arreglo superficial o momentáneo (2). El tercer punto trata de diferenciar normalidad de regularidad, indicando los límites de las interpretaciones o análisis estadísticos (3). El cuarto trata de explicar la normalidad como adaptación, una referencia a la transformación de juicios particulares en creencias con validez para todos (4). Por fin, las consideraciones finales señalan algunas exigencias relacionadas a la comunidad de sujetos participantes en las tomas de decisiones, por lo cual la normalidad no se limita confrontar estilos de vida, sino a asumir una ampliación de sujetos coautores.

 

2 ¿QUÉ SIGNIFICA AFRONTARSE Y CON-VIVIR CON UN “ACTOR” INESPERADO?

 

Por primera vez, la dinámica de la esfera pública se ha visto condicionada por un “actor” nada convencional. El virus se ha transformado en un actor de una situación inédita. Sus efectos ponen en jaque el antropocentrismo exagerado, de forma que la normalidad vivida ya no sirve para garantizar el equilibrio en la con-vivencia entre humanos, no humanos y la naturaleza. Por eso, volver a la normalidad anterior a la pandemia significa repetir los mismos equívocos de un modelo deficitario y, por eso, arriesgado.

Desde el comienzo de la pandemia, mucha gente está envuelta en el análisis del momento actual y de la dinámica de la esfera pública, las reacciones y tomas de decisiones. Una gran cantidad de periodistas, investigadores, politólogos, sanitarios y expertos de todo el mundo se preguntan lo qué podrá pasar y cómo será la vida y el con-vivir post-pandemia. La preocupación no es desproporcional frente a las consecuencias de una pandemia con alcance mundial. Más que nunca, los análisis suponen una gramática capaz de dilucidar la profundidad, consecuencias y los alcances de los fenómenos relativos a la actual pandemia. Además, se trata de buscar posibilidades de actuar en el mundo.

En este sentido, no son pocos los que vienen insistiendo en un desequilibrio del medio ambiente y sus riesgos catastróficos. Además, las profundas desigualdades sociales y económicas entre las gentes se presentan como una situación perversa. El campo político aparece también como uno de los aspectos nocivos, pues la mayoría de los políticos están mucho más centrados en sus intereses particulares o partidarios, olvidándose de las cuestiones sociales, económicas y ecológicas. Al mismo tiempo, hay quienes manifiestan un menosprecio ante lo que está ocurriendo, como si eso se tratara de algo pasajero o eventual. Para estos, mejor volver pronto a la “normalidad” de hace unos pocos meses.

Este debate podría seguir adelante, con muchas otras formas de perspectivas, sean ellas de carácter sociológico, filosófico, económico-social, ideológico o, incluso, teológico. Por cierto, la cantidad de análisis ya supone un nivel de preocupación bastante significativo. O sea, son aportaciones que indican una situación extrema, sin entender exactamente el origen y las reales consecuencias del problema. Sin dudas la pandemia ya se ha tornado un problema global. Como dice Weiwei – en sintonía con Lincoleo –, “los desastres que hemos visto antes, incluyendo las guerras, eran de carácter regional. Esta es la primera vez que me topo con un desastre con carácter global” (2020, p. 3).

Según Habermas (2020), “hoy día, todos los ciudadanos están aprendiendo como sus gobiernos deben tomar decisiones con una nítida conciencia de los límites del saber de los virólogos que los aconsejan.” Los análisis son más que necesarios para, entonces, poder diseñar alternativas saludables hacia un futuro en condiciones razonables para con-vivir. O sea, la “nueva” normalidad supone cambios tanto en la forma de ver la vida y como en las posibilidades de actuar en el mundo.

Frente a eso, hay un primer aspecto concerniente a los análisis. La pregunta remite a ¿quiénes son los protagonistas de la “nueva” esfera pública? En este caso, la dificultad supone el reconocimiento de un actor no humano y, por tanto, un cambio en la noción del con-vivir. En efecto, el protagonismo no estaría en los humanos, sino en la naturaleza como un todo, aunque el actor generador de las anomías son los humanos como tal.

Las discusiones Todos ellos señalan aspectos razonables, sea de un punto de vista o de otro. Pero ningún de ellos se acerca a la gramática pronominal. Más específicamente, el uso de los pronombres personales en la tercera persona son considerados neutros o indefinidos (Pizzi, 2019, p. 365). En el aspecto gramatical, ellos indican cosas, objetos o animales. Estos “seres” no alcanzan un nivel o no se encuentran en la misma esfera de los humanos, aunque el universo del mundo objetivo (material y demás seres vivos) haga parte del mismo hábitat de los humanos. Entonces, por sus características y calidades, utilizase siempre el pronombre él (o ellos en el plural) para designar los demás seres vivos, objetos o cosas, hechos o situaciones típicas a los fenómenos no humanos.

Así, desde una noción puramente gramatical, parece improcedente considerar un elemento no humano como “actor”. Por eso, la analogía del virus como actor o agente realza su capacidad de influir en las decisiones humanas, modificando las posibilidades de comunicación. Evidentemente, no se trata de un actor que, en tesis, no tiene conciencia y autonomía, ni tampoco se puede exigirle reciprocidad. Por eso, aunque la noción de actor no indica un sujeto racional y, por eso, el reconocimiento de un “elemento singular” como el Covid-19 sigue en la tercera persona.

Mientras tanto, ese él no es neutral, porque su presencia ha pasado a ser determinante. Además, se trata de un alguien conocido, por lo cual no puede permanecer ajeno a los humanos, como indiferente y, por tanto, que no tiene nada que ver con las vidas y las decisiones humanas. Entonces, no hay otra alternativa sino reconocerlo como un “sujeto” tan activo a punto de cambiar radicalmente la situación de la sociedad entera.

Además de la noción gramatical, hay un segundo aspecto significativo: los virus han estado siempre presentes en la naturaleza, y ni todos ellos se han transformado en un problema nefasto. Como se ha dicho al principio del texto, sería la primera vez que la humanidad se ha visto tan desbordada como ahora. En este sentido, Mari Douglas habla de la triquina (Trichinella spirallis), que afecta el ser humano y otros animales, pero que no se “llegó a observar hasta 1828, y hasta 1960 se la consideró inofensiva para el hombre” (1991, p. 28). Sin embargo, algunas tradiciones culturales incluían, en su culinaria, cuidados en la alimentación de carne de cerdos u otros animales. Hoy día, la toxicidad de determinados tipos de carne, por ejemplo, ha sido científicamente comprobada, mientras que otros siguen apenas como herencia cultural.[74]

La cuestión es que los virus asumen la personalidad de actores. Es decir, se trata de una analogía ante su poder de influenciar las decisiones humanas. En su carácter, ellos son considerados desde la supuesta neutralidad de las terceras personas. El Covid-19 se ha transformado en agente decisivo, pues interfiere en la vida individual y social de todos.

Por así decirlo, el Covid-19 se presenta como un “alguien” que actúa y afecta decisivamente en las tomas de decisiones, pues aunque su fuerza puede ser refutable, su capacidad de influencia no puede ser negada y ni rechazada. La llegada del “actor” inesperado ha pillado de sorpresa a todos, sometiendo las decisiones políticas, económicas, familiares, entre otras, al carácter del virus, por lo cual las pretensiones de validez están directamente relacionadas su poder. Por eso, su carácter supone comprender las consecuencias desde un “saber explícito de nuestro no-saber” (Habermas, 2020). De ahí que los expertos utilizan medios para dar a entender su fuerza y, entonces, ofrecer alternativas de acción a las gentes e instituciones sociales.

Además, su presencia podrá permanecer y, entonces, los humanos tendrán que convivir con él. En efecto, no se trata solo de aprender a convivir con él, sino también replantear las formas o estilos de convivencia entre los humanos mismos y, principalmente, con el hábitat, o sea, la naturaleza con todos los elementos de un humos que garantiza la sostenibilidad de la vida humana y en general. De ahí que la remodelación hacina una “nueva” convivencia tendrá que hacer frente al “cambio climático y los mercados financieros descontrolados” (Habermas, 2015, p. 258).[75]

Este es el principal motivo de preocupación, pues las transformaciones no se vinculan solamente a la necesidad de convivir con este “sujeto” inesperado – porque la ciencia nos brindará con vacunas –, sino porque se hacen necesarias transformaciones sociales y políticas que se acercan y cambiaran la regularidad de nuestra normalidad. La insistencia en volver a la “misma” normalidad anterior a la pandemia significa, pues, la manutención de un estilo de vida nefasto. Este modelo de maximización de la eficiencia técnico-económica supone niveles de contaminación insostenibles, con riesgos imprevisibles.

De ahí, entonces, algunos interrogantes: ¿Qué cambios puede introducir esa pandemia? ¿Qué tipo de mudanzas? ¿Desea la gente desea realmente cambiar? Y, si es así, habría que preguntar quienes están realmente dispuestos a cambiar y quienes son los que resisten. Del punto de vista filosófico, hay otra cuestión que ultrapasa los límites antropocéntricos: ¿No se trata de una estupidez transformar un virus en sujeto? ¿A dónde nos lleva esta personalización?

En una comunidad de comunicación, los sujetos participan y las decisiones se basan en argumentos. La llegada del Covid-19 significa que sus participantes deben seguir las condiciones de un saber ajeno al “nuestro no-saber”. Aunque los expertos sean escuchados, las decisiones se someten a un tercer actor, que no puede ser excluido. En el caso de la filosofía, la añoranza de una normalidad anómica conduce a un procedimentalismo cercano a una metafísica muy lejana de los presupuestos de la ética discursiva. Al mismo tiempo, algunos buscan refugio en un formalismo que no coaduna con las situaciones reales de la con-vivencia, considerando el Lebenswelt como lugar de una racionalidad impura y, por este motivo, sin plausibilidad consistente. Sin embargo, esa nueva situación ha generado cambios en las tomas de decisiones, lo que significa el colapso de los patrones admitidos hastaentonces. A continuación, deseamos profundizar las nociones de crisis y de colapso, una doble alternativa de análisis ante las nuevas exigencias de nuestro tiempo.

 

3 AL FINAL, ¿DE QUÉ SE TRATA? ¿DE UNA CRISIS O DE UN COLAPSO?

 

La pandemia es un hecho global y, por eso, transforma la dinámica de la con- vivencia. En otros momentos también hubo propagaciones intercontinentales. Lo más antiguo de nuestra civilización remite a lo que ha ocurrido en las Américas, con la llegada de los europeos, sembrando enfermedades y destruyendo la vida de millones de personas. Uno podría mencionar también otros casos, pero la cuestión central del texto no es esta. Ahora todo sucede mucho más rápido, no solo por su letalidad, sino principalmente porque representa un gran peligro a un sistema global y a la cultura acostumbrada a una normalidad supuesta y aceptada como normalidad, entendida como habitual y un “punto de referencia” considerado saludable y en condiciones de seguir viviendo y actuando.

Al ser así, la cuestión remite a los efectos del virus. O sea, si la pandemia ha generado una crisis o se trata de un colapso. Tanto las crisis como una situación de colapso suponen cambios, que ni siempre significan transformaciones sociales. Una crisis puede ser motor de cambio, pues afecta lo que ha sido considerado como normal. Todavía, la crisis ni siempre da impulso a cambios. Por eso, ante una pandemia con proporciones mundiales, la distinción entre crisis y colapso permite entender el alcance de sus consecuencias y, además, la necesidad de revisar un tipo de normalidad considerada como prototipo irreversible. El punto central se relaciona a ese “sujeto” inesperado exige tomas de decisiones, porque ha generado fracturas en diversas esferas de la con-vivencia. Nuestra tesis sostiene que las situaciones de crisis ni siempre significan daños irreversibles.

En relación a una situación de crisis,[76]es evidente que ella indica un desequilibrio o un período eventual relacionado a un estado o manifestación lesiva, que puede agravarse, o quizá no. Su eclosión puede ser súbita o exhibirse en intervalos intermitentes, conforme el contexto y/o el tiempo histórico. El hecho de intercalar fases agudas y más suaves genera incertidumbres. En general, se considera una etapa previa, un momento de tribulación y con una carga más intensa y, por fin, una especie de epílogo. En esta última etapa final, el desenlace no significa la superación parcial completa del estado mórbido (o lesivo), sino el cese completo de todas las posibilidades.

En términos de coyunturales, la crisis aparece en situaciones de disparidades entre, por ejemplo, producción y consumo, con alteraciones de precios y/o moneda, generando desempleo, quiebras y desorganización de los sectores de la economía. Otra área bastante susceptible de crisis está relacionada con el sistema financiero, con serios riesgos no solo a la economía sino también a otros sectores de la sociedad. La medicina se vuelve al campo psíquico-somático, donde las manifestaciones pueden ser accidentales o permanentes, sean del tipo biológico, físico, psicológico, afectivo entre más.

La crisis no está vinculada, necesariamente, a una enfermedad o a una anomía personal o social. En determinados casos, ella puede estar relacionada a nuevas situaciones o experiencias, como, por ejemplo, a mudanzas significativas en la vida (cambio de país, cultura, lazos familiares, cuestiones de maternidad o muerte, etc.). En este sentido, la crisis se refiere a una tensión resultado situaciones nuevas las cuales requieren enfrentarse a patrones muy distintos y, en muchos casos, nunca experimentados. Las alteraciones son decurrentes de expectativas muy fuertes, con una carga intensa frente a la posibilidad de éxitos venideros, sin caracterizarse propiamente en una patología. De ahí, entonces, la designación de crisis como una situación o estado de superación. Mientras tanto, el colapso no resulta ser tan esperanzador, como se detallará a continuación.

El vocablo colapso ha sido utilizado por guionistas de películas, autores de libros y pensadores para exponer el fin de una situación o de una era. Para el disidente chino Ai Weiwei, por ejemplo, vaticina también que “el capitalismo ha llegado a su fin”.

Para él, no hay cómo sostenerlo ni moral o éticamente, porque “hace daño a las naciones pequeñas, se apodera de los recursos del planeta, saquea sin freno” (2020, p. 3). En sus consideraciones, Weiwei sigue utilizando, todavía, la noción de crisis, lo que supone que – según sus palabras – que “los desastres por venir ocurrirán más de una vez”.

Su examen parece confirmar la idea cíclica de crisis, es decir, turnos sucesivos. La noción de colapso no sigue esta secuencialidad. De origen latina, el substantivo collapsus (a,um,) – en francés collapse – es sinónimo de destrucción, derrocada o ruina de una institución, sistema, estructura, etc. Literalmente, significa la implosión ante un problema agudo, pues acaece de cualquier posibilidad de reacción. Esa pérdida de sus capacidades llega, entonces, a colapsar todas las posibilidades de reaccionar. Las consecuencias son, por tanto, no tan esperanzadoras o promisoras.

El verbo colapsar significa tener una quiebra súbita en su fuerza vital, vigor o en su estado general y de autocontrol, motivado por causas físicas o psicogénicas, a punto de conducir a una postración profunda o provocar su fallecimiento. O sea, significa entrar en proceso de desintegración, aniquilarse, sin posibilidad de recuperar la energía que le garantizaba seguir adelante. Así, el turno posterior implica en un cambio profundo.

De ahí que la noción de colapso parece ser más radical que una crisis, aunque la crisis – como ya hemos subrayado – puede llevar a la insuficiencia extrema de las energías y provocar una desintegración fatal. Por eso, ante la actual pandemia, cuestión de volver a la normalidad también se enfrenta al problema de una crisis o, entonces, ser una señal de colapso. No pocas veces, lo implícito al deseo de volver a la normalidad significa retornar al estilo de vida, niveles de producción y consumo y de contaminación anterior a la pandemia. De este modo, no tendrán sentido reiterados mensajes – iguales a la que reitera el señor mapuche – sobre transgresiones a “los diferentes espacios como los cerros, las aguas, los ríos, los lagos, mares, que se han destruido estos espacios, se han ensuciado, con ello, se han sacrificado a quienes vivían en esos espacios y quienes los sostenían” (Lincoleo, 2020).

En este sentido, hacerse de sordos tampoco parece ser una actitud razonable. Tampoco es saludable una docta ignorantia como excusa para quedarse plantado. Estos serían discursos engañosos y estériles, por tanto, sin ninguna responsabilidad sobre sufrimientos o molestias actuales o futuras. Aunque sabedores de los peligros, la insistencia en volver a la normalidad puede descalificar las propuestas de cambios, pues significarían riesgos a un modelo y un estilo de vida ya reconocidos como generadores de patologías con alcances sociales y ecológicos sin precedentes.

Estas consideraciones remiten a un análisis de la noción de normalidad frente al concepto de regularidad, aspecto que será tratado en el punto a continuación.

 

4 LA NORMALIDAD COMO REGULARIDAD: LOS PELIGROS DE LAS ESTADÍSTICAS

 

La pandemia ha cambiado profundamente la noción de normalidad, por lo menos durante un determinado período. Al mismo tiempo, son muchas voces que desean volver a la normalidad. En este sentido, hay dos cuestiones importantes. En primer lugar, no hay como sostener estados de alarma y confinamientos in aetérnum o, por lo que sea, un tiempo demasiado largo que representaría ser un colapso sin precedentes. En segundo lugar, salir de tal situación implica en dos alternativas: volver a la normalidad anterior o, entonces, buscar nuevos patrones. En otras palabras, la elección está en retroceder a los mismos niveles de consumo, contaminación, despilfarro y, de este modo, mantener los mismos patrones de una estandarización peligrosa. Ese tipo de añoranza indica la afición en un modelo y, por tanto, sin cualquier inclinación a cambios. Otra alternativa sería empezar transformaciones hacia una normalidad con diferentes nociones de convivencia social y, además, suponiendo otro dimensionamiento frente a la dinámica de la esfera pública y de convivencia social.

Para intentar discutir esa cuestión, este apartado trata de dilucidar el término normalidad, confrontándolo con la noción de regularidad. Se tratará de su etimología para, entonces, entender los alcances y debilidades de la relación entre normalidad y regularidad. Esa ambivalencia nos lleva a un tercer aspecto, que trata del análisis estadística de los datos e informaciones.

La primera consideración se atiene al significado y los usos del concepto de normalidad. Del latin normális (e), el vocablo normal significa hecho u análisis obtenida de una cosa que, por su naturaleza, forma o magnitud se ajusta a determinadas formas establecidas de antemano. Lo normal indica que sigue una norma o regla, que puede ser utilizada y aceptable para todos los casos, sea por su carácter o características, definiendo un patrón general. Eso se aplica tanto para las mediciones del área de la física o matemáticas, como también para los campos de la economía, del desarrollo – entre otros – e, incluso, para el comportamiento humano y social. En este último caso, se dice de una calidad o estado aceptado como norma para evaluar y calificar actitudes, situaciones, procedimientos, mediciones etc.

La normalidad significa, entonces, el parámetro, es decir, el factor o la norma necesaria para el análisis o la evaluación de una determinada situación. De este modo, es posible darle un valor cuantitativo, con lo cual se puede apreciar los hechos observados y estudiarlos. Al realizar el análisis, puede también inferir las alteraciones, variaciones y características que no se encajan a los patrones de normalidad supuestos y definidos como regla general. Cuando, por ejemplo, hay modificaciones que no se ajustan a la normalidad, ellas pasan a ser consideradas como anormales y, en el caso de la salud, de una posible enfermedad o un trastorno. Según Honneth, solo se puede hablar de anormalidad o de enfermedad si “existen ciertas suposiciones sobre cómo tendría que ser constituidas las condiciones” de normalidad (2011, p 114). La utilización de normalidad por parte de la medicina se acerca a la imagen que remite a situación biológica, física o psíquica ligadas a la anatomía (estructura) de los cuerpos y su fisiología (funcionamiento). En este sentido, la certificación de “manifestaciones anormales” encuentra, en la medicina, “una idea clínica de salud que, para simplificar las cosas, se refiere a menudo a la mera capacidad de funcionamiento del cuerpo” (Honneth 2011, p. 114). Desde la medicina, Honneth busca los conceptos de normal y sano para, entonces, desarrollar su planteamiento de patología social.[77]Sin entrar en detalles, nos interesa esa referencia explícita a la suposición de una vida normal, es decir, que hay un cartabón de normalidad habitual, un “punto de referencia” considerado mayoritario o universal.

