DELAMAR JOSÉ VOLPATO DUTRA
COLETÂNEA COLÓQUIOS HABERMAS
VOLUME 2
DELAMAR JOSÉ VOLPATO DUTRA
Rio de Janeiro
2023
© 2023 Editora Salute
Este trabalho está licençiado sob a Licença Atribuição-Não Comercial 3.0 Brasil
da Creative Commons. Para ver uma cópia desta licença, visite
http://creativecommons.org/licenses/bync/3.0/br ou envie uma carta para
Creative Commons, 444 Castro Street, Suite 900, Mountain View, California,
94041, USA.
Autor: Delamar José Volpato Dutra.
Organização: Clovis Ricardo Montenegro de Lima
Editoração: Andreza dos Santos.
Capa: Tirza Cardoso.
Publicado no Brasil 2023.
Ficha catalográfica elaborada na fonte por Andreza dos Santos CRB 14/866.
V88c
Dutra, Delamar José Volpato.
Coletânea Colóquios Habermas, volume 2 Delamar José
Volpato Dutra [recurso eletrônico] / Delamar José Volpato Dutra;
Clóvis Ricardo Mintenegro de Lima (org.) - Rio de Janeiro : Salute,
2023.
176 p.
ISBN: 978-65-89784-05-0.
1. Habermas, Jurgen. 2. Filosofia. I. LIMA, Clóvis Ricardo
Montenegro de. II. Título.
CDD: 193
APRESENTAÇÃO
Neste ano de 2023 em que o Colóquio Habermas chega a sua 19ª edição, os
seus organizadores estão iniciando a publicação de uma coleção de coletâneas de
artigos por autores individuais e temas específicos. Cabe recordar que o Colóquio
Habermas é sempre organizado em torno de tema central genérico.
O Colóquio Habermas é um evento que foi idealizado e criado pelos
professores da Universidade Federal de Santa Catarina Alessandro Pinzani e
Delamar Dutra em 2005. Os Colóquios funcionam como espaço de divulgação e
discussão do pensamento do filósofo alemão Jurgen Habermas.
A coleção de Coletâneas de artigos apresentados no Colóquio Habermas
inicia com a publicação dos trabalhos de professor Jovino Pizzi, da Universidade
Federal de Pelotas. Outras coletâneas serão publicadas, no sentido de ampliar a
divulgação dos artigos, no espírito livre da licença Creative Commons.
Esperamos com esta coleção contribuir para a maior difusão e a melhor
recepção da obra de Habermas, segmentada entre autores com diferentes leituras e
experiências. A diversidade temática aponta para as múltiplas possibilidades de
fundamentação e de aplicação com a obra de filósofo, particularmente dedicado a
guinada epistemológica com a teoria de agir comunicativo e a razão prática da ética
e da política.
A discussão ética e política é extremamente relevante e pertinente neste
contexto em que o Brasil vive a sua reconstrução racional após seis anos de
obscurantismo de um golpe parlamentar e um governo de extrema-direita.
Precisamos de amplo entendimento democrático para orientar e sustentar a
construção de uma sociedade justa, livre, igualitária e sustentável.
Rio de Janeiro, 21 de junho de 2023.
Clovis Ricardo Montenegro de Lima
Organizador
PREFÁCIO
Esta coletânea reúne textos escritos entre 2005 e 2022, com a finalidade de
apresentação no Colóquio Habermas, que aconteceu, anualmente, nos últimos
anos, no IBICT. Como não poderia deixar de ser, os textos refletem preocupações
teóricas e práticas dos períodos nos quais foram escritos, preocupações estas que
foram tratadas tendo por base a filosofia habermasiana. O objetivo dos textos foi
duplo, expor a argumentação de Habermas a respeito do tópico escolhido e,
eventualmente, criticar e mesmo alterar parte da argumentação, no sentido de uma
melhor coerência e consistência.
O primeiro artigo explora as sobreposições e divergências entre o conteúdo
dos direitos humanos e sua forma jurídica, com o fito de esclarecer que os direitos
básicos que Habermas pretende obter independentemente da moral de fato
conservam uma semelhança de família com os direitos morais e não são, portanto,
de uma natureza completamente distinta. É verdade que a forma jurídica parece
alterar a natureza ou o conteúdo de um direito moral, posto Habermas sustentar que
a forma jurídica transforma o significado da moral, dando-lhe um modo diferente de
validade, contudo, sustenta-se, isso não vai ao ponto de espantar o parentesco
evidente entre ambos.
O segundo texto trata da questão do aborto por parte de Dworkin, Rawls e
Habermas. Defendeu-se que Dworkin apresenta uma posição bastante favorável ao
aborto com base na indeterminação da noção de valor intrínseco, já, Rawls, acaba
francamente aderindo a uma posição majoritária, devido, também, ao caráter
controverso da questão. Por fim, Habermas mantém uma posição processual com
base na deliberação calcada em argumentos.
O terceiro capítulo expõe o conceito de liberdade jurídica em Habermas.
Defendeu-se que o conceito de liberdade mobilizado por Hobbes deve ser tomado
com um aspecto analítico intransponível no que concerne a uma formulação jurídica
da liberdade. Na sequência, explora-se a recepção de tal conceito por parte de Kant.
Por fim, o texto tenta arbitrar como Habermas, em contraponto com Rousseau, se
movimenta entre os dois pensadores.
O quarto texto relata o resultado de uma pesquisa de pós-doutorado
desenvolvida em conjunto com Pizzi. A pesquisa concluiu que a gramática dos
pronomes é responsiva a estruturas mais profundas da comunicação,
exemplarmente, aquelas referentes ao reconhecimento.
O artigo 5 explora a tese honnethiana segundo a qual o direito seria
constituído por um tipo próprio de liberdade que seria estruturalmente patológica.
Sustenta-se que a tentativa de Honneth de apresentar um conceito alternativo de
liberdade é de tal modo sobrecarregado por determinações éticas que se torna
demasiadamente utópico para desempenhar o que se espera em uma sociedade
pós-metafísica.
O artigo 6 retoma o tema da liberdade jurídica ou da forma jurídica com foco
em Kant, especialmente no que concerne aos direitos políticos, resultando claro o
contraste com Rousseau.
O capítulo 7 foi escrito por ocasião da morte de Apel e visou expor algumas
de suas contribuições filosóficas, especialmente no que diz respeito ao
desenvolvimento de uma argumentação transcendental com base na filosofia da
linguagem, com implicaturas muitas claras para a tarefa de uma fundamentação da
ética discursiva.
O texto 8 foi escrito no contexto da pandemia do coronavírus. O seu objetivo
foi o de mostrar uma certa atualidade da problemática tratada por Kant em relação à
vacinação para a varíola.
Por fim, o artigo 9 foi escrito em conjunto com Brennand e Pizzi e visou a
apresentar traços distintivos da aplicação dos direitos humanos no Brasil,
exemplarmente, aquele referente a uma negativa da universalidade dos direitos
humanos para todos os humanos, e.g., para os humanos criminosos.
Aproveita-se a oportunidade para parabenizar o incansável esforço do Prof.
Clóvis Montenegro Lima no sentido do aprofundamento dos estudos habermasianos,
bem como na divulgação das pesquisas que vêm sendo feitas nos últimos anos a
respeito do pensador de Frankfurt.
Delamar José Volpato Dutra
SUMÁRIO
Capítulo I
O CONTEÚDO MORAL DOS DIREITOS BÁSICOS SEGUNDO HABERMAS ......... 10
Delamar José Volpato Dutra
Capítulo II
O ABORTO EM DWORKIN, HABERMAS E RAWLS: UMA COMPARAÇÃO .......... 23
Delamar José Volpato Dutra
Capítulo III
SOBRE A LIBERDADE JURÍDICA EM HABERMAS ............................................... 37
Delamar José Volpato Dutra
Capítulo IV
O SUJEITO PRONOMINAL E A GRAMÁTICA COMUNICATIVA: ELEMENTOS
PARA UMA GRAMÁTICA DA JUSTIÇA .................................................................. 56
Jovino Pizzi; Delamar José Volpato Dutra.
Capítulo V
HONNETH E AS PATOLOGIAS DO DIREITO ........................................................ 60
Delamar José Volpato Dutra
Capítulo VI
ELEMENTOS KANTIANOS PARA A COMPREENSÃO DA FORMA JURÍDICA EM
HABERMAS ............................................................................................................. 84
Delamar José Volpato Dutra
Capítulo VII
KARL-OTTO APEL (1922-2017): CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS...................... 99
Delamar José Volpato Dutra
Capítulo VIII
2020-2021, OS ANOS DA PESTE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VACINAÇÃO, A
PARTIR DE KANT E DA ÉTICA DISCURSIVA ..................................................... 133
Delamar José Volpato Dutra
Capítulo IX
BRASIL: FUNDAMENTAR OU APLICAR OS DIREITOS HUMANOS? ................. 155
Delamar José Volpato Dutra; Edna Gusmão de Góes Brennand; Jovino Pizzi.
CAPÍTULO I
CAPÍTULO I
10
O CONTEÚDO MORAL DOS DIREITOS BÁSICOS SEGUNDO HABERMAS
Delamar José Volpato Dutra
i
A relação entre moral e direito é essencial para a filosofia do direito. De fato,
se a coação é uma propriedade do direito, a correção é uma outra propriedade que
não pode ser deixada de lado. Pode-se mesmo afirmar que a filosofia do direito é
dependente da atribuição ou não atribuição de tal propriedade ao direito. Se ela não
for atribuída, seja de que forma isso for feito, a filosofia do direito terá pouco a dizer
em relação a esse objeto de estudo. Portanto, sob o ponto de vista da filosofia do
direito, tal propriedade é atribuída ao direito, restando estabelecer como ela deva ser
pensada. Para Kant, por exemplo, "a doutrina do direito e a doutrina da virtude, se
distinguem, então, bem menos por deveres diferentes que pela diferença de
legislação que associa à lei um móbil antes que um outro"
1
. Ou seja, parece
difícil sustentar a tese da completa separação entre a legitimidade jurídica e a moral,
havendo mesmo quem defenda uma conexão conceitual entre direito e justiça,
desqualificando como não jurídicas as regras que ultrapassem certo patamar de
injustiça
2
. A mencionada desqualificação pode ser feita, seja na tradição do direito
natural, tendo por base normas substantivas de correção, de forma que uma lei
injusta "não é lei, mas uma corruptela de lei"
3
, seja na perspectiva da filosofia da
linguagem, tendo por base uma autocontradição performativa no proferimento de
quem quisesse estabelecer uma regra jurídica injusta, como parece sugerir Alexy no
texto há pouco mencionado.
Tanto isso é verdade que se manifesta, contemporaneamente, uma
concepção pós-positivista do direito, deslocando o seu entendimento da vertente
positivista de Kelsen, Austin e Hart, bem como da vertente utilitarista de Bentham e
1
AA VI 220. Para Kant, o que caracteriza a Filosofia do Direito é o estudo do direito sob o ponto de
vista da justiça. Essa matriz própria da disciplina pode ser percebida já no início da “Doutrina do
direito”. De fato, nos §A, B e C da Introdução a essa obra, Kant distingue lei [Gesetz] de direito
[Recht]. Assim, ele pode diferenciar uma doutrina do direito positivo - ou seja, uma doutrina do direito
cuja preocupação é a lei [Gesetz, ius] no sentido da lei positiva, - de uma doutrina do direito que tem
por objeto o direito justo [Recht, iustum]. O especialista da primeira [iurisconsultus] seria o
conhecedor do que “dizem ou disseram as leis [Gesetz] em um certo lugar e em um certo tempo”
(quid sit iuris). O especialista da segunda seria o filósofo, visto que este buscaria o fundamento
[Grundlage], ou seja, “o critério universal com que se pode conhecer em geral tanto o justo quanto o
injusto (iustum et iniustum)”.
2
ALEXY, Robert. Begriff und Geltung des Rechts. Freiburg: K. Alber, 1994.
3
"Non lex sed legis corruptio" [Tomás de Aquino. Summa Theologiae. I-II, q. 95, a. 4c].
CAPÍTULO I
11
Mill, para uma concepção que, em última análise, recupera as imbricações entre
direito e moral. Para se ter uma idéia do que isso representa, basta ter em conta o
que Holmes defendeu em um texto de 1897: “nada, senão confusão de pensamento
pode resultar da assunção que os direitos do homem num sentido moral sejam
igualmente direitos no sentido da constituição e do direito”
4
. Ele chega a afirmar: “eu
freqüentemente fico em dúvida se não seria um ganho se toda palavra com
significação moral pudesse ser banida do direito completamente e outras palavras
fossem adotadas que pudessem expressar idéias jurídicas não contaminadas por
nada exterior ao direito”
5
. Holmes propugnava que o direito deveria ser conhecido a
partir da perspectiva do homem mau: “se você quiser conhecer o direito e nada
mais, você deve olhar para ele como um homem mau [o olharia]”
6
. O que poderia ser
mais distante do pensamento que se fixou no final do século XX, principalmente o
de Rawls e o de Dworkin. Basta notar que Dworkin propugna uma fusão entre direito
constitucional e teoria moral
7
.
Sabidamente, Kant sempre rejeitou uma leitura puramente empírica do direito:
“uma doutrina do direito simplesmente empírica (como a cabeça de madeira na
fábula de Fedro) é uma cabeça que talvez seja bela, mas, que pena!, não tem
cérebro”
8
. Tal leitura, na esteira do kantismo, vai ao ponto de transformar as leis
jurídicas em uma subclasse das leis morais
9
, que Kant fala mesmo de um
conceito moral de direito
10
e do direito como faculdade moral de obrigar os outros
11
.
Nas palavras de Heck, "Kant possui um conceito moral de direito e um princípio
jusnaturalista de direito [...] O conceito moral de direito contém uma obrigatoriedade
(Verbindlichkeit) comum à Doutrina do direito e à Doutrina da virtude"
12
. Sendo
assim, "a possibilidade de haver obrigações jurídicas se deve, em Kant, ao fato de
4
HOLMES, Oliver Wendel. The Path of the Law. Harvard Law Review. V. X, n. 8, 1897, p. 460.
5
HOLMES, Oliver Wendel. The Path of the Law. Harvard Law Review. V. X, n. 8, 1897, p. 464.
6
HOLMES, Oliver Wendel. The Path of the Law. Harvard Law Review. V. X, n. 8, 1897, p. 459.
7
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford: Oxford
University Press, 1996.
8
AA VI 230. KANT. Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre. A tradução é de José N.
Heck. Eine bloss empirische Rechtslehre ist (wie der hölzerne Kopf in Phädrus‟ Fabel) ein Kopf, der
schön sein mag, nur schade! dass er kein Gehirn hat”.
9
morais [ALMEIDA, Guido Antônio de. Sobre o princípio e a lei universal do Direito em Kant. Kriterion.
N. 114, 2006, p. 209-222. Passin]. Conferir no mesmo sentido: GUYER, Paul. Kant‟s Deduction of the
Principles of Right. IN TIMMONS, Mark [ed.]. Kant’s Metaphysics of Morals: interpretative essays.
Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 23-64; HECK, José N. Direito e moral: duas lições sobre
Kant. Goiânia: EDUFG/EDUCG, 2000.
10
AA VI 230.
11
AA VI 237.
12
HECK, José N. Direito e moral: duas lições sobre Kant. Goiânia: EDUFG/EDUCG, 2000, p. 24.
CAPÍTULO I
12
haver uma efetiva obrigatoriedade moral"
13
. De fato, Kant afirma lapidarmente: “nós
conhecemos nossa própria liberdade (de que procedem todas as leis morais,
portanto também todos os direitos tanto quanto os deveres) através do imperativo
moral, que é uma proposição que ordena um dever, a partir do qual pode ser
desenvolvida posteriormente a faculdade de obrigar os outros, i. e., o conceito do
direito”
14
. O próprio Habermas afirma não ser possível tratar da legitimidade jurídica
sem referência à moral: “através dos componentes de legitimidade da validade
jurídica, o direito adquire uma relação com a moral”
15
. Assim, o como negar
que a moral tenha uma relação complementar ao direito. No entanto, será que tal
relação necessária da legitimidade jurídica à moral implica que as normas jurídicas
legítimas sejam uma subclasse das leis morais? Uma questão como essa sugere
não estar esclarecida adequadamente a relação entre a moral e o direito.
Tal problemática encontra um lugar privilegiado de tratamento na obra de
Habermas, pois nela aparece essa tensão da relação entre a normatividade jurídica
e moral, que, por um lado, como mencionado, ele afirma: “uma ordem jurídica
pode ser legítima, quando não contrariar princípios morais. Através dos
componentes de legitimidade da validade jurídica, o direito adquire uma relação com
a moral”
16
e, por outro lado, recusa fortemente que a justificação do direito seja
simplesmente subordinada à justificação moral: “entretanto, essa relação não deve
levar-nos a subordinar o direito à moral, no sentido de uma hierarquia de normas”
17
.
Na argumentação de Habermas está em questão a dificuldade de como
conciliar os seguintes elementos: o conteúdo moral dos direitos humanos, a
democracia e a forma jurídica. Sua tese é de que os direitos humanos passam a ser
condições formais da forma jurídica
18
, a qual é o verso da medalha da coerção
19
,
que o característico do direito é o caráter positivo e impositivo
20
. Dessa maneira, por
um lado, a forma jurídica é despida de normatividade, posto que analisada
13
HECK, José N. Direito e moral: duas lições sobre Kant. Goiânia: EDUFG/EDUCG, 2000, p. 25.
14
AA VI 239.
15
TrFG1 p. 140-1. “Denn eine Rechtsordnung kann nur legitim sein, wenn sie moralischen
Grundsätzen nicht widerspricht. Dem positiven Recht bleibt, über die Legitimitätskomponente der
Rechtsgeltung, ein Bezug zur Moral eingeschrieben” [FG p. 137].
16
TrFG1 p. 140-1. “Denn eine Rechtsordnung kann nur legitim sein, wenn sie moralischen
Grundsätzen nicht widerspricht. Dem positiven Recht bleibt, über die Legitimitätskomponente der
Rechtsgeltung, ein Bezug zur Moral eingeschrieben” [FG p. 137].
17
TrFG1 p. 141 [FG p. 137].
18
FG p. 135, 670.
19
FG p. 152.
20
FG p. 106.
CAPÍTULO I
13
funcionalmente.
Por outro lado, ele conecta fortemente parte dos direitos liberais em sentido
moral à forma jurídica, como uma espécie de descrição de seu estatuto, pois,
segundo ele, “sob a forma de direitos subjetivos, as energias do livre arbítrio, do agir
estratégico e da auto-realização o liberadas”
21
. Ou seja, o conceito de direito
subjetivo é um gênero que engloba a ação ética no sentido da auto-realização, a
ação estratégica e a ação moral, pois também não pode proibir esta última. Assim, se
por um lado Habermas afirma que o sistema de direitos não pode ser reduzido a
uma interpretação moral, por outro lado sustenta que
“as intuições normativas, que unimos aos direitos humanos e à soberania do
povo, podem impor-se de forma não-reduzida no sistema dos direitos [...] a
substância dos direitos humanos insere-se, então, nas condições formais
para a institucionalização jurídica desse tipo de formação discursiva da
opinião e da vontade, na qual a soberania do povo assume figura jurídica"
22
.
Sustenta, assim, um conteúdo moral dos direitos fundamentais: "o conteúdo
moral de direitos fundamentais e de princípios do Estado de direito se explica pelo
fato de que os conteúdos das normas fundamentais do direito e da moral, às quais
subjaz o mesmo princípio do discurso, se cruzam"
23
. Como explica Berten, “para
Habermas, pelo contrário [de Rawls], tem que manter uma distinção radical entre os
direitos, que remetem à moral, e os bens, que dizem respeito a valores e éticas
teleológicas”
24
. Desse modo, no caminho percorrido para que o princípio do discurso
assuma forma legal
25
, a substância normativa dos direitos humanos acaba
albergada no sistema dos direitos básicos, normatividade esta advinda, seja da
liberdade pressuposta pelo princípio do discurso, seja da liberdade pressuposta pela
forma jurídica. Inclusive, Habermas parece ter clara predileção pela liberdade
oriunda da forma jurídica sob a rubrica dos direitos subjetivos, pois esta é mais
ampla que aquela ínsita no princípio do discurso. Assim sendo, ele perscruta a
liberdade subjacente à possibilidade da liberdade de agir conforme ao dever e
conclui que ela parece mais extensa, posto que amplia os motivos de agir, sem
21
TrFG2 p. 324 [FG p. 679].
22
TrFG1 p. 138-9 [FG p. 134-5]
23
TrFG1 p. 256 [FG p. 253].
24
BERTEN, André. Por que Habermas não é e não pode ser um contratualista? IN PINZANI,
Alessandro, VOLPATO DUTRA, Delamar. Habermas em discussão. Anais do Colóquio Habermas
realizado na UFSC (Florianópolis, 30 de março 1º. de Abril de 2005). Florianópolis: NÉFIPO, 2005,
p. 131. Habermas acusa a Rawls de descrever os direitos como uma categoria de bens entre outros.
25
FG p. 670. Nachwort.
CAPÍTULO I
14
espantar a própria motivação moral, sendo formadora da própria noção de um dever
legal. Portanto, os direitos humanos podem ser deduzidos da própria forma legal das
normas, como um espaço de arbítrio mais amplo que aquele permitido pela moral
26
.
É uma argumentação que encontra dificuldade em aparar todas as arestas,
pois Habermas quer evitar uma leitura moral da autonomia, de tal forma que nem
os direitos fundamentais sejam simples cópias de direitos morais, nem a
autonomia política seja simples cópia da autonomia moral
27
. Sabe-se que ele separa
direito de moral desde o início, tanto que critica a Rawls pela pseudo-distinção entre
moral e justiça política, por estarem no mesmo nível
28
. Propõe, assim, que o sistema
de direitos não pode ser uma leitura moral dos direitos humanos
29
. Isso, no entanto,
não significa que não tenham semelhanças de família. De fato, Habermas
estabelece uma relação tênue entre direitos humanos, moral e direito: “os direitos
humanos, inscritos na prática de autodeterminação democrática dos cidadãos, têm
de ser interpretados a limine como direitos jurídicos, não obstante seu conteúdo
moral”
30
. O ponto está em saber se os direitos humanos ao assumirem a forma
jurídica e se transformarem em direitos básicos perdem o seu conteúdo moral ou se
podem continuar com esse conteúdo apesar da forma jurídica em que são impostos.
A resposta parece ser negativa, ou seja, que não perdem seu conteúdo moral, pois
ele sustenta explicitamente que “a substância dos direitos humanos insere-se, então,
nas condições formais para a institucionalização jurídica desse tipo de formação
discursiva da opinião e da vontade, na qual a soberania do povo assume figura
jurídica"
31
. Apesar disso, direitos fundamentais não são uma mera imitação de
direitos morais
32
.
Uma explicação melhor dessa afirmação pode ser encontrada no texto A idéia
kantiana de paz perpétua à distância histórica de 200 anos, publicado em A
inclusão do outro, no qual Habermas sustenta que o conceito de direitos humanos
não é de origem moral
33
, mas
26
FG p. 666. Nachwort.
27
FG p. 138.
28
FG p. 106.
29
FG p. 134.
30
TrFG1 p. 140 [FG p. 136].
31
TrFG1 p. 138-9 [FG p. 134-5]
32
FG p. 138
33
“Der Begriff des Menschenrechts ist nicht moralischer Herkunft" [HABERMAS, Jürgen. Die
Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p.
222].
CAPÍTULO I
15
“uma manifestação específica do conceito moderno de direitos subjetivos,
ou seja, uma manifestação da conceitualidade jurídica. Os direitos humanos
são a partir de sua origem de natureza jurídica. O que lhes confere a
aparência de direitos morais não é o seu conteúdo, nem ainda sua
estrutura, mas um sentido validativo que aponta para além das ordens
jurídicas características dos Estados nacionais”
34
.
Habermas vai além da sustentação de que os direitos básicos compartilham
com as normas morais a universalidade e afirma que eles podem ser
fundamentados sob o ponto de vista moral
35
. Ou seja, os direitos básicos concernem
a matérias de tal generalidade que argumentos morais são suficientes para sua
justificação, não necessitando recorrer a argumentos pragmáticos ou ético-
políticos
36
. O ponto é que não uma diferença estrutural entre generalidade moral
e jurídica, pois do fato do direito se endereçar a um número indeterminado de
pessoas, ainda que a membros pertencentes a uma comunidade de um Estado, e
da moral se endereçar a todos, não se segue que haja uma diferença essencial,
visto que tanto um quanto outra remetem à igualdade
37
. O importante é que a
justificação de uma norma pela generalidade moral não lhe retira o caráter jurídico,
não a transforma estruturalmente em norma moral. Ou seja, a forma legal é
preservada independentemente das razões que justificam as normas.
Portanto, os direitos básicos devem o seu caráter jurídico à sua estrutura, não
ao seu conteúdo
38
. Melhor dito, o que a aparência moral aos direitos básicos é o
modo de sua validade, ou seja, a universalidade, mas, independentemente desse
modo de validade e independentemente inclusive do conteúdo, o que lhes o
caráter jurídico é a estrutura da forma jurídica que os transformam em direitos
subjetivos acionáveis coativamente. Portanto, sob o ponto de vista da validade e do
conteúdo, até poderiam ser interpretados moralmente, mas não sob o ponto de vista
da sua estrutura. Ou seja, é falsa a tese de que os direitos humanos sejam em
34
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. 2. ed., São Paulo: Loyala,
2004, p. 222 [HABERMAS, Jürgen. Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen Theorie.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p. 222].
35
“[...] weil sie ausschliesslich unter dem moralischen Gesichtspunkt begründet werden können"
[HABERMAS, Jürgen. Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen Theorie. Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1997, p. 223].
36
“Grundrechte regeln hingegen Materien von solcher Allgemeinheit, daß moralische Argumente zu
ihrer Begründung hinreichen" [HABERMAS, Jürgen. Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur
politischen Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p. 223].
37
FG p. 191.
38
“Denn diesen Charakter verdanken sie ihrer Struktur, nicht ihrem Inhalt" [HABERMAS, Jürgen. Die
Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p.
224].
CAPÍTULO I
16
sua essência [von Haus aus] direitos morais
39
.
Uma clara manifestação do caráter moral da liberdade operante no sistema
de direitos pode ser vista na seguinte argumentação. Na explicitação da tese da co-
originariedade entre liberdade pública e privada é bastante patente à inter-relação e
mesmo dependência daquela em relação a esta, visto que esta cumpre a função de
condição de possibilidade daquela quando se estrutura a democracia sob a forma do
direito. No entanto, não é flagrante a conexão da liberdade privada em relação à
pública, pois parece que a liberdade privada conservaria um valor intrínseco,
independente de possibilitar a formulação jurídica da democracia. Ou seja, a
interpretação que a liberdade privada é condição de possibilidade da pública "não
pode, evidentemente, culminar numa funcionalização de todos os direitos
fundamentais para o processo democrático"
40
. A dependência da liberdade privada
em relação à pública concerne mais à explicitação daquela e não propriamente à
sua condição de possibilidade, como parece ser o caso da liberdade pública que tem
a liberdade privada como sua condição de possibilidade. Assim, a necessidade da
soberania popular decorre da necessidade de formular adequadamente os direitos
individuais
41
e de distribuir igualmente os direitos
42
. Mesmo que os argumentos
sejam dispostos do modo exposto, Habermas pretende que a democracia tome o
lugar das liberdades negativas no liberalismo político
43
.
É uma tarefa complexa formular um sistema de direitos que deve ser gestado
independentemente da moral pela razão de que os direitos humanos não podem ser
impostos ao legislador, que se recusa uma relação de cópia entre direito e
moral
44
. Nesse sentido, o ovo de Colombo
45
de Habermas é extrair os direitos
fundamentais da prática performativa de fazer a lei. Habermas, ao construir o
sistema de direitos a partir da perspectiva do autor, pode “deduzi-lo” a partir da
“reflexão” sobre a prática legislativa juridicamente estabelecida. Como ele mesmo
39
HABERMAS, Jürgen. Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen Theorie. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1997, p. 225.
40
TrFG2 p. 158 [FG p. 504].
41
FG p. 664. Nachwort.
42
FG p. 671. Nachwort. HABERMAS, Jürgen. Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur
politischen Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p. 127.
43
HABERMAS, Jürgen. Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen Theorie. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1997, p. 98-9. Naturalmente, esse é um ponto a merecer melhor consideração, o
que não poderá ser feito no presente contexto.
44
FG p. 137.
45
Como se sabe, essa objeção foi formulada por Tugendhat contra a ética discursiva [TUGENDHAT,
Ernst. Lições sobre ética. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 25].
CAPÍTULO I
17
afirma, "tomo como ponto de partida os direitos que os cidadãos têm que atribuir uns
aos outros, caso queiram regular legitimamente sua convivência com meios do
direito positivo"
46
. Ou seja, "os civis apenas explicitam o sentido do empreendimento
ao qual eles se dedicaram, ao decidirem regulamentar legitimamente sua
convivência através do direito"
47
, sendo que "o sistema dos direitos apenas
interpreta aquilo que os participantes da prática de auto-organização de uma
sociedade de parceiros do direito, livres e iguais, têm que pressupor
implicitamente"
48
. Nesse diapasão, direitos básicos elucidam “as condições para que
o indivíduo possa participar de um discurso de fundamentação racional acerca de
direitos legais, para que estes possam ser legítimos”
49
. O que se defende é que os
direitos humanos não possam ser impostos de fora do procedimento, como se
procedessem de uma razão legisladora a priori. Nesse caso, haveria um
paternalismo da razão prática moral sobre o legislador democrático e sobre o
direito. Os direitos humanos têm que ser descobertos como condição de
possibilidade da própria prática de se dar leis livremente.