De este modo, la normalidad sostiene una “validez objetiva”, aunque a veces parece ser cuestión de gustos ni materia de opiniones. Para un médico, por ejemplo, la objetividad supone “que vivir es mejor que morir, o que la vida es mejor que la muerte” (Fromm, 1994, p. 21). Por eso, sus prescripciones suponen una determinación hacia lo mejor, o sea, algo aconsejable o, entonces, cuando se trata de una situación anormal, objetividad se refiere a un recetario obligatorio para asegurar un equilibrio deseado. Así, si normalidad significa una situación de equilibrio, entonces se podría considerarlo como una idea reguladora entre un extremo y otro.

El segundo paso nos acerca a la noción de regularidad. No pocas veces, la normalidad es entendida como sinónimo de regularidad. E ahí está el equívoco, aunque a veces los dos vocablos sean utilizados como sinónimos uno del otro. Sin embargo, la distinción categorial posibilita aclarar los planteamientos en torno a lo que se dice sobre la “vuelta a la normalidad”, una preocupación persistente en tiempos de crisis o de colapso. Entonces, volver a la normalidad significaría regresar a los mismos patrones de desarrollo, contaminación, despilfarro y convivencia previos a la pandemia. En el nivel de medios de comunicación, programas con los mismos juegos de simulaciones, de idioteces, vanidades e infantilidades, con altos niveles de violencia y, por tanto, completamente des-educadores.[78]En la política, entonces, la preocupación con los aspectos indómitos de grupos o partidos, sin compromisos con las aspiraciones sociales. Además, una economía volcada solamente a los réditos de una minoría de especuladores. De este modo, la normalidad significa que nada cambiaria – personal o institucionalmente – pues las características fijadas como punto de referencia persistirían como paradigma de un estilo de vida ya experimentado y, por tanto, consolidado en todas sus dimensiones.

Como se ha destacado anteriormente, la teoría de la adaptación a lo normal supone creencias y juicios supuestamente compartido por todos. Ese “todos” representan aquellos que se entienden desde un determinado paradigma. En este sentido, la adaptación – o su opuesto, la enajenación – se enfrenta a estilos de vida considerado como normal, aunque haya conocimiento de la diversidad.

En esta altercación, hay otro concepto que compite con la normalidad. Se trata de la idea de regularidad. Del latín reguláris,eel vocablo tiene como sinónimos diversas términos: uniformidad, estabilidad, precisión, periodicidad, puntualidad, homogeneidad, exactitud, constancia y continuidad. Las expresiones más típicas aparecen relacionadas a fenómenos o hechos que se repiten con intervalos iguales o, entonces, figuras o formas con lados y ángulos iguales entre sí. Además, la regularidad está relacionada a los que siguen el paradigma del grupo, es decir, los que se ajustan en su flexión o derivaciones, a las formas fijadas como modelo de un paradigma.

Lo interesante de todas esas expresiones está en el hecho que siempre hay un punto de referencia fijo, como si fuera una receta canónica para la interpretación de todas las situaciones o hechos. Es decir, la regularidad significa un patrón de análisis con intervalos y una precisión y uniformidad ya definidas. La realidad se resume en datos, gráficos, números, es decir, las fórmulas interpretan la realidad. Las personas y tampoco la realidad se sintetizan en números. Por eso, la regularidad supone constancia y continuidad, con lo cual las proporcionalidades permanentes se acercan al mecanicismo en torno a valores criterios para las decisiones.

Ese sería el problema de la regularidad, pues “el concepto estadístico de normalidad es manifiestamente inapropiado” (Habermas, 1989, p. 194). En primer lugar porque los datos están determinados por tablas algorítmicas. Aunque sean datos oficiales, no hay garantía que ellos sean verdaderos. Las informaciones pueden ser escasas o malas y, entonces, promocionar un análisis sin fundamento. Por ejemplo, la infografía – tan detallada por muchos periódicos – puede tener como base datos falsos, y eso ya sería motivo de una desconfianza en sus consideraciones.

En segundo lugar, un análisis desde tablas algorítmicas no permite otra alternativa sino las formas y las características de una serie de indicadores fijados previamente, traducidas en datos, gráficos y representaciones gráficas. En este sentido, hay datos que son considerados como prioritarios, mientras que otros no pueden ser interpretados, porque no entran en el rol de los indicadores definidos como esenciales. Como se ha señalado, no estamos nunca seguros de que el análisis no sea fruto de datos falsos, generando, por tanto, una permanente desconfianza a este tipo de descripción. El problema es que la regularidad apenas admite como normales aquellos datos e indicadores resultantes de las operaciones previamente definidas como ideales. Lo que huye a los patrones o al punto de referencia único pasa a ser considerado como irregular o anormal.

En términos epistemológicos, la normalidad corresponde a lo cuantitativo. De ahí que los análisis siguen patrones estadísticos, tratando de ver costes, gastos, inversiones etc. Para Fromm, las estadísticas “no son precisamente halagüeñas” (1994, p. 17). De hecho, ellas “reflejan simplemente números” que son fruto de métodos volcados a buscar “la mayor precisión de las observaciones” (Fromm, 1994, p. 18). El análisis se atiene, pues, a estudiar si los indicadores tienen una constancia, uniformidad o estabilidad. En tesis, la mejora indica una estabilidad en la regularidad, y sus resultados son positivos, mientras que el empeoramiento de los indicadores señala que la secuencia presenta irregularidades y, por eso, debe ser averiguada y, entonces, encontrarle una interpretación desde el punto de referencia de la serie de secuencias previas.

La discusión sobre las controversias entre normalidad y regularidad podría seguir con más aspectos. Ahora nos interesa otro de los grandes problemas de los análisis en torno a la normalidad y lo patológico (o anormal). Por eso, el tercer punto se vuelve a un tipo de análisis relacionado a la cientificidad de métodos puramente estadísticos. A mucha gente le gustan los números, pues las escalas de normalidad y regularidad confortan y garantizan una especie de seguridad. O, por lo menos, se tiene la impresión de que los datos no mienten y, entonces, alardea una supuesta “certeza total”. Evidentemente, no se puede rechazar la eficacia de un análisis estadístico.

Para Fromm, existe “una especie de pacto de caballeros” entre los investigadores en torno a la cientificidad de las estadísticas. De hecho, hay una cuestión epistemológica, pues el patrón de racionalidad se centra en las fórmulas matemáticas, reduciendo todos los elementos a datos mensurables. La base está en una ciencia universal del orden y de las medidas que se basa en una racionalidad instrumental. Este modelo matemático se aplica a “todos los dominios: del universo físico al mundo moral, social y político” (Domingues, p. 33). Frente a eso, procede la desconfianza de Fromm, pues “como ocurre casi siempre, no sabemos qué hay detrás de los números cuando atendemos sólo a las estadísticas” (1994, p. 18). Es decir, el procedimiento meramente cuantitativo no pasa de un análisis relativista, principalmente cuando se propone interpretar el significado de los fenómenos y hechos relativos a las ciencias humanas y sociales.

En la interpretación de Habermas, el concepto mecanicista de las ciencias, con base en las matemáticas, se atiene al nexo entre los datos y las representaciones de los estados y sucesos descriptibles físicamente. Para él, esa explicación “conserva una cara de Jano” (2015, p. 37). De un lado, la conciencia de un sujeto que percibe, imagina y piensa y, de otro, las representaciones de los objetos o fenómenos. Dentro de la lógica matemática, el sujeto no hace nada más que una descripción objetivada científicamente. O sea, “los hechos históricos, sociales y culturales” no reciben otro tratamiento sino un análisis “sistemático y científico” (Habermas, 2015, p. 41). En otras palabras, “si concebimos el mundo objetivo como totalidad de los estados y sucesos medibles físicamente, realizamos una abstracción objetivamente de modo que quedan eliminadas todas las cualidades mundovitales.” En consecuencia, continua Habermas, los demás horizontes de las experiencias son interpretados “como instrumento o impedimento, como veneno o alimento, como morada o entorno inhóspito” (2015, p. 46).

Esa unilateralidad de la objetivación científica – y consecuencia menosprecio de los demás ámbitos – provoca un “desencantamiento de la naturaleza” y, además, produce una disociación de los “imperativos económicos” de las exigencias normativas. El dominio cada vez mayor de esos imperativos “sobre las esferas privadas de la vida” intimida los individuos a buscaren refugio “en la burbuja del egoísmo racional”, aislándose aún más de su entorno (Habermas, 2015, p. 206). De este modo, sigue Habermas, las ‘redes de comunicación tanto pública como privadas del mundo de la vida y de la sociedad civil han sido confinadas a los márgenes de una sociedad diferenciada funcionalmente y condensada sistemáticamente” (2015, p. 206).

De este modo, “mientras enseñen en las universidades y los periódicos hablen de ellos, todo estará en orden” (Fromm, 1994, p. 79). Cada vez más, son los programadores los encargados para “encontrar el método óptimo – el algoritmo perfecto – para coordinar los movimientos mentales en relación a cualquier tarea del conocimiento” (Carr, 2011, p. 184). Sin dudas, ellos conducían cualquier la toma de decisiones. De este modo, la normalidad se acercaba a la regularidad, pero sus consecuencias son anómalas, lo que significa un riesgo enorme de generar patologías sociales. Lo relevante es que las ciencias en general, así como las personas y las instituciones están adaptadas a ese modelo. La normalidad como adaptación parece ser otro problema, aspecto de la discusión a seguir.

 

5 LA NORMALIDAD COMO ADAPTACIÓN: LA CREENCIA EN PATRONES GENERALES

 

Las nociones de normalidad y de anormalidad se enfrentan a un problema de interpretación. Para intentar aclarar la cuestión, el libro La patología de la normalidad, Erich Fromm relaciona normalidad con adaptación. Fromm afirma que todos pensamos más o menos lo mismo “cuando se trata de qué es normal y qué no es normal” (1994, p. 20). Del punto de vista de la teoría de la adaptación, la noción de normalidad da por entendido que la sociedad como tal es normal, las desviaciones son casos con perturbaciones y esas anormalidades huyen de los patrones tradicionales y, por eso, son casos para ser acomodados con el fin de que no perturbe el orden social. Aunque no adaptado, uno no puede perturbar “el tejido social”.

Según Fromm, desde una teoría de la adaptación, hay elementos típicos de la normalidad que son generalmente compartidos por todos. Por eso, “creemos que nuestra familia, nuestra nación o nuestra raza son normales, mientras que la forma de vida de los demás no es normal” (1994, p. 20). En efecto, son nociones que “compartimos más o menos” todos, aunque a través del conocimiento se sepa que haya otras formas muy distintas de las nuestras. En general, persiste la comprensión de que lo uno cree es universal, o sea, son rasgos comunes “a toda la humanidad.” Como ejemplo, Fromm expone una anécdota:

 

Va un hombre al médico y empieza a hablarle de sus síntomas. Bueno, lo que me pasa es que todas las mañanas, después de ducharme y vomitar…” El médico lo interrumpe: Pero, ¿qué me dice?, ¿Qué vomita usted todas las mañanas? A lo que el paciente le contesta: ¡Claro!, ¿no lo hacen todos? (1994, p. 20).

 

En la interpretación de Fromm, hay rasgos que son “propios únicamente de nuestra familia, de nuestro país o de Occidente” (1994, p. 20). En este sentido, queda claro que la experiencia particular pasa a ser la referencia para ese “todos”. La contestación ¿no lo hacen todos? está vinculada a una comprensión particular con la pretensión de universalidad. De ahí que la noción de normalidad se caracteriza por su provincialismo, algo ligado no apenas a la educación o a la forma de ser, sino también a una creencia filosófica que sirve de punto de referencia para todas las situaciones o casos.

Para Fromm, son “juicios” que se transforman en creencias, y los justificamos como si fueran “objetivamente válidos” (1994, p. 21). La objetividad significa, pues, la naturalización de las creencias como si fuera lo normal a todos. En este caso, es difícil romper con esta creencia, pues el punto de inflexión ajusta lo normal a los juicios de una regularidad según el paradigma del grupo a que uno pertenece. Los “mecanismos de filtración” van reforzando esa objetividad, al tiempo que se encargan de apartar las ambigüedades o anomalías que turban o distorsionan “los supuestos establecidos” (Douglas, 1991, p. 36). Así, cualquier anormalidad representa ser una amenaza, es decir, algo incómodo a la creencia de una validez universal, pero que, de hecho, no pasan de presupuestos concernientes a un grupo, cultura o de un sistema particular. A su tiempo, Honneth también corrobora con la idea de naturalización de determinadas creencias presumiblemente universales. Al referirse al contexto europeo del siglo XVIII, su percepción apunta hacia patrones con rango de universalización. Para él, la construcción de la voluntad política ha seguido un proceso con origen en la voluntad individual de una clase de ciudadanos. Por eso,

 

La naturalidad con lo que solo los varones de la clase económicamente independiente participaban en los procesos mediadores de la construcción de la voluntad política no sólo llevaba a que los que surgía como común de las convicciones individuales siempre se considerara como lo correcto universalmente (Honneth, 2014, p. 343).

 

De este modo, “una sociedad estructurada puede existir sólo en tanto sus miembros adopten una actitud que garantice su buen funcionamiento”. En otras palabras, la tarea más importante de las instituciones sociales, culturales, educativas e, incluso, religiosas está en “formar un tipo de personalidad que quiera hacer lo que debe hacer, que no sólo esté dispuesto, sino que ansíe cumplir el papel que tal sociedad le pide para poder funcionar bien” (Fromm, 1994, p. 22). Los que se conforman al estilo de vida son considerados “normales”, mientras los que no se adaptan son simplemente tratados como anomalías, es decir, como patología. En una perspectiva étnico-social, este menosprecio se transforma en “rechazo, aversión, temor y desprecio” no solamente al pobre, pues significa también “una visión deformada y deformante” que, entre otras cosas, insiste en discurso de exasperación volcado a “naturalizar los discursos de odio” (Cortina, 2017, p. 52).

La indisposición o la simple crítica a los patrones del sistema social y/o cultural pasa a ser tratada como una anomalía, o sea, una patología. A veces, la fuerza de los imperativos son tan intensos que “algunas personas lleguen a sentirse físicamente enfermas” (Douglas, 1991, p. 37). De ahí que la no conformidad supone un atentado a la harmonía del sistema. A veces traducido como inmovilismo, los mecanismos sostienen un conservadurismo desmedido.

Sin embargo, los cambios siempre ocurren, aunque los parones tradicionales “no pueden modificarse tan fácilmente” (Fromm, 1994, p. 22). En este sentido, las transformaciones suponen cambios en la sociedad y en las personas, porque se trata de modificar “personalidades”. Fromm, al utilizar el plural, subraya que transformaciones no están solamente relacionadas a las personas individuales, sino también en las instituciones sociales. No pocas veces, los cambios en el carácter institucional pasan a ser entendidos como una amenaza a determinadas personas, grupos o asociaciones grupales o étnicas. Del mismo modo, las propuestas para cambiar el carácter de las personas, grupos o asociaciones pueden ser interpretados como una investida volcada a dañar y quebrantar el sistema como tal.

Lo expuesto hasta el momento subraya que la anormalidad se vinculada a la idea de desviación, al no habitual y anómalo. La irregularidad significa una clara amenaza a comportamientos, manifestaciones o vivencias concernientes a los cánones consagrados como tal. Estar fuera de lo habitual genera, por tanto, inquietudes o un frenesí ante lo que podría revocar los patrones considerados como exequibles para el desarrollo económico, social, político, individual, etc. Así, la noción de anormal indica un fenómeno, hecho o proposición deficiente, es decir, a una patología, y por lo tanto fuera de la normalidad.

Sin embargo, Fromm se refiere a la rebeldía como medio frente a patrones que son solamente creencias. O sea, la necesidad de nuevas adaptaciones – para utilizar la expresión de Fromm – va modificando la sociedad e introduciendo cambios a veces muy profundos. No son pocos los cambios que se han producido en la sociedad Occidental. Entre ellos, está el paso de la sociedad agraria para el modelo industrial. También se habla de transformaciones en el capitalismo, de forma que hoy día se habla de un capitalismo industrial, transformado en capitalismo tardío y, ahora, en un capitalismo financiero (ligado a los intereses privados capitalistas de ganancia).[79]Además, otros cambios están relacionados a costumbres, modelos de familia, sexualidad, género, sociales, entre otros, de modo que la noción normalidad se enfrenta a una heterogeneidad de situaciones que ya sale de un patrón uniforme.

 

6 VOLVER A LA MISMA NORMALIDAD: ALGUNAS CONSIDERACIONES FINALES

 

Ante las consideraciones que hemos realizado, la cuestión remite a la vuelta a la normalidad. Las interrogaciones exigen volver a una normalidad previa y ya conocida, porque a veces una persona o una sociedad no desean cambiar. Entonces, la irritación o el espanto ante la pregunta: ¿Otra vez a lo mismo? Es decir, ¿Nada de cambios? ¿Qué significa sostener una esfera pública cuya dinámica supone anormalidades patológicas?

Lo mismo significa volver exactamente a lo anterior. Es decir, con los mismos niveles de contaminación, de producción o consumo, de despilfarro, de pobreza etc. Para Fromm, hasta “las modas cambian” (1994, p. 21). Honneth a su vez afirma que los modelos europeos de democracia han sido fruto de una “serie de transformaciones sociales, políticas y jurídicas” (2014, p. 342). Es decir, han sido cambios que han modificado la “esfera familiar y la autoridad feudal” y, además, han proporcionado la admisión de varones de estamentos considerados marginales e, principalmente, las mujeres.

Entonces, las perspectivas se dividen entre la añoranza de un modelo ya conocido y la necesidad de cambios. Si buscamos reafirmar un procedimentalismo abstracto, la esfera pública no pasa de una noción impura. Todavía, si rescatamos la noción de Lebenswelt como horizonte de sentido, con lo cual es posible admitir que no humanos se transformen en actores fundamentales para el con-vivir. Son por tanto dos alternativas completamente distintas. De ahí, entonces, ¿Quién realmente desea una nueva normalidad? ¿Cuáles son sus presupuestos? ¿Cómo se quedan los que no quieren cambiar?

Para hacer frente a estas interrogaciones, volvemos a la gramática pronominal, pues una “nueva” normalidad no admite repetir lo mismo, lo que podría simplemente ser fatal. Los presupuestos de una “nueva” normalidad exigen, pues, una consideración a todos los sujetos participantes, para considerarlos, por tanto, como coautores en las tomas de decisión.[80]No se trata de una cuestión simplemente técnica, porque la validez de un enunciado o de cualquier acto de habla se relaciona siempre a un pronombre personal, participante y participativo. Además de dar a conocer las justificaciones a las manifestaciones presentadas, él puede también exigir, de los demás, justificativas razonables. El reconocimiento de ese sujeto coautor está ligado a alguien, o sea, un sujeto con argumentos que no pueden ser desconsiderados en las tomas de decisiones.

En ese sentido, el “entrelazamiento de horizontes” supone “sujetos” inesperados – como es el caso del Covid-19 –, pues la comprensión pone frente a frente la perspectiva del “ello” (singular) con la “nuestra” y la “de los ellos” (plural) (Habermas, 1991, p. 174). Por más que suene raro, se trata de una interacción que exige una equidad entre los tres pronombres personales, donde el virus presenta argumentos indiscutibles. Por eso, las cuatro dimensiones diseñadas por Jean Marc Ferry sostienen una reconfiguración del con-vivir, de forma a incluir todos los participantes. Por eso, el “centro gravitacional está siempre en el nosotros” (Ferry, 1991, p. 190), sin eximir la multiplicidad de otros pronombres personales.

Bueno, ese nosotros – también señalado por Honneth, en su obra El derecho de la libertad – exige una reconfiguración de la comunidad de sujetos participantes. El eje de intersecciones pasaría a ampliarse y el punto de equilibrio exige, entonces, el reconocimiento de “sujetos” no humanos, sin por tanto separar los mundos de vida uno del otro. En general, los productos de la naturaleza – alimentos, por ejemplo – sólo los recordamos cuando están en la mesa. Pero el cambio frente a la “separación” con el mundo y a la naturaleza reclama una consideración moral a un complejo ecosistema, con una infinidad de seres vivos e inanimados, por el simple hecho que son esenciales a los humanos y al ecosistema como un todo.