Assim se esclarece que os direitos básicos que Habermas pretende obter
independentemente da moral de fato conservam uma semelhança de família com
os direitos morais e não são, portanto, de uma natureza completamente distinta. É
verdade que a forma jurídica parece alterar a natureza ou conteúdo de um direito
moral, posto Habermas sustentar que a forma jurídica transforma o significado da
moral
50
, dando-lhe um modo diferente de validade
51
, contudo, isso não vai ao ponto
de espantar o parentesco evidente entre ambos.
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46
TrFG1 p. 113 [FG p. 109].
47
TrFG1 p. 166 [FG p. 163].
48
TrFG2 p. 159 [FG p. 504].
49
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50
FG p. 250.
51
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CAPÍTULO II
CAPÍTULO II
23
O ABORTO EM DWORKIN, HABERMAS E RAWLS: UMA COMPARAÇÃO
Delamar José Volpato Dutra
Dworkin: a indeterminação da noção de valor intrínseco
Dworkin parte da distinção entre avaliação moral do aborto e avaliação da
intervenção do Estado em tal matéria. Ou seja, trata-se de distinguir:
“se o aborto por algum motivo é errado da questão se se de fato é é
correto para o Estado proibi-lo. Minha posição é que quando a única
justificação do Estado para proibir o exercício de uma liberdade importante
for a proteção de um valor separado [detached] com uma dimensão
religiosa, então o Estado não tem o direito de proibir, não interessa o motivo
em questão
1
.
O Estado tem a tarefa fazer com que os cidadãos decidam tais questões
responsavelmente e não deve impor a visão da maioria sobre a correção do aborto.
A moralidade política pode ser entendida como a aplicação de
determinações morais sobre a política, de tal forma que se possam estatuir
princípios básicos morais que deveriam ser respeitados pelos atos da política, ou
seja, por aqueles atos que emanam coativamente do Estado. De fato, Rawls designa
como justiça política, a justiça da constituição
2
.
Para que os atos da comunidade política sejam também os atos de cada um
é preciso que todos sejam autores de tais atos, portanto, que todos sejam membros
de tal comunidade. O conceito moral de membro faz o indivíduo tomar parte no
autogoverno, pois a democracia é um governo pelo povo, o que induz ao conceito de
ser membro co-autor dos atos legislativos: "se eu sou um membro genuíno de uma
comunidade política, seus atos são, em algum sentido pertinente, meus atos, mesmo
quando argumentei e votei contra"
3
. Nesse sentido, "majoritarianismo não pode
garantir autogoverno a menos que todos os membros da comunidade em questão
1
DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard
University Press, 2000. 432.
2
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 23.
3
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 24.
CAPÍTULO II
24
sejam membros morais"
4
.
A concepção constitucional de democracia pressupõe condições
democráticas. Tais condições têm que ser satisfeitas antes que a premissa
majoritária possa pretender uma vantagem moral sobre os demais procedimentos de
decisão: "as condições democráticas são as condições de um membro moral numa
comunidade política"
5
. Assim, a liberdade positiva não é sacrificada quando e em
razão da premissa majoritária ser ignorada, mas ela é aumentada quando tal
premissa é recusada em favor da concepção constitucional de democracia, pois é
defender a condição de membro moral, condição mesma da democracia
6
.
Dworkin pretende resolver a questão sobre a moralidade do aborto e da
eutanásia a partir de uma distinção de fundamentos: derivado, ou separado
[derivative or detached]. Ao primeiro fundamento vinculam-se interesses e,
devidamente, direitos; ao segundo fundamento vincula-se valor intrínseco. O
problema é que as opiniões sobre valor intrínseco são variadas, em razão de
estarem coladas com formulações religiosas. Ele defende o valor intrínseco da vida,
sendo que a correção ou não do aborto vai depender, portanto, dos seus motivos.
Nesse sentido, o aborto mostrará respeito pela vida humana motivado por uma
das seguintes razões: aa] a criança teria uma vida frustrada; bb] o nascimento da
criança teria um impacto catastrófico na vida de outras pessoas. Neste caso, seria
um balanceamento com o valor intrínseco de outras vidas. Tal operação lhe permite
resolver a controvérsia no nível da moralidade política, com base quase exclusiva na
estratégia liberal paradigmática de tratamento de questões morais básicas, a
tolerância religiosa. "Tolerância é o preço que devemos pagar por nossa aventura na
4
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 23.
5
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 24.
6
Quais são essas condições para ser um membro moral que estão à base da democracia e, portanto,
da concepção constitucional de democracia? Dworkin nomina três condições [DWORKIN, Ronald.
Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford: Oxford University Press,
1996. p. 24-6]: aaa] instrumentais, como território, língua e relacionais, ou seja, ser parte como
comunidade por meio do voto, da liberdade de expressão. Tais condições garantem a possibilidade
de fazer diferença no processo político; bbb] igual consideração e respeito na distribuição de bens e
direitos, pois o conceito de ser um membro envolve reciprocidade; ccc] independência moral, ou seja,
a possibilidade de cada um se ver como parte num empreendimento coletivo: "uma comunidade
política genuína deve ser uma comunidade de agentes morais independentes" [DWORKIN, Ronald.
Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford: Oxford University Press,
1996. p. 26]. Isso implica, como se verá, que a maioria não deva se imiscuir em assuntos de vida,
morte, felicidade, voto.
CAPÍTULO II
25
liberdade"
7
. Permite-lhe, ato contínuo posicionar-se contra o aborto,
moderadamente. Ou seja, defender o direito ao aborto e ao mesmo tempo condenar
o aborto como um engano ético
8
.
Para ele, o governo tem responsabilidades que se seguem dos interesses
e direitos das pessoas e outras responsabilidades que se seguem da noção de
valor intrínseco, por ex., com relação à vida e à arte. O valor intrínseco de algo é
separado ou independente, pois não se segue do fato de ter interesses, ou direitos
[derivativa]. Em muitos casos, ambos coincidem. Assim, o art. 121 do CP protege a
vida, num sentido independente e derivativo. Mas, às vezes não coincide. Na
proibição da eutanásia não coincide, pois se pode pensar que morrer é no melhor
interesse da pessoa [fundamento derivado], mas mesmo assim ofender o valor
intrínseco da vida [fundamento separado]
9
.
No tratamento da questão, a concepção derivativa pressupõe que o feto
tenha interesses e direitos, portanto, que ele seja uma pessoa constitucional. A
concepção independente, separada, não precisa dessa pressuposição, pois o feto
tem valor intrínseco, mesmo não sendo uma pessoa constitucional. O feto não tem
interesses e direitos do tipo que o governo tenha uma responsabilidade derivada de
proteger, nem valor intrínseco que o governo possa pretender uma responsabilidade
independente de guardar. Nesse sentido, o caso julgado pela Suprema Corte, Roe v
Wade, é uma decisão correta, pois estabeleceu que o Estado tem uma
responsabilidade separada, independente, de proteger o feto, e não derivativa. Ele
rebate o argumento de Ely de que o Estado pode proteger tout court interesses de
não-pessoas, por ex., cachorros, pois o Estado não pode fazer isso com uma
significativa redução do direito de uma pessoa constitucional, como o direito da
mulher controlar seu corpo
10
.
Nem tudo o que pode ser destruído tem um interesse em não ser destruído,
por ex., uma estátua. Para ter um interesse tem que ter vida mental, consciência, por
7
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 112.
8
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 36.
9
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 91.
10
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 90.
CAPÍTULO II
26
ex., poder sentir dor. O feto não pode sentir dor
11
. Num caso como o do feto, o que
significa o interesse do Estado em proteger a vida? Pode significar:
aa] responsabilidade: o Estado pode pretender que as pessoas sejam
responsáveis ao decidir o aborto, porque tratam de uma questão muito importante,
com valor intrínseco;
b] conformidade: o Estado pode querer decidir o aborto segundo o que a
maioria pensa que respeita o valor intrínseco, ou seja, nos casos que a maioria
pensa ser ele legítimo
12
.
Como o feto não é uma pessoa constitucionalmente protegida, resta a
santidade da vida, a noção de valor intrínseco, que é uma matéria controversa, pois
é controverso radicalmente o que requer o valor intrínseco da vida num caso
particular, por exemplo, quando o feto for deformado, ou quando ter uma criança
implicar em depressão para a vida da mãe
13
.
Evidentemente, o Estado pode defender valores intrínsecos, como a arte.
Mas não pode:
aaa] quando isso implicar em num grande impacto sobre pessoas em
particular.
1. “Uma mulher que é forçada pela sua comunidade a gerar [to bear] uma
criança que ela não quer, é como no passado estar no controle do próprio
corpo dela. Toma-se posse do seu corpo para fins que ela não compartilha.
Isso é uma escravidão parcial, uma deprivação da liberdade muito mais
séria do que qualquer desvantagem que cidadãos possam suportar (bear)
para proteger tesouros culturais, ou salvar espécies ameaçadas. A
escravidão parcial de uma gravidez forçada, ademais, é somente o começo
de um preço pago pela mulher a quem é negado um oborto”.
bbb] quando houver profundo desacordo sobre tal valor, quando a
comunidade estiver divida sobre o que tal valor requer, então, o Estado não pode
ditar o que requer o valor intrínseco;
ccc] quando nossas convicções sobre COMO E POR QUE a vida humana
tem valor intrínseco for muito mais fundamental para nossa personalidade moral do
que as convicções sobre outros valores intrínsecos. Ou seja, quando envolver algo
11
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 91.
12
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 95.
13
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 95-96.
CAPÍTULO II
27
pessoal, ou religioso. Dito de outro modo, a moralidade política vertida na
constituição, limita a invasão da liberdade para defender um valor intrínseco que
implique no estabelecido nas três condições acima.
Para Dworkin, em seu livro Life´s Dominion
14
, o centro do debate sobre o
aborto é o desacordo sobre a interpretação do valor intrínseco da vida. Nesse
sentido, é um debate mais profundo do que a discussão se o feto é, ou não é, uma
pessoa. O ponto é que interpretamos de distintos modos a idéia de que a vida
humana seja valiosa. Tal desacordo sobre o aborto é profundo e pode ser perpétuo.
No entanto, tal assertiva, defende ele, deveria levar à união, pois a comunidade
política é possível, mesmo que existam profundas discordâncias religiosas. Em
suma, o valor sagrado da vida humana permite interpretações diferentes. De fato, a
santidade da vida é uma noção controversa, por exemplo, quando um feto for
deformado, como no caso da anencefalia, será o aborto, ou o nascimento, que
servirá melhor ao valor intrínseco da vida? Quando o nascimento da criança arruinar
os planos de vida da mãe pode-se levantar a mesma questão.
Dado esse caráter controverso, o Estado não pode pretender impor a
vontade da maioria, pois tal coação se exerceria de forma muito contundente sobre
um grupo, as mulheres, além disso, tais convicções de como e por que a vida
humana tem valor intrínseco são fundamentais de uma maneira radical para nossa
vida, sendo diferente de se preservar obras de arte, ou espécies animais. É
justamente por se tratar de aspectos fundamentais da existência que o valor
intrínseco da vida humana é na essência religiosa, pois a religião responde aos
aspectos mais terríveis da vida humana, quais sejam, o sentido da vida, o seu valor,
e a morte, principalmente. Se a maioria pudesse impor sobre o resto dos indivíduos
suas próprias concepções a respeito da santidade da vida, então, o Estado poderia
exigir o aborto em alguns casos, por exemplo, no caso de formação fetal, o que
nos soa, certamente, absurdo. Pela mesma razão, não pode exigir que uma mulher
que gesta um feto anencéfalo seja obrigada a -lo. Se a maioria tivesse o poder de
implantar suas convicções sobre a santidade da vida, então, o Estado poderia exigir
isso, mesmo contra as crenças religiosas ou éticas das pessoas, assim como pode
requerer vacinação hoje em dia.
Uma verdadeira percepção da dignidade deve apelar para a liberdade e não
14
DWORKIN, Ronald. Life’s Dominion. An Argument About Abortion, Euthanasia, and Individual
Freedom. New York: Vintage Books, 1994.
CAPÍTULO II
28
para a coerção penal a fim de impor um ponto de vista de alguma maioria sobre os
demais indivíduos em questões tão cruciais como a vida e a morte. Nesse sentido,
vale a observação do juiz Brennan: se a privacidade significa algo, ela significa o
direito do indivíduo não sofrer intromissão do governo em matérias que afetam tão
fundamentalmente uma pessoa, como engendrar, ou ter um filho. Nesse sentido,
algo é religioso pelo seu conteúdo e não pela importância subjetiva que tenha. Por
isso, a crença sobre o valor intrínseco da vida humana pode ser descrita como
"essencialmente uma crença religiosa" e, portanto, sob o ponto de vista
constitucional americano devem ser consideradas sob a primeira emenda. É claro
que o direito à intimidade, base da decisão do precedente americano, não garantiria
o direito de abortar se o feto fosse uma pessoa
15
. Sendo assim, o aborto pode ser
resolvido, tanto pela cláusula do devido processo da 14ª, emenda à constituição
americana, como pela liberdade religiosa da 1ª. emenda constitucional. Em suma, o
Estado não pode ditar como se deve respeitar o valor intrínseco da vida.
A questão, portanto, não é quem têm direitos, ou como interesses diferentes
devem ser balanceados e protegidos. A democracia tem o dever de assegurar que
as pessoas tenham o direito de viver suas vidas em acordo com suas próprias
convicções sobre questões religiosas essenciais
16
.
Com relação ao precedente americano, o esquema de trimestres parece
arbitrário. Afinal, por que é no sétimo mês que o feto passa a ser pessoa
constitucionalmente protegida? Por que não antes? Por que a viabilidade marca o
fim o direito da mãe abortar? Por que o Estado pode proibir o aborto depois da
viabilidade? A resposta de Dworkin é: porque naquele ponto começa a sentir dor,
portanto, a ter vida mental. Nesse ponto o Estado pode ter um interesse derivado em
coagir que não a partir da concepção coletiva da santidade da vida
17
. Assim, o
insulto ao valor da vida é maior conforme o feto for mais desenvolvido. De tal forma
que a sociedade pode se proteger de um tal insulto exigindo reflexão de quem
decide pelo aborto.
A defesa do aborto potencializa a liberdade, imputando a ela o direito de
15
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 102.
16
44 DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 106.
17
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 113.
CAPÍTULO II
29
definir o significado do universo e o mistério da vida humana
18
. Tal não poderia ser
limitado, no ordenamento americano ao menos, senão por emenda constitucional
que declarasse o feto uma pessoa
19
. Mesmo assim, seria uma emenda que feriria a
liberdade, pois proibir o aborto antes da viabilidade negaria a liberdade sem o devido
processo
20
. De fato, a claúsula do due process visa a proteger liberdades
fundamentais, sendo a salvaguarda dos direitos individuais uma precondição da
própria democracia, não um compromisso
21
.
No caso brasileiro, apesar de ser proibido o aborto, parece que o feto não
tenha direito à vida tout court, o que pode ser visto a partir das exceções permitidas.
O aborto para salvar a vida da mãe é consistente com o direito à vida, porque
poderia ser justificado pelo estado de necessidade. Mas, no caso de estupro,
uma inconsistência com o direito à vida, que, por analogia, quando eu firo
mortalmente alguém, inutilizando, por exemplo, seu coração, isso não implica na
permissão de que eu possa ser morto para que meu coração seja doado a quem eu
tenha cometido um ato de violência. Além disso, a tipificação do crime numa figura
particular, como aborto, com pena máxima de 10 anos e não como homicídio, com
penha máxima de a20 anos, é um indício dessa inconsistência com o direito à
vida.
De fato, a legislação brasileira estabelece um conjunto de proposições
difíceis de serem harmonizadas, principalmente se tivermos em conta as relações
entre três diplomas normativos. No nível constitucional - e vale lembrar que a
Constituição da República Federativa do Brasil é de 1988 - é estabelecida, no art. 5º,
a inviolabilidade do direito à vida, porém, sem a determinação do momento em que
tal direito tem começo. O Código Civil de 2002, seguindo a tradição do código de
1916, estabelece no art. 2º, que "a personalidade civil da pessoa começa do
nascimento com vida", embora o art. 20, ponha a salvo os direitos do nascituro
desde a concepção e o art. 1.596, IV, ao determinar que os embriões excedentários,
decorrentes de concepção artificial homóloga, presumem-se concebidos na
18
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 120.
19
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
Oxford University Press, 1996. p. 120.
20
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
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21
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford:
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CAPÍTULO II
30
constância do casamento, estabelece direitos patrimoniais aos embriões. Já, o
Código Penal que data de 1940, estabelece o crime de infanticídio com pena de dois
a seis anos [art. 123]. O crime de aborto provocado por terceiro com pena de três a
dez anos, quando não houver consentimento da mãe [art. 125] e entre um a quatro
anos quando houver [art. 126]. O crime de aborto provocado pela gestante ou com
seu consentimento tem pena de um a três anos [art. 124]. Considerando que o crime
de homicídio simples tem pena entre 6 e 20 anos [art. 121] para perceber uma
clara distinção entre a valorização da vida do feto e de alguém após o nascimento.
Isso sem levarmos em conta o art. 128 que estabelece dois casos em que não se
pune o aborto praticado por médico: quando resultar de estupro e em caso de
necessidade
22
.
No caso de Dworkin, sua posição evita que o uso do conceito de “vida
indigna de ser vivida” seja usada pelo Estado, como fê-lo o nazismo
23
, justificado por
questões de eutanásia, nem sempre desconexa de questões de eugenia. Tal
formulação, que se constatar, implica “a fixação de um limiar além do qual a vida
cessa de ter valor jurídico e pode, portanto, ser morta sem que cometa suicídio”
24
.
Para Dworkin, a eutanásia segue o mesmo caminho do aborto, pois que
se determinar o valor intrínseco da vida, o que leva a que se um sobrepeso ao
princípio da autonomia. Do mesmo modo, é assim que ele se posiciona com relação
à eugenia
25
.
22
A possibilidade de aborto em casos de anencefalia tem sido discutido no Brasil. Em recente
acórdão o STJ defendeu que o, conforme decidido no HC 32.159-RJ: "o habeas corpus foi
impetrado em favor do nascituro, ora no oitavo mês de gestação, contra decisão do Tribunal a quo
que autorizara intervenção cirúrgica na mãe para interromper a gravidez. Essa cirurgia foi permitida
ao fundamento de que o feto padece de anencefalia, doença que levaria à inviabilidade de sua vida
pós-natal. A Turma, porém, não concedeu a ordem, pois a hipótese em questão não se enquadra em
nenhuma daquelas descritas de forma restrita no art. 128 do CP. Assim, não como se dar
interpretação extensiva ou analogia in malam partem; que se prestigiar o princípio da reserva
legal. HC 32.159-RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 17/2/ 2004" [Informativo de Jurisprudência do
STJ n. 0199, 16 a 20 de fev. de 2004]. Sabe-se que a matéria pende de julgamento no STF.
23
Agamben informa que tal conceito nasce com o livro de Karl Binding, um especialista em direito
penal, e de Alfred Hoche, médico preocupado com questões de ética profissional, publicado em 1920,
na Alemanha, com o tulo: “A autorização do aniquilamento da vida indigna de ser vivida”
[AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. [H. Burigo: Homo sacer: il potere
sovrano e la nuda vita I]. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002. p. 143.
24
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. [H. Burigo: Homo sacer: il
potere sovrano e la nuda vita I]. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002. p. 146.
25
Ver o texto Playing God in DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of
Equality. Cambridge: Harvard University Press, 2000.
CAPÍTULO II
31
Rawls: a vitória da maioria
Rawls menciona a questão do aborto quando trata do conceito de razão
pública em Political Liberalism. A razão de algo é definida como um poder
intelectual e moral
26
, ou seja, como modo de formular planos, de dar ordem de
prioridade aos fins e de tomar decisões de acordo com isso. Nem toda razão é
pública, por exemplo, numa aristocracia. Mas, seja como for, a razão pública trata de
matérias de justiça fundamental. Ou seja, matérias constitucionais essenciais: direito
de votar, religiões a serem toleradas, propriedade. Não diz respeito, portanto, a
questões como do direito tributário, da regulamentação da propriedade, do meio
ambiente, da poluição. O conteúdo da razão pública é restrito a uma concepção
política de justiça, qual seja, a liberal. O liberalismo vem caracterizado por três
elementos fundamentais: a] defende certos direitos básicos, como liberdade e
oportunidades; b] defende a prioridade desses direitos sobre o bem público e
privado; c] defende medidas-meio para tornar efetivos os direitos estabelecidos em
“a”. Essa concepção política liberal tem princípios substantivos, certos valores, bem
como guias para aplicá-los, como a razoabilidade e a idéia de balanceamento
27
.
Tal concepção não opera sem dificuldades, pois permite mais de uma
resposta razoável, ou balanceada, à combinatória de valores, visto que estes podem
ser pesados e combinados diversamente. Interessantemente, é nesse particular que
Rawls, deferentemente de Dworkin, um grande peso à decisão majoritária, pois,
para ele, a solução de tais dificuldades tem que ser feita através do voto, sob a
condição de cumprir o requisito da razão pública que exige que o voto seja explicado
em termos de um reasonable balance
28
. Como exemplo de um problema e de sua
solução por votação tendo em vista o balanceamento de valores, Rawls cita o caso
do aborto. Ele nomina três valores envolvidos na questão: o respeito pela vida
humana, a reprodução da sociedade e a igualdade da mulher. Nesse sentido, uma
forma de dar um reasonable balance para esses três valores é pelo esquema de
trimestres definido pela Suprema Corte
29
.
Num esclarecimento feito em 1995, ele afirma: “questões disputadas, tais
26
RAWLS, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996. p. 212-3
27
RAWLS, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996. p. 223-4.
28
RAWLS, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996. p. 240 s
29
RAWLS, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996. p. 243. Cabe
observer que para ele o nosso esquema de combinação dos valores envolvidos na questão seria
cruel e opressor para a gestante.
CAPÍTULO II
32
como a do aborto, pode conduzir a um impasse entre diferentes concepções
políticas, e os cidadãos devem simplesmente votar sobre a questão”
30
, sendo que o
voto uma razoabilidade momentânea, visto se tratar de uma hotly disputed
question, cuja deliberação se torna obrigatória pela regra da maioria
31
. Portanto,
uma tal decisão sobre o aborto, permitindo ou proibindo, não estaria no conjunto
daquilo que autorizaria, por exemplo, a desobediência civil.
Habermas: nas teias do procedimento
Na posição de Habermas parece haver um hipotético se, ou seja, se o aborto
concernir a uma questão de identidade - como proposto por Dworkin -, então, há que
se resolvê-lo no nível político da coexistência, como é o caso da religião. Nesse
sentido, o texto
32
parece distinguir dois níveis nos quais a moralidade operaria, o
nível político e o nível da moralidade, de tal forma que aparecendo uma
impossibilidade de resolver a questão neste, ela seria forçada a resolver naquele.
Cabe perguntar: por que a questão do aborto não encontraria uma resolução moral?
Habermas sugere não ser possível encontrar uma solução moral para o
abortoporque, talvez, o haja interesses universalizáveis, de tal forma que se deva
buscar compromissos de equidade e não respostas morais61. O Aborto é um
problema não resolvido moralmente no presente, não se podendo excluir a priori a
hipótese de se tratar de um problema que não possa de fato ser resolvido sob o
ponto de vista moral.
Por outro lado, é difícil remeter a questão, sem mais delongas, para o domínio
do que o liberalismo tradicionalmente nomina de esfera privada. De fato, ao analisar
as discussões levantadas pelo feminismo com relação a problemas domésticos que
antes eram atribuídos à esfera privada, como a violência doméstica contra as
mulheres, Habermas pondera, de acordo com sua teoria discursiva, que a fronteira
que separa o privado do público tem que poder ser objeto de discussão pública, pois
a linha divisória entre o que é público e privado é estabelecida a fortiori. De tal forma
que qualquer matéria pode ser objeto de deliberação, desde que possa ser feito no
30
RAWLS, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996. p. lv.
31
RAWLS, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996. p. lvi.
32
HABERMAS, Jürgen. Erläuterungen zur Diskursethik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. p.
165-166.
CAPÍTULO II
33
igual interesse de todos
33
.
Portanto, a neutralidade representada pela posição que defende a prioridade
do justo sobre o bem o pode significar a exclusão de questões éticas do discurso
político, que, assim, este perderia sua função racionalizadora de enfoques p-
políticos, de interpretação de necessidades e de orientações valorativas. Sob tal
premissa, haveria a restrição do diálogo. A neutralidade não pode ser garantida por
regras inibitivas, ou de mordaça [gag rules], que deixam a separação público v.
privado ao sabor das tradições culturais. Tal exclusão a priori da agenda política de
assuntos considerados privados beneficiaria um pano de fundo tradicional do
privado
34
. De tal forma que neutralidade não é eliminar assuntos do debate da
agenda política, mas, em havendo disputa sobre a vida boa, não decidir sob a base
de uma intrínseca superioridade de uma ou de outra
35
. O ponto é que "temos que
estabelecer uma distinção entre limitações impostas aos discursos públicos através
de processos e uma limitação do campo temático dos discursos blicos"
36
. Em
princípio, o primeiro não impõe limitações ao campo temático de objetos que podem
ser discutidos. Tematizar não é se intrometer na privacidade, de tal forma que "nem
tudo o que é reservado às decisões de pessoas privadas deve ser subtraído à
tematização pública, nem protegido da crítica"
37
. Nem tudo o que é regrado toca na
privacidade e nem tudo o que é discutido é regrado. Assim, não tem sentido a
reserva liberal de discussões para além da segurança. O ponto está em que a
delimitação do privado não pode ser feita de uma vez por todas
38
. Assim, no
exemplo da pornografia "a criação de limites tem que ser objeto de uma discussão
33
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. [Trad. F. B.
Siebeneichler: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 30.
34
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. [Trad. F. B.
Siebeneichler:
Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen
Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 35.
35
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. [Trad. F. B.
Siebeneichler: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 47.
36
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. [Trad. F. B.
Siebeneichler: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 40.
37
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. [Trad. F. B.
Siebeneichler: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 41.
38
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. [Trad. F. B.
Siebeneichler: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 37.
CAPÍTULO II
34
política".
O que se necessita, sim, é que da constatação de um dissenso ético, haja a
passagem a um nível maior de abstração, aquele da justiça, para decidir o que é do
interesse de todos na base do reconhecimento deste dissenso
39
.
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39
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CAPÍTULO III
CAPÍTULO III
37
SOBRE A LIBERDADE JURÍDICA EM HABERMAS
Delamar José Volpato Dutra
Introdução
Williams compara o conceito de liberdade jurídica de Kant com o de Hobbes,
dando preferência àquele de Kant, sob a alegação de ser ele mais persuasivo
porque: “Hobbes‟s concept of liberty not just permits actions that are contrary to our
dignity (for where sovereign‟s laws are silent we may act according to our natural
inclinations) but requires them (we have to submit ourselves to a system of external
laws that are not open to public criticism)”
1
. Não obstante, nessa sua avaliação,
Williams oblitera dois aspectos: o primeiro é aquele da vinculação ou não vinculação
do conceito de liberdade jurídica à moral e, o segundo, é o fato de que Kant, embora
defenda a crítica blica das normas, não admite a desobediência de leis injustas.
Por seu turno, Hobbes, embora não admita a possibilidade do soberano emitir leis
injustas, sustenta no Leviathan a desobediência. Assim, que se comparar um
sistema de direitos que autoriza a desobediência, mas não a crítica pública, com um
outro que autoriza tal crítica, mas não a desobediência. Interessantemente, um
sistema jurídico mais próximo da moral, como o de Kant, se comparado ao de
Hobbes, tem uma noção mais forte de direito positivo do que este último, na medida
em que Kant não autoriza a desobediência, embora defenda a crítica pública das leis
injustas. Assim, Kant é dúbio com relação ao desenho do Estado, certamente não
absolutista, mas forte o suficiente para não permitir a desobediência, o que
determina uma defesa extremamente forte da ordem pública, certamente por boas
razões na sua visão, em detrimento do direito individual, seja ele qual for.
Habermas, por seu turno, ao se pronunciar sobre Kant e Hobbes, aceita
pontos de ambos. Por exemplo, sustenta haver conexão, ainda que nue e tensa,
entre a legalidade e a moral, embora não uma subordinação do direito à moral, bem
como sustenta, explicitamente, na esteira de Rawls, a desobediência, o que poderia
sugerir uma simpatia por Hobbes maior do que ele mesmo afirma textualmente.
Disso se pode concluir que o sistema de Hobbes sustenta a noção de direito
1
WILLIAMS, Howard. Kant‟s Critique of Hobbes. University of Wales Press, 2003, p. 99.
CAPÍTULO III
38
fundamental de forma mais forte do que fê-lo Kant, implicando, nesse particular, a
filiação de Habermas ao autor do Leviathan e não a este último.
A definição do que é um direito fundamental tem sido objeto de estudos por
parte de vários filósofos. Hobbes, Kant, Mill, são filósofos nos quais se pode
encontrar uma definição do significado de direito fundamental. Este trabalho
pretende apresentar uma definição de direito fundamental, a partir daquela
formulada por Hobbes, a qual será tomada como tendo estatuído um traço
fundamental de tal conceito que permaneceu em outros pensadores posteriores,
chegando até Habermas.
Em conexão com o problema da definição do que é um direito, pretende-se
tratar também da questão da sua fundamentação.
Habermas, por seu turno, ao se pronunciar sobre Kant e Hobbes, aceita
pontos de ambos. Por exemplo, sustenta haver conexão, ainda que tênue e tensa,
entre a legalidade e a moral, embora não uma subordinação do direito à moral, bem
como sustenta, explicitamente, na esteira de Rawls, a desobediência, o que poderia
sugerir uma simpatia por Hobbes maior do que ele mesmo afirma textualmente.
Disso se pode concluir que o sistema de Hobbes sustenta a noção de direito
fundamental de forma mais forte do que fê-lo Kant, implicando, nesse particular, a
filiação de Habermas ao autor do Leviathan e não a este último.