En este sentido, el modelo de la medicina también nos ayuda a entender esa vinculación. Los análisis clínicos buscan identificar, en los humanos, elementos de la naturaleza que están – o no – interfiriendo en el equilibrio normal de nuestra salud. La relación permite comprender como determinados elementos son fundamentales para la salud humana: el calcio, magnesio, litio, hierro, sal y tantos otros minerales. La fortaleza de una vida saludable de los humanos y demás animales depende del equilibrio entre diferentes elementos, por lo cual habría que pensar una forma de convivencia que evite la destrucción del equilibrio de una normalidad existente en la biosfera – y sus distintos niveles – vital para todos. Entonces, el nosotros son quienes directa o indirectamente participan de una comunidad de vida y de con-vivencia.

Por simple que sean, esas consideraciones suponen la vuelta a una nueva normalidad, pero superando el modelo que ha sido reconocido como devastador.

Entonces, repensar principios que se creía inamovibles no es una tarea de unos pocos, pues el futuro de nuestras vidas y del planeta está directamente vinculado a recrear estilos de vida saludables y, por lo tanto, imprescindibles a una perspectiva futura más esperanzadora. Así, una de las tareas inmediatas supone la redefinición del rol de las profesiones. No serían los políticos, economistas o expertos los grandes actores de las decisiones, pues otros y nuevos sujetos aparecen ahora como actores esenciales en las tomas de decisión.

Está claro que los virólogos y expertos en el área de la salud tienen un lugar especial, así como los biólogos, geólogos, oceanógrafos, meteorólogos, es decir, una cantidad enorme de expertos en todas las áreas. En una democracia, no interesa garantizar únicamente Ministerios para gestionar diferentes áreas de la vida social, pues la gestión pública exige una ampliación de la comunidad de sujetos coautores – humanos y no humanos – para, entonces, garantizar “los derechos de las gentes” sin más (Cf. Pizzi; Amaral, 2020). Por eso, el papel de investigadores académicos – o de otras instituciones o movimientos de ecologistas – no se limita a promocionar eventos o publicar artículos como su fueran acólitos de un saber ajeno a los horizontes políticos, económicos y sociales.

Al mismo tiempo, no se trata de rechazar las concepciones de libertad como tal, pues es fundamental mantener sus principios y consolidarlos en su perspectiva social, política y ecológica. En este sentido, no hay como sostener una concepción del mundo objetivo como simple “totalidad de los estados y sucesos medibles físicamente”, porque supone una abstracción, de forma a transformar la morada o el hábitat en un “entorno inhóspito.” En otras palabras, esa interpretación matemática y cuantitativa avala una noción puramente instrumental, transformándose en “veneno o alimento” que contamina las experiencias mundovitales (Habermas, 2015, p. 46). Por eso, la normalidad de la con-vivencia mundovital exige rendirse a las exigencias determinadas por actor ajenos a los humanos, porque ellos no son neutrales ni tampoco anónimos a la vida humana y al ecosistema como tal. En efecto, todos los sujetos son directamente participantes en las tomas de decisiones. Las consideraciones morales no se refieren solamente al reconocimiento de “sujetos de derechos”, sino también en la posibilidad de garantizar una morada o un hábitat saludable para, entonces, con-vivir en la normalidad.

 

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WEIWEI, Ai. El capitalismo ha llegado a su fin. Ideas. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-04-05/ai-weiwei-o-capitalismo-chegou-ao-seu-fim.html. Acesso em: 21 abril de 2020.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


O OBSERVATÓRIO GLOBAL DE PATOLOGIAS SOCIAIS

teoria e prática para a análise de nosso tempo[81]

 

Maximiliano Sérgio Cenci[82]

Universidade Federal de Pelotas

cencims@ufpel.edu.br

 

Jovino Pizzi[83]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 OS PRIMEIROS RESULTADOS

 

A integração do Observatório consolidou a transversalidade, mas manteve o foco na teoria crítica da sociedade. A “crítica radical”, como salienta Marcuse em suas conversas com outros autores (2018), um tema dos mais relevantes para seguidores da Escola de Frankfurt. Por transversalidade entende-se essa cooperação entre distintos grupos de pesquisa, com estudantes de diferentes áreas.

Assim, o Observatório Global de Patologias Sociais representa, sem dúvidas, uma inovação, ao tempo que congrega pesquisadores de áreas diversas (dentro e fora da Universidade Federal de Pelotas, quer seja em nível nacional e internacional). O desafio, então, volta-se para o diagnóstico social através da contribuição de grupos de pesquisa de diferentes áreas – principalmente das áreas sociais e da saúde. Não se trata simplesmente de um diagnóstico das patologias, mas também na elaboração e implementação de políticas voltadas à qualidade de vida da população.

Nesse horizonte, a visualização ou a proposta de detectar as denominadas patologias sociais e, então, investigar ações em vistas a implementar as políticas públicas e sociais voltadas ao conviver saudável. O quadro a seguir visualiza o mapa do Observatório dentro do grande projeto institucional CAPES/Print da UFPel.

Quadro 1 - Demonstrativo da inserção do projeto.


Nesse período (2018-2021), das missões de trabalho e colaborações surgiu a proposta de construir uma obra inédita sobre Patologias Sociais. A ideia foi publicar um Glossário contendo verbetes diversos relacionados às Patologias Sociais. O resultado das interlocuções, seja no âmbito individual ou em colaboração com outros pesquisadores, resultou no e-book Glosário de Patologías Sociales. Ele reúne textos de 23 autores, de 13 instituições diferentes e oito países (Argentina, Alemanha, Bélgica, Uruguai, Chile, Estados Unidos, Brasil e Espanha). O lançamento do e-book

ocorreu em junho de 2021 e seu acesso pode ser conseguido através do link: http://guaiaca.ufpel.edu.br:8080/handle/prefix/7723.

Além disso, também foi de enorme repercussão a participação de diversos autores dos textos do Glossário durante o Seminário II de Patologias Sociais (abril a junho de 2021), pois, além de pesquisadores do Brasil, participaram autores de diferentes textos do Glosario. Diante da situação de pandemia, os eventos ocorreram através de uma sala Webconf da própria UFPel, cujas gravações estão à disposição a quem desejar aproximar-se com os autores. O link é: https://webconf.ufpel.edu.br/b/jov-qp3-2jz.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o Glossário é um produto construído a várias mãos, que reúne a diversidade de pesquisadores deste percurso atrelado a redes de pesquisa, em nível nacional e internacional.

 

 

2 AS PATOLOGIAS SOCIAIS: ESTUDO ATRAVÉS DE DUAS VIAS

 

O ponto de partida procurou listar palavras chaves de um projeto transversal. No caso, foi importante consolidar e ampliar a rede de consórcios de pesquisa em nível internacional para estudos clínicos, síntese de conhecimentos e formação com investigadores de distintos países, principalmente com centros de excelência.

O objetivo principal do observatório é discutir as patologias sociais, suas origens e os desdobramentos para as ciências sociais e da saúde e, ainda, para a filosofia. A exposição dos impactos poderia ser o ponto de partida para definir políticas sociais, seja em relação à prevenção como também em propor alternativa para superar os déficits ocasionados pelas patologias sociais. As atividades de pesquisa do Observatório seguem duas linhas: a) a categorização de patologia social, centrando-se em aspectos filosóficos, sociológicos, epidemiológicos, entre outras vertentes; b) na elaboração de um questionário para averiguação empírica, isto é, a respeito da percepção social concernente ao que possa conceber-se ou na forma como as pessoas compreendem e definem patologia social.

Do ponto de vista da fundamentação teórica, há diversas questões chaves. Como já foi salientado, um dos aspectos concerne à própria terminologia. O termo patologias sociais aparece como uma das distintas expressões voltadas à análise do mal-estar social, sinônimo de anomia, anomalias ou, simplesmente, patologia social. As expressões “patologia” e antídoto são típicas da área da medicina. No entanto, muitos pensadores e críticos sociais, de diferentes áreas do conhecimento, as utilizam como sintagma para o diagnóstico e os processos terapêuticos a respeito dos transtornos que geram sentimentos de mal-estar e sofrimento social, os quais afetam a vida na sua noção de normalidade.

Nos anos 60 do século passado, por exemplo, o termo patologia aparece na literatura acadêmica. Inicialmente, são antropólogos, sociólogos e juristas que procuram explicar os fenômenos socialmente perversos e, então, qualificá-los como patologias. Felippe A. de Miranda Rosa pública, em 1966, uma obra com o título: Patologia Social. Uma introdução ao estudo da desorganização Social. Do ponto de vista jurídico, o autor assume os traços jurídico-sociológico para o diagnóstico de seu tempo, de forma a distinguir as mudanças sociais saudáveis e os aspectos que podem ser “mortais” para a sociedade. Para ele, há “tipos” patológicos normais ou anormais, com o que é possível identificar condutas classificadas como sociais ou anti-sociais.

Há, segundo Miranda Rosa, “predisposições psíquicas, muitas vezes completa ou parcialmente responsáveis pelo desvio do comportamento” (1966, p. 60). Essas predisposições interferem na vida social. Em outras palavras, existe, segundo o autor, uma relação entre a desorganização pessoal e social, pois uma personalidade des integrada provoca desastres sociais. Porém, não se trata de uma via  unidimensional, porque a sociedade também exerce uma “relativa” influência sobre as pessoas, “plasmando-lhe a personalidade”. Trata-se, portanto, de um “círculo vicioso”. No entanto, a análise de Miranda Rosa tem como elemento chave o “ajustamento” entre os fins pessoais e os individuais. Na verdade, trata-se de padrões, modelos e papéis a serem observados, a sociedade define modelos “normais” e “anormais” no horizonte dos processos e mecanismos de “perpetuação da cultura geral” (Miranda Rosa, 1966, p. 66). Deste modo, haveria um modelo “convencional” que pretende estabelecer “a conduta individual que se conforma aos padrões aceitos”. O fato de afastar-se dessa normalidade convencional pode, então, denotar uma patologia, pois influencia no funcionamento da sociedade. A tais comportamentos são atribuídos “juízos de valor” ligados a “um conteúdo de coisas indesejáveis ou inconvenientes” (Miranda Rosa, 1966, p. 221).

No mesmo ano, Mary Douglas publica o livro Purity and Danger (1966). Sua análise antropológica se centra nos conceitos de contaminação e limpeza. A autora identifica a contaminação como parte da estrutura do sistema social de uma cultura específica. Para Douglas, a noção de sociedade é “uma imagem poderosa”, porque apresenta “formas, fronteiras externas, margens e estrutura interna. Seus perfis contêm o poder de recompensar a conformidade e de rechaçar os ataques” (1991, p. 132). Deste modo, Douglas explica os efeitos de vinculação reinantes nas comunidades culturais, um processo de purificação diante das desgraças ou da contaminação, ou seja dos aspectos saudáveis ou, então, patológicos que podem contaminar – ou preservar “limpo” – um determinado estilo de vida. No fundo, as contaminações afetam a vida e a integridade do grupo e, portanto, representam um enorme risco a sua unidade social.

O terceiro autor é Erich Fromm, quem salientou também a noção de patologia.[84] Nesse sentido, cabe destacar o livro The Heart of Man: its Genius for Good and Evil, publicado em 1964. Sua tese supõe mudanças de actitudes, de modo que os sujeitos têm a possibilidade de escolha entre a alternativa voltada ao bem ou, então, ao mal. A orientação em favor da vida recebe o nome de biofilia, mas a propensão à morte reflete uma inclinação necrófila. A necrofilia aparece nas diversas formas de hostilidade, pois se trata de “tendências orientadas contra à vida”, pré-disposições que “podem ser denominadas como a essência do verdadeiro mal”.

No mesmo sentido, Marcuse, nos anos 60, frisou as “coerções” de um sistema social que tem como base “a ativação e a superativação da energia agressiva e destrutiva do que possa ser uma sociedade melhor” (2018, p. 49). As coerções refletem uma espécie de coerentismo nefasto e maléfico, porquanto a coerência se traduz na falta de sinceridade, de responsabilidade, de tato e empatia, ou seja, uma aproximação entre os que se alimentam de uma ética do mal (Bonete Peraltes, 2017) e ao desejo de matar (Fromm, 1994). Segundo Marcuse (2018, p, 73), esse “instinto de destruição” revela, pois, um sentimento agressivo e, portanto, negativo de modo que os sujeitos não se importam com os demais, com a natureza e, inclusive, consigo mesmos.

Habermas, é outro autor contemporâneo que também se ocupa do tema, mas em vistas à teoria do agir comunicativo, cujas expectativas de reciprocidade remetem a um entendimento sem distorções. As perturbações na comunicação indicam sintomas que afetam o “nível mais profundo”, pois mesmo que um sujeito apresente deficiências ou enfermidades, ele não perde seu carácter de sujeito coautor (participante). Enquanto sujeitos ativos, mas como “seres finitos”, as expectativas intersubjetivas, assim como a existência corporal, situada historicamente, encarnada corporalmente e socializada comunicativamente não podem atrelar-se ao fundamentalismo nonsense.

Embora as incertezas e a vulnerabilidade humana, as “certezas” e as enunciações relativas ao mundo vital podem servir de ponto de partida para, no nível da comunidade ideal, serem reconstruídas e, então, transformarem-se em pretensões de validez válidas para todos. O nível cotidiano é, portanto, “inclusivo”, pois não está vinculado apenas aos aspectos familiares das certezas e enunciações. Ele engloba também “os elementos do entorno natural com os quais nos topamos frontalmente” (Habermas, 2015, p. 29).

As orientações do agir supõem, por isso mesmo, uma interpretação desse pano de fundo, sempre exposto ao aspecto “provatório” pela comunidade de sujeitos, em vistas à revisões. Assim, o conceito formal de mundo da vida assegura a possibilidade reconstrutiva. Sem dúvidas, há um otimismo em Habermas, pois, segundo ele, as estruturas da comunicação linguística e do pano de fundo acessíveis reflexivamente possibilitam reconstruir “desde dentro” as pretensões de validade.

No entanto, o fato de distorcer a comunicação e de espalhar ou ocasionar mal- estar social já indica um sintoma patológico, porque produz efeitos nocivos à convivência, isto é, um transtorno não apenas ao sujeito como tal, mas, e principalmente, ao âmbito social. Ou seja, as experiências de manipulação (seja na natureza ou dos demais sujeitos) podem revelar-se como um “veneno ou alimento” e, então – no primeiro caso –, transformar o “entorno” em horizontes ou contextos “inóspitos” (Habermas, 2015, p. 46). Esse carácter de perversidade, de malignidade e que promove o dano social está relacionado a um fenómeno patológico. No momento em que a abrangência afeta e ocasiona perturbações à socialização e nas interações ligadas ao conviver social entre sujeitos coautores, essa distorção pode ser considerada, então, como um interesse nefasto ligado às patologias sociais.

Desde a perspectiva habermasiana, o foco da pesquisa está nas situações sociais de dor e sofrimento, salientando não apenas as idiossincrasias como tal, mas em verificar a sua dinâmica e os efeitos geradores de patologias sociais, com profundos padecimentos na vida das pessoas e, pior ainda, afetando a convivência social. Nesse sentido, a colonização do mundo da vida passa a ser uma referência fundamental para qualquer análise, um processo de compreensão que exige entender a profundidade dos das tramas  vivenciais, tanto no nível proximal  dos vínculos pessoais, como também nos horizontes sociais e educacionais. Neste sentido, a filosofia permite compreender “as relações vitais tóxicas” (Habermas, 2015, p. 155) vinculadas aos mal-estares de uma convivência social sem poder fruir da cooperação e da cordialidade intersubjetiva.

Em Habermas, a noção de Lebenswelt salienta “a tríade” de mundos em conexão com a pretensões de validez, porque os sujeitos, ao utilizar “componentes proposicionais”, fazem referência a algo “presente no mundo” (2015, p. 28). No entanto, “nós mesmos, filósofos do presente […] caímos em una dolorosa contradição existencial” (Husserl, 1990, p. 17). Em outras palavras, muito antes de Habermas, Husserl já insistia “na possibilidade da filosofia como tarefa”, mas denunciando que os filósofos simplesmente renunciaram a essa tarefa fundamental de estar presente no mundo, transformando-se em profissionais sem arraigo com o âmbito social das pessoas. Deste modo, não poucas vezes, os filósofos simplesmente processam “conhecimentos especializados das disciplinas científicas academicamente institucionalizadas” (Habermas, 2015, p. 147). Na verdade, suas pressuposições se apoiam em dados científicos com base em uma “série de testes, com complexos cálculos, em argumentos de probabilidades, enfim, em análise científica de resultados de medições efetuadas em laboratórios, os quais estão afastados da prática cotidiana” (Habermas, 2015, p. 52).

Por fim, e para completar esse quadro de autores, Honneth é, por certo, um autor significativo, pois consolidou a noção de patologia social, indicando o papel da filosofia social. Honneth foi quem disseminou a noção de patologia social vinculada à análise clínica da sociedade. Para ele, os termos diagnósticos e patologia são típicos da medicina, mas eles podem também estar vinculados a comportamentos sociais que impedem uma convivência mais saudável.

Nesse sentido, os estados psíquicos e físicos têm relação com os valores de normalidade em um horizonte social, quando os indivíduos percebem os transtornos de sentido como anormais. Na linha da teoria crítica da sociedade, as pessoas são consideradas como objetos de um sistema que instrumentaliza as relações. Nessa perspectiva, o déficit condiz à anomalia social que vulnera os valores, principalmente a justiça, deformando as possibilidade de um viver pretendido como “normal” ou “saudável”. O patológico remete a transtornos para um viver mais confortável.

Em suas obras, Honneth recupera a noção de filosofia social, passando por Rousseau, Nietzsche, Marx, Hegel, Lukács, Adorno y Horkheimer, Habermas – entre outros pensadores –, com o fim de desenhar a possibilidade de um “diagnóstico filosófico-social” das orientações do agir que ameaçam a autorrealização do indivíduo e – digo eu – à convivência social. Neste sentido, Honneth acredita em um processo filosófico-histórico das patologias, pois se trata do “desenvolvimento errôneo de todo o processo da civilização” (2011, p. 107). Em outras palavras, de “desenvolvimentos deficientes historicamente situados” (Honneth, 2011, p. 109).

Honneth insiste que, sem uma aproximação com a área da saúde, é impossível falar de patologias sociais; portanto, uma perspectiva com características de transversalidade. As ciências da saúde supõem uma “ideia de normalidade”, de modo que o diagnóstico social considera a norma ou a regra para o “habitual”. Deste modo, a aproximação com a medicina permite “falar de uma patologia social”. Em outras palavras, quando existem determinadas suposições sobre como deveriam que ser constituídas as condições da autorrealização humana, o entrave pode significar uma situação adversa e, por isso, passível de uma consideração patológica. Por isso, com a palavra diagnóstico, Honneth entende como “a captação precisa e a identificação de uma enfermidade, de modo que o organismo humano possa ser afetado (Honneth, 2011, p. 114).” Neste sentido, a capacidade de funcionamento do corpo indica ou serve de critério para a certificação das manifestações anormais, uma alternativa clínica relacionada aos contextos sociais, ou seja, à convivência saudável.

A possibilidade de identificar e valorar as relações sociais “exitosas, ideais ou saudáveis” “permite ao indivíduo uma realização não deformada de si mesmo” (Honneth, 2011, p. 118). Por isso, a noção de patologia social está associada às “condições sociais que devem contribuir ao indivíduo sua autorrealização” (Honneth, 2011, p. 118). Em decorrência – ou concomitantemente – à realização das condições normais de uma convivência saudável. Deste modo, o papel das ciências ou, como afirma Honneth, a análise filosófica social das patologias sociais tem a função de qualificar determinados desenvolvimentos da vida social que perturbam e geram danos à convivência com os demais. Neste sentido, os termos diagnóstico e patologia são complementares um ao outro. Não se trata apenas de casos vinculados às ciências da saúde (ou enfermidades individuais), mas de estados ou situações anormais com características patológicas relacionados à autorrealizaçaõ do sujeito e da convivência social, que favoreça a hetero-realização. Daí que uma patologia social “apresenta exatamente aquele desenvolvimento orgânico deficiente que deve ser aclarado ou determinado mediante o diagnóstico” (Honneth, 2011, p. 114).

A proposta se volta, então, a desenvolver, de maneira sistemática, o projeto proposto, uma via investigativa original e inédita dentro da área da saúde e educação quando trata de questionar o que sejam as patologias sociais, seu diagnóstico e prognósticos, o que significa, em outras palavras, poder delinear políticas sociais (ou públicas) capazes de garantir, na prática, esse ideal de uma convivência saudável.

 

3 AS PATOLOGIAS: UM PONTO DE PARTIDA PARA PROGNÓSTICOS

 

Um dos objetivos do Observatório Global de Patologias Sociais salienta a criação de consórcios de pesquisa em rede para diagnóstico, síntese de conhecimentos e formação de observatórios globais com pesquisadores de distintos países. De este modo, está sendo possível discutir as patologias sociais, suas origens e os desdobramentos para ciências sociais e da saúde, para a filosofia e a educação. A exposição dos impactos poderia ser o ponto de partida para definir políticas sociais, uma tentativa para minimizar os efeitos nefastos das patologias e, ao mesmo tempo, consolidar políticas preocupadas com o bem-estar social, isto é, para a autorrealização dos sujeitos e, ao mesmo tempo, na perspectiva de uma hetero- realização.

Não há dúvidas que o atual modelo de intervenção em doenças e patologias, focado apenas no modelo curativo, está esgotado, uma vez que trata apenas a manifestação clínica das doenças e não suas causas, muitas vezes de origem social profunda. No que tange ao tratamento de doenças crônicas não comunicáveis, a nova fronteira do conhecimento científico se insere precisamente no contexto do estudo das Patologias Sociais e suas implicações. Neste contexto, a intervenção passa a estar focada na convivência social, e não simplesmente no indivíduo. Por isso, no escopo desse projeto, estão previstas ações que vão desde o diagnóstico das patologias sociais até a proposição de intervenções para testar hipóteses através de investigação clínica e epidemiológica.

O envolvimento de pesquisadores das humanas e da saúde preserva duas linhas mestras: o âmbito empírico, através de um questionário voltado a detectar os elementos que geram sofrimento e dor, cujos dados podem auferir graus de patologias sociais que interferem na vida social. No caso, espera-se que o pós-pandemia garanta as possibilidades reais para reunir os dados acerca da percepção que as pessoas têm a respeito do sofrimento ou patologia social e, ao mesmo tempo, de como isso se revela como uma espécie de patologia que interfere na convivência social.

Ao mesmo tempo – e essa é a outra parte da pesquisa do Observatório – a repercussão do glossário já é tema para propor uma segunda edição, de modo a reunir as contribuições de novos pesquisadores e, assim, ampliar o mapa das distintas patologias sociais. Tal contribuição revelaria a variedade de perspectivas e, embora multiforme, poderá servir como marco para análise crítico do âmbito social, uma contribuição para o debate social com distintas e diferenciadas interpretações.

Nesse sentido, a relevância do estudo já pode ser percebida desde sua inserção no escopo do objetivo de integração institucional, ou seja, a transdisciplinaridade entre diferentes áreas de conhecimento, assim como os desdobramentos em atividades de ensino, pesquisa e extensão universitária. Dada a dimensão do estudo, o caráter de internacionalização está sendo um dos pontos chaves, de forma que o fomento e o compartilhamento de dados, experiências e aprendizagens são inerentes à execução.

Além do mais, destaca-se a originalidade do Observatório Global de Patologias Sociais como o único centro de estudos com foco nessa área de conhecimento no Brasil e quiçá no mundo. O impacto mais importante do projeto remete a sua contribuição ao Observatório na busca de identificar déficits e disparidades sociais que geram patologias, ou seja, enfermidades que afetam a consolidação da justiça e da solidariedade social. Com esse foco, o a criação de consórcios de pesquisa em rede permite, então, a geração de evidências com estudos clínicos, síntese do conhecimento e formação de recursos humanos qualificados nas diferentes áreas envolvidas.

Em relação à UFPel, os impactos internos concerne às reuniões multidisciplinares periódicas, para discussões sobre patologias sociais, suas origens e desdobramentos para ciências sociais e ciências da saúde com o intuito de discutir os impactos e definir políticas sociais que principalmente previnam, mas que também superem os déficits causados pelas patologias sociais. Por certo, o próprio ato de fazer e comunicar ciência, evolvendo desde os aspectos éticos mais elementares até aspectos metodológicos e de organização conceitual, certamente confirmam o efeito transversal de todo o Projeto de Internacionalização da UFPel, nos diferentes grupos de pesquisa e Programas de Pós-Graduação, e por fim, espera-se impactar de forma transversal as áreas do conhecimento envolvidas. Dessa forma, a pesquisa é um suporte teórico e prático para sua efetiva marca e presença com excelência no cenário nacional e internacional.

Sem dúvidas, a consolidação teórico-prática de uma metodologia realça a sólida presença de investigadores de múltiplas áreas através do fortalecimento da rede que vendo instituída via observatório de patologias sociais. Desde modo, a necessidade de apontar também alternativas concretas, isto é, de políticas públicas e sociais que coadunem o aspecto de análise com as exigências éticas, de modo a visualizar e determinar as “más práticas” sociais e, então, conformar orientações voltadas às “boas práticas”. Deste modo, a Universidade também poderá consolidar seus espaços para a formação e qualificação de profissionais preocupados com as áreas sociais.

Diante disso, o projeto, vinculado ao Observatório, revela-se como um veículo importante, com repercussões Globais, principalmente ao contexto latino-americano e na região de abrangência da Universidade Federal de Pelotas. Por isso, outras iniciativas em andamento e lideradas por pesquisadores da UFPel serão usadas como arcabouço para as discussões estabelecidas e também servirão como referência para a implementação das ações propostas.

Nesse sentido, os processos de análise devem evidenciar a relevância do estudo teórico analítico, o mesmo dar-se-á de maneira transdisciplinar compondo-se das áreas da saúde e educação, a partir dos autores que subsidiam os referenciais destas áreas. Em outras palavras, os referenciais teóricos tecem a complexa definição do verbete patologias sociais juntamente com os textos metodológicos utilizados na construção e acompanhamento dos indicadores dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU serão as fontes de análise para os resultados obtidos.

Por isso, os estudos e, especificamente, o desenvolvimento da pesquisa, e em relação ao escopo teórico, o foco está na teoria crítica, de modo a aprofundar a noção de diagnóstico social desde a perspectiva as ciências sociais e, ao mesmo tempo, da área da saúde. Daí o conceito clínico de patologias sociais, não apenas relativo ao diagnóstico da situação ou do sofrimento social. A referência ao mundo da vida (Lebenswelt), ou seja, à realidade vivencial das pessoas, presume que o Lebenswelt seja entendido como a “caixa de ressonância” não apenas enquanto circunstancialidades cotidianas, mas verificar também a potencialidade prática das teorias filosófico-educativas e de seus efeitos na vida social. Nesse sentido, a ressonância reflete também as idiossincrasias e as conflituosidades das relações sociais. Não poucas vezes, a academia se sustenta em argumentos desenhados teoricamente, o que significa um pressuposto bastante significativo. Todavia, a carga tóxica dos vínculos humanos requer uma certificação concreta, ou seja, a partir das vozes dos próprios concernidos, os quais podem oferecer dados e, ao mesmo tempo, argumentos tanto para a análise mais consistente, como também para uma profilaxia mais adequada.

A sintonia com a realidade vivencial das pessoas é, sem dúvidas, fonte de inspiração para medir sua força e capacidade para a superação das patologias sociais, pois transforma os sujeitos em participantes das interações sociais; mais especificamente, os transforma em coautores, pois participam na análise e também na dinâmica de enfrentamento das patologias, laborando para a minimização do sofrimento social. Por isso, a suposição de uma carga nefasta indica não implica apenas na análise linguística, poiso diálogo aberto entre os coautores pode significa um compromisso com a interação e no processo terapêutico.

Por isso, diante da plausibilidade de uma orientação pó-metafísica, a nova reorientação do compromisso social dos profissionais de filosofia e da educação podem “compreender sua época através análises” (Habermas, 2015, 149). Deste modo, a “relação epistêmica” das argumentações com o mundo da vida presume a vinculação sistemática com os horizontes familiares, também traduzido por “solo” ou, então, como um lugar ou hábitat situado historicamente e, portanto, encarnado corporalmente e socializado comunicativamente (Habermas, 2015, p. 24).

Nos dias atuais, essa tendência salienta a reorientação na forma de compreender a realidade e, então, poder desenhar as práticas educativas frente aos discursos que semeiam, por exemplo, o ódio e o racismo, entre muitas outras formas de discriminação. A análise das experiências vivenciais nos possibilita evidenciar a toxidade e os perigos de organizações e grupos (nacionais e internacionais), um tipo de articulação entre grupos voltados a disseminar o ódio, o medo, o racismo ou outras formas de discriminação.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A contribuição real e positiva da Teoria Crítica ganha força em um mundo que está dividido entre duas alternativas opostas. Por um lado, o cientificismo mecanicista de uma espiral da tecnocracia (Habermas, 2016), que instrumentaliza e isola cada vez

os sujeitos, ou seja, uma tendência a transformar os humanos em consumidores de fakenews enganosas e adoecedoras. A quantidade de inverdades ou, então, de inúmeras pós-verdades fragiliza ainda mais os seres humanos e, em decorrência, enturvece ainda mais os vínculos e as relações intersubjetivas, gerando, por isso, um mal-estar social sem precedentes.

Por outro lado, a potencialidade da teoria crítica renovada mantém vivas as reais possibilidades não apenas de crítica radical em torno às circunstancialidades vivenciais e, ao mesmo tempo, em relação à pretensões de validez com caráter universal. Deste modo, a perspectiva de uma “filosofia radical” aparece como revolucionária. A expressão de Marcule é, assim, um exemplo a seguir no sentido de encontrar respostas à pergunta “Que fazer?” em tempos de incertezas, dúvidas e de um monolinguismo sem precedentes.

Por isso, a noção de um nós – também mencionado por Honneth, em sua obra O direito da liberdade – exige uma reconfiguração da comunidade de sujeitos participantes. O eixo de intersecções passaria a ampliar-se e o ponto de equilíbrio exige o reconhecimento de “sujeitos” não humanos, sem, portanto, separar os mundos de vida um do outro. Nesse sentido, a gramática pronominal remete a uma “nova” normalidade, sem repetir o mesmo padrão de monolinguismo, o que poderia simplesmente ser fatal. Os pressupostos de uma “nova” normalidade exigem, portanto, uma consideração a todos os sujeitos participantes, para considera-los como coautores nas tomadas de decisão.

 

REFERÊNCIAS

 

BONETE PERALTES, E. La maldad. Madrid: Cátedra, 2017.

 

DOUGLAS, M. Pureza y peligro. Un análisis de los conceptos de contaminación y tabú. 2. ed., México; Madrid; Bogotá: Siglo Veintiuno, 1991.

 

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HABERMAS, Jürgen. En la espiral de la tecnocracia. Madrid: Trotta, 2016.

 

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HABERMAS, Jürgen et al. Filosofia radical. Conversaciones con Marcuse. Barcelona: Gedisa, 2018.

 

HONNETH, A. La sociedad del desprecio. Madrid: Trotta, 2011.

 

HONNETH, Axel. Patologías de la libertad. Buenos Aires: La Cuarentena, 2016.

 

ROSA, Felippe A. de M. Patología social. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.

 

UNITED NATIONS. Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable .Development. 2015.

 


 NUESTRAS CONVERSACIONES SOBRE LAS AMÉRICAS EN MOVIMIENTO[85]

 

Jovino Pizzi[86]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

Ricardo Salas Astrain[87]

Université Catholique de Louvain la Neuve

rsalas@uct.cl

 

En estos 20 años de conversaciones, la cuestión de América Latina ha sido una preocupación constante. Desde la primera vez, en Lima (2004), hasta hoy día, muchas han sido las preguntas y muchos más los intentos de comprender lo que significa las Américas en marcha. Pro hay una pregunta que diferentes investigadores se plantean y que no se requiere acallar: ¿La teoría de la acción comunicativa tiene un alcance universal para todos los contextos de un Mundo Globalizado?, o para decirlo en términos más funcionales: ¿Para qué sirve la teoría de la acción comunicativa en medio de contextos americanos en movimiento?, y cuando decimos no pensamos en Norteamérica, sino en los diversos territorios americanos. Al exponer el tema como pregunta supone ciertamente la necesidad de respuestas. En  principio, parece algo evidente en una pedagogía académica que insiste que al filósofo le interesan más las buenas preguntas que la respuesta. Pero ciertamente una pregunta implica avanzar al menos en una eventual respuesta, es así una obviedad tautológica sin necesidad de  justificación. Mientras tanto, el preguntar ya supone un indagar por el significado de una teoría que ya hace años está en el listado de las discusiones e investigaciones académicas. Entonces, ¿cuánto vale una teoría cuando el contexto social está en movimiento? Es decir, ante la complejidad y la diversidad de los contextos americanos, ¿de qué nos sirve una teoría de la acción comunicativa cuando los contextos resisten? La respuesta podría iniciar con el activismo y las protestas ante el racismo norteamericano, pero también las profundas luchas de resistencia de los pueblos. La conexión fundamental entre los intereses de un grupo frente al contexto de una sociedad dividida exige percatarse de las “formas siempre nuevas” de la interpretación que “conectan con las objetivaciones con que nos encontramos siempre ya en la práctica de la vida” (Habermas, 1988, p. 490). La referencia a las experiencias de vida y acción cobran pues una crítica profunda de las asimetrías y coerciones que afectan al convivir. Pero todo eso tiene una relevancia significativa si sostenemos un dialogo entre nosotros filósofos que habitamos y estamos arraigados en diferentes contextos socioculturales y políticos. O sea, repensar las Américas supone un diálogo con autores que buscan entender las Américas en movimiento y, al mismo tiempo, soñar con alternativas. En este sentido, un autor que me ofrece un sentido a las discusiones es Ricardo Salas Astrain, de Chile, que habita en territorios interétnicos en el Wallmapu chileno. Él me dice siempre que él aprende de mi país Brasil que él considera un enorme continente donde los territorios son bastante disímiles y asimétricos. Invitamos, entonces, a ser parte de este interés de nosotros por hacer avanzar el dialogo crítico – y no de meras conversaciones – acerca las Américas en marcha. De eso se trata mi presentación, un diálogo sobre cómo entendemos nuestros tiempos y cuáles son las posibles alternativas. Las conversaciones revelan un ejercicio lúdico a partir de algunas conversaciones virtuales entre Ricardo Salas e Jovino Pizzi, y que podrían emular modestamente lo que “conocemos” como el diálogo platónico.

 

Ricardo: Para empezar, te mando mi último texto para que conversemos acerca de nuestras ideas de justicia y contextos americanos...

 

Jovino: Bueno, ya hemos comentado algunas cosas a través de las redes sociales. Me parece que hay cosas interesantes que acontecen actualmente en nuestros países.

 

Ricardo: Espero que podamos seguir trabajando juntos estos temas porque estamos conscientes que los territorios tienen especificidades propias, más aún cuando se trata de territorios interétnicos como en el que pensamos… Por ejemplo la dimensión internacional que tiene la Amazonía sudamericana.

 

Jovino: Empecemos por poner en una perspectiva histórica estos temas. Estoy leyendo el libro de Daniel Guérin: La lucha de clases en el apogeo de la revolución francesa y las luchas de clases entre 1793-1795. Veo que este conflicto puede esclarecer un prototipo político ruralistas terratenientes y conservadores, a los que Daniel Guérin nombra como los de la montaña. Eso me ayuda a entender lo que significa la representación de los agronegocios hoy día y el peso del latifundio en nuestros países.                                                     

                                                                                                         

Ricardo: Así es, este enfoque histórico es crucial porque la genuina crítica del capitalismo global pasa por cuestionar el despojo de la tierra que habitan los pueblos indígenas americanos y sobre las implicancias de los conflictos territoriales que siguen tensionando el destino de los pueblos.

 

Jovino: Pero esta mirada hacia atrás nos obliga también a mirar cuidadosamente el presente de ambos países en que habitamos y sus lides socio-políticas.

 

Ricardo: No te preocupes amigo […] aquí en Chile estamos en proceso de preparar el 4 de septiembre en medio de una generalizada incertidumbre social y política, que afecta tanto al mundo político en Santiago y en Wallmapu, como en las universidades. Seguiremos al habla más rato.

 

Jovino: La facticidad y la coyuntura política siempre son sorprendentes porque en realidad nos lleva a confrontarnos con el poder y la violencia. Pues aquí se habla reiteradamente reiteradamente en términos del descrédito de la democracia y de golpes militares… Hay ensayos que indican un proceso dictatorial que está a camino en Brasil. Y creo que la cosa no avanzará por las presiones externas, basta mirar lo que acontece en USA.

 

Ricardo: Así es amigo, la situación de la reciente Cumbre de las Américas convocada por el gobierno norteamericano demuestra este ambiente de pretender ensalzar algunos países “buenos” y denostar otros, pero la geopolítica actual no contribuye a esa América Latina que soñamos, estamos iniciando un momento de declive del ideal nuestroamericano. Las fuerzas políticas que se enfrentan del domingo próximo en Colombia muestra bien esto, y lo bien que se posiciona la posición de Petras. Ya presentaron nuestro libro en el reciente encuentro de Clacso en México, y fue interesante la conversación de lo que sigue pasando hoy con las movilizaciones sociales en toda América Latina y el Caribe.[88]

 

Jovino: Eso es justamente lo que intentamos y podemos hacer en las investigaciones sobre epistemología triangular. Esas publicaciones indican una preocupación esencial. No se trata de una perspectiva bíblico-semítica propia del Mediterráneo, pues el eje se ha trasladado desde hace cinco siglos al Atlántico, un punto de intersección entre tres continentes, con sus diversidades y alteridades muy diversas y temporalidades distintas. Tampoco se trata de una perspectiva solamente desde el Sur o del Norte en bloque – o como fuera – sino de una memoria de siglos cuyos lazos y entrelazamientos son reflejos de una historicidad que hoy día ciñe y manifiesta una diversidad sociocultural y política extraordinaria, pero con muchos perjuicios y molestias que interfieren en los vínculos y afecta a la convivencia social.


Ricardo: En eso tus trabajos sobre Brasil son relevantes para nosotros en Wallmapu y has visto como se despierta el interés de nuestros investigadores y estudiantes de postgrado. Ojalá que el Seminario internacional de Habermas este segundo semestre del 2022 nos ayude a priorizar las preguntas acerca de los contextos actuales.

 

Jovino: El profesor Delamar Dutra estará aquí en casa el viernes que viene.

Ricardo: Podemos hacer un zoom y conversar un poco entre los tres, y así complejizamos más los asuntos que estamos hablando.


Jovino: Sería bueno, exactamente por la noción  que  presentas  sobre  la perspectiva contextualizada de la justicia. En el libro Estudios interculturales desde el sur haces referencias a las “experiencias de injusticia desde los asimétricos mundos de vida”, por lo cual invocas a comprender también los no-diálogos, los pseudodiálogos o los diálogos precipitados que conducen a una “concepción histórica de la justicia en tierras americanas donde ella refiere entonces a una clave donde la comunicación y emancipación son decisivas en la vida de nuestros pueblos y de las mayorías subyugadas” (p. 33).[89]

 

Ricardo: Si, estoy de acuerdo con esas referencias, pero Delamar tiene que saber que buscamos tanto conocer en profundidad los textos de Habermas y, al mismo tiempo, de lo que nos ayuda a entender los nuevos contextos sociopolíticos de nuestros países atravesados por lógicas de violencia, de odios y de racismos.


Jovino: Claro… ayer me paso la fecha del seminario en Florianópolis y el tema del II

Simposio Internacional Jürgen Habermas. Será entre los días 21 a 24 de noviembre de 2023, en Florianópolis, y el tema es Esfera pública: mudanzas y perspectivas. La pretensión vuelve al libro Mudanza estructural de la esfera pública. Más tarde, pasados casi 30, Habermas vuelve al tema a través del prefacio a la edición de 1990. Ahora, en 2022, a exactos 60 años sale Ein neuer Strukturwandel der Öffentlichkeit und die deliberative Politik, lo que señala la centralidad del tema para su prolífica obra.