A definição do que é um direito fundamental tem sido objeto de estudos por
parte de vários filósofos. Hobbes, Kant, Mill, são filósofos nos quais se pode
encontrar uma definição do significado de direito fundamental. Este trabalho
pretende apresentar uma definição de direito fundamental, a partir daquela
formulada por Hobbes, a qual será tomada como tendo estatuído um traço
fundamental de tal conceito que permaneceu em outros pensadores posteriores,
chegando até Habermas.
Em conexão com o problema da definição do que é um direito, pretende-se
tratar também da questão da sua fundamentação.
Hobbes e a estirpe jurídica do conceito de direito fundamental.
Habermas afirma que o conceito de direitos humanos não têm sua origem na
moral.
2
Eles teriam sua base em um conceito de liberdade juridicamente concebido.
Nesse sentido, eles seriam jurídicos por sua verdadeira natureza. Pretende-se
2
HABERMAS, Jürgen. Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen Theorie. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1997, p. 222.
CAPÍTULO III
39
explicitar o que se poderia entender por esta afirmação de uma liberdade jurídica
que não decorreria da moral.
Uma forma de justificar um direito fundamental é a partir da moral. Nesse
caso, o direito será o correlato de um dever. Portanto, quando houver um dever por
parte de alguém, haveria um corresponde direito por parte de outra pessoa que
poderia exigir tal obrigação coercitivamente. Pretende-se apresentar um tratamento
da liberdade juridicamente concebida de tal forma a o tangenciar argumentos
morais, sejam eles naturalistas ou não naturalistas.
Nesse sentido, a noção de um direito fundamental teria uma base própria
independente da moral, não obstante, não ser incompatível com uma argumentação
moral que lhe seja favorável. Nesse sentido, pretende-se esclarecer a afirmação de
Habermas feita acima a partir da noção hobbesiana de direito. Segundo Hobbes, “O
direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade
que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser”
3
. Como
se pode perceber, trata-se de uma definição da liberdade que se determina
independentemente de qualquer vinculação com a moral, pois no estado de
natureza tal liberdade é plena, sobre ela não incidindo as noções de certo e errado,
determinações estas que são objeto de uma clivagem estabelecida pela razão em
um segundo momento, como forma de buscar a paz. Veja-se bem que é esta noção
que está na base do único direito inato que Hobbes propugna. Hobbes afirma que
esse direito abrange o direito a todas as coisas, inclusive ao corpo das outras
pessoas: “Nature hath given to every one a right to all”
4
. Logo, não é difícil perceber
que um tal direito seja potencialmente conflitivo. Não é a outra a razão, alias, pela
qual ele gera o estado de guerra: “For the effects of this Right are the same, almost,
as if there had been no Right at all; for although any man might say of every thing,
This is mine, yet could he not enjoy it, by reason of his Neighbour, who having equall
Right, and equall power, would pretend the same thing to be his”
5
. Vale observar
que essa liberdade é tão radical que um núcleo dela é indisponível absolutamente
para o próprio sujeito, na medida em que a sua disposição por parte do seu titular é
absolutamente nula, como ver-se-á. Desse modo, se fosse feito um contrato que
3
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiático e civil. [Trad.
J.P. Monteiro e M.B.N. da Silva: Leviathan, or Matter, Form, and Power of a Commonwealth
Ecclesiastical and Civil. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, cap. XIV.
4
HOBBES, Thomas. De Cive. Liberty. Cap. I Of the state of men without Civil Society, X
5
HOBBES, Thomas. De Cive. Liberty. Cap. I Of the state of men without Civil Society, XI
CAPÍTULO III
40
permitisse ao soberano ordenar a morte do contratante, este poderia desobedecer,
pois a cláusula seria nula.
Para Hobbes, esta liberdade é movida, na verdade, pelo medo da morte, uma
das paixões que opera no estado de natureza. Hobbes, não vê, como se sabe,
qualquer problema na conjunção de medo e de liberdade. Aliás, será também a
paixão do medo que possibilitará a criação de uma entidade, a qual, pelo monopólio
da penalidade, em último caso, a morte, poderá implementar as leis de natureza que
restringirão aquela liberdade fundamental. Ou seja, no estado de natureza, a razão,
movida pelo medo, ordena um ataque preventivo ao ataque do outro, como meio de
manter a própria integridade. Contudo, o resultado de todos procedendo desse
modo gera o estado de guerra. Por isso, o mesmo medo determinará a razão a
propor uma lei, cuja tônica será a restrição da liberdade vigente no estado de
natureza. Porém, como a racionalidade de tal medida depende da reciprocidade,
torna-se necessária a criação de uma entidade capaz de fomentar, pelo medo da
pena, a reciprocidade pressuposta pela lei de natureza. Defende-se aqui,
diferentemente do que pensa Strauss, que a racionalidade funciona sem a
determinação do medo, seja para na vigência do ius natural, seja no momento em
que calcula as lex naturalis como forma de evitar o estado de guerra. Ou seja, q
damnorum experientia não pressupõe o medo, diferentemente do que sustenta
Strauss
6
.
Na verdade, ao tratar da questão do medo, Hobbes chama a atenção para os
motivos. Isso é importante porque, não obstante a força dessa paixão, ela determina
uma limitação no escopo das matérias passíveis de serem reguladas por meio de
seu uso. Hobbes mesmo chamou a atenção para algumas ações, cujo medo que as
motivam, já se constitui no máximo de medo que se poderia sentir, sendo ineficazes,
por consequencia, quaisquer outros medos que poderiam ser apresentados, incluso
aquele da pena de morte. Ora, não é por outra razão que a aplicação do direito é
excluída em casos de necessidade. Como afirma Kant a esse respeito, trata-se de
trocar uma morte certa por uma incerta
7
[ou pelo menos mais distante].
Os comentadores de Hobbes, na verdade os inimigos de seu sistema,
chamaram a atenção para um outro aspecto dessa mesma dinâmica anteriormente
6
STRAUSS, Leo. The Political Philosophy of Hobbes. Chicago: University of Chicago Press, 1952,
cap. II.
7
MS, AA 06: 235. As referências a Kant seguem a uniformização proposta pela Kant-Studien
Redaktion, disponíveis em http://www.kant.uni-mainz.de/ks/abhandlungen.html As citações
CAPÍTULO III
41
sugerida. Nesse sentido, Schmitt teoriza a distinção hobbesiana entre faith e
confession. De fato, sobre a matéria afirma Hobbes no cap. XXXVII do Leviathan:
A private man has alwaies the liberty, (because thought is free,) to beleeve,
or not beleeve in his heart, those acts that have been given out for Miracles,
according as he shall see, what benefit can accrew by mens belief, to those
that pretend, or countenance them, and thereby conjecture, whether they be
Miracles, or Lies. But when it comes to confession of that faith, the Private
Reason must submit to the Publique; that is to say, to Gods Lieutenant. But
who is thisLieutenant of God, and Head of the Church, shall be considered
in its proper place hereafter [ênfase acrescentada].
Com isso, chama-se a atenção para a impossibilidade do medo poder
determinar a esfera interior. Isso porque, sustenta Hobbes, a crença não é um ato
voluntário. Ou seja, o Estado nada pode neste domínio porque o próprio indivíduo
também nada pode, pois não se trata de um ato voluntário. Como evidência textual
para tal pode-se ler no cap. XL do Leviathan: “As for the inward thought and belief of
men, which human governors can take no notice of (for God only knoweth the heart),
they are not voluntary, nor the effect of the laws, but of the unrevealed will and of the
power of God, and consequently fall not under obligation”. Marca-se, desse modo, a
restrição do escopo do medo às ações externas.
Schmitt lerá nessas teses de Hobbes um gérmen da liberdade de pensamento
e de crença, bases do liberalismo. Essa reserva de subjetividade privada é onde
germina a força subversiva da livre opinião
8
. Esse o modo de Hobbes e, quiçá Kant,
serem liberais em tempos não liberais.
Vale observar, desde já, que essa tese parece conflitar com aquela kantiana,
segundo a qual a liberdade é passível de ser conhecida através do imperativo
moral
9
. É verdade que o conceito de justiça kantiano não tem base em uma
concepção de bem, mas na possibilidade da convivência. Uma convivência segundo
leis que possam ser universalizadas. Portanto, o remetem àquilo que as pessoas
consideram bom, ou às finalidades que as pessoas têm, mas considera apenas que
se realize o objetivo da paz. Por isso, trata-se, certamente, de uma moral reduzida
em seu escopo, ou seja, uma moral que não trata do próprio bem ou da felicidade.
Nesse sentido, várias razões poderiam ser reunidas para justificar a posição de
Kant. Uma delas decorreria do próprio móbil coativo que o direito utiliza. Uma outra
8
HABERMAS, Jürgen. Identidades nacionales y postnacionale. [M. J. Redondo]. Madrid: Tecnos,
1989, p. 71.
9
MS, AA 06: 239.
CAPÍTULO III
42
razão poderia considerar argumentos morais como na leitura que Rawls faz do
liberalismo de Kant.
Na primeira forma de argumentar, como visto, mostra-se a força e a
limitação da coação, como por exemplo, na incapacidade desta poder fazer alguém
se propor um fim, que o fim se constitui em uma determinação do ânimo que não
pode ser imposta
10
. Isso implica, inclusive, a exclusão da felicidade das
possibilidades da coação, a qual é assim remetida à liberdade de cada um No
mesmo sentido, tal interpretação levaria à exclusão da possibilidade de
determinação da consciência, algo, aliás, admitido pelo próprio Hobbes, como
mencionado acima.
Na segunda forma de argumentar, Kant parece ter partido, por um lado, da
liberdade ou arbítrio de agir segundo uma xima que possa ser universalizada.
Nesse sentido, haveria um direito e a ação seria justa quando a máxima fosse
universalizada, sendo que o direito seria o conjunto das condições que tornariam
possível uma convivência nos moldes de máximas universalizáveis
11
. Disso
decorreria um dever negativo de não interferência. Assim, sendo a posse justa, ela
poderia ser convolada em propriedade. Buscar a felicidade de um modo que fosse
justo, determina que se deva respeitá-la. Aqui, parece, o fundamento seria um dever
moral por parte do outro. Tal dever poderia decorrer das promessas feitas, como na
compra e venda, que implicaria um dever positivo de fazer algo, ou decorreria de um
dever negativo de respeita a liberdade do outro quando a máxima desta fosse
unviersalizada. Nesse sentido, haveria direitos. No mesmo sentido, a obrigação de
respeitar a felicidade dos outros decorreria do dever de beneficência, que teria como
um de seus determinantes, sim, contribuir para os fins dos outros, mas,
primeiramente, respeitar o fim que o outro se propõe
12
. Portanto, havendo um dever
correspondente de respeito, haveria a obrigação que poderia ser imposta
juridicamente.
A liberdade jurídica em Kant
A formulação hobbesiana da liberdade jurídica não passou desapercebida a
10
42 MS, AA 06: 239.
11
MS, AA 06: 230.
12
HERMAN, Barbara. The Practice of Moral Judgments. Cambridge: Harvard University Press,
1993.
CAPÍTULO III
43
Kant
13
. O modo como Kant recepcionou o conceito hobbesiano de liberdade foi pela
distinção entre uma legislação ética e uma jurídica. A distinção opera a partir da
possibilidade das leis serem cumpridas por um móbil diverso daquele próprio da
moral, a saber, a ação por dever. O móbil não moral, para Kant, residiria na paixão
da aversão. Porém, na esteira de Hobbes, Kant se apercebe que o uso da paixão da
aversão como móbil implica uma restrição no escopo das leis que podem ser
eficazes por esse meio. Ou seja, na sua concepção, haveria certas leis que somente
o móbil moral seria capaz de dar eficácia, pois dependeriam de serem incorporadas
em uma máxima para terem efetividade. Outras, contudo, não precisariam ser
incorporadas em uma máxima para serem eficazes. Por exemplo, a lei que ordena
não matar, para ser eficaz, não precisa ser incorporada numa máxima, basta apenas
que o sujeito tenha medo da penalidade, por exemplo, da pena de morte. Em última
análise, caso a paixão da aversão não funcionasse, o assassino poderia ser preso
ou morto, evitando que cometesse outros crimes. Eis o paradigma da exterioridade
plena. Portanto, o que Kant faz é pensar as implicações da exclusão da motivação
moral sobre o conjunto dos deveres ordenados pela razão prática. O resultado não
poderia ser outro senão o encolhimento de tal escopo. Portanto, a exclusão da
motivação moral, se por um lado não inviabiliza e eficácia dos deveres da razão
prática no seu todo, por outro lado, só pode efetivar parte deles, ainda que seja uma
efetivação sem valor moral.
Desse modo, Kant tem que restringir o escopo da razão prática quando ela
passa a usar do móbil da aversão, ou quando usa qualquer outro bil diferente
daquele propriamente moral. O móbil moral, portanto, é abrangente, englobando
todos os deveres. Todos os deveres, externos ou internos, podem ser cumpridos de
forma ética, não obstante, alguns dos deveres morais podem ser cumpridos por
um outro móbil. Nesse sentido, pode-se falar de deveres estritamente éticos, no
sentido de que podem ser cumpridos pelo móbil moral. A eles Kant reservou a
doutrina da virtude.
Com efeito, Kant teoriza, já no texto que escreveu contra Hobbes, a noção de
uma liberdade juridicamente considerada. É nesse opúsculo que se torna explícita a
noção de um estado civil, considerado somente como estado jurídico. Sugere-se
interpretar tal afirmativa como sendo aquela de um estado civil que não é
13
MS, AA 06: 218-219
CAPÍTULO III
44
considerado de maneira moral. Nas palavras de Heck, “o argumento kantiano da
república de demônios é visceralmente político, amoral e jurídico”
14
. Ora, o primeiro
princípio a priori de um tal estado jurídico, segundo Kant, é a liberdade como
homem; não como cidadão. Tal liberdade se define pela possibilidade de buscar a
própria felicidade do modo que parecer melhor. Nesse particular, é conveniente
mencionar que no contexto da Fundamentação, Kant havia eliminado do escopo
do imperativo categórico a determinação da felicidade. O tratamento da felicidade
fora deslocado do âmbito do imperativo categórico, para aquele do imperativo
hipotético.
A proposição da liberdade juridicamente considerada tem que ser
cuidadosamente analisada, pois ela é proposta em um texto contra Hobbes. Não se
consegue perceber, portanto, se nesse ponto Kant está reformulando uma tese de
Hobbes ou se está criticando Hobbes. Hobbes sempre observara que a criação do
Estado tinha em vista a preservação da vida e a busca de uma vida mais satisfeita.
Contudo, essa segunda determinação parece ter sido sacrificada à forma absolutista
da soberania necessária para a proteção da vida. Ou seja, pode ser que Hobbes
tenha defendido a intervenção da soberania em matéria religiosa, ponto máximo de
uma doutrina da felicidade, por concernir à felicidade ou danação eterna, menos por
razões internas ao seu próprio sistema, que não deixou de sustentar, em tal
seara, a liberdade de consciência, e mais por razões históricas de seu tempo. Não
se pode negar que uma forma de evitar guerras religiosas seja pela imposição de
uma religião, uma religião oficial do Estado. Por isso, Hobbes defende que o
soberano pode impor aos súditos uma confissão particular de fé. Evidentemente, as
guerras religiosas posteriores fizeram valer as impossibilidades da coação que
Hobbes mesmo previra com relação à determinação da crença.
Kant tece ao menos duas críticas a Hobbes neste texto. A primeira é que ele
não teria dado espaço em seu sistema à liberdade de expressão, para Kant implícita
no direito à liberdade. Uma liberdade, ademais, cujo exercício não prejudicaria o seu
de ninguém. A segunda parece se referir à liberdade religiosa. Com efeito, Kant diz
ser nula uma lei que estabeleça um culto definitivo
15
. Em suma, se a lei natural é
14
HECK, José N. Ensaios de filosofia política e do direito: Habermas, Rousseau e Kant. Goiânia:
Ed. da UCG, 2009, p. 7.
15
“É permitido a um povo impor a si mesmo uma lei, segundo a qual certos artigos de fé e certas
formas da religião externa, uma vez aceitos, deverão persistir para sempre; portanto, se ele poderá,
na sua descendência, interdizer a si mesmo progredir mais na compreensão da religião ou modificar
CAPÍTULO III
45
calculada pela razão para evitar a guerra, ou seja, para efetivar a paz, então, ela
encontraria um limite no seu escopo, determinado exatamente pelo fim mesmo que
a engendra, a paz. Nesse sentido, Hobbes, ao possibilitar que o soberano institua
um culto, estaria impondo um conceito de felicidade aos súditos, estranho ao escopo
da liberdade concebida juridicamente, calcada no combate às exterioridades que
podem ocasionar a guerra.
Isso ocorreria porque a aversão seria um motivo ineficaz para a determinação
da felicidade, que, segundo Kant, “Ninguém me pode obrigar a ser feliz à sua
maneira”
16
. Logo, se a religião tem a ver com a danação ou a salvação eternas das
almas, o soberano que estabelecesse um culto estaria interferindo da forma mais
radical com a felicidade dos outros. Além dessa possível ineficácia, em razão de não
se poder impor uma crença pela força, a razão estaria ultrapassando o seu escopo
de uma liberdade juridicamente concebida, a saber, com a finalidade da paz, com
base na aversão, no medo, na pena, única capaz de ser realmente eficaz para um
conjunto específico de deveres.
Defende-se que Kant nunca abandonou essa formulação de uma liberdade
negativa como correlato de uma liberdade juridicamente concebida. Uma liberdade
juridicamente concebida teria como finalidade a paz, sua legislação não incidindo,
portanto, sobre matérias não irrelevantes para a paz, mas também impossíveis
de serem determinadas por móbeis baseados na aversão, como é o caso da religião
e da liberdade de expressão. Ao contrário, é a intervenção do Estado na religião que
se torna motivo de guerra.
Nas outras duas passagens, nas quais Kant fala da liberdade jurídica,
especialmente aquela da Doutrina do direito, a mesma é conectada mais
especialmente com a cidadania. Nessas passagens aparece mais claramente a
liberdade positiva, entretanto, nelas, a noção de consentimento opera com grande
força, sendo que na Doutrina do direito o consentimento parece menos idealizado do
que em outras passagens. Vejam-se as duas citações:
“A minha liberdade exterior (jurídica) deve antes explicar-se assim: é a
faculdade de não obedecer a quaisquer leis externas senão enquanto lhes
eventuais erros antigos? Evidencia-se então que um contrato originário do povo, que fizesse disso
uma lei, seria em si mesmo nulo, porque se opõe ao destino e aos fins da humanidade; por
conseguinte, uma lei assim estabelecida não pode considerar-se como a vontade própria do
monarca, à qual, portanto, podem ser levantadas idéias contrárias” [TP, AA 08: 266-7].
16
TP, AA 08: 236.
CAPÍTULO III
46
puder dar o meu consentimento”
17
. “Os membros de uma tal sociedade
(societas civilis), i. e., de um Estado, reunidos para a legislação, chamam-se
cidadãos (cives), e seus atributos jurídicos, inseparáveis de sua natureza
(como cidadãos), são a liberdade legal, de não obedecer a nenhuma lei a
que não tenham dado seu consentimento”
18
.
O ponto, nesse particular, é que, mesmo concebida positivamente, a
liberdade não deixa de ser juridicamente considerada, ou seja, ela descarta o motivo
que seria próprio da moral como o motor do mencionado consentimento, que Kant
remete à doutrina da virtude. Nesse sentido, seja como se conceba o republicanismo
de Kant, ele afirma, primeiro, que o legislador pode errar e por isso precisa liberdade
de expressão com o dito de corrigi-lo. Em segundo lugar, ele afirma que cada um
pode buscar a felicidade do modo que lhe parecer melhor. E, mais importante, em
terceiro lugar, ele não imputa virtude ao cidadão, pois a cidadania é concebida ao
modo da liberdade jurídica, cuja característica principal é poder operar com uma
motivação diversa daquela da moral. Não pode ser outra a razão pela qual a
constituição de um Estado é possível até para uma raça de diabos. Nesse ponto,
Heck sustenta que “a esfera política não mais se confunde com a doutrina kantiana
da moral e/ou do direito”
19
. Essa interpretação de Heck merece emenda se ela
pressupuser que o direito está conectado com a moral. Isso porque a tese de que o
Estado é possível até para um povo de demônios é correlata à tese de que o direito
é também, então, possível para um povo de demônios. Isso desacopla moral e
direito a partir do modo como se apresentou neste trabalho a liberdade juridicamente
concebida. Outra não é a posição de Ripstein: “Kant not only denies that political
philosophy is an application of the Categorical Imperative to a specific situation; he
also rejects the idea that political institutions are a response to unfortunate
circunstamces”
20
. E conclui que a ideia normativa de Kant é a liberdade jurídica: “as
a matter of right, each person is entitled to be his or her own master”
21
.
Com relação ao republicanismo, Habermas, por exemplo, sustenta que ele
imputa virtude ao cidadão, sobrecarregando o processo legislativo com
determinações morais. Portanto, o déficit do pensamento republicano, como ver-se-á
17
ZeF, AA 08: 350.
18
MS, AA 06: 314.
19
51 HECK, José N. Ensaios de filosofia política e do direito: Habermas, Rousseau e Kant.
Goiânia: Ed. da UCG, 2009, p. 18.
20
RIPSTEIN, Arthur. Force and Freedom: Kant‟s Legal and Political Philosophy. Cambridge: Harvard
University Press, 2009, p. 2.
21
RIPSTEIN, Arthur. Force and Freedom: Kant´s Legal and Political Philosophy. Cambridge: Harvard
University Press, 2009, p. 4.
CAPÍTULO III
47
abaixo, seria não ter feito a passagem de uma liberdade concebida moralmente para
uma liberdade juridicamente considerada. É nesse sentido preciso que se pode
afirmar que a liberdade juridicamente considerada importa em um elemento liberal
ínsito na sua concepção mesma. Tal ocorre exatamente pelo abandono do móbil
moral na determinação da ação. O abandono do móbil moral implica, de forma
continente, necessariamente, o encolhimento do escopo da razão prática. Desse
modo, ficam liberados sejam os conteúdos para os quais é possível uma
legislação moral, como os deveres para consigo e os deveres imperfeitos para com
os outros seja aqueles âmbitos incompatíveis com as finalidades de uma liberdade
juridicamente considerada, cuja determinação reside na paz, para a qual contam
exterioridades. A paz não depende de o Estado perscrutar o coração dos homens.
Basta apenas que eles não firam os outros, podendo seu coração ser demoníaco.
Portanto, um conjunto de matérias irrelevantes para a finalidade da paz, matérias
estas, justamente, que o liberal alega serem da vida privada. Em suma, uma
formulação política que o faz a passagem completa para liberdade jurídica vive
saudosa da um cidadão moralmente concebido.
Habermas entre Kant e Hobbes
A estirpe jurídica da liberdade que está na base da concepção moderna de
direito é teorizada por Habermas que chama a atenção, ainda, para um outro
aspecto liberal advindo da liberdade juridicamente concebida, a saber, aquela da
motivação
22
. Nesse sentido, Habermas parece ter teorizado aspecto determinante
para a matéria, com implicações antirrepublicanas e marcadamente liberais.
Como mencionado, a formulação jurídica da liberdade encontra sua fornalha
na noção hobbesiana de direito [ius]. Nesse sentido, não deixa de ser interessante
que Schmitt detecte a fraqueza liberal de Hobbes justamente em um elemento que
Kant dissera faltar no autor do Leviathan: a liberdade de expressão. Isso pôde
ocorrer, segundo a interpretação aqui proposta, porque a crítica de Kant a Hobbes,
qual seja, de não haver liberdade de expressão, traz implícita a afirmação de que
22
Kelsen já houvera mencionado um lado liberal do positivismo jurídico 47 “mesmo sob a ordem
jurídica mais totalitária existe algo como uma liberdade inalienável não enquanto direito inato do
homem, enquanto direito natural, mas como uma conseqüência da limitação técnica que afeta a
disciplina positiva da conduta humana” KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. [J. B. Machado:
Reine Rechtslehre]. 3. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1991. Isso por poder prescrever ações e
omissões inteiramente determinadas.
CAPÍTULO III
48
não liberdade de consciência. Ou seja, para Kant, a liberdade de consciência e
de expressão eram partes de um mesmo núcleo. Desse modo, como não detectou
liberdade de expressão em Hobbes, concluiu não haver ambas. Schmitt, muitos
anos depois, portador da distinção, pôde encontrar a liberdade de consciência em
Hobbes e ver neste o pai do liberalismo. O ponto importante é que as razões que
Hobbes invoca para a liberdade de consciência remetem aos limites da coação
juridicamente considerada. Ou seja, é possível coatar a expressão do pensamento,
mas não o próprio pensamento, como pôde ser visto na citação acima mencionada
que distingue faith de confession. Melhor dito, em razão do motivo que o direito
oferta, torna-se-lhe limitado o escopo das matérias que pode regrar. Nesse sentido,
Hobbes não poderia ser um teórico do totalitarismo, pois pensava ser a liberdade de
consciência indisponível ao próprio sujeito, sendo, portanto, indisponível ao próprio
soberano, como seria indisponível o direito de defender a própria vida.
Claro, o liberalismo de Kant é menos mecanicista e muito mais normativo que
o de Hobbes. O Estado, para Kant, não deve se imiscuir para além das finalidades
ordenadas pela razão, mormente a paz. Não obstante, poder-se-ia apontar para uma
similaridade de indisponibilidades em Hobbes e em Kant. Se no primeiro a crença é
involuntária, portanto indisponível ao próprio sujeito, no segundo a felicidade não é
uma noção que a razão possa determinar conceitualmente, sendo-lhe, portanto,
indisponível. Ou seja, a indeterminação do conceito de felicidade põe-na fora do
domínio racional dos deveres, mesmo dos latos para consigo, e se põe muito mais
distante ainda dos deveres jurídicos.
Por tudo o que foi dito, a dicção kantiana da liberdade considerada sob o
ponto de vista jurídico como «ninguém me pode obrigar a ser feliz à sua maneira”55,
pode ser considerada uma crítica ao absolutismo de Hobbes e, quiçá, a Rousseau,
seu mestre, que não separou o direito da moral, como ver-se-á abaixo. Logo, a
ampliação por parte de Kant do núcleo liberal de Hobbes se constitui em uma dupla
crítica ao mesmo. Primeiro, ao seu absolutismo, ao seu despotismo, já que o Estado
não pode dizer sobre a felicidade, e, em segundo lugar, ao seu positivismo moral,
que o legislador pode errar e, em razão disso, pode ser criticado pelos súditos. Ou
seja, a razão prática kantiana não baixa as armas frente aos furores da soberania.
Assim sendo, diferentemente do que pensa Habermas, Kant, nesse particular, não
subordina diretamente o direito à moral, nem sob o ponto de vista da motivação,
nem sob o ponto de vista do conteúdo, haja vista ter remetido a felicidade para o
CAPÍTULO III
49
domínio da vida privada. Para Kant, assim como a razão prática pura não pode
determinar a felicidade por um imperativo categórico, da mesma forma não o pode o
Estado.
A aproximação das posições de Hobbes e de Kant com relação à liberdade
juridicamente concebida não é incompatível com a possibilidade de uma outra
aproximação no que concerne à igualdade. Höffe, por exemplo, a partir da noção de
igualdade implícita na segunda lei de natureza, aproxima as posições de Kant e de
Hobbes
23
. Nesse diapasão, a interpretação habermasiana de Hobbes poderia
sufragar a tese de Höffe que aproxima Kant de Hobbes, na medida em que, nos
termos da interpretação de Habermas, operaria de forma velada uma argumentação
moral à base dos passos argumentativos da teoria de Hobbes, supostamente
apenas instrumentais. O ponto central de tal argumentação moral operante, mas não
reconhecida como tal por Hobbes, residiria na regra de ouro. Para que tal crítica de
Habermas a Hobbes seja possível, é necessário que se equipare a regra de ouro ao
princípio de universalização. Contudo, a tese de Höffe e de Habermas é
problemática por desconsiderarem a crítica que Kant fez à regra de ouro na
Fundamentação. Se Kant estiver correto em sua crítica à regra de ouro, então, o fato
de Hobbes usar da regra de outro não poderia ser considerada uma argumentação
que desfaz a sua estratégia concebida em bases puramente instrumentais. Ao
contrário, ela mostrar-se-ia completamente instrumental.
Rousseau e a nostalgia moral
Segundo Heck, como mencionado, a solução kantiana é amoral, política e
jurídica. Isso induz a pensar que, ou se tem uma solução moral para a questão da
convivência ou se tem uma solução jurídica. Esta última pode ser dita amoral em
vários sentidos. Com efeito, em primeiro lugar, nela não se imputa virtude para o
cumprimento do dever, ponto que determina um afastamento do escopo de
aplicação da razão prática pura para eliminar as questões de felicidade. Em segundo
lugar, a liberdade assim compreendida é limitada pela coação exterior, em última
análise física, e não pela razão. É nesse sentido preciso que Forst, considera o
liberalismo como “uma teoria política (e não uma teoria moral uniforme) que surgiu
23
TP, AA 08: 236.
CAPÍTULO III
50
sob determinadas circunstâncias históricas”
24
.
Compreendido desse modo, Kant é leitor de Hobbes e de Rousseau, e crítico
de ambos. Critica o absolutismo de Hobbes em nome da liberdade. Ou seja, Kant
amplia o escopo do direito [ius] que escapa à determinação do legislador, não
pela exclusão de matérias referentes à felicidade, como pela defesa da liberdade de
expressão. Critica Rousseau pela sua solução moral do contrato, pois a noção de
liberdade, como um direito do homem de buscar a sua felicidade do modo que lhe
aprouver, qualificada como jurídica, desdiz Rousseau. Para resumir, a república de
Rousseau não é uma república de diabos. Nesse sentido, Heck afirma que a
república kantiana é instituída com base no cidadão que Rousseau recusa: “Kant é
obrigado a mostrar exatamente o tipo de cidadão contra o qual Rousseau funda sua
república do bem”
25
. No mais tardar com Hobbes, dois pressupostos o colocados
à base do Estado. O primeiro é aquele da igualdade de todos no que concerne à sua
vida, portanto, um interesse comum pela paz. Disso decorre que o direito não tem
como funcionar para aquele que não teme por sua vida. O outro pressuposto é
aquele advindo de uma antropologia pessimista, que aproxima o homem dos
demônios e que não pode mais reacender a centelha moral no cidadão. Ambos
estão nos primeiros capítulos do Leviatã. O leviatã, em sua essência, então,
precisa socializar a igualdade pelas leis [lex] de natureza, podendo privatizar todo o
diferente nos direitos [ius] do homem
26
.