 

Ricardo: Entonces, me gustaría mucho discutir con ambos tus críticas a la propuesta de la democracia deliberativa para nuestros contextos asimétricos ya que una cuestión relevante es plantearse si lo público se plantea del mismo modo en sociedades con diferencias socio-culturales y económicas inconmensurables en que las luchas de los movimientos sociales tiene que darse contra el estado y sus instituciones.


Jovino: Bueno, una cosa importante se relaciona a las convergencias de intereses y a los consensos racionales que son necesarios para una modernidad política. Pero cuando están en manos de los grupos maliciosas, la cuestión es más complicada. Porque viene el miedo y sus dos caras pueden engañar a mucha gente.


Ricardo: Okey  amigo. Y  eso  se  expresa  en  todos  y  cada  uno de  las  situaciones conflictivas de nuestros territorios interétnicos….proseguimos navegando hacia el Amazonas...

 

Jovino: Eso es, pues tiene sentido el “pensar en marcha” – como está en el título del

libro de CLASO….[90] Mientras tanto, podrás mirar el link que te envié hace unos días atrás. Se trata de una revista que lleva un conocido mío. Le pregunté si podemos hacer un número especial para que salga pronto. Veremos lo que el editor dice.


Ricardo: Si,  la  estoy  viendo.  Y  ahí aparece mi amigo y colega Eduardo Deves de

IDEA USACH, él ha hecho un trabajo estupendo de ampliar las redes intelectuales posibilitando congresos y seminarios interdisciplinarios, revistas y encuentros en muchas partes de Chile y de América.


Jovino: Estas revistas son necesarias porque serían medios importantes para divulgar los análisis y las percepciones del momento actual sobre distintos países. Podríamos reunir una diversidad de autores para que hablen y presenten sus puntos de vista sobre el momento actual y de la especificidad de los contextos.


Ricardo: Si, la revista tiene una articulación con la internacional del conocimiento. Así es, creo que son momentos para irradiarnos mutuamente en el conocimiento de nuestras estructuras hegemónicas de poder. ¡Hay que volver a proponer el internacionalismo filosófico que recoge la fecundidad de los contextos específicos!


Jovino: Lo estamos haciendo y tú eres un gran protagonista. En la traducción de tu

libro al brasileño de lo Sagrado y lo Humano, he percibido una sensibilidad a la diversidad, con lo cual me ha permitido también avanzar en la noción de una epistemología triangular. Antes que se me olvide: A Sírio Lopez Velasco le mande también los dos otros libros tuyos que he traducido al brasileño.

 

Ricardo: Yo creo que se está generando  una  buena sinergia  entre  los filósofos  que laboran en Brasil y en Chile. Como lo digo siempre a mis estudiantes, yo te sigo a ti, y siempre en mi mente serás el “culpable” de nuevos aportes a una lectura contextual: Bomfim y Forst. Sirio Lopez recibio los tres libros que le mandaste y estaba contento, Gracias nuevamente!!!


Jovino:Ahora  creo  que  el  paso que estamos haciendo abraza a todas las Américas. Pero de otro modo, o sea, con una visión y un oído de más profundidad y muchos más comprometidos que antaño. Me parece que tu idea dando cuenta de esta realidad viva cuando dices: “Esta mirada latinoamericanista nos entrega un foco de una historia permanente de negaciones y afirmaciones que siguen permaneciendo hasta el día de hoy” (p. 33).


Ricardo: lo presiento  desd  hace  muchos  años  y  laborar  también en el  Wallmapu chileno nos permite exponerlo así de claro. Pero no es sólo la América del Sur sino refiere a la América del Norte. A mí me interesa mucho el debate de las primeras naciones de Canadá al modo de Tully, y la lucha por los derechos civiles en USA y los avances filosóficos de las feministas norteamericanas acerca la dignidad y derechos de la mujer. El componente indígena y afro ayuda mucho en estos contextos disímiles.


Jovino: Eso es muy bueno, pues repensar América Latina también hay que repensar las Américas: las sajonas y las latinas. Por eso, me acuerdo de lo que has escrito recientemente sobre la “fragilidad” de nuestro proceso civilizacional en manos de las economías poderosas, pero que “no destaca suficientemente como se palpa, se siente y se sufre desde estos pueblos que sufren el colapso, el holocausto y la pérdida definitiva de sus relaciones con todo lo viviente” (2021, p. 85).[91]


Ricardo: El colapso y la hecatombe histórica de las Américas indígenas es lo que está aún por repensar, y también el uso de las terminologías. Y ver que el corte de la América Sajona y Latina es un invento francés. Como damos cabida a los muchos cubanos, puertorriqueños y mejicanos en USA, como latinos y haitianos en Canadá.

 

Jovino: Ahí está un tema muy significativo… y que viene de lejos, porque la indignidad y la esclavitud no podrían tener esta óptica de la dinámica de las migraciones históricas, sino de un sistema integrado. Según tus palabras, se hace necesario “salir de nuestras principales lenguas occidentales para abrirse a una comprensión de miradas que han sido injustamente excluida” (2021, p. 85).


Ricardo: y eso ya lo has demostrado bien, hay que seguir  las  historias  de  los  afros después que los sobrevivientes desembarcaron de los barcos... y también de lo que aconteció con las empresas de la esclavitud y los nuevos nombres que ellas asumen en nuestro tiempo.


Jovino: Y acercarnos a grupos norte americanos que ya estudian eso. Y Andrés podría ayudarnos para q pudiera identificar algunos.


Ricardo: Y tengo también unas estudiantes haciendo doctorado en USA.

 

Jovino: Sería estupendo que pudieran ayudarnos más de cerca. A mí, esa idea se ha tornado claro con la lectura del libro de Dee Brown, sobre la dramática historia de los indios norte-americanos.[92] Claro, muchos latinos sueñan hoy día con el estilo estadounidense como si fuera el paraíso, pero eso también está cambiando.


Ricardo: Hay que proponerles cada uno de estos doctorandos un trabajo sobre sujetos históricos precisos: indígenas, negros, mujeres, jóvenes.


Jovino: Bien!!!  De  mi  parte,  entiendo  que  la  noción  de  mundo  latinoluso   y

afroamericano de vida tiene un eje gravitacional importante. A principio ye intentado pensarlo sin una noción claramente geocultural, pero poco a poco he ido aprendiendo que sin reconocer el Atlántico como punto de intersección la idea se quedaba un tanto desconectada con los sujetos históricos. De ahí que pasé a la epistemología triangular, para, entonces, poder interconectar los sujetos a una historicidad de más de cinco siglos y que hoy día nos permite salir – como tú mismo dices – “del mero análisis de las diferentes disciplinas científicas y saberes culturales” para abrirse a las distintas matices de las gentes. Por eso, mejor sería hablar de convivialidad, sin insistir tanto en el epistemicídio, para no atenerse apenas a los maleficios y patologías sin más. Me gusta más de Fromm, cuanto trata de la necro y de la biofilía. Por eso, reconocer las contribuciones y lo que hay de bueno y maravilloso de esta diversidad y buscar formas razonables de con-vivir en la hospitalidad. Tú mismo dices que se hace necesario “dar cabida a una variedad de interrogaciones filosóficas en torno a la disrupción del orden por parte de los estallidos como potencia emergente y movilizadora, y tratar de entender las “pasiones” no solo tristes, sino “alegres” (2022, p. 533).[93]

Ricardo: Yo veo que el proceso va en el doble sentido, pensemos la migración de los pobres y de los ricos a partir de las enormes mutaciones que se van generando.


Jovino:Porque  la  convivialidad  sin  enfrentamientos  no  existe, o sea, no pasa un

simple imaginario. Los guaraníes tenían la tierra sin Males, y eso los llevaba a migrar de un territorio a otro como la búsqueda de un paraíso sin males, o sea, sin patologías.


Ricardo:Ese  es el  tema que  nos interesa, donde están  los males y los malos, cómo seguimos al mismo tiempo el paraíso hollywoodense y un sistema policial penitenciario para las minorías.


Jovino: Hay mucha gente interesante, incluso Ruy Mauro Marini, con la cuestión del

subdesarrollo y la revolución.


Ricardo: Claro, en esto puede ayudarnos el CIALC donde labora Ana Luisa Guerrero y Sofía Reding.[94] En este sentido, creo que hoy es el tiempo para poder abrirnos a esta preocupación internacional por el cuidado y resguardo biocultural a la Amazonía. Te solicito que converses con Maria Aparecida Rezende y veas si quieres esta investigación postdoctoral para poder avanzar con otro/as colegas latinoamericanos...

 

Jovino: De acuerdo…

 

Ricardo:Hay que proponerles un trabajo sobre sujetos históricos precisos: indígenas, negros, mujeres, jóvenes…

Jovino: Bien! Pero yo veo que el proceso va en el doble sentido, pensemos la migración de los pobres y de los ricos.

 

Ricardo: ambos buscan El Dorado.

 

Jovino: Peo que no existe, sino como un imaginario. Los guaraníes tenían la tierra sin Males, y eso los hacían migrar de un territorio a otro como la búsqueda de un paraíso sin males, o sea, sin patologías.

Ricardo: ese es el tema que nos interesa,  donde están  los males  y los  malos. Cómo seguimos el paraíso hollywoodense. Tienes que leer a un chileno que se llama Luis Maira,[95] que es experto en relaciones internacionales con USA.[96]

 

Jovino: Iré ampliar el texto de nuestros diálogos con otras inserciones…


Ricardo:Si  consigues,  vea  lis  comentarios  al  final.[97] Me  gusto  de  la  expresión

“responsabilidad epistemica” o epistemológica.

 

Ricardo: Bueno, hemos hablado de muchas cosas en estos meses. Cada uno de nosotros hemos hablado desde nuestros contextos específicos y de las ideas que hemos ido elaborando en conjunto, amén de las trayectorias biográficas e interpersonales que tenemos.

 

Jovino: Es verdad. Son muchas cosas e ideas. No me parece que vayamos quedarnos por aquí, pues los contextos en movimientos señalan hacia revisiones y reconsideraciones a diario, por así decirlo. Además, creo que tenemos muchos interlocutores y participantes que nos ayudan a profundizar en los análisis y también enseñando cómo avanzar hacia nuevas formas de con-vivir en la hospitalidad. Ahora mismo me veo ante la pregunta ¿Para qué sirve la teoría de la acción comunicativa para los contextos en movimiento? Se trata de una pregunta específica, pero habría también que indagar sobre otras teorías. Entonces, ¿De qué valen las teorías si no contribuyen para transformar la realidad? Así que te agradezco tu amabilidad al tiempo que me siento invitado a seguir nuestras conversaciones.

 

Ricardo: me pareció una buena lectura la que está armando Cristian Valdés entre pensamiento crítico y teoría crítica. Yo había leído ya su texto, y con lo que escuche me queda clara su tesis. Para colaborarle hice lo mismo que tú con Iván Canales; lo hice varios comentarios en el texto. Yo cercaría en suma más el tema en relación a la filosofía intercultural y a su opción decolonial. Pero falta más referencias a los aportes y limitaciones del marxismo.

 

Jovino: Ya es hora de montar otro Dossier sobre nuestros días en marcha.

Ricardo: claro que sí, y los participantes del Seminario Habermas pueden ser invitados. Creo que eso hace mucho más relevante el Laboratorio de patologías sociales Jovino: Se podría ahora hacer uno entre Europa y Américas.

 

Ricardo: Claro, ver un espectro amplio: no sólo filósofos y cientistas sociales, ciencias aplicadas también. Yo pienso que podríamos hacer uno sobre Brasil, y luego hacemos uno Europa y América Latina.

 

Jovino: ¿Tú tendrías una revista para eso?

 

Ricardo: Yo tengo que ir a Lovaina en unos días y puedo ver si se interesan. La revista CUHSO acaba de pasar a SCOPUS. Lo importante sería hacer un Dossier sobre lo que está en juego en la Democracia brasileña hoy.

 

Jovino: ¡Qué bueno! Pero ¿has visto lo que te mandé sobre el mal? – que no duerme. Yo creo que vale la pena insistir en la cuestión del Overlapping malicious. ¿No crés?

 

Ricardo: Así es amigo, tenemos mucho más que aprender de cómo funciona esa red. Te mando un libro que sacó Aldo Ameigeiras donde tratamos del nuevo papel de la religión en la política. Nos falta avanzar más en esos análisis religioso-políticos.

 

Jovino: Lo miraré. ¿Has visto ya cuantas descargas tenemos del Glosario?

 

Ricardo: No, pero mi tema iré vincularlo con el texto de Cinthia Fleury. Es una filósofa psicoanalista francesa. Ella escribió Les Pathologies de la Democratie (Paris, 2005)

 

Jovino:Más gente para añadir a nuestras redes.

 

Ricardo: Tenemos que agrandar el círculo crítico-hermenéutico.

 

Jovino: De mi punto de vista, se trata de una perspectiva crítica-pragmática. Pero son dos líneas importantes.

 

Ricardo: claro, es un asunto de palabras: la pragmática es también una hermenéutica.

 

Jovino: Okey. Adelante entonces.


 

BRASIL

fundamentar ou aplicar os direitos humanos?[98][99]

 

Delamar José Volpato Dutra[100]

Universidade Federal de Santa Catarina

djvdutra@yahoo.com.br

 

Edna Gusmão de Góes Brennand[101]

Universidade Federal da Paraíba

ednabrennand@gmail.com

 

Jovino Pizzi[102]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO   

 

A ideia de que os direitos humanos são essenciais, em termos de fundamentalidade e universalidade, é marcada pelas lutas de inclusão e exclusão dos conteúdos de diversos grupos e seus contextos culturais específicos. Nesse sentido, a evolução do conceito de direito natural expressa formas plurais de conquistas político-jurídicas, que viabilizam a existência de âmbitos semânticos variados e interpretações diversas, em função dos respectivos contextos culturais e sociais. A ambivalência com que esta ideia é expressa tem gerado seu uso retórico e dificuldade de sua realização, devido à complexa e heterogênea conformação sociocultural da realidade construída socialmente e das relações de força entre o político-simbólico e o normativo-jurídico.

Nas últimas décadas do século XX as lutas por reconhecimento, desencadeadas por diversos movimentos sociais, trazem pontos controversos sobre que tipo de tratamento jurídico-normativo será capaz de transformar uma igualdade formal em uma igualdade material. Uma questão importante que permeia os diversos discursos é que estamos face a um indireto reconhecimento de um direito à diferença formal, ligado a um princípio da igualdade também formal e que compromete sua efetivação. As reflexões críticas ou não, ligadas ao significado de direitos humanos, expressam as exigências sociais de autonomia das diversas esferas dos discursos, bem como dizem respeito à inclusão de pessoas e grupos. Assim, esse artigo objetiva discutir transformações estruturais das sociedades e as expectativas de inclusão jurídica universal frente à uma pluralidade conflituosa de expectativas de pessoas e grupos no tocante a valores e interesses.

Partindo da compreensão de que os direitos humanos carregam em sua gênese o dissenso, pretende-se colocar em relevo idiossincrasias do caso brasileiro, que tende a ver os direitos humanos apenas como sendo direitos de uma parte dos humanos. Desse modo, apoiados nas controvérsias sobre a fundamentação dos direitos humanos, este texto tem como objetivo dialogar com diversos autores, tais como Bobbio, Habermas, Fraser, Caranti, Douzinas, Honneth e outros, sobre uma possível fundamentação para os direitos humanos, sem, contudo, ter a pretensão de esgotar esse rico e complexo debate.

 

2 BOBBIO E A FUNDAMENTAÇÃO ILUSÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS

 

Bobbio (2000) qualifica a busca por um fundamento absoluto para os direitos humanos como ilusória. O pensador sugere a ideia de que os direitos humanos fundamentados absolutamente funcionaram como um empecilho para a modificação dos mesmos ou para gestação de novos direitos, sendo um caso típico o do direito de propriedade. Esse direito já foi considerado como sagrado e inviolável, mas veio a sofrer limitações durante o século XX[103]. A ilusão, apontada por Bobbio (2000), decorreria de quatro dificuldades básicas, as quais impediriam que as duas estratégias de fundamentação absoluta, por ele apontadas, funcionem adequadamente. Para maior clareza, dissertaremos sobre essas duas estratégias de fundamentação, bem como as quatro dificuldades. A primeira estratégia, remete ao conceito de natureza humana, a partir do qual poder-se-ia deduzir os direitos humanos[104]. A segunda, consiste em considerar tais direitos como verdades evidentes em si mesmas.

As quatro dificuldades apontadas pelo teórico, concernentes à fundamentação dos direitos humanos, são as seguintes: 1) a vagueza da expressão direitos humanos, já que não se consegue definir claramente o conceito, a não ser que se use algum elemento valorativo; 2) a variabilidade dos direitos humanos, como exemplo pode-se citar os direitos sociais, que não eram mencionados nas primeiras declarações, assim como o direito dos animais ou das crianças; 3)a heterogeneidade das pretensões. Assim, para alguns direitos, há a pretensão de que valham sem exceções, como a interdição da tortura [art. V]. Já, para outros, não há essa pretensão, como a censura [art. XIX]; 4) o caráter antinômico dos direitos humano. A título de exemplo, os conflitos entre os direitos negativos, do liberalismo clássico, e os direitos positivos, como os direitos sociais.

Pode-se dizer que essa quarta dificuldade atinge mais a primeira estratégia de fundamentação. O exemplo apontado por Bobbio (2000) é aquele concernente ao direito de sucessão. Três soluções foram concebidas para esse problema, são elas: os bens após a morte do de cujus deveriam retornar à comunidade; os bens deveriam ir para os descendentes do de cujus; os bens deveriam obedecer à última disposição de vontade do proprietário. No entanto, nenhuma dessas soluções pareceria realizar com mais precisão a natureza do ser humano.

Desse modo, as três soluções são compatíveis com a natureza humana, uma vez que se pode definir o ser humano como: 1) membro de uma comunidade, 2) genitor, e 3) pessoa livre e autônoma. Sabidamente, as três soluções acabaram sendo aceitas na maior parte das legislações contemporâneas. Intrinsecamente, essa problemática aponta para a dificuldade de definir a natureza humana. Afinal, o que corresponde à natureza humana, o direito do mais forte ou a liberdade e a igualdade? Como bem observou MacIntyre (1991), toda definição de natureza humana já pressupõe uma posição avaliativa.

As demais dificuldades se aplicam à segunda estratégia, pois direitos considerados evidentes num dado período da história deixaram de ser em outros. A tortura, por exemplo, foi por séculos considerada como meio legítimo de prova e depois deixou de ser. Da mesma forma, a propriedade, como já mencionado, foi considerada como sendo um direito evidente. Hoje, em muitos documentos da Organização da Nações Unidas (ONU), essa prerrogativa não aparece mais, como é possível observar no Pacto Internacional Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, ambos de 1966.

Portanto, à luz de Bobbio (2000), pode-se afirmar que os direitos humanos são gestados historicamente, atendendo a desafios que a humanidade enfrentou. Assim, é possível falar em gerações (ou dimensões) de direitos. O filósofo enumera quatro gerações: a primeira, seria aquela constituída pelos direitos liberais, que inclui os direitos políticos; a segunda, seria composta pelos direitos sociais; a terceira, residiria nos direitos ecológicos, como o direito de viver em um meio ambiente não poluído; e a quarta geração, diz respeito aos direitos biológicos, como a integridade do patrimônio genético.

A primeira geração de direitos defenderia os interesses individuais. A segunda, por sua vez, buscou legitimar os direitos coletivos. A terceira e a quarta gerações estariam voltadas para os interesses difusos. Esses seriam distintos dos coletivos, por não se referirem a um conjunto de pessoas identificáveis, como é o caso dos direitos das gerações futuras sobre o meio ambiente[105]. Em suma, os direitos humanos têm um processo de nascimento e, também, de morte, já que alguns deles podem desaparecer ou serem fortemente limitados, como é o caso do direito de propriedade [Art. XVII] ou do direito de remuneração igual por trabalho igual [Art. XXIII].

Bobbio (1992) aponta, então, para um caminho alternativo e plausível aquele do consensus omnium gentium, “o que significa que um valor é tanto mais fundado quanto mais é aceito”. Com o argumento do consenso, substitui-se a prova da objetividade pela prova da intersubjetividade, considerada impossível ou extremamente incerta. Trata-se, certamente, de um fundamento histórico e, como tal, não absoluto, contudo, esse fundamento histórico do consenso é o único que poderia ser fatualmente comprovado (BOBBIO, 1992, p. 27)”. Para ele, a maior prova de tal consenso, contemporaneamente, seria justamente a aceitação pelas nações da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Pressuposta a aceitação e incorporação de tais direitos nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, o teórico pode defender a tese de que o maior problema com relação aos direitos humanos não seria filosófico [justificação], mas político, qual seja, protegê-los.

Essa tese compreende uma certa dose de juspositivismo que, embora confortável teoricamente, não consegue dar conta de todo o âmbito normativo envolvido na problemática dos direitos humanos. Isto é palpável no próprio Preâmbulo da Declaração, quando afirma: “considerando que os direitos humanos sejam protegidos por um regime de direito, a fim de que o homem não se veja compelido ao supremo recurso da rebelião contra a tirania e a opressão”. Ora, o direito de desobediência remete a um elemento normativo para além do direito vigente[106]. Nesse sentido, o consensus omnium gentium de Bobbio (1992) não pode ser reduzido à aceitação jurídica por parte dos estados, remetendo, portanto, a uma aceitação coletiva dos mesmos. Mas, isso ainda é insuficiente, pois tais consensos mudam e, como ele mesmo afirma, são históricos e contingentes. Essa observação autoriza a pensar como importante a busca de um fundamento fora da via proposta pelo filósofo. No entanto, no presente texto, a via seguida será aquela da disputa pela implementação ou aplicação dos direitos humanos, partindo do consenso constitucional vigente.

 

3 MÉTRICAS PARA ANÁLISE E A APLICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

 

Formulações como as de Bobbio (1992; 2000), que focam em gerações de direitos, ou seja, na sua gênese histórica, acabam por engendrar um problema de aplicação. Com efeito, um ponto controverso que vem ganhando escopo é aquele do esfacelamento dos direitos humanos. Deveras, no momento, há uma pletora de declarações. Há as declarações para os direitos civis, políticos, culturais, econômicos, contra a tortura, direitos das crianças, da mulher, dos deficientes, entre outras. Douzinas (2000) nomeia essa problemática de floating signifier: Nas palavras do mesmo,

Using the terminology of semiotics, one can argue that the 'man' of the rights of man or, the 'human' of human rights, functions as a floating signifier. As a signifier, it is just a word, a discursive element necessarily linked to any particular signified or concept (DOUZINAS, 2000, p. 255).

Dessa forma, essa perspectiva leva a um processo sem fim de criação de direitos, o que ocorre porque “Rights are pure combinations of legal and linguistic signs, and they refer to more signs, words and images, symbols and fantasies (DOUZINAS, 2000, p. 255). Ainda, segundo ao autor, “This symbolic excess turns the signifier 'human' into a floating signifier, into something that combatants in political, social and legal struggles want to co-opt to their cause in order to benefit from its symbolic capital”.

Esse mesmo diagnóstico é acompanhado com Caranti (2017) Maybe we should have a shorter list. Is it really the case that everyone has a human right to rest and leisure, including holidays with pay, as famously stated by Article 24 of the Universal Declaration of Human Rights? And what about a human right to the ‘highest attainable standard of physical and mental well-being’, as declared by Article 12, section 1 of the International Covenant on Economic, Social, and Cultural Rights? And what about less famous cases of ambitious rights such as article 27, first paragraph, of the UDHR which reads, ‘Everyone has the right freely to participate in the cultural life of the community, to enjoy the arts and to share in scientific advancement and its benefits’? (CARANTI, 2017, p. 42).

Hamilton (2003) sugere que a proliferação dos direitos humanos conduziu a uma conflitividade que, por sua vez, reforçou o poder judiciário. Ele chega a afirmar que o problemático dos direitos, não seria tanto o caráter individualista, mas seu caráter jurídico [jural], o qual teria um efeito de despolitização.

Por certo, é possível reconstruir aspectos semânticos para além da pura discursividade dos direitos humanos, como o sofrimento humano, desfilado no conceito de dignidade humana[107]. Ainda assim, o problema é efetivo, na medida em que o esfacelamento gera uma dificuldade de aplicação, não só porque se torna mais difícil atender a todos, inclusive no que se refere à infraestrutura, mas muitas vezes ocasiona a sobreposição de meios.

Considerando que os direitos humanos se aplicam a todos os seres humanos, talvez fosse conveniente um tratamento mais holístico dos mesmos, a partir da perspectiva da justiça tridimensional defendida por Fraser (2009). A autora propõe que a justiça seja analisada de forma tridimensional, tendo como foco a redistribuição, o reconhecimento e a representação. No quesito redistribuição, estariam incluídos os direitos sociais. No reconhecimento, as demandas culturais e de identidade. Por último, no quesito representação, as demandas políticas. Essa formulação pode ser adequada para se pensar eixos temáticos de justiça ao redor dos quais os direitos humanos poderiam ser agrupados. A clássica formulação das gerações de direitos poderia se adaptar a essa linguagem mais normativa e menos histórica. Essa formulação poderia dar conta de um certo diagnóstico de esfacelamento do discurso dos direitos humanos, na medida em que poderiam ser reagrupados por temáticas estruturais para a justiça.

Autores como Rawls (1999) e Habermas (2020) pensam em um sistema de direitos. Para Rawls, o princípio 1 de justiça (P1) responderia pelos direitos individuais e pelos direitos de participação política. Já o princípio 2 de justiça (P2) poderia ser realizado mediante direitos sociais. Por sua vez, para Habermas, haveria três conjuntos de direitos, os liberais individuais, os direitos de participação política e os direitos sociais e ecológicos.

De acordo com os autores mencionados a seguir, quando se põe a questão da aplicação surge também a questão da prioridade. Sabidamente, Rawls (1999) dá prioridade lexical ao P1 sobre P2, bem como, dentro do P1, ao tratar do Estado de direito, parece conferir prioridade para os direitos individuais em relação aos de participação política. Ainda destaca que as necessidades básicas têm prioridade lexical como condição de possibilidade dos direitos e liberdades de P1 (RAWLS, 2000, p. 49).

Habermas (2020), por seu turno, torna os direitos sociais normativamente dependentes dos direitos individuais e de participação. O problemático em relação aos direitos sociais é que eles não indicam uma liberdade, mas um dever dos outros, por isso, seu fundamento só pode ser uma pretensão, no sentido de Hohfeld (1913)[108].  Assim, no coração dos direitos como liberdade, a rigor, não precisaria haver deveres por parte de ninguém (HOHFELD, 1917). Ademais, é controversa a relação entre os direitos individuais e os direitos políticos, em face da tese da cooriginariedade entre ambos . Nesse sentido, Habermas (2020, p. 152) defende que: “A argumentação desenvolvida no livro tem por objetivo essencialmente demonstrar que Estado de direito e democracia há não apenas uma conexão histórica contingente, mas uma conexão conceitual ou interna”. Um senão nessas reflexões diz respeito ao posicionamento de Habermas em relação a Taylor, pois, neste caso, Habermas parece defender um tipo prioridade do individual sobre o coletivo que sugere exorbitar a tese da cooriginariedade[109].

Fraser (2003) prioriza a escala da paridade de participação e não a dimensão da redistribuição propriamente dita.

Honneth (2007) considera a igualdade legal. O autor atribui muito das lutas por reconhecimento a um fato antropológico-psicológico, que ele remete a Hobbes e a Rousseau, dito claramente, nossa identidade seria dependente dos outros. Dessa forma, ele parece admitir que as questões de reconhecimento respondem pelo aspecto da gênese da moralidade. Sem embargo, direitos e deveres morais precisam ser justificados por razões universais, que independentes dessa gênese, devem ter como base as lutas por reconhecimento em conexão com a fragilidade e a segurança da integridade da identidade pessoal. Assim,

 

[...] falando estritamente, mesmo a moralidade do reconhecimento segue as intuições que sempre prevaleceram na tradição kantiana da filosofia moral: no caso de conflito moral, as pretensões de todos os sujeitos ao igual respeito pela sua autonomia individual goza de prioridade absoluta (HONNETH, 2007, p.141).

 

Vê-se bem porque o filósofo precisa conferir esse tipo de prioridade, haja vista o caráter teleológico do bem-estar humano, que porta as lutas por reconhecimento, o qual precisa ser controlado para evitar o perigo do consequencialismo e do utilitarismo (HONNETH, 2007, p. 137-138). Sendo assim, a teoria do reconhecimento precisar de uma âncora deontológica como prioridade. Nessa mesma direção, Fraser e Honneth (2003) afirmam:

The moral grammar of the conflicts now being conducted around ‘identity-political’ questions in liberal-democratic states is essentially determined by the recognition principle of legal equality. […] the majority of identity-political demands can be meaningfully grasped only as expressions of an expanded struggle for legal recognition (FRASER & HONNETH, 2003, p. 179-180).

Ao que tudo indica, para Honneth, a gramática da emancipação ainda seria a jurídica, não a do reconhecimento propriamente dito, como aparece claramente na perspectiva de Taylor. O reconhecimento responderia pela gênese, mas não pela justificação, ao que se pode ajuntar como prova nessa direção também o seu livro sobre O direito da liberdade (HONNETH, 2011).

Ademais, aparentemente, todos esses autores não defendem a prioridade de direitos grupais sobre direitos individuais. Exemplarmente, Rawls[110] e Habermas[111] argumental que o respeito seria devido a todos, ao passo que a estima deveria ser realizada intragrupos. Uma voz discordante desta perspectiva é aquela de Taylor (1994). Por isso mesmo, talvez, os autores de língua inglesa tendam a tratar Taylor, e não Honneth, como o primeiro representante da perspectiva do reconhecimento.

De todo modo, um ponto a ser destacado é que as demandas de efetivação ou aplicação dos direitos humanos não são um jogo de soma-zero, dessa forma, para que alguém usufrua de um direito não é necessário que alguém não o usufrua. Assim, ainda que os casos de aplicação sejam difíceis, é possível que todos usufruam dos direitos humanos, senão por outra razão, pela razão mesma que direitos humanos não são direitos de minorias ou de grupos, mas direitos de todos em razão da humanidade/dignidade de cada um.

 

4 DEMANDAS DE EFETIVAÇÃO OU APLICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: CONTROVÉRSIAS

           

4.1 EXPECTATIVAS DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS PELOS TRIBUNAIS

 

A expectativa temporal da efetivação dos direitos humanos passa pela forma de funcionamento dos tribunais. Então, se as falhas se tornam estruturais, o direito não funciona adequadamente, em razão do tempo. Ele é um fator determinante para a efetivação dos direitos. Ainda que o judiciário não seja o único nem o principal dos poderes a efetivar direitos. Se tal órgão principal houvesse, ele seria o poder executivo. No entanto, o poder judiciário é um bom termômetro para se ter uma visão da efetivação dos direitos humanos, haja vista ele ser chamado quando algo não funcionou quando deveria ter funcionado. Como salienta Hart (1994, p. 40),

The principal functions of the law as a means of social control are not to be seen in private litigation or prosecutions, which represent vital but still ancillary provisions for the failures of the system. It is to be seen in the diverse ways in which the law is used to control, to guide, and to plan life out of court.

Assim, levantaremos alguns exemplos brasileiros sobre a efetividade dos direitos humanos, no sentido de assinalar algumas questões práticas que implicam a aplicação da norma mais favorável para a proteção da dignidade da pessoa. Uma vez que esta deve ser a razão e a finalidade de ser de todo o sistema, a sua essencialidade.

No quesito da justicialização, especialmente em relação aos tribunais constitucionais, é válido nos remeter ao estudo de Hirschl (2004).  O autor analisa a atuação dos tribunais constitucionais de Israel, do Canadá, da África do Sul e da Índia, em relação a quatro grupos de direitos: devido processo, vida privada, direitos sociais e direitos sindicais. Com estas reflexões inferiu-se que os tribunais foram pródigos em realizar os direitos do devido processo, principalmente no âmbito penal, bem como em relação às proteções da vida privada. Além disso,  foram avaros na realização dos outros dois grupos de direitos. O estudo mostra que esses tribunais cumprem uma agenda política favorável às elites e, por isso, lhes é conveniente passarem as decisões que mais lhes interessam para tais tribunais constitucionais, inclusive para evitar desgaste político.

Aventa-se que se um estudo desse tipo fosse realizado no Brasil, poderia registrar resultados semelhantes, tendo em vista que o próprio acesso ao Superior Tribunal Federal (STF) é facilitado para aqueles que detêm poder econômico, em razão de terem numerário para pagar os melhores advogados, bem como dispor dos recursos financeiros que envolvem um processo que tramita na Capital Federal.

No ano de 2020, segundo o Relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “os assuntos sobre Direitos Humanos mais recorrentes, além de assistência social, foram, respectivamente sobre: ‘pessoas com deficiência’, ‘pessoa idosa’, ‘intervenção em Estado/Município’, ‘alimentação’ e ‘moradia’ (BRASIL, 2021, p.301). Ainda, segundo o relatório, “houve um expressivo aumento do número de casos novos sobre Direitos Humanos chegando quase a triplicar o quantitativo referente a 2019 (342% de aumento) considerando a totalidade destes assuntos” (BRASIL, 2021, p.312).

Talvez, um dos maiores problemas seja referente à discrepância entre a unanimidade dos direitos humanos, relacionada a juristas e intelectuais, e a sua recusa por uma grande parte da população. Nesse particular, na vigência do Plano Nacional de direitos Humanos  (PNDH 1), como se verá abaixo, foi tipificado o crime de tortura (Lei nº 9.455/97). Não obstante, dados atuais do CNJ indicam que essa ainda é uma prática corrente no Brasil. Vejamos os números: no ano de 2016, foram 4,13 mil; em 2017, 8,4 mil; em 2018, 8,2 mil; em 2019, 13,9 mil; em 2020, 6,6 mil; em 2021, 12,4 mil; e em 2022, foram 11,2 mil.

Os registros indicam que atualmente a prática da tortura ocorre durante a prisão e a condução do preso a delegacia, mas não na própria delegacia. Segundo Eduardo Reina (2022)

 

A tortura é praticada hoje, ‘em larga escala’, nas abordagens policiais contra jovens, negros e pobres, segundo o presidente do Grupo Tortura Nunca Mais. Contudo, ele diz que os casos dentro das delegacias diminuíram. ‘Hoje nas delegacias são mais comuns as extorsões do que as torturas. Porém, as pessoas são torturadas antes de chegarem às delegacias, nas abordagens dos policiais militares’ (REINA, 2022)[112].

 

Talvez, haja um simbolismo que fala por si só, quando nos deparamos com o modo como os presos são conduzidos no Brasil. No geral, depois de efetuada a prisão, são postos no bagageiro das viaturas policiais. Pois bem, o que é colocado comumente nos bagageiros dos carros? Coisas, não seres humanos. Em muitos países, os presos são conduzidos no banco de trás das viaturas, separados dos bancos da frente, onde ficam os policiais que conduzem o preso, por algum tipo de grade, inclusive com sinto de segurança para todos. No Brasil, além de ser conduzido no bagageiro, como se fosse uma coisa, o preso vai algemado com as mãos nas costas. Porém, se o preso for do colarinho branco, ele será conduzido no banco de trás.

Esse simbolismo se traduz em dados de letalidade policial. Os números de 2014 revelaram que “nos últimos cinco anos, a polícia [brasileira] matou 9.691 pessoas. […] Os dados norte-americanos apontam 11.090 mortes em 30 anos”(2014)[113]. Esses dados com o passar dos anos de agravaram, se em 2014 o número de mortes foi de 3.146. De 2018 a 2021, os números dobraram, chegando a mais de 6.000 mortes por ano. Conforme é possível observar no gráfico 15, do Anuário brasileiro  de segurança pública 2022[114].

Nesse diapasão, o que dizer das condições de muitas prisões brasileiras? Vale o registro que, em 3 de julho de 2019, o Tribunal de Justiça de Turim negou a extradição de um advogado brasileiro, também cidadão português, condenado no Brasil. De acordo com Canário (2022):

 

 

Segundo o acórdão, o sistema carcerário brasileiro é notoriamente degradante e desrespeitoso com os direitos fundamentais dos presos. A decisão cita alguns dos casos de rebeliões em presídios que terminaram com decapitações de presos, a superlotação da maioria das prisões e a decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro reconhecendo o ‘estado inconstitucional de coisas’ do sistema carcerário” (CANÁRIO, 2019).

 

Pesou, também, na decisão do tribunal, a substituição, em junho de 2019, de todos os membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, por policiais e militares notoriamente antagônicos aos direitos humanos. Talvez, em casos como esses, o sofrimento seja tão intenso ou grave que se torne tortura. Desse modo, deixa de ser um caso de dor ou sofrimento inerente ou acidental, e torna-se um caso de sofrimento grave, inerente a sanções legais.

Vale relembrar aqui o caso do reitor Cancellier, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)[115]. O reitor foi preso e submetido a uma revista íntima, vexatória, desnecessária e totalmente abusiva. Esse tipo de procedimento, além ser uma violência sexual institucionalizada, é claramente incompatível com a dignidade humana. Nas palavras de René Ruschel (2021),

O reitor foi submetido a uma vexatória revista íntima – por duas vezes, na Polícia Federal e na Penitenciária –, e mantido nu durante mais de duas horas diante de outros presos, para finalmente vestir o uniforme do presídio, ser algemado e acorrentado nos pés. Seu martírio durou cerca de 30 horas. No âmbito dos direitos econômicos ou dos direitos sociais não é demais repetir o quão desigual o Brasil é. A questão não é propriamente referente à desigualdade. Ela até pode ser justificada por uma teoria da justiça, como o faz Rawls (1999). No entanto, o Brasil tem traços de desigualdades salariais amplamente divulgados, tais como:  o valor do salário-mínimo para 2023 será de R$ 1.294 (Um mil, duzentos e noventa e quatro reais). Vale o registro que 66%, dos 36 milhões de beneficiários do INSS, recebem o valor de um salário-mínimo, ou seja, mais de vinte milhões de pessoas. Um professor titular de uma Universidade Federal, em contrapartida, ganha em torno de 15 vezesesse valor,  cerca de R$ 20.000 (vinte mil reais). Desse modo, um docente titular federal  recebe em um mês, quase o valor total do que o aposentado com salário-mínimo ganha em um ano. Já um ministro do STF passará, em 2023, a receber uma remuneração de provavelmente R$ 46.000 (quarenta e seis mil reais),  o que corresponde a 35 vezes o salário-mínimo, e duas vezes o salário de um professor titular. O aposentado, com um salário-mínimo, levará mais de três anos para receber o valor que um ministro ganha em um mês.

Segundo dados do IBGE[116], a “renda mensal dos que fazem parte do 1% mais rico da população é, em média, R$ 15.816. Já o rendimento mensal dos 50% mais pobres é de R$ 453”. Isso põe o professor titular de uma universidade federal e os ministros do STF no 1% mais rico da população. Obviamente, estes são só exemplos, mas valem para todos aqueles que ganham mais do que R$ 15.000 (quinze mil reais) mensais.

O problema não é a disparidade ou a desigualdade enquanto tal. Mas, a noção de que o salário-mínimo é insuficiente para se levar uma vida digna. Com efeito, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE)[117] calcula que o valor do salário-mínimo atualmente deveria ser em torno de R$ 6.000 (seis mil reais). Por outro lado, o salário de um ministro do STF, mesmo com o aumento salarial, ainda seria sete vezes maior que o valor sugerido pelo DIEESE, muito mais do que um ser humano precisa para ter uma vida digna. Talvez, um ministro até pudesse ganhar o que ganha atualmente, mas somente se todos ganhassem o mínimo proposto pelo DIEESE.