A diferença com Kant pode ser medida pela posição de Rousseau em relação
ao escopo da soberania. No Contrato, ao tratar dos limites do poder soberano,
Rousseau restringe a competência deste apenas para tratar daquelas liberdades
cujo uso interesse à sociedade. Com isso, ele parece estar honrando a liberdade
[ius] do homem, pois o que cada um aliena de seus direitos naturais, “c‟est
seulement la partie de tout cela dont l‟usage importe à la communauté”
27
. Não
obstante, tal impressão é logo desfeita na continuidade da citação, quando ele
afirma de forma absoluta a soberania: “mais il faut convenir aussi que le souverain
24
FFE, Otfried. Principes du droit. [Trad. Jean-Christophe Merle (revisada pelo autor):
Kategorische Rechtsprinzipien. Ein Kontrapunkt der Moderne]. Paris: Cerf, 1993, p. 95.
25
FORST, Rainer. Contextos da justice: filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo.
[D. L. Werle: Kontexte der Gerechigkeit, Politishe Philosophie jenseits Von Liberalismus und
Kommunitarismus]. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 46.
26
HECK, José N. Ensaios de filosofia política e do direito: Habermas, Rousseau e Kant. Goiânia:
Ed. da UCG, 2009, p. 18-9.
27
HECK, José N. Ensaios de filosofia política e do direito: Habermas, Rousseau e Kant. Goiânia:
Ed. da UCG, 2009, p. 63.
CAPÍTULO III
51
seul est le juge de cette importance». Ainda que Rousseau tente um mecanismo
capaz de produzir um “accord admirable de l‟intérêt et de la justice” para honrar os
direitos [ius] do homem, ele não concebe que os cidadãos tenham “um patrimônio
jurídico anterior à coletividade (como o cidadão do liberalismo de Locke)”, nem que
usufruam “da reserva de consciência perante o Estado (como o cidadão do
liberalismo de Hobbes)”
28
. E muito menos podem criticar o soberano como defendeu
Kant. Lapidarmente, não pode haver constituição em Rousseau. Segundo Heck, o
bom cidadão de Rousseau é um homem bom que não tem privacidade. Ele não
antecede o contrato, mas resulta dele. Nas suas palavras, “a aliénation totale
impossibilita qualquer objeção do homem natural ao cidadão”
29
. E não se pode
senão concluir: frente a Rousseau, “o Leviathan político perfaz uma obra-prima da
arte liberal”
30
, ainda que in nuce, a saber, privatiza as diferenças.
A diferença de Rousseau em relação a Hobbes reside na assepsia do direito
[ius] natural, logo no cap. I do livro I do Contrato. Ademais, o caráter conflitivo e
desagredor do direito natural foi muito bem visto por Rousseau, e suprimido.
Segundo ele, se subsistisse algum direito natural, não haveria um superior capaz de
decidir entre este direito e o público, pois com relação a tal direito, o próprio sujeito
seria o seu juiz. Isso significaria, para Rousseau, a permanência do estado de
natureza, o que tornaria a associação tirânica ou
31
. Nesse particular,
considerando que o a liberdade jurídica o abole toda a liberdade [ius] do estado
de natureza, ao contrário, pressupõe parte dessa liberdade, não no que concerne
aos motivos, à felicidade, mas também em tudo aquilo que não concerne ao seu de
mais ninguém, pode-se averiguar que realmente redunda em conflitividade. Prova
disso, no constitucionalismo que alberga tais direitos [ius] do homem, são as ações
declaratórias de inconstitucionalidade com base no direito subjetivo, como é o caso
do aborto, da opção sexual, da eutanásia ou da eugenia, matérias estas que
traduzem, ainda hoje, o direito natural [ius naturale] a tudo, inclusive ao corpo do
outro, o que realmente é o caso especificamente na questão do aborto,
determinação esta que é exatamente restringida pelas leis natural [lex naturalis]. Por
28
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Paris: Aubier, 1943, p. 66.
29
HECK, José N. Ensaios de filosofia política e do direito: Habermas, Rousseau e Kant. Goiânia:
Ed. da UCG, 2009, p. 62.
30
HECK, José N. Ensaios de filosofia política e do direito: Habermas, Rousseau e Kant. Goiânia:
Ed. da UCG, 2009, p. 65.
31
63 HECK, José N. Ensaios de filosofia política e do direito: Habermas, Rousseau e Kant.
Goiânia: Ed. da UCG, 2009, p. 63.
CAPÍTULO III
52
isso, a solução de Rousseau é outra, pois vislumbrou fonte de conflito social na
manutenção de uma liberdade que se furta à determinação social, visto o haver
juiz capaz de determinar o seu escopo, que, como muito bem apontou,
determinada ela é pelo direito a tudo, sobre o que só o titular do direito é juiz.
O republicanismo de Kant repele a solução moral de Rousseau porque a
dicção do direito humano [ius] inato da liberdade não pode mais angelizar o cidadão,
muito menos o homem ou o súdito. Seja como for, o republicanismo de Rousseau
não se opõe à democracia, mas ao liberalismo. Interessante, alguns republicanos
atuais, de estirpe comunitarista, parecem se opor ao liberalismo e não à democracia.
Por seu turno, o liberalismo se opõe tanto à democracia, pelo menos à democracia
majoritária, quanto ao republicanismo de um certo matiz. Ao republicanismo por seu
possível caráter abrangente, dada a proximidade com as determinações morais da
liberdade, tanto no que concerne à motivação, quanto ao conteúdo da lei; à
democracia, pela possibilidade da tirania da maioria. O ponto é que Kant se opunha
à democracia, mas por razões liberais e não por razões republicanas, como
Rousseau, ou seja, se opunha justamente à tirania da maioria, e defendia o
republicanismo também por razões liberais, ou seja, como estratégia para evitar a
tirania, o despotismo. Com efeito, o republicanismo pode ser, desse modo, um
governo da máxima liberdade, inclusive para honrar a liberdade [ius] do homem.
Nota conclusiva
O estudo mostrou as diferenças estruturais entre o ius naturale e a lex
naturalis. Como bem já vislumbrou Hobbes, aquele é único; esta, muitos. O ponto foi
demonstrar que a solução jurídica proposta por Hobbes aos inconvenientes do ius
naturale determina, 1] seja a impossibilidade de aboli-lo, 2] seja a não necessidade
de fazê-lo, 3] seja a injustiça de fazê-lo. No primeiro caso, classifica-se, no próprio
Hobbes, a liberdade de consciência e de autodefesa. No segundo e terceiro casos, a
solução jurídica apenas busca a paz, o que implica a não necessidade de regular
ações que não interfiram com o seu de ninguém. É assim que Kant acrescenta aos
direitos [ius] mencionados, a liberdade de expressão e a busca da felicidade. Essa
tese será defendida mais tarde por Mill com a proposição do princípio do dano65,
bem como por liberais como Rawls, Habermas e Dworkin.
Portanto, como bem mostrou Habermas, o conceito de direito [ius] é
CAPÍTULO III
53
essencialmente jurídico. Ele não é moral. Ele, inclusive, opõe-se à moral. Ou seja, a
moral funda deveres [lex]. O direito [ius] protege a liberdade. Não que tal liberdade
seja avessa ao tratamento moral. Porém, o contato da moral com o direito [ius]
assim concebido tem implicações sobre ela mesma, seja para encolher seu escopo,
restringindo-a ao tratamento dos deveres para com os outros que podem, então, ser
impostos como limitação àquele direito [ius], seja determinando a realização ou
distribuição justa do direito mencionado, o que implica em limitar o seu escopo
àquilo que não atinge o seu de ninguém.
A moral [lex] pode tangenciar o direito [ius], tanto com relação ao seu
conteúdo, determinando o que é justo ou injusto, como faz Kant, quanto com relação
ao seu modo de validade, exigindo universalidade. Contudo, não pode tocar na sua
estrutura. Por isso, mesmo que a moral [lex] interfira na determinação do seu
conteúdo e no seu modo de validade, não pode determinar a sua estrutura
propriamente jurídica, a saber, a liberdade dos motivos como contraponto à
coação66, ou seja, o direito [ius] mantém um espaço de liberdade absoluta, ainda
que em um sentido mínimo, qual seja, a escolha dos motivos, cujo único juiz é o
próprio titular desse direito.
REFERÊNCIAS
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comunitarismo. [D. L. Werle: Kontexte der Gerechigkeit, Politishe Philosophie
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CAPÍTULO III
54
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serve para a prática [Trad. C. Hann. Não publicado].
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STRAUSS, Leo. The Political Philosophy of Hobbes. Chicago: University of
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CAPÍTULO IV
CAPÍTULO IV
56
O SUJEITO PRONOMINAL E A GRAMÁTICA COMUNICATIVA:
ELEMENTOS PARA UMA GRAMÁTICA DA JUSTIÇA
1
Jovino Pizzi
ii
Delamar José Volpato Dutra
Introdução
O terreno pós-metafísico da filosofia contemporânea assume uma importância
cada vez mais destacada. Nessa perspectiva, a fundamentação do âmbito moral
exige uma teoria do agir capaz de garantir as condições de possibilidades inerentes
aos três pronomes pessoais, sem apoucar nenhum deles. Trata-se, então, de aceitar
o vínculo entre os três pronomes pessoais. Essa gramática pronominal tem
implicações não apenas morais e políticas. Nesse ínterim, o aspecto elementar
apresenta uma questão taxativa: como os três pessoas pronominais podem ser
utilizadas de forma a garantir as exigências formais do reconhecimento
comunicativo?
A gramática dos pronomes pessoais não se refere à análise gramatical
propriamente dita. Não é, pois, uma simples questão lexical, porque ela diz respeito
ao uso relacional da linguagem. Por isso, o sentido das expressões gramaticais e
dos atos de fala está ligado ao seu uso pronominal. A exigência está vinculada a
uma forma gramatical do uso dos pronomes e da equidade entre os três pronomes
pessoais. Da mesma forma que um sujeito pronominal, também uma
vinculação com o verbo pronominal. Na verdade, a arquitetura da linguagem
presume o uso dos três pronomes pessoais, de modo que nenhum deles seja neutro
ou não participativo, porque as exigências pragmáticas presumem os três pronomes
pessoais na voz ativa. está, então, a exigência normativa com um senso
equitativo em relação aos três pronomes pessoais (singular e/ou plural). Essa
gramática da compreensão (Ferry, 2004) tem efeitos muito importantes para
qualquer teoria social, política, moral etc.
1
PIZZI, Jovino; DUTRA, Delamar José Volpato. O sujeito pronominal e a gramática comunicativa:
elementos para uma gramática da justiça. In: COLÓQUIO HABERMAS, 11.; COLÓQUIO DE
FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 2., 2015. Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2016.
Disponível em: https://coloquiohabermas.files. wordpress.com/2016/03/anais-xi-coloquio-habermas-e-
ii-coloquio-de-filosofia-da-informacao1.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023.
CAPÍTULO IV
57
Em relação a isso, o primeiro aspecto pretende delimitar a gramática
pronominal relacionado a uma questão bem simples: como é possível um
tratamento equitativo aos três pronomes pessoais? A resposta requer uma
gramática pronominal de forma a conferir um tratamento equitativo aos três
pronomes pessoais. No horizonte de uma teoria do agir comunicativo, o como
conceber nenhum pronome como presumivelmente neutro, isto é, sem tomar
partido, indefinido e, portanto, descomprometido ou descompromissado. A ideia,
então, retoma o significado pronominal relativo às três pessoas, de modo a garantir
que todos os sujeitos pronominais adquiram o status de sujeitos reconhecidos
moralmente. Por isso, a experiência comunicativa (Ferry, 1991) requer a equidade
entre os três pronomes pessoas, algo inerente à gramática pronominal.
O terceiro ponto destaca a ideia do sujeito na voz passiva, a porta de entrada
para a indiferença ou a designação de alguém como antissocial. Nesse sentido, a
gramática do sujeito pronominal se defronta a coreografia mecanicista do “sistema”.
Em outras palavras, a metodologia voltada à eficiência perfeita do sistema, na
medida em que a otimização das ações assegure a máxima eficácia e o máximo
de rendimento. Nesse sentido, a contribuição de Habermas é deveras fundamental,
uma vez que a metodologia reconstrutiva supõe um “certo” abandono da teoria do
sistema. Em relação a isso, há outro assunto, pois a gramática comunicativa situa os
sujeitos coautores enquanto pertencentes a um mundo da vida. No entanto, a
suspeita inerente à metodologia reconstrutiva, com um caráter procedimental, aufere
um caráter menos seguro às intuições compartilhadas no mundo da vida. Ao
consolidar, portanto, uma arquitetura que diferencia a fundamentação das
considerações cotidianas, também um hiato entre os princípios normativos e as
motivações práticas (relacionadas ao mundo da vida cotidiano). A superação dessa
limitação aponta para a gramática pronominal e o uso relativo aos três pronomes
pessoais, de forma a garantir a todos os sujeitos o reconhecimento de sujeitos
coautores.
Daí, então, o quarto aspecto, isto é, a necessidade de consideração equitativa
aos três pronomes pessoais, na medida em que a gramática comunicativa assegure,
aos três pronomes, o reconhecimento equitativo. A gramática comunicativa exige,
pois, que os três pronomes devam ser considerados como essenciais, cujas
implicações políticas não admitem a indiferença, a neutralidade ou, inclusive, a
ameaça ou a violência. Isso aufere a todos os sujeitos o status de coautores, ao
CAPÍTULO IV
58
tempo que a experiência comunicativa é inerente ao estilo de vida moralmente
justificado e, portanto, o horizonte ético do reconhecimento.
CAPÍTULO V
CAPÍTULO V
60
HONNETH E AS PATOLOGIAS DO DIREITO
Delamar José Volpato Dutra
Do método da reconstrução normativa e do valor da liberdade
Honneth pretende conectar a sua teoria crítica com a análise da sociedade,
cujo foco não seriam princípios puramente normativos. Na verdade, não objetiva
desconsiderar os princípios normativos, mas detectá-los na eticidade de práticas e
instituições dadas.
1
De acordo com seu diagnóstico, teorias como a de Rawls e a de
Habermas “partem de uma congruência entre princípios de justiça obtidos de
maneira independente e os ideais normativos das sociedades modernas.”
2
Sem
embargo, elas apresentariam uma justificação construtiva e autônoma de tais
princípios, em vez de uma prova da superioridade delas em relação aos ideais
históricos concretos. Para ele, a reconstrução normativa é aquela que mede “[...] as
intenções normativas de uma teoria da justiça mediante a teoria da sociedade.”
3
Trata-se, portanto, de perscrutar a realidade social a fim de esquadrinhar as
instituições e práticas que efetivariam a justiça, haja vista o próprio conceito de
justiça, seja ele qual for, ser incapaz de fornecer um critério independente.
4
Desse
modo, o autor trilha um caminho que questiona a prioridade do justo sobre o bem,
que o caráter ético do bem compartilhado dá forma ao próprio conceito de justiça.
5
Ora, o valor ético supremo que predomina na modernidade é o da liberdade,
não o da liberdade política, mas o da liberdade individual. de início, segundo ele,
não se trata, por certo, da vontade da comunidade.
6
O leitor é convidado a ver a
1
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 15.
2
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 23. O diagnóstico
feito com relação a Rawls pode ser desafiado se a sua teoria for compreendida, no dizer de
Weithman, como conception-based, em vez de rights-based: “On my reading, Rawls supposes from
the outset that under the impact of liberal democratic thought and practice, we, his readers, think of
ourselves as free and equal persons embedded in a society that ought to be a fair scheme of social
cooperation. We have, he thinks, a democratic conception of our society and a conception of
ourselves that I call a free- and-equal self-conception.” [WEITHMAN, Paul. Why Political Liberalism?
On John Rawls‟s Political Turn. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 12]
3
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 24. A aproximação
com o procedimento do equilíbrio reflexivo entre conceito e realidade histórica é sugerida [HONNETH,
Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 107-8].
4
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 22.
5
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 32, 122. Exemplares
de tais questionamentos seriam as obras de Putnam e Taylor.
6
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 37.
CAPÍTULO V
61
liberdade individual como o supremo princípio de seu mundo. Tal formulação,
inclusive, está na base do conceito de direito que o autor dedilha, a partir de Hegel,
a saber, tudo aquilo que possibilita e realiza a liberdade individual de maneira
universal.
7
A princípio, os termos liberdade, autodeterminação e autonomia são
usadas de maneira mais ou menos intercambiável,
8
o que, aliás, informa muito
pouco sobre o significado dos mesmos. A liberdade, por ser bastante indeterminada,
encontra na história a ajuda para torná-la mais precisa, o que ocorre com a
apresentação de três modelos históricos da mesma: a liberdade negativa, a reflexiva
e a social.
Liberdade negativa e contrato
A liberdade negativa tem como modelo Hobbes, para quem a liberdade se
define como não interferência, como ausência de impedimentos externos, segundo o
que se no início do cap. XIV do Leviatã. Com isso, na busca dos objetivos que
podem ser escolhidos pelo indivíduo, obstáculos interiores não devem ser
compreendidos como impedimentos da liberdade.
9
Além disso, apostrofa Honneth, a
liberdade “[...] significa poder realizar todos os objetivos de vida egocêntricos e
caprichosos [...].”
10
Nesse cenário, configura-se um indivíduo atômico e
egocêntrico,
11
cuja única restrição seria a compatibilidade com a liberdade dos
demais.
12
Desse modo, descortina-se um conceito de justiça, um ordenamento
jurídico, por um lado, medido estrategicamente no seu estatuto e, por outro, limitado
em sua extensão. Limitado, que Honneth acusa a tal concepção de não tornar os
indivíduos autores e renovadores do ordenamento, o que demandaria um interesse
na cooperação,
13
a exigir uma outra figura da liberdade. Portanto, a permanecer
negativa, essa liberdade sempre deter-se-ia em frente da autodeterminação
individual, que sempre restringir-se-ia ao âmbito externo. No rumo da busca de
fins realmente próprios, a liberdade teria, indica ele, que se direcionar para a
7
19 HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 17.
8
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 34-37.
9
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 34-37.
10
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 44, 47.
11
HONNETH, Axel. O direito da liberdade.o Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 52-53.
12
HONNETH, Axel. O direito da liberdade.o Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 50-51.
13
HONNETH, Axel. O direito da liberdade.o Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 55.
CAPÍTULO V
62
autodeterminação reflexiva e social.
14
De se observar, aqui, a inspiração hegeliana dupla. Primeira, a crítica ao
contratualismo, cujo resultado será uma concepção de direito que deverá descer do
cume da abstração para o reino do espírito objetivo. Deveras, nos termos do adendo
H do § 141 de as Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, o direito existe
somente como uma parte de um todo, como se fosse uma planta trepadeira
agarrada em uma árvore, esta, sim, com raízes firmes.
15
Segunda, na crítica ao
déficit de subjetividade, cujo sentimento de vingança registrável na punição criminal
seria indicativo.
16
Inicialmente, a liberdade juridicamente concebida é uma espécie do gênero
liberdade negativa. De acordo com tal concepção, os motivos não têm interesse
para a comunicação estruturada juridicamente, os quais podem ficar no anonimato,
17
o que é bastante palpável, por exemplo, no exercício do direito de propriedade.
Porém, segundo um juízo mais cuidadoso dessa mesma liberdade, Honneth advoga
que isso é possível porque os sujeitos concedem- se reciprocamente esse
estatuto normativo. O sujeito solitário tem objetivos estratégicos, mas também
outros motivos e convicções presentes a serem considerados.
Nisso se pode ver a principal incapacidade a propósito da liberdade jurídica,
pois a autonomia privada só poderá ser empregada de maneira sensata [sinnvoll], só
poderá chegar a uma ponderação dos próprios objetivos, a uma confirmação real
do bem que pretende, pela referência aos outros como sujeitos eticamente
motivados.
18
Ora, isso exige uma atitude diferente daquela que é induzida pelo
direito. Exige uma atitude comunicativa. Nesse contexto, ele afirma que o direito até
incentiva comportamentos e atitudes que seriam um obstáculo, bloqueariam [im
Wege stehen) a liberdade que ele próprio criaria.
19
Sem embargo, essa
desvinculação não é uma insuficiência [Ungenügen] da liberdade jurídica, que é
constitutiva de sua lógica. Contudo, ela poderá ter consequências patológicas no
âmbito social, como ver-se-á, que a atitude que a liberdade jurídica faculta pode
14
HONNETH, Axel. O direito da liberdade.o Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 57.
15
“das Recht existiert nur als Zweig eines Ganzen, als sich anrankende Pflanze eines an und für sich
festen Baumes.”
16
HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. 2. ed., São Paulo, Recife, São
Leopoldo: Loyola, Ed. UNICAP, Ed. UNISINOS, 2010, §102.
17
HONNETH, Axel. O direito da liberdade.o Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 149.
18
HONNETH, Axel. O direito da liberdade.o Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 152.
19
Ao tratar do paradoxo da legitimidade que surge da legalidade, Habermas detecta um problema
semelhante, mas não chega ao ponto de desqualificar a própria forma jurídica.
CAPÍTULO V
63
dificultar vínculos e responsabilidades intersubjetivas. Ao operar monologicamente, o
sujeito ficará em um vácuo de decisão e em quase total indeterminação, de tal forma
que a liberdade jurídica não serve para descortinar e formular novas versões de
ideias do bem; permite questioná-las e revisá-las. Para uma formulação
inovadora e positiva de concepções do próprio bem, precisaria vislumbrar o outro
como algo mais do que um ator estratégico.
20
Por isso mesmo, no mundo vivido,
motivos que são compartilhados pré-reflexivamente. Quando ocorre um dissenso e
tal perspectiva em comum é rompida, surge o ônus de fundamentar a divergência.
Nesse cenário, o uso da liberdade jurídica sinaliza a intenção de interromper tal
oferta de razões. Ela opera uma espécie de moratória em relação ao fluxo
comunicativo. Em sendo assim, reparar-se-ia uma situação rompida não pela
conjugação intersubjetiva dos motivos em conflito. Ora, -se bem, se essa atitude
fosse radicalizada, ela afetaria a busca da autorrealização, pois não seria mais
possível contar com os outros para projetos comuns, relações e cooperações, a não
ser de modo puramente estratégico. Desse modo, a liberdade jurídica abre a
possibilidade de questionar, finalizar ou suspender projetos de vida, mas não a
oportunidade de dar realidade a novos projetos, já que isso dependeria de atitudes e
modos de comportamento não estratégicos.
21
Assim sendo, os direitos pressuporiam
uma série de práticas comunicativas implicadas, das quais, eles, na verdade,
dependeriam, que os direitos subjetivos alimentar-se-iam de um contexto de
relações não juridicamente determinadas.
22
Por exemplo, um contrato é aceitável
se respeitar uma série de condições éticas que são postas pela realidade social na
qual ele opera, como não poder comercializar órgãos humanos.
Honneth define patologia como o que atinge a capacidade racional de acessar
um sistema primário de ações e de normas, ou seja, uma perda de habilidade para
praticar adequadamente a gramática normativa de um sistema de ação
intuitivamente familiar.
23
Como essa patologia clama por um diagnóstico difícil de
realizar, ele apela para exemplos da estética, mormente da literatura, nisso
também seguindo Hegel, que no § 37 de suas Linhas Fundamentais da Filosofia do
Direito, usa o termo reiner Eigensinn, que poderia ser traduzido por 'rigidez', em
uma referência ao personagem Michael Kohlhaas de Kleist. Esse personagem se
20
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 153-4.
21
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 154-5.
22
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 156-7.
23
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 157.
CAPÍTULO V
64
aferra ao seu direito, que é uma possibilidade, e não toda a abrangência da
relação, ao ponto em que a busca pelo seu direito se transforma em vingança.
Deveras, hoje, vale registrar, a insistência nos direitos, muitas vezes, não se
tanto por causa de uma injustiça sofrida ou pela busca de vingança, mas por uma
disposição de se retrair ao comportamento jurídico que os outros
estrategicamente.
No campo da liberdade negativa, Honneth delineia duas patologias sicas,
aquela que transforma os meios de ação em um fim, exemplificado pelo filme
Kramer v. Kramer, e aquela na qual o meio se transforma em fim, a que torna os
meios da liberdade jurídica que suspende as obrigações em um ideal de vida. Neste
segundo caso, a pessoa usa a liberdade para dificultar os esforços da construção de
sua identidade, exemplificado pelo personagem Dwigt Wilmerding do romance
Indecisão de Kunkel.
Liberdade reflexiva e justiça
O segundo modelo de liberdade é a reflexiva, que teria como fontes o
pensamento de Rousseau e de Kant, para os quais a ideia de autonomia
desempenha papel central. Esse modelo mergulha na interioridade do sujeito ao
qual se atribui liberdade, para detectar o que ser-lhe-ia próprio.
24
Exatamente, nesse
modelo, noções como autonomia e heteronomia, autenticidade e inautenticidade,
passam a ser fundamentais.
Segundo a interpretação de Honneth, os projetos de Habermas, Apel, Mead,
Peirce, seriam uma reformulação desse modelo em termos de intersubjetividade.
25
No que se refere à justiça, de acordo com esse modelo reflexivo, a ideia de
autodeterminação como autonomia Peirce, seriam uma reformulação desse modelo
em termos de intersubjetividade.
26
No que se refere à justiça, de acordo com esse
modelo reflexivo, a ideia de autodeterminação como autonomia assumiria, para ele,
viés processual, mesmo deliberativo, exemplificado por Rawls e por Habermas.
27
Já,
a autodeterminação como autorrealização assumiria esguelha bastante substantiva,
24
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 157.
25
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 159.
26
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 69.
27
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 73-4. 39
CAPÍTULO V
65
seja em um viés mais individual, como seria o caso do projeto de Mill, ou mais
coletivo, como seria o caso da visão de Taylor, do republicanismo liberal de Arendt
[por ele assim caracterizado] e de Sandel.
28
De se mencionar a dificuldade de
apontar a concepção de justiça apropriada à liberdade reflexiva,
29
contudo, seja
qual for tal concepção, por não poder contar com uma formulação egoísta, o grau de
cooperação exigido “[...] é desproporcionalmente mais elevado [ungleich höher] do
que no caso da liberdade negativa,”
30
a qual exigiria o mínimo de conjugação com a
igual liberdade dos outros.
Honneth reclama que nenhum dos dois modelos de liberdade reflexiva, seja o
da autodeterminação seja o da autorrealização, tomam as condições sociais da
realização da liberdade como componentes desta. Não, elas tomam o conceito de
liberdade reflexiva e dela derivam as condições que seriam necessárias. Não
obstante, não indicam as condições sociais indispensáveis, como haver a
disponibilidade institucional de objetivos morais e a presença dos bens visados pelos
desejos estarem disponíveis na realidade social. Tais condições são como que
deixadas de lado e como que adicionadas a posteriori, com a exceção do modelo
discursivo dessa liberdade, segundo o qual a instituição social do discurso é
entendida como componente da própria liberdade. Aliás, isso funcionará como
diretriz, como chave, para Honneth construir um modelo de liberdade que conecta o
seu exercício com formas institucionais que possibilitam a sua realização.
31
Nesse diapasão, a liberdade moral seria espécie do gênero liberdade
reflexiva. Aquela é a que garante a possibilidade de retração das obrigações
comunicativas e de reconecção ao mundo vivido.
32
Ela permite a retirada “do leito
em que correm nossas eticidades do mundo real.”
33
Com isso, torna atrativa a
vinculação com normas universais, no sentido da crítica ao existente, bem como a
construção de novos sistemas de normas. Esse elemento construtivo a distingue e a
torna superior à liberdade jurídica, que se desconecta para não se reconectar.
34
Aqui, uma vez mais, pode ser detectada uma inspiração hegeliana dupla.
Sabidamente, Hegel criticara o formalismo vazio da moral kantiana no § 135 das
28
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 75.
29
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 73.
30
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 79.
31
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 79-80.
32
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 175-176.
33
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 191.
34
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 208.
CAPÍTULO V
66
suas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, formalismo este que
funcionaria, na verdade, por pressupor regras previamente aceitas pela
sociedade na qual se vive, como a de que a propriedade é um valor. A hipocrisia é
a outra crítica de Hegel a uma moral sem objetividade, sem instituições, como
anota o longo § 140 da mencionada obra. A hipocrisia manifestar-se-ia na
inverdade, na afirmação para o outro de um mal como um bem, segundo a qual o
mal justificar-se-ia pelas boas razões; manifestar-se-ia no querer o bem abstrato, a
intenção boa, de tal forma que ninguém seria mau porque ninguém quereria o mal
pelo mal. Desse modo, roubar para dar aos pobres, matar para satisfazer a
vingança do seu direito, tudo poderia ser colorido pela convicção subjetiva que
embasa o ato. Manifestar-se-ia, finalmente, na ironia e na vaidade do saber-se
como a base da objetividade moral. Contudo, no próprio desenho de tal liberdade
que estimula ser unilateral, no sentido da retirada da eticidade, Honneth detecta a
possibilidade, novamente, de patologias.
35
As patologias, nesse caso, os distúrbios ou interpretações equivocadas,
determinarão comportamentos individuais ou coletivos que tornarão difícil a
cooperação social, levando ao isolamento. A ilusão de ocultamento de toda a
facticidade normativa, uma desvinculação completa da eticidade e a acentuação do
momento crítico e suspensivo no qual só importa o padrão moral, quando envolve a
própria vida, conduz ao moralista desvinculado; quando envolve a sociedade
conduz ao terrorismo moral.
36
Os escritos de Henry James seriam, para ele, um
exemplar de como o zelo por princípios universais faria esquecer as obrigações
imediatas, bem como faria esquecer onde o mal deveria ser combatido. Em tal
cenário, o personagem Frederick Winterbourne de Daisy Miller causa a infelicidade
que tão resolutamente queria evitar, pois a rigidez de seu comportamento acaba
gerando a desgraça.
37
O segundo exemplo de patologia ou desvinculação completa
está no caso da jornalista Ulrike Meinhof.
38
De se anotar que, nesse ponto, mais
uma vez, Honneth segue o caminho que o próprio Hegel já havia trilhado com a sua
crítica ao terrorismo jacobino e consequente exaltação de Napoleão e seu código
civil.
39
35
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 192.
36
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 210.
37
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 215.
38
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 221-222..
39
HABERMAS, Jürgen. Teoria e práxis. [Rúrion Melo: Theorie und Praxis]. São Paulo: Editora
CAPÍTULO V
67
A liberdade social avança em direção à concretização história, cujo modelo
refere, de novo, a Hegel, a demandar um passo que, na tradição da teoria crítica,
Habermas e Apel não teriam dado.
40
Nesse percurso, o leitor descobrirá que o valor
ético supremo defendido por Honneth é “[...] a liberdade no sentido da autonomia do
indivíduo.”
41
Desse modo, o conceito de liberdade reflexiva é tomado como
paradigmático para a sua construção, senão veja-se.
A liberdade negativa fracassa porque ela não consegue verificar se os
conteúdos escolhidos seriam realmente livres sob o ponto de vista interior. Por outro
lado, a liberdade reflexiva é deficiente por induzir ao pensamento de que o externo é
marcado por algum tipo de heteronomia e, portanto, este externo se contrapõe-lhe.
A objeção ao segundo modelo complementa a objeção ao primeiro modelo. A
deficiência do primeiro modelo é a de não chegar suficientemente à interioridade, ao
passo que a do segundo modelo é a de não chegar à exterioridade de forma
suficiente. Tendo em vista essa estrutura conceitual, a liberdade reflexiva dará o tom
do entendimento da liberdade social, pois é justamente o elemento reflexivo que
verificará se realmente ocorreu ou não ocorreu um ato de autonomia em relação aos
próprios fins ou um ato de autenticidade em relação aos próprios desejos. No
entanto, ao se voltar preferencialmente para o interior parece permanecer em um
momento negativo de não obedecer a nada estranho. Com isso, Hegel, por exemplo,
teria se direcionado para um aspecto mais positivo, aquele de atribuir liberdade
também ao que ocorre externamente, ao que ocorre objetivamente, em sua
terminologia. A realidade externa, igualmente, tem que se apresentar livre de
coerção e de heteronomia. Desse modo, trata-se de ampliar [auszudehnen] as
determinações da liberdade reflexiva à realidade externa.
42
Justamente, Hegel teria
tomado como exemplares de liberdade externa social a se realizar de forma
autônoma e não coercitiva, portanto, livre, a amizade e o amor. -se, destarte,
como a liberdade reflexiva amplia-se para se converter em liberdade intersubjetiva,
43
a incluir no conceito de liberdade o aspecto interno e o externo, o que configura o
espírito objetivo.
44
Disso segue a definição de liberdade social:
UNESP, 2013, p. 204.
40
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 82.
41
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 34.
42
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 83-84.
43
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 85-86.
44
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 90.
CAPÍTULO V
68
em última instância o sujeito é „livre‟ quando, no contexto de
práticas institucionais, ele encontra uma contrapartida com a qual se
conecta por uma relação de reconhecimento recíproco, porque nos fins
dessa contrapartida ele pode vislumbrar uma condição para realizar seus
próprios fins. [...] E somente essa forma de reconhecimento é a que
possibilita ao indivíduo implementar e realizar seus fins obtidos
reflexivamente
45
.
Como apontado, no amor, a ideia de reciprocidade e de realização
conjunta de sujeitos que estabelecem uma relação na qual ambos podem
reconhecê-la como manifestação de seu eu autônomo, de sua liberdade. No
entender de Honneth, Hegel teria expandido essa pesquisa, inclusive para o âmbito
da economia e do Estado.
Deveras, vê-se bem a inspiração hegeliana do conceito de eticidade do § 33
das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito: “a ideia pensada do bem, realizada
na vontade refletida dentro de si [sich reflektierten Willen] e no mundo exterior
[äußerlicher Welt] [...] o Estado, enquanto liberdade que na livre autonomia
[Selbständigkeit] da vontade particular é igualmente universal e objetiva [objective].”
Com isso, haverá liberdade se houver uma conjugação com as possibilidades
exteriores de liberdade. O § 10 da mencionada obra sugere a realidade do que a
vontade quer como pertença à essência mesma da liberdade e não somente como
uma aplicação [Anwendung]. Na verdade, a exigência é mais do que uma
conjugação entre sujeitos que se reconhecem, mas uma conjugação entre liberdade
subjetiva e objetividade, o que demanda que os sujeitos aprendam [lernen] a alinhar
os seus motivos aos seus fins internos. Trata-se de querer o que antes era uma
prática.
46
Nesse cenário, as instituições de reciprocidade implicarão a formação
[Bildung] que irá buscar no comportamento “[...] desejos e intenções primárias, cuja
satisfação se faz possível mediante ações complementares dos outros.”
47
Ações
recíprocas vão realizar os fins reflexivos de todos os partícipes. -se, então, que
não é suficiente o momento da imposição, sendo necessário aquele da
aprendizagem.
45
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 87.
46
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 92-93. A
referência, nesse ponto, é a MacIntyre.
47
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 93. Raz ensaiaria
um modelo mais enfraquecido da ligação da liberdade à exterioridade institucional [HONNETH, Axel.
O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 91]. Segundo Honneth, Marx também teria
seguido esse modelo da cooperação social como paradigma da liberdade, haja vista o trabalho
implicar referência à satisfação das necessidades, próprias e dos outros [HONNETH, Axel. O direito
da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 95-7].
CAPÍTULO V
69
O complexo de objetivos com vocação universal, Hegel descortina nas
instituições mais gerais de seu tempo, a compor o conceito de eticidade.
48
Será
somente na dependência prévia de tais instituições éticas que, para Honneth, os
procedimentos contratuais e democráticos poderão ter lugar, como verificadores
individuais da legitimidade.
49
Aliás, esse é o lugar próprio das liberdades jurídica ou
moralmente concebidas, que estas possibilitam um distanciamento ou afastamento
saudáveis da eticidade, contudo, elas teriam um papel secundário e reativo a
desentendimentos no mundo vivido.
50
Assim sendo, a justiça não teria a sua medida
primeva na extensão das liberdades negativa e positiva, mas na garantia a todos de
participar em instituições de reconhecimento.
Por fim, há que se dar dinamicidade a tal eticidade via o desempenho das liberdades
negativa e reflexiva,
51
pois, estranhamente, para Honneth, a legitimidade é medida
nos seus termos.
52
Estranho porque as duas liberdades, expulsas pela porta da
frente, adentram pela porta dos fundos. Por isso, a cultura da liberdade atual aponta
para o rumo do que ele nomina de eticidade democrática. Nisso, Hegel precisa ser
atualizado, pois, ele, ao descortinar que a liberdade se desenvolve em
instituições de reconhecimento, não pôde sustentar que a estrutura de tais
instituições deveria depender da contingência de um consenso hipotético de todos,
pois tal consenso teria que advir de sujeitos que, por não estarem integrados
institucionalmente, não seriam suficientemente livres para possuir uma opinião e
perspectiva ponderadas [wohlerzogene], ou seja, não haveria como pôr a liberdade
individual antes da liberdade social.
53
Essa a forma sutil de Honneth dizer que Hegel
não concebeu o Estado de direito como Estado democrático de direito, de tal modo
que a ordem institucional justa teria que ser construída previamente antes que
decisões de indivíduos isolados fossem tomadas. Dito claramente, haveria
substantividade suficiente para assegurar a liberdade social na família, no mercado,
nos estamentos e no Estado constitucional monárquico. Como -se claramente no
texto do filósofo, “é de todo essencial que a constituição, embora surgida no tempo,
não seja vista como algo feito; pois ela é antes pura e simplesmente sendo em si e
48
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 61.
49
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 62.
50
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 63.
51
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 64.
52
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 65.
53
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 66.
CAPÍTULO V
70
para si.”
54
Como pontuara Sieyès “Ici la réalité est tout, la forme n‟est rien.”
55
O poder
da nação tem que existir; assim se resolve o problema do regresso ao
infinito de uma autoridade anterior.
Nesse diapasão, o termo soberania do povo, em si mesmo, não faz sentido
algum,
O povo, tomado sem seu monarca e sem a articulação do todo que se
conecta precisamente, assim, a ele de maneira necessária e imediata, é a
massa informe que não é mais nenhum Estado e à qual não compete mais
nenhuma das determinações que estão presentes no todo formado dentro
de si, - soberania, governo, tribunais, autoridade, estamentos e o que quer
que seja
56
.
A disposição política e a virtude não podem ser pressupostas em indivíduos
isolados, como parece ser o caso na democracia. Precisam de mediação, por
exemplo, dos estamentos.
Muito embora Honneth conceda o benefício da dúvida com relação a saber se
Hegel teria descortinado uma dinamicidade crítica da eticidade, ele registra que, de
todo modo, o aprendizado pós-Hegel das forças da individualidade e da autonomia,
do potencial da liberdade negativa e da reflexiva, acabaram por desencadear uma
dinamicidade que alterou as instituições.
57
É nesse caminho que persegue a
continuidade e o avanço do projeto hegeliano do qual ele se pretende o intérprete e
o arauto.
Redutos de eticidade
De acordo com Honneth, as instituições operam com uma função educadora,
o que conduz os membros da sociedade a quererem apoiar instituições justas.
58
Honneth gostaria de atestar o grau de saturação histórica necessário para
comprovar a teoria da liberdade social pelo apelo a intuições pré-teóricas e
experiências sociais que sufragassem, ao modo de Dewey, haver liberdade na
cooperação, que apelaria para a experiência de os outros não se oporem às
54
HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. 2. ed., São Paulo, Recife, São
Leopoldo: Loyola, Ed. UNICAP, Ed. UNISINOS, 2010, §273.
55
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Qu’est-ce que le tiers état? Paris: Éditions du Boucher, 2002 [1789],
p. 57.
56
HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. 2. ed., São Paulo, Recife, São
Leopoldo: Loyola, Ed. UNICAP, Ed. UNISINOS, 2010, § 279.
57
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 119.
58
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 114.
CAPÍTULO V
71
intenções individuais de um sujeito, mas de possibilitá-las, incentivá-las, promovê-
las,
59
exemplificado, como dito, pela relação amorosa. As liberdades jurídica e
moral seriam, portanto, concedidas [zugewiesen] socialmente,
60
em vez de serem
inatas e asseguradas [gesichert].
61
Isso significa a obrigação de desempenhar um papel social de acordo com um
padrão normativo. A ação social exige um comportamento segundo o qual os
objetivos dos indivíduos se tornam dependentes do modo como os outros agem, da
ação dos outros. Normas, nesse caso, não somente regulamentariam ações que
possibilitariam a coordenação intersubjetiva da ação, mas constituiriam um tipo de
ação que somente poderia ser executada cooperativamente, em conjunto. Em
epítome, esses sistemas de ação seriam relacionais.
62
Assim sendo, não haveria
patologias para tais regras, pois elas não seriam incompletas [unselbständig],
dependentes, a demandar complemento [Ergänzung] por relações da vida social,
mas seriam constituídas pelas relações sociais, assim como a instituição do
discurso seria constitutiva da racionalidade comunicativa.
Ora, o que caracteriza a esfera social é, justamente, o entrecruzamento de
papeis, anunciado no caráter relacional. Compõe tal esfera as relações pessoais
[a amizade, as relações íntimas e a família], na qual há necessidades e
propriedades individuais, o mercado [consumo e produção], no qual há interesses e
habilidades individuais, e a formação da vontade democrática [esfera pública e
Estado democrático de direito], na qual fins individuais em busca de configuração
intersubjetiva.
Cada esfera oferta uma contribuição educativa e formadora da liberdade
social. Na amizade, por exemplo, descortinam-se propriedades éticas.
63
Não ela
seria uma condição necessária da vida feliz, na medida em que cumpriria um papel
epistêmico de melhoraria das decisões vitais, que induziria a uma espécie de
publicidade mínima das mesmas, como, no âmbito da educação moral, operaria uma
pressão para circunstanciar os princípios morais, suprimindo a sua rigidez. Por fim,
as amizades cruzariam fronteiras e barreiras de classe, de etnia, de preconceitos,
“de modo que talvez se possa reconhecer nelas o fermento mais elementar de toda
59
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 117.
60
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 225.
61
HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. 2. ed., São Paulo, Recife,
São Leopoldo: Loyola, Ed. UNICAP, Ed. UNISINOS, 2010, §44.
62
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 227.
63
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 250.
CAPÍTULO V
72
a eticidade democrática.”
64
Por seu turno, as famílias distinguir-se-iam das relações íntimas, como uma
esfera própria de relação pessoal, pela triangulação da relação, pela mediação dos
filhos, sendo eles biológicos ou adotivos,
65
pois é isso que fundaria uma
comunidade por toda a vida.
66
A família não é uma comunidade democrática, pois
não serve aos fins da deliberação pública, mas ela veio a representar, com sucesso,
o núcleo de todas as atitudes e disposições [Dispositionen] requeridas pela
democracia,
67
na medida em que permite experimentar como participar
individualmente em cooperação partilhada, pela internalização das regras de
reconhecimento intrafamiliar, de tal forma a determinar um aprendizado para deixar
de lado os próprios interesses egocêntricos em face das necessidades dos outros
membros da família. Todas as habilidades desse tipo de individualidade cooperativa
poderiam ser adquiridas pela participação nas práticas das famílias: o esquema de
pensamento do outro generalizado, a partir do qual as obrigações devem ser
distribuídas de forma justa e equitativa; a prontidão [Bereitschaft] para realmente
aceitar as obrigações implícitas contidas em seu papel na negociação deliberativa
de tais responsabilidades; a tolerância requerida quando membros da família
cultivam estilos de vida ou preferências que conflitam de forma fundamental com
a sua própria.
68
A família se torna uma escola para esses tipos de comportamentos,
incluso para as futuras gerações.
Por fim, um mercado que não atentasse para regulamentações normativas,
geraria anomia, ou seja, movimentos sociais de reivindicação.
69
Honneth gostaria de
apresentar de forma defensável um funcionalismo normativo porque o mercado é
analisado também pelo viés de sua legitimidade, o que implicaria subordiná-lo à
democracia que deveria controlar o trabalho, a terra, o dinheiro, pela atenuação da
pressão da oferta e da procura sobre os mesmos.
70
Desse modo, ele avança uma
tentativa de justificação ética do mercado pela fixação adicional de normas justas e
favoráveis à outra parte, de tal forma que a reprodução do mercado sem resistências
64
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 256.
65
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 292.
66
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 295.
67
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 322.
68
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 323.
69
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 346-347.
70
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 347.
CAPÍTULO V
73
tácitas implicaria o atendimento de tais imperativos extraeconômicos e morais.
71
O
ponto é, precisamente, que o mercado não pode ser considerado isolado dos
valores.
72
Com isso, Honneth se afasta da alternativa de uma crítica abrangente ao
mercado, aquela de Marx, que, segundo a análise deste último, o mercado
impediria o exercício da liberdade negativa a uma enorme parcela da população.
73
Duas circunstâncias contribuiriam para uma tal conclusão:
AA] aquela de muitos só terem como propriedade a sua força de trabalho. Os
que só têm como mercadoria a sua força de trabalho nunca estarão em igualdade de
condições para fazer um contrato, logo, o contrato de trabalho não seria voluntário
nos termos de uma normatividade social que consideraria a liberdade reflexiva; BB]
aquela da especificidade da mercadoria trabalho como a única capaz de produzir
valor. Desse modo, não haveria salário capaz de pagar o trabalho, que este seria
a única fonte de produção de riqueza, ou seja, o que é pago pelo trabalho implicaria
exploração, necessariamente.
Deixando de lado a segunda circunstância, por ser problemática demais,
restaria, ao menos para Honneth, o impedimento do exercício da liberdade negativa
a uma enorme parcela da população. Como é improvável a possibilidade da não
aceitação de um contrato, frente à necessidade da sobrevivência, a liberdade
negativa não se realizaria. Sem embargo, de acordo com Honneth, Marx não
conseguiu provar que contratos produzidos sem a anuência voluntária feririam a
liberdade negativa. Marx considerava isso inevitável no mercado. Não obstante, para
Honneth, na verdade, a primeira circunstância não se põe em termos conceituais ou
analíticos, de tal forma que é uma questão empírica que deve ser enfrentada, ou
seja, como estabelecer condições sociais de uma liberdade geral de contrato:
Desse modo, a questão aqui em debate assume traços empíricos: não é
possível decidir de antemão se no interior das economias de mercado capitalista é
possível estabelecer as condições sociais de uma liberdade geral de contrato, mas
isso precisa ser revisado num processo de reformas implementadas com esse
propósito
74
.
71
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 351.
72
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 354.
73
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 363-364.
74
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 366.
CAPÍTULO V
74
Nesse sentido, nem os contratos com marca bastante coercitiva, nem a
exploração do trabalho, seriam déficits estruturais, quiçá, devido a possíveis
correções compensatórias.
Nessa direção é que caminha a retomada da economia moral para descrever
os inconvenientes como desvios de um conjunto de exigências que subjazeriam ao
mercado,
75
de tal forma que seria possível acomodar magnitudes morais como
sentimentos de injustiça, mecanismos discursivos e normas de justiça que
permitiriam indicar em que grau eles estariam ou não realizados.
76
Tratar-se-ia de
aplicar às relações econômicas as exigências normativas das sociedades
democráticas liberais, como imposições de uma liberdade social geralmente aceita.
Via protestos, movimentos sociais, reformas, haveria possibilidade de realização dos
princípios da liberdade social que garantiriam a legitimação do mercado, mediante
processos discursivos de regulação e consolidação jurídica da igualdade de
oportunidades.
De se registrar o caráter bastante idealizante dessa proposta, haja vista a
economia se alicerçar grandemente na liberdade negativa, não na comunicativa.
Deveras, ele registra, nesse quesito, ao longo do tempo, anomalias ou
desenvolvimentos falhos [Fehlentwicklungen] maiores do que evoluções.
77
Vale
anotar, por fim, como fundamental que aquilo que compõe o estofo da liberdade
social, “possui mais o caráter de práticas, costumes e papéis sociais do que de
circunstâncias jurídicas,”
78
de tal forma que, esclarece uma nota a essa citação,
“muito do direito que se tem em nome da liberdade não pode ser garantido sob a
forma de direito positivo.” Com isso, fica determinado um afastamento sempre
crescente da liberdade negativa e, portanto, do âmbito jurídico. Segundo um tal
entendimento, as condições da justiça implicariam atitudes, modos de tratamento e
comportamentos que não poderiam ser juridicizados. Tais direitos da liberdade
conectados à justiça dependeriam muito da “[...] existência de um imbricado
emaranhado de práticas e costumes harmonizados de fraca institucionalização [...]
esquivas a categorizações jurídico-estatais [...].”
79
Como bem pontuara Prestes, “Há
redutos de ações comunicativas em vários subsistemas que podem ser liberados por
75
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 367.
76
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 367.
77
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 370.
78
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 126.
79
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 127.
CAPÍTULO V
75
uma racionalidade que se baseia nas pretensões de validade.”
80
Nesse diapasão, Honneth descortina uma categoria de liberdade bem
diferente da negativa, a qual é fundamental para a própria garantia da liberdade
social em espectro amplo. Segundo ele, a configuração da realidade social sob o
pálio dos direitos juridicamente concebidos, ou seja, como direitos subjetivos, na
modernidade, acabou na dependência da esfera estatal que positiva e executa tais
direitos. Essa instância estatal, a vontade unida de todos, acabou criando, na
verdade, uma nova fonte de legitimidade. Ocorre que essa fonte de legitimidade
depende de os destinatários dos direitos atuarem como autores dos mesmos.
Contudo, tal autoria exige uma ação positiva. Tal liberdade é, portanto, diferente da
liberdade negativa que concede um espaço de atuação, à discricionariedade do ator,
no qual ele pode explorar a sua vontade de forma puramente privada. Não, a
exigência é positiva no sentido da cooperação ativa. Em outras palavras, a
autonomia coletiva exige práticas, atitudes e convicções democráticas que só podem
ocorrer no âmbito da liberdade social, da eticidade.
81
-se bem, amiúde, a
necessidade de se pontuar os redutos de ações comunicativas mencionados por
Prestes. Como dito, a democracia parece exigir um tipo de ação positiva do
indivíduo, algo bem diferente do espaço de ação sem amarras morais ou sociais da
liberdade jurídica.
82
Trata-se, agora, de averiguar se Honneth consegue apresentar
tais determinações éticas nos âmbitos que analisa.
Na contramão da eticidade democrática
Muito embora a reconstrução normativa de Honneth busque evitar a alegada
abstração das teorias kantianas da justiça que acabaria por criar problemas de
mediação entre a idealidade da teoria e a realidade social, ela, na verdade não
consegue evitar o problema da mediação, não somente porque ele não consegue
registrar traços significativos de eticidade nas diversas esferas que analisa, como
porque a própria reconstrução normativa depara-se com modos específicos da
liberdade, ou seja, “[...] com interpretações diferentes do que deve constituir a
80
PRESTES, Nadja Mara Hermann. Educação e racionalidade: conexões e possibilidades de uma
razão comunicativa na escola. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 75.
81
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 129-31, 146, 496-8,
82
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.129.
CAPÍTULO V
76
liberdade individual [...],”
83
concorrentes entre si, de tal forma a se configurar
interpretações díspares do valor da mesma. Ora, como a terceira formulação da
liberdade, a social, se consumaria pelo apelo a um sujeito cooperante, tornar-se-
ia possível, justamente por isso, a construção de instituições mediadoras a poderem
contribuir para a resolução de tais discordâncias, ao invés da retração do ambiente
social, a liberdade social disponibilizaria um espaço de participação no agir
comunicativo.
84
Apontar-se-á, abaixo, para a insuficiência da tentativa de resolução
desse quesito no âmbito da liberdade social.
No diagnóstico das relações íntimas, aquelas que se distinguem da amizade
pela intimidade sexual,
85
Honneth destaca, de forma negativa, a crescente
incapacidade de vinculação dos parceiros a longo prazo, pois as exigências da
formação capitalista da subjetividade estariam na direção da desvinculação.
Segundo ele, isso ameaçaria a própria eticidade democrática, que os seus
membros deveriam ter como sustentáculo “por um lado, saberem-se
institucionalmente guardados em sua necessidade natural e, por outro lado, obterem
uma confiança elementar em si mesmos com base nessa experiência específica de
ser reconhecidos reciprocamente,”
86
de onde a necessidade de que deveriam ser
determinados limites para prevenir o dano ocasionado pela colonização de outras
esferas. No caso, a colonização das relações íntimas pela economia.
No âmbito do consumo, o seu diagnóstico trilha caminho semelhante, pois
pode-se observar a predominância do consumo ostentativo, de luxo, sobre o de
necessidades, este relacionado ao valor de uso. Depois de idas e vindas para
melhor e para pior sob o ponto de vista de uma configuração social do mercado nos
séculos XIX e XX, nas últimas décadas, que inclui o séc. XXI, ele registra uma
predominância do comportamento privatista e consumista.
87
Como anotara
Habermas:
À medida que o sistema econômico submete a seus imperativos a forma de
vida das economias domésticas privadas e a conduta de vida de
consumidores e assalariados, o consumismo e o individualismo possessivo,
bem como os motivos relacionados com o rendimento e a competitividade,
83
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.123.
84
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.125-6.
85
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.267.
86
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.281.
87
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.417.
CAPÍTULO V
77
se transformam na força configuradora
88
.
Por isso, Honneth reluta em classificar o consumo mediado pelo mercado
como um componente da eticidade democrática. Mesmo que haja potencial
normativo no consumo, a carência de mecanismos discursivos e regulamentos não o
habilitaria, por ora, para a prática de uma adoção recíproca de perspectivas, nem
habilitá-lo-ia à aprendizagem de práticas de restrição das necessidades. Em
epítome, por ora, prevaleceria a anomalia [Fehlentwicklungen] do consumismo
privado de bens efêmeros, o que mostrar-se-ia grave frente à previsível catástrofe do
clima, bem como frente a um mercado de bens não éticos, como venda de órgãos,
contratação de barriga de aluguel, etc.
89
Desse modo, a conclusão é a de que o consumo mediado pelo mercado
careceria de todas as precondições sociais que poderiam convertê-lo em uma
instituição da liberdade social. Não se registraria reciprocidade institucionalizada na
satisfação de interesses ou necessidades,
90
isso porque os consumidores, divididos
entre si, o disporiam de instrumentos discursivos para o entendimento, por meio
dos quais puderiam generalizar as divergentes e variadas preferências, de tal modo
a obrigar a outra parte e as empresas a considerar essas preferências, sob pena de
fazer fracassar a concepção de produtos e política de preços. Não conseguiriam,
portanto, desenvolver uma consciência conjunta da realização da sua própria
liberdade individual em conjunto com outros. Na verdade, o maior obstáculo para a
unificação da comunicação e das normas legais seria a crescente diferença entre
situações sociais e níveis de renda,
91
ou seja, “variadas e divergentes preferências
[...] Divididos em grupos parciais, entre os quais não processos de entendimento
[...] esses consumidores não podem desenvolver nenhuma consciência conjunta
de realização da liberdade individual no intercâmbio cooperativo da contraparte.”
92
Assim, a distância socioeconômica leva ao fracasso, pois origina perspectivas
de futuro e oportunidades de consumo muito diferentes. Daí a necessidade de se
passar do consumo mediado pelo mercado para a questão do trabalho mediado pelo
mercado, pois a posição na estrutura social não é a que decide, precipuamente, mas
88
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. (v. 2). São Paulo: Martins Fontes, 2012, p.
587.
89
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.418-9.
90
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.420.
91
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 421.
92
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.421.
CAPÍTULO V
78
a posição no sistema de produção capitalista:
93
“Todos os esforços para que,
mesmo de maneira incipiente, se realize uma esfera do consumo estão fadados ao
fracasso quando a distância socioeconômica entre as classes aumenta a ponto de
originar perspectivas de futuro e oportunidades de consumo muito diferentes.”
94
Como mencionado, Honneth pretende fazer uma espécie de atualização do
pensamento de Hegel, inclusive nesse particular. De fato, este último apontara
que o mercado produz a plebe 241, § 244, § 245, das Linhas Fundamentais da
Filosofia do Direito], bem como que a divisão do trabalho tem como consequência a
possibilidade de substituir o trabalho por máquinas 198 da mesma obra]. Das
duas anomalias [Fehlentwicklungen] mencionadas, a primeira delas foi predominante
no séc. XIX e a segunda no séc. XX.
95
O próprio Hegel detectara, em sua obra
245], a operação do conceito de decência moral para corrigir o mercado em favor
dos necessitados, o que poderia ser entendido como um esforço de configuração
moral da economia.
96
No parágrafo mencionado, o próprio Hegel empregou o
conceito de autonomia e honra em relação à distribuição de bens aos pobres, sem
mediação do trabalho, muito embora em um sentido de questionamento a respeito
das possíveis implicações morais de tal estratégia.
A consideração de Honneth, em relação ao mercado, passa por duas
possibilidades: aquela da institucionalização da garantia jurídica, via direitos
subjetivos, da igualdade de oportunidade e aquela da institucionalização de
mecanismos discursivos para influir nos interesses das empresas ou corporações.
97
Contudo, não deixa de observar o efeito dessocializante dos direitos subjetivos:
direitos subjetivos que alheiam do ambiente comunicativo, conduzindo à figura típica
do individualismo
98
e às limitações próprias da racionalidade jurídica, apontadas
acima. De qualquer modo, para ele, no c. XIX, os impulsos de auto-organização
logo se paralisaram e, a partir dos anos 90 do século XX, ele constata até mesmo
retrocesso nesse quesito.
99
Como se pode perceber, o seu diagnóstico é marcadamente pessimista.
Deveras, em relação aos ganhos passados, ele registra, contemporaneamente, uma
93
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.422.
94
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.422.
95
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.423.
96
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.428.
97
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.436.
98
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.439.
99
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.468.
CAPÍTULO V
79
grande anomalia [Fehlentwicklung]. As pessoas, colonizadas pelo mercado em sua
personalidade, não manifestam mais reações coletivas de resistência e
indignação.
100
Houve até mesmo uma privatização das reações, rumo ao
individualismo e mesmo mutismo, de tal modo que o desconforto moral acaba sendo
articulado de maneira privada e, incluso, com recorrência a formas o verbais de
resistência, como o suicídio. Com essa anomalia, o s da eticidade democrática
careceria de um de seus elementos nucleares, pois não haveria inclusão para a
formatação do mercado. Assim sendo, o grau de anomalia poderia ser medido pela
reconversão/regressão da promessa de liberdade social na pura liberdade individual.
Possível solução ele vislumbra na internacionalização de movimentos de
oposição para uma reconfiguração moral da economia de mercado capitalista.
101
Honneth tem um diagnóstico ruim da liberdade negativa, ou jurídica, pois,
para ele, primeiro, os objetivos que poderiam ser buscados pelas possibilidades que
tal liberdade descortina seriam indeterminados, sendo que a sua especificação
dependeria de comunicação, contudo, ela ameaça excluir o indivíduo da
comunicação, devido à sua estrutura privada. Segundo, a incompletude da mesma
mostrar-se-ia no modo como avaliaria os deveres, expectativas e vínculos não
jurídicos, informais, ou seja, -los-ia como bloqueios.