 

4.2 POLÍTICAS DE IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

 

No Brasil, as políticas de implementação dos direitos humanos são concebidas no discurso como ferramentas de transformação social.  Considerando o panorama das desigualdades latentes no processo civilizatório brasileiro, as formas de construí-lo parecem abstratas e inteligíveis. Se visualizado através dos caminhos violentos que marcaram o processo de construção das matrizes étnicas formadoras da nossa identidade: brancos colonizadores, índios e negros africanos, as manobras discursivas oferecem um referenciamento epistemológico que pressupõe a necessidade de reparação histórica dos silenciamentos impostos às minorais e a promoção da justiça social, a partir da Constituição de 1988.

As lutas pelo reconhecimento desenvolvidas por negros, índios e pobres levaram a novas formulações das dinâmicas pluralistas e multitemporais da fundamentação dos direitos humanos no país. Pode-se afirmar que os três Planos Nacionais de Direitos Humanos  (PNDH 1, 2 e 3) expressam a polissemia, polivalência e entrecruzamento dos modelos de análise e intervenção na realidade social. A produção dosPNDH possui inspiração e origem na “Declaração e Programa de Ação de Conferência Mundial de Viena de 1993, organizada pela Organização das Nações Unidas, que instou os Estados a concatenar os esforços rumo à implementação de todas as espécies de direitos humanos” (CARVALHO RAMOS, 2018, 11.2.).

O PNDH-1 foi implementado pelo decreto nº 1.904/1996, sob a gestão do presidente da república Fernando Henrique Cardoso. O plano visava a verificar situações de não cumprimento dos direitos humanos e aprimorar a legislação brasileira.

Os direitos em foco sob a perspectiva do PNDH 1 eram referentes aos direitos civis, com especial foco no combate à impunidade e à violência policial. Em 2002, o PNDH-2 foi aprovado pelo decreto nº 4.229, de 13 de maio de 2002, com ênfase nos direitos sociais.  Ainda, segundo o teórico,

 

Nos ‘considerandos’ do novo programa, foram identificados avanços obtidos nos seis anos de vida do PNDH-1, entre eles a adoção de leis sobre: 1) reconhecimento das mortes de pessoas desaparecidas em razão de participação política (Lei nº 9.140/95), pela qual o Estado brasileiro reconheceu a responsabilidade por essas mortes e concedeu indenização aos familiares das vítimas; 2) a transferência da justiça militar para a justiça comum dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares (Lei nº 9.299/96); 3) a tipificação do crime de tortura (Lei nº 9.455/97); 4) e a proposta de emenda constitucional sobre a reforma do Poder Judiciário, na qual se incluiu a chamada ‘federalização’ dos crimes de direitos humanos (ver o tópico sobre o Incidente de Deslocamento de Competência, supra) (CARVALHO RAMOS, 2018, 11.2.p.).

 

Com isso, houve uma mudança no foco da proteção de direitos humanos. O PNDH-1 concentrou-se nos direitos civis, considerando-os importantes para a consolidação do regime democrático no Brasil. Já o PNDH-2, que foi produzido após13 anos do fim da ditadura militar (1989) e primeira eleição direta para presidente, preferiu focar em temas sociais e de grupos vulneráveis, como os direitos dos afrodescendentes, dos povos indígenas, de orientação sexual, consagrando, assim, o multiculturalismo. Outra característica importante do PNDH-2 é que sua aprovação se deu no último ano do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002). Sua implementação, então, incumbia ao seu opositor, o presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010).

O PNDH-3 foi adotado pelo decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009, que oficializou o Programa, dividindo-o em seis eixos orientadores, 25 diretrizes, 82 objetivos estratégicos e 521 linhas de ações. Sendo assim, Esse detalhamento do PNDH-3 e a absorção de uma linguagem de direitos humanos próxima das demandas da sociedade civil fizeram com que seus enunciados fossem percebidos como sendo de iminente implementação, o que a linguagem abstrata dos anteriores não havia realçado. Essa sensação gerou ampla repercussão negativa na mídia tradicional e em grupos organizados contrários a determinadas ideias defendidas no PNDH-3, em especial no que tange à descriminalização do aborto, laicização do Estado, responsabilidade social dos meios de comunicação, conflitos sociais no campo e repressão política da ditadura militar (CARVALHO RAMOS, 2011, 11.2.p.).

A análise dos fundamentos propostos pelos três PNDH deixa visível a sensação de retrocesso em relação às políticas de implementação.  Os documentos expressam a força de pressão do ativismo na promoção de renovações epistemológicas, com vistas ao enfrentamento das vozes silenciadas, ao implementar a luta pelo direito de ter direitos. Esses planos apontaram para a necessidade de mudanças paradigmáticas consistentes no campo dos Direitos Humanos, levando a um reposicionamento dos fundamentos da alteridade, da humanidade e da universalidade.

É possível assinalar que, mesmo diante das violências perpetradas e escancaradas por relatórios e estatísticas, sobre as formas de autoridade exercidas durante o processo de formação socioeconômico e cultural que, por sua vez, são1 permeadas por conflitos e sofrimento impostos às camadas subalternas, os documentos relativizam esses dados pelo discurso humanista e civilizatório das instituições.

Os três documentos elaborados visam minimizar a recorrente privação de direitos. Apesar da evolução registrada pelas políticas públicas de proteção, a luta pela sobrevivência e reconhecimento ainda possuem ecos fortes no Brasil contemporâneo, devido ao limitado acesso aos direitos e as violações da dignidade recorrentes. A efetividade dos direitos humanos pode ser vista como possuidora de duas faces: a oficial, projetada pela normatividade em construção; e a real, forjada na pulsação de vida e na necessidade de domesticação dos corpos em movimento, clamando por transformar-se em sujeitos de direitos. Nas disjunções morais e nas contradições do projeto democrático, a força policial justifica a máxima de que ainda é necessário incorporar a violência à legitimidade do Estado. Nesse sentido, o sistema não necessita, para se viabilizar, contar com a lealdade de todos os que estão a ele submetidos. Estes documentos, porém, precisam ser submetidos a um escrutínio rigoroso de juristas, intelectuais e representantes da sociedade civil organizada.

 

5 À GUISA DE CONCLUSÃO

 

De tudo o que foi dito, seria consolador se Bobbio (1992, 2000) tivesse razão. Ainda que seja difícil discordar do discurso dos direitos humanos, objeto de soberana unanimidade entre juristas e intelectuais, não só a sua efetivação é palco de controvérsias, mas a sua própria fundamentação. Nesse sentido, a aplicação dos direitos humanos é controversa, não só por uma questão com viés político, mas também teórico. Por exemplo, a tortura é proibida absolutamente. Talvez, seja o único direito humano formulado em uma determinação absoluta, sem exceções. Nem o direito à vida ou à igualdade tem tal status. No entanto, o que é torturar? Quais atos são tortura e quais não são?

Considera-se que a formulação dos direitos humanos é indeterminada, como mostra Douzinas (2000). Não é sem razão, portanto, que pululam teorias que visam dar conta da aplicação dos direitos, especialmente os direitos humanos, como a doutrina da ponderação de Alexy (2003), o interpretativismo de Dworkin (1996), a teoria discursiva da adequação de Habermas (1997) e de Günther (1988). Ademais, pode-se acrescentar a essa discussão a seguinte problemática: a natureza dos direitos humanos é individual, grupal ou algo de toda a humanidade? Devido a isso, as controvérsias sobre direitos humanos acabam sendo sempre resolvidas por maiorias. Parece um desiderato das democracias ser sempre majoritárias e representativas. Consoante, ainda que a jurisdição constitucional referente aos direitos humanos pretenda ser contra majoritária, as decisões nos próprios tribunais constitucionais são majoritárias. Dessa forma, permanece um desafio combinar de forma adequada a decisão majoritária e a deliberação argumentativa a respeito das controvérsias sobre os direitos humanos.

As narrativas sobre a crise do conceito de direitos humanos estão criando campos semânticos como direitos fundamentais, direitos coletivos, direitos individuais, em um movimento que aponta para a dificuldade de situar uma fundamentação universal. Entendemos não ser possível realizar dicotomias entre eles. Há nessas narrativas uma relação rizomática, que envolve enovelamentos, entrelaçamentos e conexões. Mesmo reconhecendo a importância deste debate, acrescentamos ser imprescindível, para além do falso dilema estrutura/mudança, que os campos semânticos sobre os direitos humanos consigam contribuir para revelar as materialidades das práticas recorrentes de crueldade, tortura, letalidade e extermínios. É preciso reconhecer que os limites de interpretação do mundo são atravessados por possibilidades de processos flexibilizadores, ocasionados por um encontro entre narrativas e dados de realidade.

No Brasil real, construído por uma história com marcas profundas de escravidão, violências, desigualdades sociais e regionais, são comuns as narrativas documentais cujas versões enfraquecidas do conceito de direitos humanos, descartam sua pretensão de universalidade. O grande desafio consiste em encontrar um justo equilíbrio entre o protagonismo dos sujeitos sociais e as dinâmicas dos acontecimentos. Talvez seja a Constituição Federal (1988), o locus privilegiado para a obtenção de respostas concretizadoras, uma vez que, ela mesma, foi transformada em um texto aberto, que permite interpretações e justificações de respostas. Sendo assim, na direção do que argumenta Dworkin (1996), é necessário combinar princípios jurídicos com objetivos políticos para indagar sobre uma fundamentação possível para os direitos humanos.

 

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[1] PIZZI, Jovino.  O conceito de justiça pós-convencional: dilemas entre Israel e Atenas, a aliança e o contrato. In: COLÓQUIO HABERMAS, 5.,2008, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: NEFIPO, 2008. p. 175-190. Disponível em: https://coloquioshabermas2010.files.wordpress.com/2010/04/ habermas_ anais2008-31.pdf Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[2]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[3] PIZZI, Jovino. Ética do discurso: conteúdo moral e responsabilidade solidária. In: LIMA, Clóvis Ricardo Montenegro de; GÓMEZ, Maria Nélida Gonzalez de (org.).  Discursos Habermasianos. Rio de Janeiro: IBICT, 2010. p. 34-45. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/ 2018/09/ habermasparainternet19072012.pdf Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[4]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[5]PIZZI, Jovino. Considerações de Habermas a respeito da moral laica pós- metafísica e a progressiva perda da solidariedade. In: COLÓQUIO HABERMAS: HABERMAS E INTERLOCUÇÕES, 7.;  SIMPÓSIO NACIONAL DE FILOSOFIA: ÉTICA, FILOSOFIA POLÍTICA E LINGUAGEM, 2., 2011. Londrina. Anais [...]. Londrina: UEL, 2011. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2022/04/66eb1b4e9f1572eac5ec8b606cdd4e5a.pdf Acesso em: 25 abr. 2023.Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[6]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[7]PIZZI, Jovino. A esfera pública frente ao processo de laicização do âmbito moral. In: LIMA, Clóvis Ricardo Montenegro de (org.). Mudança estrutural na esfera pública 50 anos depois. Rio de Janeiro: [s.n.], 2012. p. 525-540. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress. com/2012/10/clique-aqui-para-baixar-os-anais-do-viii-colc3b3quio-habermas.pdf Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[8]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[9]Nesse sentido, cabe destacar o testemunho de Dee Brown, Enterrem meu coração na curva do rio. A dramática história dos índios norte-americanos (Porto Alegre: L&PM, 2010), bem como o livro de Eduardo Grüner, La oscuridad y las luces. Capitalismo, cultura y revolución (Buenos Aires; Edhasa, 2010).

[10] PIZZI, Jovino. Metafísica pós-convencional e o imperialismo da vida cotidiana. In: COLÓQUIO HABERMAS, 9.,2013, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: Salute, 2014. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2013/09/ebook_anais_ix_coloquio_habermas.pdf Acesso em: 25 abr. 2023.Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[11]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[12] Andrade, Maribel da Rosa; PIZZI, Jovino. A transmutação da moral: releitura discursiva do legado Nietzschiano. In: COLÓQUIO HABERMAS, 9.,2013, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: Salute, 2014. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2013/09/ebook_anais_ix_ coloquio_habermas.pdf Acesso em: 25 abr. 2023.Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[13]Bacharela e Licenciada em Filosofia, pela Universidade Católica de Pelotas. Mestra em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas

[14]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[15] Nesse caso, fazemos referência à ética de mínimos, conforme Adela Cortina propõe em suas obras.

[16] Antimoralidade – composição da palavra no sentido de “contrária às regras”.

[17] Advogado, doutor em direito e investigador – Membro do Bar de Madrid – Espanha.

[18] PETROVICH, A. Corrupción y Política: La moral Del camaleón, 2011, p. 2. (artigo).

[19]PIZZI, Jovino. O sujeito pronominal: uma questão em aberto para a teoria do agir comunicativo. In: COLÓQUIO HABERMAS, 10.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO., 1,. Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2015. Disponível em: https://coloquiohabermas.files. wordpress.com/2016/03/anais-xi-coloquio-habermas-e-ii-coloquio-de-filosofia-da-informacao1.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[20]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[21] AREND, Carline Schröder; PIZZI, Jovino. Contribuições da teoria do reconhecimento para pensar a educação para além dos muros da instituição. In: COLÓQUIO HABERMAS, 10.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO., 1,. Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2015. Disponível em: https://coloquiohabermas.files. wordpress.com/2016/03/anais-xi-coloquio-habermas-e-ii-coloquio-de-filosofia-da-informacao1.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023.Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[22] Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas. Foi bolsista de doutorado Demanda Social - CAPES. Possui Mestrado em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria. Gestão Educacional pelo Curso de Gestão Educacional da Universidade Federal de Santa Maria. Possui Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria.

[23]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[24]PIZZI, Jovino.  A perspectiva pós-metafísica do agir comunicativo: a superação dos limites de uma fundamentação da ontoteológica e as restrições ao empoderamento do sujeito monológico. In: COLÓQUIO HABERMAS, 11.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 2., 2015. Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2016. Disponível em: https://coloquiohabermas.files. wordpress.com/2016/03/anais-xi-coloquio-habermas-e-ii-coloquio-de-filosofia-da-informacao1.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[25]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[26]PIZZI, Jovino; DUTRA, Delamar José Volpato.  O sujeito pronominal e a gramática comunicativa: elementos para uma gramática da justiça. In: COLÓQUIO HABERMAS, 11.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 2., 2015. Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2016. Disponível em: https://coloquiohabermas.files. wordpress.com/2016/03/anais-xi-coloquio-habermas-e-ii-coloquio-de-filosofia-da-informacao1.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023.

[27]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[28]Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Filosofia (UCS) e em Direito (UFSC), doutor em Filosofia pela UFRGS, com estágio de doutorado na Université Catholique de Louvain, Bélgica. Fez pós-doutorado na Columbia University (New York) sobre a relação entre Dworkin e Habermas. Fez também pós-doutorado na Aberystwyth University (País de Gales, Reino Unido) sobre o tema "Habermass Critique of Kant and Hobbes".

 

[29]PIZZI, Jovino.  A racionalidade ético-comunicativa e as esferas do reconhecimento intersubjetivo do sujeito pronominal: análise crítica. In: COLÓQUIO HABERMAS, 12.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 3., 2016. Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2016. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2016/11/artigos-colc3b3quio-habermas-2016_ corrigido.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023.Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[30]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[31] AREND, Carline Schröder; PIZZI, Jovino.  Teoria do reconhecimento e o programa bolsa família: possibilidades educacionais na perspectiva da justiça social. In: COLÓQUIO HABERMAS, 12.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 3., 2016. Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2016. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2016/11/artigos-colc3b3quio-habermas-2016_ corrigido.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023.

[32] Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas. Foi bolsista de doutorado Demanda Social - CAPES. Possui Mestrado em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria. Gestão Educacional pelo Curso de Gestão Educacional da Universidade Federal de Santa Maria. Possui Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria.

[33]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[34] A partir da obra Reificación, Honneth (2007b) não identifica mais apenas a mãe como a pessoa de referência.

[35] Em 13 de junho de 2003, foi promulgada a Lei nº 10.689 que criou o Programa Nacional de Acesso a Alimentação (PNAA). O programa estava ligado às ações voltadas ao combate à fome e à promoção da segurança alimentar e nutricional (BRASIL, 2003). Em 20 de outubro de 2003, institui-se o Programa Bolsa Família através da Medida Provisória nº 132, a qual foi convertida na Lei 10.836 na data de 09 de janeiro de 2004, criando o Programa Bolsa Família, a qual altera a Lei 10.689 de junho de 2003 (BRASIL, 2004a).

[36] Disponível em: http://curtadoc.tv/curta/direitos-humanos/espanol-informe-sobre-la-inequidad/; Acesso em: 26  mai. 2016.

[37] O objetivo foi transcrito a partir da explicação apresentada no documentário.

[38] Cálcio, Fósforo, Enxofre, Magnésio, Sódio, Potássio e Cloro.

[39] Ferro, Zinco, Iodo, Flúor, Manganês, Cobre e Selênio.

[40] Nogueira, Vanessa dos Santos; PIZZI, Jovino.  Honneth frente à virtualidade na educação a distância. In: COLÓQUIO HABERMAS, 12.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 3., 2016. Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2016. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2016/11/artigos-colc3b3quio-habermas-2016_ corrigido.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023.Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[41] Coordenadora do Núcleo de Educação a Distância (NEAD) e professora da Faculdade SOBRESP. Professora do Curso de Pedagogia EAD da UFSM. Doutora em Educação pela UFPel, Mestra em Educação pela UFSM. Pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da UFSM.

[42]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[43] AMARAL, Fernando; PIZZI, Jovino. A consolidação da intersubjetividade formal Kantiana na dialogicidade Habermasiana. In: COLÓQUIO HABERMAS, 13.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 4., 2017, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2017. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2017/12/coloquio-2017-completo.pdf.  Acesso em 23 abr. 2023.. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[44] Doutor em Filosofia na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e professor efetivo no Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande .(FURG). É graduado em direito (FURG) e mestre em Direito e Justiça Social (FURG). Tem experiência na área de Direito com ênfase em justiça social, ética e filosofia política e temas afins. Pesquisador do CNPQ. Advogado e músico.

[45]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[46] Adotaremos as siglas alemãs usuais na tradição filosófica das obras de Kant: Crítica da Razão Pura (KrV), Fundamentação da Metafísica dos Costumes (GMS, os números romanos são as seções da obra), Critica da Razão Pura (KrV) e Critica do Juízo (KU). Na GMS usarei a numeração da acadêmica extraída da tradução de G. A. de Almeida (referencia completa na bibliografia).

[47]Sobre a tradição das expressões moral e ética e seu desenvolvimento, conforme Honneth “Na tradição que remonta a Kant, como foi dito, entende-se por "moral" a atitude universalista em que nós podemos respeitar todos os sujeitos de maneira igual como "fins em si mesmos" ou como pessoas autônomas; o termo "eticidade" se refere, em contrapartida, ao ethos de um mundo da vida particular que se tornou hábito, do qual só se podem fazer juízos normativos na medida em que ele é capaz de se aproximar das exigências daqueles princípios morais universais. A essa desvalorização da eticidade contrapõe-se hoje sua revalorização naquelas correntes da filosofia moral que procuram novamente revocar Hegel ou a ética antiga. (HONNETH, 2009, p. 270, minhas ênfases).

[48] Quanto à relação entre autonomia e dignidade em Kant na GMS “A legislação, porém, que determina todo o valor, tem de ter ela própria, exatamente por isso, uma dignidade, isto é, um valor incondicional, incomparável, para o qual só uma palavra respeito constituía expressão adequada da avaliação a que um ser racional tem de proceder acerca dela. A autonomia, portanto, é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional. (II, Ak 436, ênfase de Kant)”.

[49] Em Kant na KrV “Prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade”. O empirismo condiciona a nossa liberdade da vontade e a razão “...só pode ter, nesse caso, um uso regulador e apenas pode servir para efetuar a unidade de leis empíricas”. (KrV B 828, Os pensadores, p. 475-476).

[50] Em Kant, bom (ou boa) está na lei objetiva, o que agrada fazer é uma determinação subjetiva: “Praticamente bom é porém aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão, por conseguinte não por causas subjetivas, mas objetivamente, quer dizer por princípios que são válidos para todo o ser racional como tal. Distingue-se do agradável, pois que este só influi na vontade por meio da sensação em virtude de causas puramente subjetivas que valem apenas para a sensibilidade deste ou daquele, e não como princípio da razão que é válido para todos.” (GMS II, Ak 413, ênfase de Kant).