102
Dito claramente, a
liberdade da comunicação é “[...] uma categoria de liberdade de tipo bem
diferente.”
103
A efetivação da liberdade na esfera pública democrática depende, ao menos,
de uma realização parcial da liberdade social nas outras esferas.
104
Antes de tudo,
de se anotar que o espaço para a discussão pública de opiniões diferentes emergiu
das liberdades liberais, entendido segundo a configuração dos direitos individuais,
de tal forma que pensar em obrigações de certos papeis como complementares
seria ferir o seu caráter de meramente formar a opinião privada via debate público.
Para tal, far-se-ia necessário mostrar a sua dependência de práticas
comunicativas.
105
Como mencionado, em verdade, o direito de voto, reunião e associação,
configurou um tipo de liberdade diferente da liberal, fazer algo que não se podia
100
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.472.
101
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.482-3.
102
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.131.
103
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.128.
104
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.487.
105
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.558-9.
CAPÍTULO V
80
fazer sozinho, pois o cidadão teria que justificar algo para o bem comum. Trata-se,
bem entendido, de contribuir com argumentos e de avaliar argumentos que poderiam
ser aceitos por todos, por contraposição ao que poder-se-ia chamar de paternalismo
político.
A história teria mostrado que a garantia dos direitos individuais para expressar
a própria opinião e participar politicamente seria insuficiente. Tal insuficiência dar-se-
ia por ser somente uma primeira condição, a demandar outras, como, a seguir,
aquela de vencer barreiras de classes e fronteiras estatais. Terceira, uma mídia
informativa. Quarta condição: disposição ao trabalho voluntário para elaboração de
material, fazer apresentações e participar/realizar reuniões presenciais para
reconcretizar a comunicação. Visa-se a prontidão para resistir à dissolução da esfera
pública com serviços voluntários que contribuem para a mesma. Quinta condição:
decisão individual de colocar os objetivos privados depois do bem comum.
106
Portanto, uma cultura cidadã de fazer sacrifícios, uma cultura política que alimenta e
alenta sentimentos de solidariedade seria o requerimento elementar para vitalizar e
acionar a vida pública, com remissão ao patriotismo constitucional.
107
As altas exigências que Honneth faz em termos éticos não conseguem uma
comprovação reconstrutiva suficientemente robusta para muscular uma concepção
palatável de eticidade democrática, justamente o que ele propõe como alternativa ao
normativismo imputado a Habermas e o consequente déficit sociológico. Nesse
diapasão, a presente pesquisa deverá avançar, futuramente, para uma comparação
com a proposta de Habermas.
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106
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.560.
107
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CAPÍTULO V
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CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VI
84
ELEMENTOS KANTIANOS PARA A COMPREENSÃO DA FORMA JURÍDICA EM
HABERMAS
Delamar José Volpato Dutra
Introdução
A liberdade ínsita à forma jurídica, Habermas aponta-a de forma mais
sistemática a partir da análise da legalidade em Kant. O texto principal para essa
análise está especialmente no capítulo I.III de Direito e democracia, que se alicerce
fortemente no aspecto coercitivo do direito. Nesse ponto, o conceito de legalidade
kantiano é usado para dissolver um paradoxo concernente às dimensões de
validade do direito
1
. Tal paradoxo residiria em o direito ser concebido por Kant como
uma coerção que serve para eliminar empecilhos da liberdade: “impedimento de um
impedimento da liberdade”
2
. Ora, como pode a coerção ser usada para sustentar a
liberdade e, mais importante, como pode o reconhecimento de que a coerção torna
possível a liberdade ser uma razão suficiente para que o direito seja cumprido
moralmente ou por dever? Destarte, “razões analíticas impedem que um agir por
dever, isto é, a obediência ao direito por motivos morais, possa ser imposto com o
uso da coerção”
3
.
A solução kantiana consistiria, segundo Habermas, em atribuir ao direito uma
concepção de liberdade que se constituiria em um dispositivo que permitiria a
motivação moral, embora não a possa obrigar, sem excluir as motivações
estratégicas ou outras que se poderiam conceber: “As Kant recognized, law differs
from morality in the formal properties of legality. Certain aspects of conduct open to
moral assessment (for example, convictions and motives) are per se exempted from
legal regulation”
4
. O importante é que com a legalidade se faz uma abstração do
1
“Normas do direito são, ao mesmo tempo e sob aspectos diferentes, leis da coerção e leis da
liberdade” [HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 49].
2
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 231.
3
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 49.
4
HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press,
1998, p. 201.
CAPÍTULO VI
85
móbil [ohne Rücksicht auf die Triebfeder derselben]
5
. Sabidamente, a legalidade
concerne à relação externa da ação com respeito à sua conformidade ou não
conformidade à regra que a enforma. A legislação jurídica não exige que a própria
idéia do dever, que é interna, se erija em motivo determinante da ação, liberando,
por consequência, a interioridade. Em suma, "a doutrina do direito e a doutrina da
virtude, se distinguem, então, bem menos por deveres diferentes que pela diferença
de legislação que associa à lei um móbil antes que um outro"
6
.
Moral e direito são, portanto, conceitualmente distintos sob o ponto de vista
da motivação (interna e externa), mas não são, em princípio, incompatíveis, nem sob
o ponto de vista da justificação, nem quanto à motivação
7
. Tal
compatibilidade/incompatibilidade tem como fundamento o fato de que para "leis
idênticas, as máximas dos agentes podem ser muito diferentes"
8
. O acordo da ação
com a lei é a legalidade; o acordo da máxima da ação com a lei é a moralidade. A
máxima é um princípio de ação que o sujeito se por norma, de tal forma que para
a mesma lei podem concorrer diferentes máximas
9
. Nesse sentido, a legislação
ética seria imperfeita, por admitir somente a coerção interna. Ao passo que a jurídica
seria perfeita, por admitir as duas. Então, a legislação moral admite uma
motivação, qual seja, a própria lei moral. Sendo que "o direito é a suma de
condições pelas quais o arbítrio de um pode concordar com o arbítrio de outro
segundo uma lei universal de liberdade"
10
, não se pode exigir que esse princípio,
qual seja, limitar a liberdade para que ela possa conviver com a liberdade dos
outros, possa ser exigido como máxima para a ação de qualquer um. Este,
certamente, é um dever ético, mas que releva do campo do direito.
Resulta da formulação kantiana que a coerção exige a ação externa, mas
libera o interior, a motivação. A moral, ao exigir que o motivo da ação seja o próprio
dever, exige uma total transparência do interior, dominando, completamente, a
vontade, não deixando a ela espaço algum de mobilidade. Se, por um lado, a moral
5
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 219.
6
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 220.
7
VOLPATO DUTRA, Delamar José. Manual de Filosofia do Direito. Caxias do Sul: Educs, 2008.
8
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 225.
9
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, MS, AA. 06: 225.
10
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 230.
CAPÍTULO VI
86
libera a ação externa do lculo de consequências, imputando, mesmo, falta de
valor moral a tal lculo, na medida em que a pureza da vontade é que todo o
valor moral, que o importante no valor moral da ação é tão somente a vontade
boa, ela, de outro lado, domina a vontade livre com uma determinação unitária, ao
lhe exigir motivação exclusiva, calcada na pureza do próprio ordenamento moral.
Como bem pontua Habermas, “a positividade do direito força uma divisão da
autonomia, que não possui equivalente no campo moral. A autodeterminação moral
constitui um conceito unitário”
11
. Não fosse assim, cairia por terra o elemento mesmo
que distingue as duas legislações.
O direito, por seu turno, exige a conformidade à legislação,
descompromissando a motivação com relação aos elementos nos quais se
prenderá. Tal economia, por o querer penetrar no âmago da vontade, se contenta
apenas com a exterioridade, a qual é, então, objetivamente calculável e perceptível,
ao contrário da motivação moral, sempre de difícil vislumbre, dada a pureza que se
lhe exige. Logo, da coatividade da conduta se segue uma incongruência com a
disciplina da própria vontade no agir por dever. De fato, afirma Kant:
quem, quando sente em si a presença do móbil determinando-o à
observação do dever, conhece-se o bastante para saber se este móbil
procede inteiramente da representação da lei ou se não
concorrentemente muitos outros impulsos, sensíveis, que são orientados a
uma vantagem (ou à prevenção de uma desvantagem) e que, em outras
circunstâncias, poderiam estar inteiramente a serviço do vício
12
?
Portanto, o verso da medalha do aspecto coativo do direito é, precisamente, a
liberação da vontade da motivação moral, facultando-lhe a indeterminação do
arbítrio. Isso é que se encontra precisamente no início da parte III.III do texto, ou
seja, um tipo de arbítrio, que se diz também como liberdade negativa, e que se
apresenta como verso da medalha precisamente o aspecto coercitivo do direito. Tal
verso pode ser expresso na gramática dos direitos subjetivos. Ou seja, a necessária
coatividade do direito implica na liberação da vontade, conferindo-lhe, destarte, o
que se poderia chamar direitos subjetivos de motivação, cuja única formulação
possível consiste na chamada liberdade negativa de abandonar a motivação da lei
11
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 310, posfácio.
12
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 447.
CAPÍTULO VI
87
pela lei. É assim que se pode entender por que o verso da medalha do aspecto
coercitivo do direito reside em algo que se poderia chamar de direito subjetivo de
motivação, por mais contrario sensu que pareça, pois, o verso da medalha da
coerção, por razões categoriais, tem que ser a liberação da vontade da obediência
por dever à legislação.
Um outro aspecto correlato diz respeito aos âmbitos moralmente neutros, ou
seja, àqueles que não há imperativo contrário algum, ou seja, âmbitos não ordenados
ou proibidos, sendo moralmente indiferentes. [222-3, comentário Bekemkamp xxv s].
Como bem pontua Habermas "o sentido dos direitos subjetivos consiste inicialmente
em desligar, de um modo bem circunscrito, os sujeitos de direito de mandamentos
morais, abrindo aos atores espaços de arbítrio legítimo"
13
,
Direitos de ação subjetiva, entendidos nesse sentido negativo, são, portanto,
constitutivos da forma jurídica. Ser sujeito de direito implica esse espaço da
liberdade. Essa forma jurídica, como se pode ver, é, em princípio, neutra com
relação a qualquer conteúdo, pois ela resulta apenas de sua distinção da moral, a
qual, segundo a boa doutrina kantiana, decorre da precisão que deve ser feita
duplamente, no que tange à motivação e no que tange a conteúdos morais
indiferentes.
Essa abstração dos móbiles, fazendo aparecer a motivação como fator que
caracteriza estritamente o direito, sendo decorrência de seu aspecto coercitivo, é o
que permite a Habermas partir do conceito de legalidade kantiano, interpretando-o
como direito subjetivo, ou liberdade subjetiva de motivação e de ação
14
. Apregoa ele:
"de si mesmo, o direito está ligado à autorização para o uso da coerção"
15
, logo, é
possível extrair o direito da simples conformidade de uma ação com a lei, "pois
razões analíticas impedem que um agir por dever, isto é, a obediência ao direito por
motivos morais, possa ser imposto com o uso da coerção"
16
. O direito libera os
motivos para a sua obediência, ou seja, o direito "permite substituir convicções
13
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 311.
14
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 48.
15
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 49.
16
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 48.
CAPÍTULO VI
88
através de sanções"
17
. Desse modo, o direito libera, por um lado, o motivo para o
cumprimento da norma e, por outro, "protege a esfera interior da qual uma pessoa
concreta, responsável moralmente, e que conduz a sua vida de modo ético, pode se
desenvolver livremente"
18
. Aliás, se neste segundo aspecto que ficará aberto o
espaço dentro do qual será possível cada um realizar seu plano particular de
felicidade, segundo uma vida autêntica.
Assim formulado, o direito portaria como que uma racionalidade própria, não
necessitando nem estar sob o jugo do poder ou da moral e nem ser um parasita
destes. Portanto, munido de características próprias ele poderia interagir com o
poder, ganhando deste a força coativa que o caracteriza e ofertando um meio
racional e, por que não, legítimo, de configuração do poder, da mesma forma no
caso da moral, ofertando eficácia a suas formulações e recebendo em troca
elementos de justiça.
Há, ainda, duas outras referências diretas a Kant em Direito e democracia,
ambas no cap. III, as quais não são essenciais para a determinação do conceito de
forma jurídica.
A primeira delas, em III.I, tem conexão com a relação entre os direitos
humanos e a soberania popular. Nela, Habermas critica as perspectivas de três
autores, por razões diferentes. Hobbes é criticado pela sua formulação estratégica
do direito público e Rousseau pelo tratamento formal a partir da semântica da
generalidade das leis, ponto que será apresentado a seguir. Contra Kant, por seu
turno, ele alega que a fundamentação moral dos direitos humanos por ele proposta
lhe uma prioridade indevida sobre a soberania popular.
A segunda citação está em III.II e diz respeito à relação entre direito e moral.
Nela, Habermas defende que Kant não teria concebido uma racionalidade própria
para o direito, mas tê-lo-ia tratado como um caso especial da moral, a qual seria,
então, limitada por várias determinações ínsitas ao direito, mormente aquela da
coerção. Ademais, com isso, Kant teria excluído razões importantes do direito, como
as pragmáticas e as éticas, estas últimas conexas com questões de felicidade.
Em suma, para a caracterização do conceito de forma jurídica, em Kant, é
importante referir a uma formulação da liberdade mais abrangente do que aquela
17
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 52.
18
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 148.
CAPÍTULO VI
89
concernente à moral, haja vista tal liberdade ser capaz de incorporar em si,
incluso, a motivação moral, sem prejuízo de qualquer outra possibilidade
motivacional.
O direito como mediação entre moral e democracia
A análise que Habermas faz da filosofia do direito kantiana mostra que ela é
ambivalente. Kant por uma rie de abstrações configura uma concepção de direito
que mais parece a moral travestida pela roupagem da coação, especialmente sob o
ponto de vista do conteúdo da norma. Tanto a sua definição de direito, quanto o
princípio universal do direito, são interpretados por Habermas como um direito
subordinado à moral. De fato, Kant desloca sutilmente a definição de direito da
formulação deste como coação, “Direito e faculdade de coagir significam, portanto, a
mesma coisa”
19
, para esta outra formulação, “o direito estrito pode ser representado
também como a possibilidade de uma coação recíproca geral concordante com a
liberdade de qualquer um segundo leis universais”
20
. Ou seja, trata-se, neste último
caso, de uma definição normativa referida ao que é justo
21
. Com isso, a liberdade e
a igualdade (veja-se que aparece na formulação os termos “geral” e “universais”) são
claramente estabelecidas. Note-se, contudo, que no texto Contra Hobbes de
1793, ele houvera estabelecido uma relação entre o único direito humano inato, a
liberdade, e o sistema jurídico como um sistema de leis:
Todo o direito depende, de fato, das leis. Mas uma lei pública que determina
para todos o que lhes deve ser juridicamente permitido ou interdito é o ato
de um querer público, do qual promana todo o direito e que, por
conseguinte, não deve por si mesmo cometer injustiças contra ninguém.
Ora, a este respeito, nenhuma outra vontade é possível a não ser a de todo
o povo ( que todos decidem sobre todos e, por conseguinte, cada um
sobre si mesmo): pois, só a si mesmo é que alguém pode causar dano
22
.
19
32 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 232.
20
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 232.
21
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 229.
22
KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isso pode ser correcto na teoria, mas nada vale na
prática. [Trad. Artur Morão]. Covilhã: Lusofia Press. [Disponível em: http://www.lusosofia.net/], TP, AA
08: 294-5. A tradução da parte final merece retoque: "denn nur sich selbst kann niemand unrecht
thun"
CAPÍTULO VI
90
Segundo Habermas, isso significa que a autonomia moral pode adquirir
figuração concreta pela autonomia política, de tal forma que “o princípio do direito
parece realizar uma mediação entre o princípio da moral e o da democracia.
Contudo, não está suficientemente claro como esses dois princípios se comportam
reciprocamente”
23
. Para se entender isso, deve-se esclarecer que a vontade pública
do republicanismo Habermas a chama de democracia. Ele sugere uma aproximação
entre o que Kant nominou republicanismo e o que hoje se chama democracia
24
.
Kant muito bem observa tratar-se da vontade pública de todo o povo, pois
somente quando se tratar da vontade de todo o povo é que não poderá haver
injustiça contra quem quer seja. É essa a ideia que ele repete alguns anos depois na
Doutrina do direito e que Habermas
25
considera como uma formulação kantiana da
soberania tal qual definida por Rousseau
26
:
O poder legislativo somente pode caber à vontade unificada do povo. Pois,
uma vez que deve proceder dele todo direito, não deve ele por sua lei poder
ser injusto pura e simplesmente com ninguém. Ora, se alguém decide algo
em relação a um outro, sempre é possível que assim ele seja injusto com
ele, mas nunca naquilo que ele decide acerca de si mesmo (pois volenti non
fit injuria). Assim, somente a vontade concordante e unificada de todos, na
medida em que cada um decide o mesmo sobre todos e todos sobre um,
portanto somente a vontade universalmente unificada do povo é
legisladora
27
.
Nesse sentido, poder-se-ia perguntar como ficaria a relação entre o direito
racional e a vontade unida do povo, quando esta estabelecesse leis com conteúdo
contrário ao direito racional. Essa não parece ser uma possibilidade para Kant, pois
o cidadão não poderia concordar com leis que desrespeitassem tal direito: “todo o
23
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 127.
24
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 122.
25
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 259.
26
39 «Ces clauses, bien entendues, se réduisent toutes à une seule - savoir, l'aliénation totale de
chaque associé avec tous ses droits à toute la communauté: car, premièrement, chacun se donnant
tout entier, la condition est égale pour tous; et la condition étant égale pour tous, nul n'a intérêt de la
rendre onéreuse aux autres. De plus, l'aliénation se faisant sans réserve, l'union est aussi parfaite
qu'elle peut l'être, et nul associé n'a plus rien à réclamer: car, s'il restait quelques droits aux
particuliers, comme il n'y aurait aucun supérieur commun qui pût prononcer entre eux et le public,
chacun, étant en quelque point son propre juge, prétendrait bientôt l'être en tous; l'état de nature
subsisterait, et l'association deviendrait nécessairement tyrannique ou vaine» [ROUSSEAU, Jean-
Jacques. Du contrat social. Paris: Aubier, 1943 [1757], livre I, ch. VI].
27
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 122.
CAPÍTULO VI
91
homem tem os seus direitos inalienáveis a que não pode renunciar, mesmo se
quisesse, e sobre os quais tem competência para julgar”
28
. De fato, pode-se afirmar
que uma correspondência entre todos poderem concordar e cada um não poder
discordar, de tal forma que não haveria, segundo Habermas, uma limitação da
vontade unida do povo pelo direito racional, haja vista, justamente, os cidadãos não
poderem dar seu consentimento a leis que negassem seus direitos humanos.
Kant não explica se a razão pela qual o cidadão não pode concordar com leis
contrárias à liberdade decorre de uma capacidade moral ou de um mecanismo
referido à generalidade da lei jurídica que acaba por fazer reverter sobre o indivíduo
o que ele legisla para os outros, em uma espécie de regra de ouro. Habermas
sugere esta interpretação em 1988:
E, para que a razão legitimadora do poder não se anteponha mais à
vontade soberana do povo como em Locke situando os direitos humanos
num estado natural fictício, atribui-se uma estrutura racional à própria
autonomia da prática da legislação. Uma vez que a vontade unida dos
cidadãos pode manifestar-se na forma de leis gerais e abstratas, é
forçada per se a uma operação que exclui todos os interesses não
generalizáveis, admitindo apenas as normatizações que garantem a todos
iguais liberdades. O exercício da soberania popular garante, pois, os direitos
humanos
29
.
Em 1992, porém, ele atribui isso claramente a Rousseau, mas afirma, por
duas vezes, não haver clareza em Kant sobre o assunto
30
, sendo que tal falta de
clareza dever-se-ia basicamente a Kant ter operacionalizado a autonomia dos
sujeitos no exercício da soberania popular segundo o imperativo categórico: “porém
ele explica esse conceito [autonomia] na fórmula legal do imperativo categórico”
31
.
Evidentemente, como não pode haver a vontade unida efetivamente operante,
a leis devem ser feitas como se pudessem contar com o acordo de todo o povo:
se, por conseguinte não se pode esperar unanimidade de um povo inteiro,
se, portanto, apenas se pode prever como alcançável uma maioria de votos
e, claro está, não a partir dos votantes diretos (num povo grande), mas
28
KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isso pode ser correcto na teoria, mas nada vale na
prática. [Trad. Artur Morão]. Covilhã: Lusofia Press. [Disponível em: http://www.lusosofia.net/], TP, AA
08: 304.
29
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 259.
30
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 127-8.
31
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 127-8.
CAPÍTULO VI
92
apenas dos delegados enquanto representantes do povo, então, o próprio
princípio que consiste em contentar-se com esta maioria, e enquanto
princípio admitido com o acordo geral, portanto, mediante um contrato, é
que deverá ser o princípio supremo do estabelecimento de uma constituição
civil
32
.
Desse modo, em Teoria e práxis, ele afirma que a vontade geral é uma idéia
da razão que
obriga todo legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem
emanar da vontade coletiva de um povo inteiro, e a considerar todo o súdito,
enquanto quer ser cidadão, como se ele tivesse assentido pelo seu sufrágio
a semelhante vontade. E esta, com efeito, a pedra de toque da legitimidade
de toda a lei blica. Se, com efeito, esta é de tal modo constituída que é
impossível a um povo inteiro poder proporcionar-lhe o seu consentimento
(...) não é justa; mas se é apenas possível que um povo lhe o se
assentimento, então é um dever considerar a lei como justa.
33
Seja como for, jamais Kant imputará virtude ao cidadão como condição de
possibilidade do estabelecimento de um Estado, ou mesmo de um Estado justo:
“o homem está obrigado a ser um bom cidadão, embora não seja obrigado a ser
moralmente um homem bom. O problema do estabelecimento do Estado, por mais
áspero que soe, tem solução, inclusive para um povo de demônios (contando que
tenham entendimento)”
34
. Por isso, pode haver injustiça, ou seja, o legislador pode
errar: “a injustiça de que, na sua opinião, ele é vítima pode, segundo aquele
32
TP, AA 08: 296. Locke apresenta como fundamento do princípio majoritário a força superior da
maioria em relação à minoria: “sendo necessário ao que é um corpo para mover-se em um sentido,
que se mova para o lado para o qual o leva a força maior, que é o consentimento da maioria”
[LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. [Trad. A. Aiex e E. Jacy Monteiro: Concerning Civil
Government, Second Essay]. 2. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978. cap. VIII]. Kelsen, por sua vez,
sustenta o seguinte: “a idéia subjacente ao princípio da maioria é a de que a ordem social deve estar
em consonância com o maior número possível de sujeitos e em discordância com o menor número
possível de sujeitos [...] é o princípio da maioria que assegura o grau mais alto de liberdade política
possível dentro da sociedade. Se uma ordem social não pudesse ser modificada pela vontade de
uma maioria simples de sujeitos, mas apenas pela vontade de todos (ou seja, de modo unânime), ou
pela vontade de uma maioria qualificada (por exemplo, por um voto majoritário de dois terços ou três
quartos), então um único indivíduo, ou uma minoria de indivíduos, poderia impedir uma modificação
na ordem” [KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3. ed., [L. C. Borges: General Theory
of Law and State]. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [1949], p. 412]. Para Rawls, a regra da maioria é
escolhida por questão de efetividade, pois “não outro modo de lidar com o regime democrático”.
No entanto, ele implica, como contrapartida, que “the parties accept the risk of suffering the defects of
one another‟s knowledge and sense of justice in order to gain the advantages of an effective
legislative procedure” [RAWLS, John. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University
Press, 1999 [1971], p. 312].
33
KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isso pode ser correcto na teoria, mas nada vale na
prática. [Trad. Artur Morão]. Covilhã: Lusofia Press. [Disponível em: http://www.lusosofia.net/], TP, AA
08: 297.
34
KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isso pode ser correcto na teoria, mas nada vale na
prática. [Trad. Artur Morão]. Covilhã: Lusofia Press. [Disponível em: http://www.lusosofia.net/], TP, AA
08: 366.
CAPÍTULO VI
93
pressuposto, ter lugar por erro ou por ignorância do poder soberano quanto a certos
efeitos das leis [...] Com efeito, admitir que o soberano não pode errar ou ignorar
alguma coisa seria represen-lo como agraciado de inspirações celestes e superior
à humanidade. Por isso, a liberdade de escrever (...) é o único paládio dos direitos
do povo”
35
.
Desse modo, quando ele operacionaliza a vontade unida do povo, o direito
racional da liberdade garantido de forma moral ancora em um sujeito que não pode
deixar de querer tal direito, embora possa errar, haja vista as leis nunca
demandarem efetivamente a manifestação de todos os concernidos por ela. No caso
de Kant, em última análise, te-se-ia, portanto, que apelar a um sujeito moral que não
pode se recusar a dar seu consentimento aos direitos humanos. Dito lapidarmente, o
que se registra em Kant é um déficit de operacionalização da forma jurídica quanto
ele trata da relação entre a vontade individual e a coletiva. Ou seja, Kant exagera na
moralização do direito. Como se verá, o problema de Rousseau é outro, ele exagera
na concretude da forma de vida como condição para sustentar o acordo da vontade
privada e da vontade geral.
Tanto em Kant quanto em Rousseau parece haver um mecanismo do
direito que medeia os direitos humanos e a soberania do povo, porém, como
Habermas afirma, isso o está “suficientemente claro”, especialmente no caso de
Kant. Seja como for, em Direito e democracia Habermas encaminha a solução
kantiana da relação entre direitos humanos e soberania popular por um outro viés
que não este da forma do direito. Assim, ele não estipula que pelo fato de a
soberania popular ter que apresentar seus produtos sob a forma da lei jurídica e
sendo a lei jurídica abstrata e universal, eo ipso, não haveria como abrigar conteúdo
contra os direitos humanos. Melhor dito, como o procedimento deve produzir um
produto válido para a vontade de todos, a igualdade exigida pelo direito inato
à liberdade seria realizada por uma espécie de automatismo do procedimento
36
.
Essa, como se verá, é uma das interpretações possíveis que ele atribui a Rousseau.
No que concerne a Kant, portanto, o caminho, como dito, seria bem outro,
na interpretação de Habermas. Para Kant, o direito inato à liberdade teria um
35
KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isso pode ser correcto na teoria, mas nada vale na
prática. [Trad. Artur Morão]. Covilhã: Lusofia Press. [Disponível em: http://www.lusosofia.net/], TP, AA
08: 304.
36
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 127.
CAPÍTULO VI
94
fundamento moral, pois ele obteria o princípio universal do direito via aplicação do
imperativo categórico a relações externas. Sabidamente, essa foi a tese sustentada
por Gregor
37
. Seguir-se-ia dessa posição que “os princípios do direito privado
valem como princípios morais no estado natural”
38
. No que concerne a Rousseau,
por seu turno, primeiro ele constituiria a autonomia do cidadão via contrato e depois
introduziria um vínculo com os direitos humanos: “como a vontade soberana do povo
somente pode exprimir-se na linguagem de leis abstratas e gerais, está inscrito
naturalmente nela o direito a iguais liberdades subjetivas, que Kant antepõe,
enquanto direito humano fundamentado moralmente, à formação política da
vontade”
39
.
Desse modo, no caso de Kant, a vontade unida do povo é formulada de tal
modo a abarcar todos, como um sinônimo da igualdade, o que permite que não haja
injustiça (volenti non fiat iniuria). No procedimento realmente levado a cabo para
legislar, não precisa haver o acordo de todos, mas deve ser possível a todo o povo
dar o seu acordo. A tensão entre vontade individual e vontade coletiva ocorreria
porque, por um lado, o acesso que Kant tem aos direitos humanos é prévia a
qualquer ato de soberania e, por outro lado, a soberania teria uma origem que não
portaria conexão com os direitos humanos. Segundo Habermas, a partir de
Maquiavel, o poder político passou a ser interpretado de forma naturalística, como
algo que pode ser calculado estrategicamente. Tratar-se-ia, portanto, de um poder
fático de mando. O que os teóricos do direito natural teriam feito seria revestir com o
manto do direito as manifestações imperativas da vontade soberana. “Porém, o
poder da vontade do senhor, canalizado pelas leis, continua sendo essencialmente o
poder substancial de uma vontade apoiada na pura decisão”
40
. Justamente nas
obras de Rousseau e de Kant apareceria a tensão entre a vontade decisionista do
soberano e as determinações formais da lei jurídica nas quais esta teria que ser
explicitada, mormente a generalidade e a abstração, mas também a liberdade
37
GREGOR, Mary J./DZRI)UHHGRP$6WXG\RI.DQW¶V0HWKRGRI$SSO\LQJWKH&DWHJRULF
DO,PSHUDWLYHLQWKH 'Methar Sitten'. Oxford: Blackwell, 1963. Almeida também segue essa
estratégia: ALMEIDA, Guido Antônio de. Sobre Sobre o princípio e a lei universal do Direito em Kant.
Kriterion. N. 114, 2006, p. 209-222.
38
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 135.
39
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 135.
40
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 175.
CAPÍTULO VI
95
subjetiva que está implícita na forma jurídica, como a liberdade de motivação. Isso
estaria manifesto, incluso, na ideia kantiana de reformas paternalistas que deveriam
ser conduzidas pelo soberano. Tratar-se-ia de um respeito hobbesiano pelo fato
natural do poder político, exatamente o coração decisionista da política que separa
direito e moral
41
.
O ponto de Habermas, quiçá, é que em Kant o indivíduo entra no contrato
equipado com um direito, o qual ele não abrirá mão ou não poderá concordar em
abrir mão. Desse modo, pode-se afirmar que esse direito fundamentado moralmente
na humanidade como fim em si mesma adentraria na vontade soberana do povo e
adentraria também no direito positivo. No fundo, Habermas está acusando Kant de
ter operacionalizado a vontade geral de forma individualista, via imperativo
categórico, nos termos da filosofia da consciência, e não por um procedimento
discursivo de viés jurídico.
Na verdade, Kant é ambivalente porque tem uma estratégia dupla. Por um
lado, ele não tem como manter uma motivação moral como fundamento do direito,
isso por razões analíticas, vis-à-vis da sua definição do que consiste uma ação por
dever, que não se pode impor coativamente a prática de uma ação por dever; por
outro lado, sob o ponto de vista do conteúdo, o direito racional continua vinculado à
moral, como uma espécie de aplicação do imperativo categórico a relações externas,
muito bem sublinhado por Gregor.
Assim sendo, parece haver um paradoxo porque, por um lado, Kant não
parece imputar virtude ao cidadão, por outro lado, Habermas o interpreta de tal
forma que ele opera a vontade unida do povo via imperativo categórico. Ora, tal
determinação exige que a vontade seja boa, mas Kant não exige um cidadão
virtuoso, como parece ser o caso de Rousseau, ao menos segundo a interpretação
de Habermas. A (dis)solução desse problema está no seguinte: Kant pode alegar
não haver oposição entre a vontade geral e a vontade particular porque, bem
compreendido, aquilo que a vontade geral deveria estabelecer como direito racional
seriam exatamente aquelas normas que poderiam ser queridas também moralmente,
de tal forma que ambas seriam compatíveis porque a vontade geral deve
41
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 175.
CAPÍTULO VI
96
corresponder ao que os indivíduos querem sob o imperativo categórico
42
. Essa
parece ser a interpretação de Habermas.
Sem embargo dessa interpretação, para Kant, como visto, o fundamental é
que seja “apenas possível que um povo lhe dê o seu assentimento”. Tal formulação
alivia o cidadão da motivação moral, mas imputa à lei que for legislada a capacidade
de poder contar com a motivação virtuosa. Com isso, ele é suficientemente sutil para
não ter que admitir, como Rousseau, um cidadão ético.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Guido Antônio de. Sobre o princípio e a lei universal do Direito em
Kant. Kriterion. N. 114, 2006.
GREGOR, Mary J. Law of Freedom: A Study of Kant‟s Method of Applying the
Categorical Imperative in the 'Methapysik der Sitten'. Oxford: Blackwell, 1963.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory.
Cambridge: MIT Press, 1998.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isso pode ser correcto na teoria,
mas nada vale na prática. Covilhã: Lusofia. Disponível em: http://www.lusosofia.net/.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. 2. ed., São Paulo: Abril Cultural,
1978.
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3. ed., São Paulo: Martins
Fontes, 2000 [1949].
42
Com efeito, é possível encontrar em Kant formulações como esta: “O ato pelo qual o próprio povo
se constitui em um Estado, [...] é o contrato originário, de acordo com o qual todos (omnes et singuli)
no povo entregam sua liberdade externa, para imediatamente retomá-la como membros de uma
república, i. e., do povo considerado como Estado (universi), e não se deve dizer que o homem no
Estado sacrificou a um fim uma parte de sua liberdade externa inata, mas que ele abandonou
totalmente a liberdade selvagem sem lei, para reencontrá-la sem diminuição em uma dependência
legal, i. e., em um estado jurídico, porque esta dependência procede de sua própria vontade
legisladora” [KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 315-316]. Aliás, muito semelhante a esta outra de Rousseau:
«On pourrait, sur ce qui précède, ajouter à l'acquis de l‟état civil la liberté morale qui seule rend
l'homme vraiment maître de lui; car l‟impulsion du seul appétit est esclavage, et l'obéissance à la loi
qu'on s'est prescrite est liberté» [ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Paris: Aubier, 1943
[1757], Livre I, chap. VIII].
CAPÍTULO VI
97
RAWLS, John. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University
Press, 1999 [1971].
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Paris: Aubier, 1943 [1757].
VOLPATO DUTRA, Delamar José. Manual de Filosofia do Direito. Caxias do Sul:
Educs, 2008.
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VII
99
KARL-OTTO APEL (1922-2017): CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS
Delamar José Volpato Dutra
A virada linguística
Em 1965 Rorty publicou um livro sobre a virada linguística. Sabidamente, 25
anos depois ele revisou profundamente, senão abandonou, aquela visão primeva da
filosofia da linguagem que ele sustentara em 1965, que a qualifica, sob o olhar de
1990, como quaint (RORTY, 1992, 371). O slogan da chamada filosofia analítica da
linguagem ou da virada linguística era: problemas de filosofia são problemas de
linguagem. A virada linguística teria, ao final, feito uma contribuição importante para a
filosofia, no sentido de mudar a perspectiva da experiência, como sendo o meio da
representação, para a linguagem, como sendo tal meio (RORTY, 1992, 373). A
vantagem dessa mudança seria que o termo sentença ou proposição, que os filósofos
da linguagem passaram a usar, não conteria uma ambiguidade que palavras como
experiência e ideia portariam, que poderiam significar tanto impressão dos sentidos,
quanto crença.
De todo modo, a filosofia analítica da linguagem carregaria consigo, para o
olhar de Rorty de 1990, dois problemas. O primeiro é que não haveria algo tão definido
como a filosofia. O segundo é que não haveria algo como a linguagem, assim como
aparece na expressão problemas de linguagem (RORTY, 1992, 371). Linguagem e
filosofia não nomeariam algo unificado, contínuo, estruturado, mas seriam atividades
humanas vagas e amorfas (RORTY, 1992, 374). Justo isso seria um impedimento
para a possibilidade de se desenhar um método para a filosofia, amiúde, pretendido
pela perspectiva analítica da linguagem, que nem mesmo haveria uma natureza
própria dos problemas filosóficos (RORTY, 1992, 374). Dito claramente, haveria
muitas maneiras de fazer filosofia, como haveria diversas filosofias feitas de diversas
maneiras. Um programa de pesquisa filosófica poderia, sim, terminar, como ocorreu
com o tomismo e, talvez, estivesse a ocorrer o mesmo com a imagem
representacionista cartesiana do conhecimento, como, aliás, denunciado pela
própria filosofia analítica da linguagem (RORTY, 1992, 374), o que, por certo, mostra
a dificuldade de se identificar a natureza da atividade filosófica, bem como lhe
atribuir um método próprio.
CAPÍTULO VII
100
Para se ter uma ideia do cenário da época, basta lembrar que o predomínio
da filosofia analítica da linguagem com inspiração no primeiro Wittgenstein, aquele
do Tractatus, cuja tônica era a defesa das proposições da ciência como sendo as
únicas portadoras de valor de verdade, implicou uma crítica radical, não da
metafísica, mas também da ética, da estética, da filosofia política, bem como de
outras áreas da Filosofia.
Um dos textos fundantes da ética discursiva bem resume esse cenário:
Como já se sugeriu anteriormente, alguns pressupostos básicos da filosofia
analítica moderna, diante de uma fundamentação da ética normativa,
fazem- na parecer praticamente impossível. Procuraremos ter presentes os
mais importantes dentre esses pressupostos:
1. Não se pode derivar normas de fatos (ou: de proposições descritivas
não se podem deduzir proposições prescritivas e, portanto quaisquer 'juízos
de valor'). [...]
2. A ciência à medida que proporciona cognições conteudísticas, trata
de fatos; por isso é impossível haver fundamentação científica de uma ética
normativa (APEL, 2000, 427).
Seja como for, na introdução de 1965, Rorty fizera uma espécie de prospecto
para a filosofia da linguagem, de acordo com o qual, depois da dissolução dos
problemas tradicionais, o que era o intentado pelo programa da filosofia analítica da
linguagem, seis possibilidades abrir-se-iam (RORTY, 1992, 34). Importa aqui
destacar a sexta possibilidade. Esta possibilidade avança no sentido de transcender
a perspectiva da dissolução de problemas pela análise da linguagem, em direção a
uma atividade de descoberta de "condições necessárias para a possibilidade da
própria linguagem (em um estilo análogo ao modo pelo qual Kant buscou descobrir
condições necessárias para a possibilidade da experiência)" (RORTY, 1992, 35).
Strawson é nomeado por Rorty como representante de um tal viés. Ora, é bem
conhecida a influência de Strawson sobre Apel e Habermas. Nesse particular, soa
quase como se Rorty estivesse prefaciando obras de Apel e de Habermas, que,
como bem pontua Bernstein (2010), Habermas teria um pragmatismo kantiano. Sem
embargo, um dos títeres desse pragmatismo da linguagem de viés kantiano viria a
ser justamente Apel (REPA, 2016).
272
O presente estudo se dedica a destacar as tensões desse percurso do qual
participam Apel e Habermas. O artigo defende, portanto, que ambos os autores são
272
A questão da fundamentação foi tema da recepção de Apel e Habermas no Brasil. Pode-se ajuntar
ao texto de Repa: (CIRNE LIMA, 1991; DE OLIVEIRA, 1993; HERRERO, 1997; HERRERO, 1991).
CAPÍTULO VII
101
partícipes de um mesmo projeto de filosofia de linguagem, o qual ensaia vestir a
filosofia analítica da linguagem em trajes kantianos, tendo em vista uma
argumentação de viés transcendental, como sugerido por Rorty. Pretende,
sobretudo, apontar para uma tensão entre os dois pensadores, a qual diz menos
respeito a diferenças substantivas de pensamento e mais respeito a disputas de
família, no sentido de quem realizaria na melhor luz um projeto comum
(HABERMAS, 2007, p. 91, 114). Vale registrar que muitas teses fundamentais de
Habermas estão presentes nas Christian Gauss Lectures
273
(1971), e em Teorias
da verdade (1972), sendo que o livro de Apel, Transformação da filosofia, foi
publicado em 1973.
Em março de 1999, Apel pronuncia as Mercier Lectures, em Louvain-la-
Neuve. As oito lições foram publicadas em 2001 sob o título The Response of
Discourse Ethics to the Moral Challenge of the Human Situation as Such and
Especially Today e depois em alemão como um capítulo de Transzendentale
Reflexion und Geschichte (2017). Toma-se, como hipótese, considerar essas lições
como um apanhado geral e, principalmente, uma sistematização que Apel fez de sua
própria proposta filosófica com um todo.
274
Por isso, pretende-se tomá-lo como fio
condutor e como base da presente exposição.
O princípio do discurso
A Teoria da ação comunicativa (1981), marca, de forma sistemática, a
incorporação da filosofia da linguagem pela teoria crítica reconstruída por Habermas,
que havia sido preparada por Trabalho e interação (1967), Christian Gauss Lectures
1971) - ministradas em Princeton -, Teorias da verdade (1972),
Transformação da Filosofia - de Apel (1972-3) -, e Pragmática universal (1976).
Tem-se, durante a década de 70, em conjunto com Apel, o desenho da racionalidade
comunicativa. Tratava-se, então, de analisar/reconstruir as condições de
possibilidade dessa manifestação da racionalidade.
Ainda que todo espectro das pretensões de validade esteja sob o escopo do
princípio do discurso, o referido princípio parece um princípio vocacionado para a
273
Actually, my research program has remained the same since about 1970, since the reflections on
formal pragmatics and the discourse theory of truth first presented in the Christian Gauss Lectures."
(HABERMAS, 2001, 149]. Nesse sentido, ver: (VOLPATO DUTRA, 2012, 219-239).
274
Algo semelhante foi feito por Dworkin em seu livro Justice for Hedgehog.
CAPÍTULO VII
102
ética. Nesse diapasão, Apel, quando pôs o foco na ética, começa por apresentar
uma hipótese sobre a gênese histórica da mesma. Nesse particular, ela é pensada
como uma resposta a um problema que teria resultado do processo evolutivo,
precisamente quando surgiu o animal humano. A evolução, que gerou a
humanidade, despotencializou o papel dos instintos como mecanismo bem-sucedido
de sobrevivência de todos os animais, o qual, com a hominização, teria sido
compensado pelas determinações da razão. Nesse cenário, ele acata a teoria de
Arnold Gehlen segundo a qual as instituições cumpririam ou substituiriam a função
dos instintos, na medida em que aliviaram exigências teóricas e práticas que cada
um teria que tomar, em função do eclipse dos instintos (APEL, 2001, 5-6). Ele atribui
à ética, nesse processo evolutivo, justamente, uma função metainstitucional, no
sentido da crítica dos fundamentos das instituições (APEL, 2001, 6-7), o que
implicaria atividade discursiva, comunicativa. A problemática avança, então, pelas
instituições, pela guerra nuclear, mas, para ele, especialmente avança na
consideração da intervenção que os humanos passam a fazer no meio ambiente
(APEL, 2001, 11), o que acabou por tomar dimensões planetárias. Essa
reconstrução quer mostrar um desafio que ele caracteriza como externo à ética, no
sentido de que seria uma demanda advinda de fora do próprio campo da ética, a
demandar uma resposta que ele nomina como ética da responsabilidade (APEL,
2001, 12).
A esse desafio externo, ele ajunta um desafio interno, o qual demanda que
sejam construídos padrões éticos, como a regra de ouro (APEL, 2001, 13). Nesse
sentido, a racionalidade estratégica dos imperativos hipotéticos não se perguntaria
pelos fins (APEL, 2001, 15). Ora, a comunicação parece precisamente poder
comportar a função primordial de encontrar quais fins deveriam ser buscados, na
medida que seriam tais fins que estariam em acordo com o interesse de todos
(APEL, 2001, 16). Nessa perspectiva, ele reclama do relativismo dos comunitaristas
(APEL, 2001, 68), de Rorty (RORTY, 1991) e mesmo de Rawls (APEL, 2001, 21),
por não ofertarem, sob o ponto de vista interno, uma fundamentação universal da
ética, o que teria como consequência uma falha dessas formulações éticas em sua
capacidade de resolução dos desafios externos à ética. Mesmo Kant teria falhado
nesse quesito, inclusive porque a fundamentação por ele proposta ficaria a meio-
CAPÍTULO VII
103
caminho, pelo apelo a um fato da razão (APEL, 2001, 24).
275
Portanto, a fundamentação seria um desafio interno à ética, já, a questão da
guerra nuclear, a situação da ecologia no mundo de hoje e a justiça social seriam
desafios externos (APEL, 2001, 29). Os desafios externos mostrariam as
insuficiências das respostas dadas internamente e clamariam por uma nova
fundamentação (APEL, 2001, 27). O seu diagnóstico da situação filosófica da
Europa em meados do século XX é que esta tenderia a ver a moralidade como uma
questão privada irracional, como seria já o caso da religião (APEL, 2001, 31). Porém,
o desenvolvimento científico e tecnológico levantara problemas globais, a exigir uma
ética da responsabilidade global. Logo, nem a ética existencialista, para ele
irracional, nem a racionalidade científica livre de valores poderiam ofertar uma
resposta a essa problemática externa à própria ética (APEL, 2001, 32). Do lado
marxista, a resposta não teria sido melhor. De tal forma que, no ocidente, o resultado
teria sido a paralisia da racionalidade ética pelo absolutismo da racionalidade
científica livre de valores, já, no leste europeu, a ética teria sido substituída por uma
corrupção da ciência e da própria ética, no sentido de pensar esta última como uma
ciência incluída no materialismo dialético da evolução da história, em vez de pensá-
la discursivamente (APEL, 2001, 35). Devido à sobrecarga teórica do modelo
marxista, ele concebe a alternativa liberal do ocidente "como a única base disponível
para uma ordem política e econômica global, que inclui implicitamente a moral e o
direito" (APEL, 2001, 35).
Concernente ao ponto do desafio interno à ética, aquele da fundamentação,
ele anota que muito embora a dedução lógica tenha marca importante, ela
conduziria ao trilema de Münchhousen (APEL, 2001, 39-40). Particularmente, em
relação à ética, ter-se-ia que, ou derivá-la de evidências empíricas, o que conduziria
a uma falácia naturalista, ou derivá-la de normas consideradas válidas. Isso é o
que pavimentaria o caminho em direção à racionalidade instrumental ou estratégica,
cujos fins seriam sempre dados, o que tornaria, outrossim, impossível uma
fundamentação racional da ética (APEL, 2001, 40). Nesse sentido, como bem
pontua Hobbes, a razão nada mais seria do que cálculo (HOBBES, 1979, cap. V).
Em contraponto a essa reconstrução, ele parte da constatação de que todo
pensamento, argumentação, ocorre pela linguagem. Com isso, abre-se a
275
Sobre essa temática ver: (VOLPATO DUTRA, 2002; ROHDEN, 2002).
CAPÍTULO VII
104
possibilidade de uma reflexão transcendental das condições de possibilidade da
comunicação que ocorre pela linguagem. O seu ponto específico será que o
"pensamento tem o caráter de uma argumentação pela linguagem e que a
racionalidade comunicativa da argumentação pressupõe normas morais" (APEL,
2001, 41).
Bem entendido, trata-se de uma pragmática transcendental da linguagem
como transformação da filosofia transcendental kantiana (APEL, 2001, 41-2).
Argumentos transcendentais
A Teoria da ação comunicativa (1981) foi o gatilho que levou Apel a remarcar
as diferenças de sua posição com relação àquela de Habermas, concernente à
fundamentação. Sabidamente, a pragmática universal e a pragmática transcendental
resumem a posição de Habermas e a de Apel, respectivamente. O segundo
concorda com Habermas no projeto, mas discorda na estratégia (APEL, 1989, 15).
Habermas, por sua vez, diz que ele e Apel colocam os acentos em lugares distintos
(HABERMAS, 1984, 7). Não obstante, intenta-se apontar, por um lado, para um
aspecto no qual considera-se que Apel não interpreta corretamente a posição de
Habermas, a saber, que o mundo vivido seria o fundamento último da teoria crítica e
da ética, justamente uma leitura que Apel fez induzido pela Teoria da ação
comunicativa, e, por outro lado, intenta-se apontar para uma divergência entre ambos
no que diz respeito ao estatuto dos argumentos transcendentais de fundamentação.
No referido texto, Apel começa por constatar a sua concordância em relação a
Habermas, no que concerne ao apelo ao conceito de mundo vivido como "pré-
estrutura da faticidade do ser-no-mundo que compreende, estrutura anterior a todo
entendimento mútuo" (APEL, 1989, 16). Dessa forma, Habermas, por um lado,
quereria salvaguardar a universalidade das pretensões de validade e do princípio do
discurso. É isso que se quer traduzir com a expressão quase-transcendental, uma
versão débil do argumento pragmático-transcendental. Mas, por outro lado, rejeita
como impossível e inútil uma fundamentação última, "válida a priori, da pretensão
filosófica à validade dos enunciados necessários da discussão argumentativa" (APEL,
1989, 19). Nesse sentido, Habermas teria "contestado os enunciados da pragmática
universal e utilizado, sem limite algum, o princípio do falibilismo para os enunciados
CAPÍTULO VII
105
(válido somente fatualmente, no sentido (para Habermas) de sem alternativa possível)
da pragmática filosófica universal" (APEL, 1989, 19). A partir dessas considerações,
Apel reconstrói, como ele mesmo intitula, a estratégia de Habermas de
"fundamentação antifundamentalista" da teoria crítica, por meio de duas figuras
argumentativas que poderiam ser assim resumidas:
1. Habermas aceita como necessários os pressupostos do entendimento, da
comunicação, como as quatro pretensões de validade e o princípio do
discurso, o que demandaria, para Apel uma argumentação transcendental
de fundamentação última (APEL, 1989, 23-4);
2. Considerando que Habermas recusa o estatuto de uma fundamentação
última à argumentação transcendental, o seu recurso de fundamentação
seria aquele do mundo vivido (APEL, 1989, 25-8).
Em poucas palavras, no plano pragmático-transcendental, Habermas
encontraria os elementos que a pragmática universal reconstruíra e que seriam
intransponíveis. Sem embargo, por medo de perder o contato com a prática do
mundo vivido, enquanto base material da filosofia, Habermas concederia ao
fundamento comunicativo do mundo vivido não a constituição de sentido
intencional (gênese), mas também a justificação da validade (da ética, por exemplo)
(APEL, 1989, 52).
Apel tentará demonstrar que:
1. A primeira figura argumentativa, sem a fundamentação última, não seria
suficiente para fundamentar normativamente a teoria crítica;
2. Sob o ponto de vista da coerência do próprio projeto de Habermas, a
fundamentação última do princípio do discurso seria mais apropriada ao
projeto de fundamentação da teoria crítica do que o presumido apelo ao
mundo vivido (APEL, 1989, 28-9).
Em síntese, o argumento de Apel poderia ser assim enunciado: Habermas, ao
recusar uma fundamentação última para os enunciados da pragmática universal,
substitui essa fundamentação última pelo recurso ao mundo vivido. Sem embargo,
essa posição não é suficiente para cumprir a própria intenção de fundamentar a teoria
crítica e a ética, por isso, sua posição é incoerente. Habermas deveria ter recorrido a
uma fundamentação última.
Se por um lado Habermas discorda de Apel com relação à fundamentação
última, por outro lado, não faz uma mera fenomenologia do mundo vivido como parece
CAPÍTULO VII
106
também sugerir Ferry (1996), que, na interpretação deste, haveria uma diferença
entre reconstruir e fundamentar:
Habermas entende reconhecer um primado ontológico ao Lebenswelt, ao
'mundo vivido' e, portanto, dá a preferência a uma reconstrução pragmático-
fenomenológica sobre uma fundamentação pragmático-transcendental (...)
[Assim,] Apel viu justamente: Habermas atém-se, firmemente, ao solo da
experiência vivida para reconstruir a racionalidade da prática (FERRY, 1996,
164).
276
Ora, a primeira consideração a ser feita refere-se à autorrefencialidade. É
exatamente esta autorrefencialidade presente em certos atos comunicativos que
permite o funcionamento da contradição performativa. A segunda consideração é que
o método reconstrutivo ou descritivo (por exemplo em Strawson) não implica na
contingência de um núcleo conceitual mínimo, mas apenas na contingência da
formulação desse núcleo convencional, a partir das várias linguagens filosóficas. Não
obstante, em todas as reconstruções permanece o elemento de autorrefencialidade
dessas proposições, o que permite, ao menos, refutar a posição que afirma a
contingência desse núcleo racional. Como bem atesta Kant,
Mas nada pior poderia suceder a estes esforços do que se alguém fizesse a
descoberta inopinada de que não nem pode haver em parte alguma um
conhecimento a priori. Este perigo, todavia, inexiste. Seria como se alguém
quisesse provar pela razão que não razão alguma (KANT, 2003, 43, A 23).
Nesse particular é que se torna relevante a relação da pragmática
transcendental com a reformulação strawsoniana de Kant. De acordo com Habermas,
A filosofia distingue-se, no mais, pela auto-referencialidade de alguns de seus
argumentos. Somente a auto-referencialidade da análise, certamente central,
das pressuposições universais da argumentação, que nós não podemos
empreender a não ser enquanto sujeitos argumentantes, não assegura à
filosofia essa autarquia e essa infalibilidade que Apel liga à idéia de
fundamentação última. Essa segunda reserva refere-se ao estatuto e ao
sentido dos argumentos transcendentais, dos quais eu não posso tratar aqui
em detalhes. Eu não quero senão chamar à memória o fato que, até o
presente, falta o equivalente para alguma coisa como a dedução
transcendental das categorias do entendimento de Kant e essa alguma
coisa também não está em vista. Mas, sem um tal equivalente, nós somos
reenviados a argumentos transcendentais fracos, no sentido de Strawson
(HABERMAS, 1991, 194).
276
Repa também segue o viés que destaca as consequências da união entre método reconstrutivo e
argumentação transcendental, embora em um sentido diverso daquele de Ferry (REPA, 2016, 754).
CAPÍTULO VII
107
Desse modo, Strawson conceberia a filosofia primeira como uma tarefa
descritiva do que se poderia caracterizar como transcendental.
277
Tratar-se-ia de
tentar encontrar um núcleo do pensamento humano que seria ahistórico: "For there is
a massive central core of human thinking which has no history
[…]
there are
categories and concepts which, in their most fundamental character, change not at
all" (STRAWSON, 2003, 10). O que está em questão, portanto, é o nosso esquema
conceitual de ver o mundo, sendo que uma das condições desse esquema, segundo
Strawson, seria, por exemplo, a identidade dos particulares.
Strawson não concebe uma prova dedutiva para suas descrições, mas uma
prova refutativa, ou seja, as dúvidas do ceticismo não se constituiriam em verdadeiras
dúvidas porque seriam dúvidas que equivaleriam a uma rejeição de todo o sistema
conceitual no interior do qual somente tais dúvidas fariam sentido: "Thus his doubts
are unreal, not simply because they are logically irresoluble doubts, but because they
amount to the rejection of the whole conceptual scheme within which alone such
doubts make sense" (STRAWSON, 2003, 35). Então, o ceticismo seria uma empresa
autocontraditória que visaria a oferecer um sistema alternativo, contudo, não podendo
fazer isso sem usar o que seria contestado. No caso específico de Strawson,
pode- se dizer que o tico, ao tentar construir um outro esquema conceitual, não
pode deixar de incluir, nesse sistema, particulares idênticos. Ou melhor, sua dúvida
só faria sentido sob o pressuposto da identidade do significado, do qual ele não pode
se desfazer. Nesse diapasão, o argumento de Strawson explora "o caráter auto-
refutativo da negação das proposições transcendentais" (GRAM, 1973, 263).
Haveria, para resumir, uma distinção entre demonstrar um princípio e provar a
sua verdade pela destruição das provas contra ele (RÉGIS, 1935, 217). A
fundamentação não teria um caráter último porque ela não seria logicamente
estabelecida, isto é, demonstrada:
Em termos aristotélicos e, além disso, em toda boa doutrina aristotélica,
Habermas não admite que a refutação possa jamais constituir uma
demonstração. É, então, a cada vez que alguém recusa a admitir os a priori
éticos, com cada sofista, que é necessário se aplicar em demonstrar que,
pelo seu ato mesmo, ele se contradiz e trai a intenção de seu discurso que é
de convencer e chegar a um acordo intersubjetivo (CASSIN, 1988, 152).
O que está em questão, com relação a esse particular, é o próprio método
277
"Typically, a transcendental argument, as now construed, claims that one type of exercise of
conceptual capacity is a necessary condition of another" (STRAWSON, 1983, 22).
CAPÍTULO VII
108
reconstrutivo utilizado por Habermas,
278
que as reconstruções
Referem-se a um saber pré-teórico de tipo universal, a uma capacidade
universal (...) Quando o saber pré-teórico que de se reconstruir representa
uma capacidade universal, quer dizer, uma competência (ou
subcompetência) cognoscitiva, linguística ou interativa, o que começa sendo
uma explicação de significados tem como meta a reconstrução de
competências da espécie (HABERMAS, 1984, 370).
As reconstruções têm, portanto, uma pretensão especialíssima de descrever e
tornar explícitas estruturas profundas de competência.
Embora não ceda ao ceticismo no que concerne às determinações
fundamentais da racionalidade comunicativa, Habermas tem consciência de que o
argumento de defesa contra o tico é um argumento indireto, é um modo de prova
não dedutiva. O argumento leva o cético a ver o absurdo da negação das condições
da comunicação. Por isso, a explicitação dessas condições do entendimento restaria
hipotética. Ainda assim, seria um argumento suficiente para desafiar objeções
recentes como a de Steinhoff (2009).
Ademais, não se deve entender hipótese no sentido de que possa ser
confirmada empiricamente, como parece sugerir Apel (1989, 28-9). Habermas,
nesse sentido, em acordo com Strawson, nega "validade a priori" à explicitação
dos enunciados da pragmática e, nesse sentido preciso, ele é um falibilista que
propõe uma divisão do trabalho entre filosofia e ciências reconstrutivas. Não
obstante, no tratamento da questão do transcendental, Habermas se alinha à
perspectiva de Strawson:
For though the central subject matter of descriptive metaphysics does not
change, the critical and analytical idiom of philosophy changes constantly.
Permanent relationships are described in an impermanent idiom, which
reflects both the age‟s climate of thought and the individual philosopher‟s
personal style of thinking (STRAWSON, 2003, 10).
Nesse sentido preciso, cabe observar que Apel, às vezes, parece concordar
com Habermas. Por exemplo, quando ele afirma: "estes enunciados (da pragmática)
podem, no melhor dos casos, serem corrigidos enquanto que eles são uma
explicitação do sentido que pressupõe sua própria verdade. Mas são infalíveis na
278
"A reconstrução racional, ao contrário, abrange sistemas anônimos de regras que podem ser
seguidos por quaisquer sujeitos, uma vez que adquiriram as correspondentes competências sobre
regras" (HABERMAS, 2013, p. 56). Ver a esse respeito: (REPA, 2018).
CAPÍTULO VII
109
medida em que enunciam as pressuposições necessárias do princípio falibilista"
(APEL, 1989, 20, n. 7). Logo, tais pressupostos poderiam ser explicitados de forma
defeituosa e incompleta (APEL, 1989, 38, 64).
279
Apel aceita que as condições da
argumentação sejam revisáveis, mas não que elas tenham o estatuto de hipóteses
empíricas (APEL, 1990, 37). Também Habermas não defende que elas sejam
hipóteses empíricas, apenas que possam ser confirmadas, de forma indireta, pela
coerência com os resultados de pesquisas empíricas. É o caso das pesquisas de
Kohlberg no âmbito da ética. Para Habermas, os pressupostos da pragmática,
enquanto pressupostos, são universais, infalíveis em cada caso, intranscendíveis em
cada caso, mas os enunciados filosóficos que explicitam essa intuição são falíveis.