[51] Kant dá o exemplo da caridade: “Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém que neste caso uma tal ação, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que efectivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever” (GMS I, Ak 398, minha ênfase). Para Kant quando interesse está no objeto da ação ele é patológico quando na ação em si ele é pratico (GMS II, nota Ak 413). Höffe (2005, p. 193-194) destaca que há três possibilidades de se cumprir o dever moral na GMS (Ak 397 ss). Primeiro por interesse próprio, por conformidade ao dever (legalidade), por dever (moralidade; onde o dever é querido pelo agente e onde está o moralmente bom).

[52] Kant nao tem textualmente “primeira proposição”, mas como tem “segunda” e “terceira”, a presume e impõe a sua busca. A primeira é uma determinante subjetiva de respeito a lei, a segunda o principio subjetivo determinante e a terceira a conseqüência das duas (ver WOOD e SHÖNECKER, 2014, p. 59ss).

[53] Kant explica através de uma nota o que é este respeito. Ele destaca “embora o respeito seja um sentimento, não é um sentimento recebido por influência; é, pelo contrário, um sentimento que se produz por si mesmo através dum conceito da razão e assim é especificamente distinto de todos os sentimentos do primeiro género que se podem reportar à inclinação ou ao medo...A determinação imediata da vontade pela lei e a consciência desta determinação é que se chama respeito...” (ênfase de Kant). Ou seja o respeito aqui está dentro da autonomia do ser racional, na vontade de cumprir a lei em si mesma, por interesse moral e nao por temor. Todo o chamado interesse moral consiste simplesmente no respeito pela lei.

[54] Kant antes de formular o imperativo categórico (IC) desenvolve os imperativos hipotéticos (IH). Destaca que "...todos os imperativos mandam [portanto, são deveres] ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. (...) No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico.”   (GMS II, Ak 414, ênfase de Kant, nossa inserção entre colchetes). Kant no agir não-moral também dá o status de dever, ele associa o IH problemático a busca da felicidade – ou concepção de vida boa - e esta é personalíssima (empírica), por isso é necessário (imperativo) de prudência na escolha das hipóteses possíveis para realizá-la; IH assertório, outra modalidade, deve seguir as regras de habilidade poruqe o fim almejado é a priori.

[55] Kant diz que é uma, explicita três mas há cinco formulas do Imperativo Categórico na GMS (ver WOOD e SHÖNECKER, 2014, p. 115 ss).

[56] Como consta na nota ak 420 máxima é o principio subjetivo e aqui Kant vai enumerar as características comuns das formulas do Imperativo Categórico, o que gera um problema de coerência discursiva interna. O original do texto em alemão está “maximen” portanto não é um erro de tradução. Mas certamente aqui ele quis se referir ao imperativo moral ou equivalente.

[57] Por esta palavra reino Kant entende a ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns. Como as leis determinam os fins segundo a sua validade universal, se se fizer abstração das diferenças pessoais entre os seres racionais e de todo o conteúdo dos seus fins particulares, poder-se-á conceber um todo do conjunto dos fins (tanto dos seres racionais como fins em si, como também dos fins próprios que cada qual pode propor a si mesmo) em ligação sistemática, quer dizer, um reino dos fins que seja possível segundo os princípios acima expostos. (GMS II Ak 433).

[58] Se é preciso deduzir o Imperativo Categórico de forma sintética da vontade livre o mesmo não ocorre com a liberdade e as leis morais pois de acordo com a tese da analiticidade (SCHONOCKER e WOOD, 2014, p. 160) “...assim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa...Se, pois, se pressupõe liberdade da vontade, segue-se daqui a moralidade com o seu princípio, por simples análise do seu conceito.” (GMS III, Ak 447). Justamente neste sentido é que na dedução o dever categórico “...representa uma proposição sintética a priori, por sobreviver à minha vontade afetada por apetites sensíveis ainda a idéia de precisamente a mesma vontade, mas pertencemente ao mundo intelegivel, pura, por si mesmo pratica (GMS III, 454) Aqui Schonecker e Wood (2014, p. 162) dizem que está a dedução do imperativo categórico.. Da analise do conceito de uma vontade livre se extrai leis morais (analiticidade), mas não se extrai delas o imperativo categórico porque outras intenções podem influenciar o agir prático.

[59]O conceito de sistema e mundo da vida de Habermas está no mesmo plano de oposição de sistema e ambiente de Luhman. O mundo vivido de Habermas tem, no entanto, uma dimensão fenomenológica primordial que o torna uma verdadeira "matéria" do mundo social, embora a racionalização do mundo vivido seja considerado inelutável e constitua a própria dinâmica da modernidade. (RAULET, 2009, p. 271).

[60] As referencias a TAC I correspodem a Teoria do Agir Comunicativo volume I, e TAC II ao volume II.

[61] Para Alexy atos locucionários descrevem, atos ilocucionarios regulam e perlocucionarios causam efeito e a originalidade de Austin está no ato ilocicionario pois neles estão o “ato de fala” (faz dizendo algo) propriamente dito (ALEXY, 2013, p. 63-65).

[62] Harald Kohl, em trabalho onde discuti a derivação da lei moral na GMS em Kant, defende como plausível a idéia de imperativos hipotéticos morais ao lado imperativos categóricos (KÖHL, 2006, p. 116). Com base nisso, é possível tratar o consenso habermasiano como um imperativo hipotético e com valor moral.

[63] GMS II, Ak 428.

[64] PIZZI, Jovino. Habermas na esteira do pensamento pós-metafísico II: bipolarismos simplificados. In: COLÓQUIO HABERMAS, 14.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 5., 2018, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2018. Disponível em: https://coloquiohabermas. files.wordpress.com/2018/12/anais-2018-completo2.pdf . Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[65]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[66]Cf. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/05/governador-contraria-policia-ao-exaltar-mae-pm-que- matou-criminoso.shtml, acessado em 29 de maio de 2018. Esse exemplo revela um antivalor e um prejuízo com morbidez estonteante.

[67] Em se tratando de Brasil, cabe ressaltar que foi o único país das Américas com fortes determinações “metafísicas e religiosas”. No caso, a presença da família real significou a implantação do modelo descrito por Habermas, ou seja, a “fusão entre política e religião” conseguiu efeitos legitimadores que ultrapassaram o século XVIII, retraduzindo-se em nomos espelhado na figura do “imperador”. A emanação do sagrado e da autoridade é, sem dúvidas, uma das representações importantes da figura de um soberano inviolável. No caso da educação, a incumbência da catequese e da educação, as congregações religiosas assumiram – e seguem na mesma linha – um papel fundamental na “formação das almas”. A implantação da república, no final do século XIX, não foi suficiente para dirimir suas imagens. Mesmo com a semana da Arte Moderna, nos anos 20, pouco mudou, pois, na maior parte dele, o país foi administrado por militares ou ditadores, com um teor político-religioso determinante. A proposta de uma redemocratização é muito recente para consolidar um modelo de democracia mais condizente com uma sociedade, por assim dizer, com características modernas. Em certa maneira, o período pós-ditadura se ressente de um debate público a respeito das questões nacionais. Ao mesmo tempo que assume uma tendência neoliberal (de um capitalismo globalizado), a concentração do poder busca legitimidade em um discurso monológico e neoconservador. Alguns aspectos dessas considerações estão em dois artigos publicados neste ano: Post-Dictaduras en América Latina. Capitalismo, políticas distributivas e interculturalidad (Tefros, 2018) e Esferas del reconocimiento intersubjetivo. El pensar latino-americano desde un sistema-mundo abierto a la interculturalidad (Logeion. Filosofia da Informação, 2018).

[68]É pertinente destacar a nova versão de Habermas, retraduzindo Lebenswelt não tanto como horizonte ou pano de fundo, mas como caixa de ressonância. Deste modo, introduz-se a possiblidade de sintonizar comunidade real e comunidade ideal de comunicação com duas esferas interdependentes. Assim, a metodologia reconstrutiva consegue afastar-se do excessivo procedimentalismo para, então, assumir um transcendentalismo mitigado, cujas decisões podem – e devem – permanece à mercê de uma revisão e reconsideração. Ao mesmo tempo, não são exigências universais que ditam o justo ou o correto, mas, através do processo de discussão, os sujeitos coautores definem normas, princípios e finalidades que orientam suas ações no espaço e no tempo. Deste modo, a “carga” de responsabilidade recai nos próprios coautores, sempre atentos a possíveis redefinições.

[69] ASTRAIN, Ricardo Salas; PIZZI, Jovino. El papel social del intelectual ante el overlapping malicious: el homenaje a Habermas como un intelectual que marcó época In: COLÓQUIO HABERMAS, 15.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 6., 2019, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2019. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2019/11/anais-pronto.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[70]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[71]Doctorado pela Université Catholique de Louvain la Neuve(1989).

[72] PIZZI, Jovino. A normalidad y sus patologías: la polifonía de la esfera pública ante el colapso pandémico. In: COLÓQUIO HABERMAS, 16.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 7., 2020, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2021. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2021/03/e-book-coloquio-habermas-final.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[73]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[74] Mary Douglas se refiere a los peligros de contaminación, con lo cual el ritual de lavar las manos antes de comer podría haber inmunizado “a los judíos en las pestes” (1991, p. 28). Ella también recuerda que, en determinadas culturas, hay restricciones para comer, por ejemplo, carne de cerdos, perros, liebres, conejos, camellos, aves de rapiña o de peces sin aletas ni escamas (1991, p. 29)

[75] El título original del libro es Nachmetaphysisches Denken II: Aufzätze und Replikent (Surkamp Verlag, 2012). En esta obra, Habermas asume con más claridad la cuestión del cambio climático y sus consecuencias. De mi punto de vista, esta es un cambio significativo frente a planteamientos hasta entonces.

[76] La noción de crisis se acerca al pensamiento de Edmundo Husserl, una pérdida del “horizonte de sentido” de las ciencias ante la reducción puramente descriptiva de un “objetivismo” con graves consecuencias. Para una comprensión más detallada, ver J. Pizzi (2008.)

[77] Según Honneth, “para poder hablar de una patología social, que según el modelo de la medicina debe ser accesible a un diagnóstico, hace falta una idea de normalidad que se refiera a la vida social en su totalidad” (2011, p. 115).

[78] Sería interesante una encuesta para ver cómo han reaccionado las teles, por ejemplo. Es decir, si todo sigue igual o si hay intentos de cambios. De mi punto de vista, siguen con los mismos patrones y sin cambiar nada.

[79] El libro de Michel Albert es una buena referencia para entender las diferencias inherentes al propio capitalismo. Cf. Capitalismo contra Capitalismo, Barcelona: Paidós, 1992. Habermas también tiene una obra interesante acerca del capitalismo, traducida como Problemas de legitimación del capitalismo tardío, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1981.

[80] Una versión más detallada de esta cuestión pronominal está en Jovino Pizzi, “Democracias bajo efectos clikcbait. La gramática pronominal como respuesta a la virtualidad tecnocrática” (Chile, 2018).

[81] CENCI, Maximiliano Sérgio; PIZZI, Jovino. O observatório global de patologias sociais: teoria e prática para a análise de nosso tempo. In: COLÓQUIO HABERMAS, 17.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 8., 2021, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2021. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2021/11/coloquio-habermas-2021.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[82]Professor Associado da Faculdade de Odontologia, da Universidade Federal de Pelotas, atuando na graduação no Programa de Pós-Graduação em Odontologia. Graduado e Mestre em Odontologia pela Universidade Federal de Pelotas, Doutor em Odontologia (Cariologia) pela Faculdade de Odontologia de Piracicaba - Universidade Estadual de Campinas (2004-2008).

[83]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[84]Os diferentes textos foram publicados no livro La Patología de la normalidad (Beltz Verlag, 1991; edição em espanhol de 1994).

[85] PIZZI, Jovino; ASTRAIN, Ricardo Salas. Nuestras conversaciones sobre las américas en movimiento. In: COLÓQUIO HABERMAS, 18.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 9., 2022, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2022. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2023/01/anais-pronto-1.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[86]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[87]Doctorado pela Université Catholique de Louvain la Neuve (1989).

[88]https://biblioteca-repositorio.clacso.edu.ar/bitstream/CLACSO/169328/1/Pensar-en-marcha. pdf.

[89] Cf. SALAS ASTRAIN, R. Filosofía intercultural, contextos asimétricos y experiencias de injusticia.  En, SARMIENTO SASTRE, M. (Ed.). Estudios Interculturales Desde El Sur.Procesos, debates y propuestas. Santiago: Ariadna Ediciones, 2021, p. 21-36.

[90]Cf. GRUESO VENEGAS, D. I. et. al. Pensar en marcha: filosofía y protesta social en Colombia. Buenos Aires: CLACSO, 2022.

[91] SALAS ASTRAIN, R. Desafíos ecomunitaristas, ética ambiental y territorios interétnicos. En, FUENTE, José de la y SALAS, Ricardo (Compiladores). Introducción al ecomunitarismo y la educación ambiental. Santiago: Ariadna Ediciones, 2021, p. 71-89.

[92]Bury my Heart at Wonder Knee.

[93] SALAS ASTRAIN, R. Pensar los conflictos sociopolíticos en la era de la dignidad de los pueblos. En GRUESO VENEGAS, D. I. et. al. Op. Cit., p. 531-551.

[94]https://www.counterpunch.org/2022/06/10/brazil-amazon-world-gods-necropolitics/https://www. Nexo jornal.com.br/ensaio/2022/N%C3%A3o-%C3%A9-incompet%C3%AAncia-nem-descaso-%C3%A9-m %C3%A9 todo.

[95]https://www.counterpunch.org/2022/06/10/brazil-amazon-world-gods-necropolitics/.

[96]https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2022/N%C3%A3o-%C3%A9-incompet%C3%AAncia-nem-de scaso-% C3%A9-m%C3%A9todo.

[97]https://philosophie.pantheonsorbonne.fr/evenements/injustices-epistemiques-approches-en-philoso phie-so cia le-morale-et-politique.

[98]Este texto compõe o escopo de pesquisa em andamento, financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba (FAPESQ). O projeto está́ sendo executado através Rede Interdisciplinar de Estudos sobre Violências - RIEV por meio de Convênio de Cooperação Científica entre Universidade Fedral da Santa Catarina – UFSC, a Universidade Federal da Paraíba – UFPB e a Universidade de Valência-Espanha.

[99] DUTRA, Delamar José Volpato; BRENNAND, Edna Gusmão de Góes; PIZZI, Jovino; Brasil: fundamentar ou aplicar os direitos humanos?. In: COLÓQUIO HABERMAS, 18.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 9., 2022, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2022. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2023/01/anais-pronto-1.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[100]Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Filosofia (UCS) e em Direito (UFSC), doutor em Filosofia pela UFRGS, com estágio de doutorado na Université Catholique de Louvain, Bélgica. Fez pós-doutorado na Columbia University (New York) sobre a relação entre Dworkin e Habermas. Fez também pós-doutorado na Aberystwyth University (País de Gales, Reino Unido) sobre o tema "Habermass Critique of Kant and Hobbes".

[101] Professora Titular da Universidade Federal da Paraíba. Possui Doutorado em Sociologia - Université Paris I Panthéon Sorbonne . Mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba.

[102]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[103] A Constituição da República Federativa do Brasil é exemplar nessa formulação. De fato, o art. 5º, XXII, o qual garante o direito de propriedade, é imediatamente seguido do inc. XXII, o qual determina que “a propriedade atenderá sua função social”.

[104] Poder-se-iam formular, nesse particular, três subargumentos de fundamentação: necessidades básicas, agência, interesses universais [TASIOULAS, John. On the Foundations of Human Rights. In CRUFT, Rowan, LIAO, S. Matthew, RENZO, Massimo [eds]. Philosophical Foundations of Human Rights. Oxford: Oxford University Press, p. 45-70, 2015, p. 66].

[105] O art. 81, da lei nº 8.078/90, que dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências, conceitua o direito difuso como transindividual, de natureza indivisível, sendo os titulares desses direitos sujeitos indeterminados. Já os direitos coletivos são, também, transindividuais de natureza indivisível, sendo titulares desse direito grupo, categoria ou classe. Por fim, define os direitos individuais homogêneos como os decorrentes de origem comum.

[106] “O modo de validade do direito aponta, não somente para a expectativa política de submissão à decisão e à coerção, mas também para a expectativa moral do reconhecimento racionalmente motivado de uma pretensão de validade normativa, a qual só pode ser resgatada através de argumentação. E os casos-limites do direito de legítima defesa e da desobediência civil, por exemplo, revelam que tais argumentações podem romper a própria forma jurídica que as institucionaliza” [HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. [Trad. F. B. Siebeneichler: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997 [1992], p. 247]. Um ordenamento jurídico não pode estabelecer o direito de desobediência, pois isso implicaria uma contradição. No caso de uma tal formulação, “a legislação suprema encerraria em si uma disposição segundo a qual não seria soberana, e o povo, como súdito, num mesmo e único juízo se constituiria soberano daquele a quem está submetido, o que é contraditório. Essa contradição é fragrante se alguém fizer a seguinte reflexão: quem, pois, deveria ser juiz na contenda entre o povo e o soberano? [...] É evidente que aqui o primeiro quer ser juiz em sua própria causa” [KANT, Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. [Trad. J. Beckenkamp: Metaphysische Anfangsgründe der Rechtlehre]. São Paulo: Martins Fontes, 2014 [1797], p. 320].

[107] HABERMAS, Jürgen. The Concept of Human Dignity and the Realistic Utopia of Human Rights. Metaphilosophy. V. 41, n. 4, 2010, p. 464-480.

[108]Ver também: HOHFELD, Wesley Newcomb. Faulty Analysis in Easement and License Cases. The Yale Law Journal. V. 27, n. 1, 1917, p. 71.

[109] Ver: VOLPATO DUTRA, Delamar José. Tolerância, cultura e direitos humanos em Habermas.Aurora. V. 33, p. 918-946, 2021a.

[110] A “sociedade não é em si uma comunidade, nem pode sê-lo tendo em vista o fato do pluralismo razoável.” [RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. [Cláudia Berliner: Justice as Fairness – A Restatement]. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [2001], p. 29]. “Uma sociedade democrática não é e não pode ser uma comunidade.” [RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. [Cláudia Berliner: Justice as Fairness – A Restatement]. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [2001], p. 4]. Isso está em acordo com o §67 de “Uma teoria da justiça”.

[111]  VOLPATO DUTRA, Delamar José. Tolerância, cultura e direitos humanos em Habermas. Aurora. V. 33, p. 918-946, 2021a.

[112] Para mais informações: REINA, Eduardo. Constituição desrespeitada: 34 anos depois da aprovação do fim da tortura, número de casos explode no país. In: Revista Consultor Jurídico. 3 de agosto de 2022. Disponível em: ConJur - 34 anos após aprovação do fim da tortura, casos explodem no país. Acesso em 04/08/2022.

[113] Para mais informações: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/11/policia-brasil-mata-em-5-anos-mais-que-dos-eua-em-30.html 13/11/2014. Acesso em 16/08/2022.

[114] Anuário brasileiro de segurança pública 2022. Ano 16, 2022, p. 78. https://forumseguranca. org.br/wp-content/ uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5.

[115] Para mais informações vide: "LEVARAM O REITOR"| Documentário sobre o caso Cancellier. [S. l.: s. n.], 13 dez. 2021. vídeo (1 h 16 min 1 s). Publicado pelo canal TV GGN. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=6GOgdEpKUp4 Acesso: 20 out. 2022.

[116]Para mais informações: CARDIM, Maria Eduarda. IBGE: 1% mais rico ganha 35 vezes mais renda do que os 50% mais pobres. In: Correio Braziliense. 19 de novembro de 2021. Disponível em: https://www.Correio braziliense.com.br/economia/2021/11/4964315-ibge-1-mais-rico-ganha-35-vezes-mais-renda-do-que-os-50-mais-pobres.html. Acesso em 12 ago. 2022.

[117]SALÁRIO mínimo nominal e necessário. In: DIEESE. Disponnível em: https://www.dieese.org.br/ analisecestabasica/salarioMinimo.html Acesso: 19 out. 2022.