O que se pode afirmar é que, como o argumento da autocontradição
performativa presume uma ação comunicativa concreta, então, em cada caso ela
refuta o cético e, assim, em todos os casos, universalmente, mas não que daí resulte
um transcendental no sentido da dedução proposta por Kant. Nesse sentido, ela não
é última, mas é em cada caso. Ou seja, esse transcendental presume sempre uma
condição para ser verdadeiro. Esse é exatamente o elemento pragmático. Então, a
fundamentação não é última porque não se trata de verdades em si, mas de
verdades como condição de possibilidade de alguma coisa, a saber, da ação
comunicativa. Em momentos-chave de sua argumentação, Habermas transcende os
limites do mundo vivido, rumo a uma fundamentação de caráter mais duro. É o que
se percebe em seu ensaio de fundamentação da ética. Por isso, é plausível a tese
de que Habermas fundamenta a ética nesses pressupostos incontornáveis da ação
comunicativa e não no conceito de mundo vivido: "a ética discursiva refere-se
àqueles pressupostos da comunicação que cada um de nós, intuitivamente, tem que
fazer, sempre que quer participar seriamente de uma argumentação" (HABERMAS,
1984, 527). Como exposto, o princípio da ética discursiva é decorrência e é
fundamentado nesses princípios, infalíveis em cada caso, da ação comunicativa.
Habermas não apela ao mundo vivido para fundamentar a ética, e quando fá-lo é
para dar um estatuto mais forte do que uma argumentação transcendental, que a
negação total do mundo vivido é inquinada de doença mental grave (CASSIN,
1988).
279
A esse propósito, comenta Ferry (1996), Apel aceita revisar as formulações filosóficas, assumindo,
assim, um certo falibilismo. Porém, um tal falibilismo não atingiria a verdade [Wahrheit], mas a boa
formulação/compreensão [Wohlgeformtheit, Verständlichkeit]. Por isso, a aderência de Apel ao
falibilismo, assim entendido, seria meramente retórica (FERRY, 1996, 173-4).
CAPÍTULO VII
110
Aliás, é bom esclarecer que quando Habermas afirma "as intuições morais do
cotidiano não precisam do esclarecimento do filósofo" (HABERMAS, 1989, 121), ele
não está sugerindo um retorno a um estágio convencional da moral, mas, em analogia
com Kant, que afirma que "no conhecimento moral da razão humana vulgar,
chegamos s a alcançar o seu princípio, princípio esse que a razão vulgar, em
verdade, não concebe abstratamente numa forma geral, mas que mantém, sempre
realmente diante dos olhos e de que se serve como padrão dos seus juízos" (KANT,
2009, 403), ele está sugerindo que também o PU é operante nas estruturas
comunicativas do mundo vivido.
A Ética Discursiva: fundamentação e aplicação
Segundo Apel, em relação à fundamentação da ética, ter-se-ia que pressupor
junto aos atos de pensar também um princípio para a moral. Kant teria concebido
algo assim quando buscou fundamentar o imperativo categórico em uma
autoconsistência da razão [Selbsteinstimmigkeit der Vernunft], um fato da razão
(APEL, 2001, 45). No caso de Apel, junto com a fundamentação transcendental do
princípio do discurso, sempre é pressuposta a existência e a cooperação de
participantes do discurso (APEL, 2001, 46). Como visto, a existência da linguagem
não pode ser negada sem autocontradição performativa, bem como não pode ser
negada a existência de uma comunidade de comunicação. Se tudo isso é
procedente, então, a cooperação já estaria em operação no uso da linguagem, o que
pressuporia também a performance de certas normas éticas fundamentais. Portanto,
o princípio da ética da busca do consenso não pode ser negado sem
autocontradição performativa. Tal princípio prescreve o procedimento de buscar
consenso por meio de discursos práticos das pessoas afetadas ou por meio dos
seus advogados (APEL, 2001, 47), caso em que todos têm igual direito de
argumentar, bem como responsabilidade de argumentar. Ambos os pontos são
cooriginais e constituem uma solidariedade primordial (APEL, 2001, 48), o que
aponta para o pressuposto de uma comunidade ideal de comunicação, cuja negação
implica autocontradição performativa (APEL, 2001, 49). Todo discurso argumentativo
pressupõe algo como uma ética discursiva no sentido do igual direito de argumentar
(APEL, 2001, 58). Nesse sentido, a ética filosófica teria por tarefa ofertar a
fundamentação do procedimento, o que não significa que a filosofia detenha uma
CAPÍTULO VII
111
posição privilegiada de julgamento em relação a questões morais concretas (APEL,
2001, 62). Tal procedimento inclui regras como o ser morto, não ser enganado,
bem como os direitos humanos (APEL, 2001, 63).
O problema sico da aplicação da ética discursiva Apel o entende em
conexão com a falta de reciprocidade na cooperação (APEL, 2001, 83). Apel alega
ser ele diferente do modo como Habermas e Günther o compreendem, pois estes
pareceriam preocupados com uma espécie de 'escolha' de quais normas
fundamentadas universalmente se adequaria melhor a um caso concreto, o que
seria no máximo um experimento mental de aplicação, ao passo que ele estaria
preocupado com a falta de reciprocidade em discursos reais de aplicação. Falta de
reciprocidade significa falta de cooperação no discurso, inclusive pelo uso da ação
estratégica (APEL, 2001, 94- 5). Por isso, precisaria um princípio de suplementação
capaz de fazer as vezes do procedimento ideal que não ocorreria ou ocorreria de
forma incompleta. A questão diria respeito ao que fazer em casos nos quais não
haveria reciprocidade de responsabilidade comunicativa. Em tais casos, duas
possibilidades abrir-se-iam: agir moralmente de acordo com a ética discursiva, como
se houvesse tais condições idealizadas, a despeito da sua não efetividade na
realidade, ou simplesmente abandonar o agir moral discursivo e passar a agir
estrategicamente de acordo com a Realpolitik (APEL, 2001, 86).
Dito claramente, o mau curso do mundo em descompasso com a
racionalidade comunicativa demandaria uma terceira alternativa, a qual não poderia
se deter em uma reclamação de falta de motivação moral, como ele sugere ser a
posição de Habermas (APEL, 2001, 87), mas teria que fazer uso da coerção,
especificamente, o uso da coerção do direito. Contudo, um tal uso da coerção teria
que ser justificado moralmente. Por certo, de acordo com Apel, não há autoridade no
próprio princípio do discurso, que este é um discurso livre de autoridade
['herrschaftsfreier Diskurs'], portanto, a autoridade do direito, e com ela a coerção, só
poderia ser justificada eticamente. O direito positivo, coercitivo, não poderia ser uma
especificação do princípio do discurso, mas ele teria que ser uma suplementação
necessária, portanto legítima, em razão da falta de reciprocidade na
responsabilidade discursiva. Em estado de natureza, a ética discursiva fica
necessitada de suplementação. Apel pode pensar desse modo porque ele concebe
a ética discursiva nos termos de uma ética da corresponsabilidade situada
historicamente, o que determina ter que justificar elementos de coerção (APEL,
CAPÍTULO VII
112
2001, 90).
Haveria como que um duplo a priori, o da comunidade ideal de comunicação
e o da comunidade real de comunicação (APEL, 2001, p. 90). Nesse sentido, a
comunidade discursiva primordial implicaria uma antecipação contrafática da
comunidade ideal de comunicação, de tal modo que, quando a aplicação da
comunidade ideal de comunicação restasse impedida na comunidade real, isso
clamaria por uma suplementação (APEL, 2001, 91). Ou seja, haveria reservas
estratégicas, como os crimes, por parte de alguns, que demandariam uma
'estratégia de contra-estratégia' moralmente justificada, como dever de
responsabilidade, que seriam termos contrafaticamente aceitáveis para uma
comunidade ideal de comunicação (APEL, 2001, 92). Seria uma espécie de
compensação moral pelo mau curso do mundo. Com isso, ter-se-ia uma dimensão
teleológica no sentido de uma ideia regulativa a ser realizada, o que seria o caso
mesmo no âmbito da comunidade ideal, em vista das dificuldades de se obter,
mesmo nesta, um consenso de todos os afetados (APEL, 2001, 93). Vê-se bem,
então, que a ética discursiva acaba como que exposta e contaminada pela situação
histórica, incluso na parte A (APEL, 2001, 94).
que se apontar, por oportuno, para algumas dissonâncias entre Habermas
e Apel sobre a ética discursiva. Na perspectiva de Habermas, Apel faria uma
passagem muito rápida do princípio do discurso ao princípio da ética discursiva, sem
maiores mediações, ou seja, por uma espécie de atalho que pareceria nem precisar
apelar a procedimentos discursivos, já que capaz de extrair determinações
substantivas bem concretas, quais sejam,
Dessa exigência (implícita) de toda argumentação filosófica, podem ser
deduzidos a meu ver dois princípios regulativos e fundadores da estratégia
moral de ão de todo ser humano a longo prazo: [...] assegurar a
sobrevivência da espécie humana como comunidade real de comunicação;
e, em segundo lugar, (de) que a comunidade de comunicação ideal se
realize na comunidade real de comunicação. O primeiro objetivo é a
condição necessária do segundo; e o segundo, dá ao primeiro o seu sentido
qual seja o sentido que se antecipa com cada argumento (APEL, 2000,
487).
Essa falta de mediação ocorreria justamente porque Apel "pretende inferir, da
autorreflexão sobre as normas pressupostas na argumentação, e sem nenhuma
mediação, as obrigações morais para uma política que visa a produção de condições
de vida morais para todos os homens em escala mundial" (HABERMAS, 2007, 112).
CAPÍTULO VII
113
Isso conduz a análise de Habermas a suspeitar na posição de Apel à espreita do rei-
filósofo, ou seja, a figura do político solitário que em bases morais intenta r o
mundo na devida ordem (HABERMAS, 1991, 197; 2007, 112).
280
Para Habermas,
Apel substituiria o cidadão das democracias pelo político que atua moralmente.
Desse modo, o possível caráter emancipatório da ética pensado por Apel, no sentido
da sua relação com a teoria crítica da sociedade, acaba sendo por demais
carregado moralmente:
Embora essa ética não possa deduzir o engajamento concreto na situação,
ela pode conferir um parâmetro para a crítica, com base no qual o próprio
engajamento pode se medir seu êxito e seu fracasso. Essa necessidade
não irá 'extinguir-se' com a 'burguesia', mas isso ocorrerá em todo caso
quando a filosofia for 'superada' por sua 'efetivação') (APEL, 2000, 489).
Trata-se, portanto, nesse particular, de uma discordância no próprio design da
ética discursiva. Soa como se Habermas acentuasse mais o aspecto processual da
ética discursiva, ao passo que Apel formularia determinações morais com algum
conteúdo. Isso ocorre porque Apel tende a ver no princípio do discurso alguns
elementos morais (APEL et al., 2004, 210, 249), no mínimo, senão a concebê-lo
como sendo ele próprio tendo uma natureza moral: "não se pode dizer que a lógica
implica logicamente uma ética. Contudo, pode-se afirmar que a lógica e com ela
todas as ciências e tecnologias pressupõe, sim, uma ética como condição de
possibilidade" (APEL, 2000, 451). Para Habermas, essa concepção implica uma
indevida mistura de determinações lógicas com determinações éticas. Porém,
haveria que se distinguir regras lógicas, ainda que pragmáticas, retratadas pelas
condições de possibilidade do discurso, e conteúdos morais:
As tentativas feitas, até agora, para fundamentar uma ética discursiva,
padecem do fato de que as regras da argumentação são curto-circuitadas
com conteúdos e pressupostos da argumentão
e confundidas
com
princípios morais enquanto princípios da ética filosófica (HABERMAS,
1989, 116-7).
Desse modo, Habermas faz uma dupla operação: confere natureza lógico-
pragmática aos elementos do princípio do discurso, retirando-lhes qualquer natureza
280
É interessante registrar que o próprio Apel endereça esta acusação do rei-filósofo para o modo
como a ética teria sido concebida no mundo comunista, como alinhada a uma visão dialético-
materialista da história, entendida em termos científicos. Isso poria de lado justamente o caráter
discursivo da ética pela sua substituição pela ciência (APEL, 2001, 35).
CAPÍTULO VII
114
moral, e introduz dois princípios de argumentação discursiva, um princípio específico
para a moral e outro específico para o conhecimento científico (HABERMAS, 1989,
144-5), cuja relação de inferência a partir do princípio do discurso é por abdução.
Seja como for, pareceu realmente um passo necessário a distinção feita por
Apel entre uma parte A e uma parte B da ética discursiva, algo pré-anunciado no
próprio texto de 1973 (APEL, 2000, 482), o que remete à questão das relações entre
a moral, o direito e a política. Deveras, a questão do direito e da democracia é
seminal para a ética discursiva. A temática aparece em 1973 no texto de Apel
sobre a ética discursiva. Com efeito, o ato de fala em uma comunidade de
argumentação é pensado como um direito: "pressupõe-se na comunidade de
argumentação o reconhecimento recíproco de todos os membros como parceiros de
discussão, com direitos iguais para todos" (APEL, 2000, 452, [ênfase
acrescentada]).
281
É no mesmo texto que ele correlaciona a ética discursiva com a
democracia: "Com isso, parece-me ter sido sugerido o princípio fundamental de
uma ética da comunicação, que representa, ao mesmo tempo, o fundamento de uma
ética da formação democrática da vontade por meio do convênio" (APEL 2000, p.
481, [ênfase acrescentada]).
282
Essa temática se torna cada vez mais saliente, como
é indicativa a citação seguinte do início da década de 80:
If the idea of democracy has a normative-ethical quality, as I think it has,
then
it is nothing else than the idea of an approximate realization of the
fundamental
norm of consensual communication, namely, of mediating the
ground of legitimation of norms or laws through a procedure of consensus
formation. Of course, the affected individuals are only represented (in the
parliament) and the discussions are terminated by 'decision-procedures,' as,
for example, majority votes. But these pragmatic restrictions that may be
modified again and again do not reduce the idea of democracy to that of just
a decision procedure, as is maintained by many 'politologists' today (APEL,
1989, 126- 7).
Como bem pontua o comentador
This, in turn, implies a responsible politics that concerns itself with the further
actualization of democratic rights, which alone ensure the symmetry,
reciprocity, and reflexivity of all communication partners. Indeed, there is a
close affinity, if not mutual correspondence, between discourse ethics as an
ethics of responsibility and a normative theory of democracy (MENDIETA,
1996, XIV).
281
Ver também: (APEL et al. 2004, 210).
282
Ver: (STRYDOM, 2017, 5).
CAPÍTULO VII
115
Contudo, na obra de Apel, o tema da democracia e do direito ficam à sombra
de uma outra temática mais cara a ele, a saber, aquela do tratamento ético
responsável da política, entendida de um ponto de vista mais geral.
Em 1982, Apel publica Normative Ethics and Strategical Rationality: The
Philosophical Problem of a Political Ethics, no qual ele propõe uma ética para a
política. Em 1988, vem a lume Diskurs und Verantwortung, no qual ele acentua a
relação entre a ética, a política e a responsabilidade, consubstanciada na distinção
entre uma parte A e uma parte B da ética discursiva (APEL, 1988, 134). O texto A
ética do discurso diante da problemática jurídica e política: as próprias diferenças de
racionalidade entre moralidade, direito e política podem ser justificadas normativa e
racionalmente pela ética do discurso? Foi publicado em 1992.
283
Neste texto, a
distinção até então feita entre as partes A e B é caracterizada como vaga (APEL et
al., 2004, 116). Neste momento (1992), ele no trabalho de Habermas das Tanner
Lectures
284
uma melhor precisão com referência ao que estaria contido na parte B
da ética discursiva por ele proposta. Ainda que o texto tenha sido publicado no
mesmo ano de Faktizität und Geltung de Habermas, não referência a ele no
escrito de Apel. Deveras, o Habermas das Tanner Lectures pôde ser recepcionado
por Apel como meio de precisar melhor a sua parte B da ética discursiva, no caso,
pela introdução do direito de uma forma mais clara, como um mediador entre a moral
e a política, porque Habermas entendera o direito nas Tanner Lectures como
estando subordinado à moral, com o que Apel podia concordar integralmente, o que
lhe permitiu destacar o direito como um dos elementos importantes da parte B de
sua ética.
No entanto, as diferenças entre os dois ficarão mais evidentes a partir de
Faktizität und Geltung (1992), que levará Apel, em 1998, no texto Dissolução da
Ética do Discurso?
285
A contestar a nova arquitêtonica proposta por Habermas em
Faktizität und Geltung. Sabidamente, Apel, em a Fundamentação normativa da
"Teoria Crítica": recorrendo à eticidade do mundo da vida?
286
, 1989, tecera
severas críticas ao empreendimento de Habermas desenvolvido em Teoria do agir
283
Compõe o cap. III do livro (APEL et al., 2004).
284
O texto que ficou conhecido por esse nome resultou de algumas conferências proferidas por
Habermas em 1986, em Harvard, sendo primeiramente publicado com o título Law and Morality em
1988 no volume VIII da coleção The Tanner Lectures on Human Values, organizada por McMURRIN,
S. M., traduzida por K. Baynes. O original Habermas publicou nos estudos preliminares e
complementares a Faktizität und Geltung, com o título Recht und Moral (Tanner Lectures 1986).
285
Publicado como o cap. VI de: (APEL et al., 2004).
286
O texto foi publicado como cap. I de: (APEL et al., 2004).
CAPÍTULO VII
116
comunicativo. Nestes dois últimos textos, ele ensaia pensar com Habermas contra
Habermas, no sentido de que a posição de Habermas tornar-se-ia no mínimo mais
coerente, mas também mais consistente, se se aproximasse de sua própria
perspectiva de fundamentação última e se pensasse o direito submetido à moral, o
que seria justamente o caso das Tanner Lectures.
Segundo Apel, Habermas entenderia o problema como sendo propriamente
de natureza motivacional e apelaria à coerção jurídica como solução (APEL, 2001,
87). Contudo, a própria suplementação da ética pelo direito teria que ser
fundamentada em termos éticos. A complementação proposta por Habermas
pareceria ser mais sistêmica do que normativa. Habermas pareceria focar mais na
diferenciação entre o direito, a moral e a política, o que implicou a propositura de um
princípio do discurso neutro moralmente, cuja consequência, para Apel, seria a não
possibilidade de fundamentar o próprio princípio da ética discursiva, inclusive pelo
recurso à abdução. Ademais, a diferenciação proposta por Habermas, que recorre à
neutralidade do princípio do discurso, impediria, também, a fundamentação
normativa do direito positivo, pois isso não seria possível de ser feito de forma
moralmente neutra (APEL, 2001, 89).
Direito, um problema para a Teoria de Apel?
Nesse ínterim, no mesmo ano de 1992, no qual Faktizität und Geltung é
publicado, Cohen & Arato lançam Civil Society and Political Theory, sem o
conhecimento de Faktizität und Geltung, incluindo, também, ao que tudo indica, o
desconhecimento das Tanner Lectures. No referido texto eles buscam verter a ética
discursiva em um princípio de legitimidade democrática: "we reinterpret discourse
ethics as a principle of democratic legitimacy" (COHEN, ARATO, 1992, 354).
Segundo os autores, a legitimidade se mostra conjugada à democracia, ainda que
não haja um modelo acabado de democracia: "It is indeed difficult to conceive of
democratic legitimacy without democratic institutions" (COHEN, ARATO, 1992, 389).
Uma tal formulação enseja que a ética discursiva tenha um aspecto institucional e
que tal aspecto institucional seja no sentido da democracia, de tal modo que ela
fundamentaria o princípio da legitimidade democrática, bem como fundamentaria um
conjunto de direitos básicos: "we shall argue in this section and the next that (1)
discourse ethics does have a link to an institutional level of analysis, and (2) the
CAPÍTULO VII
117
principles of democratic legitimacy and basic rights that it grounds imply an open
ended plurality of democracies" (COHEN, ARATO, 1992, 389-390). Como um
princípio de legitimidade, a ética discursiva teria por consequência que o direito e o
poder, para se justificarem, terem que recorrer a procedimentos discursivos:
"discourse ethics implies that the generation of law and power must be referred back
to the democratic participation of all concerned in order to be considered legitimate"
(COHEN, ARATO, 1992, 395). A tese é que a institucionalização de procedimentos
discursivos seria algo implicado pela ética discursiva: "Discourse ethics has obvious
relevance here, for it implies an institutionalization of discourses in civil society that is
crucial for positing and defending rights" (COHEN, ARATO, 1992, 396). Ou seja, o
potencial da ética discursiva para um tratamento normativo da democracia pareceu
algo que deveria se seguir naturalmente como um passo seguinte. Um passo que,
deveras, acabou sendo dado por Apel e por Habermas.
Portanto, até o momento, pode-se desenhar três modelos para se pensar o
direito, a partir da ética discursiva. O primeiro [1] poderia ser esquadrinhado nas
seguintes obras: Teorias da verdade (1972), O que significa pragmática universal
(1976), Teoria da ação comunicativa (1981), Notas programáticas para a
fundamentação de uma ética do discurso (1983) e Tanner Lectures (1986). De
acordo com um tal modelo, o direito não desempenharia um papel de destaque, em
contraponto com a moral e a política. O segundo [2] é o modelo proposto por Cohen
& Arato em Civil Society and Political Theory (1992). Esse modelo foi construído a
partir da ética discursiva, sem o conhecimento de Faktizität und Geltung, também de
1992. Contudo, diferentemente do modelo anterior do próprio Habermas, é dado um
protagonismo maior ao direito, como mediação entre a moral e a política.
Finalmente, [3] o modelo desenhado em Faktizität und Geltung. No que diz
respeito a Apel, ao que tudo indica, ele permaneceu em toda a sua obra adstrito ao
primeiro modelo, tendo recusado explicitamente o terceiro deles.
Cohen & Arato são aqui nominados porque eles apontam para um problema
que se quer dar destaque no presente estudo, a saber, aquele de que a ética
discursiva não teria como fundamentar os direitos básicos. Este é justamente o
problema que Habermas quer dar conta em Faktizität und Geltung, o que parece ter
passado desapercebido no "debate" que houve entre ambos. Em relação ao ponto
dos direitos básicos e a sua conexão com o princípio da ética discursiva, os autores
destacam:
CAPÍTULO VII
118
What relationship, if any, exists between the metaprinciples of discourse
ethics and fundamental rights? There are three possible ways of
conceptualizing such a relationship: (a) fundamental universal rights could
be presupposed by discourse ethics, but the metanorms of rational
discourse would not be able on their own to supply the 'ground' or principle
for such rights; (b) fundamental rights could enter in as the content of a
possible rational consensus; or (c) fundamental rights could be implied by
the metaprinciples of discourse ethics. We shall argue that all three ways of
relating discourse ethics and basic rights obtain, depending on which
classes of rights one is considering" (COHEN, ARATO, 1992, 396-7, [ênfase
acrescentada]).
Não se pretende expor o modelo por eles construído, nem o cotejar com o
modelo que o próprio Apel e Habermas vieram a defender, mas apenas enfatizar o
que eles reconheceram ser uma insuficiência de uma reconstrução que fosse
calcada exclusivamente nos recursos que a ética discursiva poderia suprir, como
parece ser o caso de Apel.
Deveras, se o direito for entendido como "a liberdade negativa de retirar-se do
espaço público das obrigações ilocucionárias recíprocas [...] e a recusa de
obrigações ilocucionárias" (HABERMAS, 1997a, 156), então, o princípio do discurso
não pressupõe direitos desse jaez. Contudo, se a política for considerada como
distinta da ética, como pensa a modernidade, pelo menos desde Maquiavel, e se se
buscar compreender a política democraticamente ou se for intentado aplicar o
princípio do discurso à política, ou seja, se se tentar pensar a política de acordo com
a racionalidade comunicativa, então, os processos de institucionalização de direitos,
mormente os constitucionais, pressupõem o exercício de certos direitos. Para
explicitar isso sem recurso à noção de direitos naturais, Cohen & Arato introduzem o
conceito de metacondição do discurso, no caso, o princípio do discurso pressuporia
a autonomia privada, a qual seria o elemento-chave do conceito de direitos básicos:
"we can link the idea of rights to the metaconditions of discourse: Without individuals
whose autonomy is guaranteed by rights, the demanding preconditions of rational
discourse (against which any empirical agreement can be measured) cannot in
principle be met" (COHEN, ARATO, 1992, 397). A autonomia que está na base dos
direitos seria, para os autores, um "princípio moral substantivo" que não poderia ser
fundamentado pela racionalidade comunicativa, haja vista, para esta, a liberdade
estar conectada com obrigações ilocucionárias: "In this context, autonomy means the
ability to take on dialogue roles, to engage reciprocally in ideal role taking, […] in
order to determine their universalizability and arrive at a common agreement on
general norms" (COHEN, ARATO, 1992, 398). Dito claramente, o problema desta
CAPÍTULO VII
119
concepção de autonomia que seria ofertada pela racionalidade comunicativa é que
ela não seria aquela propriamente declinada no conceito de direitos básicos. Na
verdade, a concepção de autonomia pressuposta pelo princípio do discurso em
conexão com a política concebida democraticamente é que ela seria parasitária de
uma concepção de autonomia mais complexa: "parasitic on a more complex principle
of autonomy that is not derivable from the metaprinciples of rational discourse"
(COHEN, ARATO, 1992, 398, [ênfase acrescentada]). Este conceito de autonomia
seria complexo por envolver dois aspectos, um abstrato, a autodeterminação, ligado
ao conceito de pessoa no sentido jurídico e um outro concreto [situated], ligado à
habilidade de construir, revisar e buscar planos de vida (COHEN, ARATO, 1992,
398). Nesse ponto, para os autores, haveria a conjugação de dois aspectos: a
reciprocidade simétrica do princípio do discurso e a autonomia do indivíduo
participante. Ora, justamente este segundo aspecto não se seguiria do princípio do
discurso: "Accordingly, there is a sense in which an important dimension of rights
involves negative liberties and personality rights that do not flow directly from
discourse ethics" (COHEN, ARATO, 1992, 399, nfase acrescentada]). Está-se a
falar do que se convencionou chamar de direitos negativos ligados à personalidade
jurídica.
Ora, sabe-se que a construção de Habermas em Faktizität und Geltung apela
justamente à liberdade que habita a forma jurídica, como forma de dar conta do
tratamento desse problema fundamental para uma teoria consistente dos direitos
básicos. Nesse desiderato, Habermas não contesta a liberdade mediante a qual
Hobbes definiu o direito natural; ao contrário, ele a aceita (HABERMAS, 2001, 144-5;
1998, 191; 1998, 109). Com efeito, segundo Hobbes, o direito, por ser coercitivo,
pode ter sob seu comando a ação externa: “that no human law is intended to oblige
the conscience of a man, but the actions only” (HOBBES, 1928, chap. 25, §3). Desse
modo, não haveria como abarcar os estados mentais, como as crenças:
um outro erro em sua filosofia civil (o qual nunca aprenderam com
Aristóteles, nem com Cícero, nem com qualquer outro dos pagãos) para
aumentar o poder da lei, a qual é apenas a regra das ações, a ponto de
abarcar os próprios pensamentos e consciências dos homens. (HOBBES,
1979, cap. XLVI).
287
287
“A state can constrain obedience, but convince no error, or alter the minds of them that believe they
have the better reason” (HOBBES, 1990, 62). “As for the inward thought, and beleef of men
[…]
they
are not voluntary, nor the effect of the laws, but of the unrevealed will, and of the power of God; and
consequently fall not under obligation” (HOBBES, 1968, chap. XL). Ou seja, o direito coercitivo do
CAPÍTULO VII
120
Kant parece ter seguido pelo mesmo caminho ao restringir o direito [em cotejo
com a moral] às ações externas, ao arbítrio (não ao desejo) e à formalidade da
relação entre os arbítrios, de tal forma que "O direito é, pois, o conjunto das
condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido com o arbítrio do outro
segundo uma lei universal da liberdade" (KANT, 2014, 230).
Habermas toma como central a caracterização kantiana da legalidade, cuja
origem ele em Hobbes, como mostrado pouco. -se, então, que a
caracterização do conceito de forma jurídica, de suma importância na fundamentação
do sistema de direitos básicos proposta por Habermas, tem raízes fortes na
conceituação hobbesiana de liberdade. Nesse diapasão, o que Habermas faz é alterar
a fundamentação de uma tal definição, seja para afastá-la do nominalismo
hobbesiano, seja para afastá-la de uma fundamentação naturalista. Isso é feito com
base na forma jurídica tal qual formulada por Kant, cujo elemento central é
justamente aquele da coerção, no sentido preciso de que a coerção teria o efeito de
pôr em cena uma concepção peculiar de liberdade: “O curioso é que a positividade
do direito força uma divisão da autonomia, que não possui equivalente no campo da
moral. [...] Por isso, a autonomia jurídica não coincide com a liberdade em sentido
moral” (HABERMAS, 1997b, 310-1, [posfácio]).
Isso posto, o que significa precisamente a dicção de que “[...] a autonomia
jurídica não coincide com a liberdade em sentido moral?” (HABERMAS, 1997b, 310-
1, [posfácio]). De acordo com Habermas, “O sentido dos direitos subjetivos consiste
inicialmente em desligar, de um modo bem circunscrito, os sujeitos de direitos de
mandamentos morais, abrindo aos atores espaços de arbítrio legítimo”
(HABERMAS, 1997b, 311, [posfácio]). A citação parece significar que as liberdades
comunicativas, tais quais definidas no contexto da Teoria da ação comunicativa,
portariam mais semelhanças com uma compreensão moral das mesmas, ao passo
que, no contexto de Faktizität und Geltung, as liberdades comunicativas passariam a
se aparentar mais com a liberdade juridicamente concebida, haja vista a formulação
da mesma sob a forma jurídica dos direitos subjetivos.
Ora, não se consegue reconhecer em Apel essa problemática. Ele prefere
caracterizar os elementos definidores do princípio do discurso em termos de direitos
soberano “cannot oblige men to believe” (HOBBES, 1968, chap. XLII). But what (may some object) if
a King, or a Senate, or other Soveraign Person forbid us to beleeve in Christ? To this I answer, that
such forbidding is of no effect; because Belleef, and Unbeleef never fowwou mens Commands”
(HOBBES, 1968, chap. XLII).
CAPÍTULO VII
121
iguais (APEL, 2000, 452, [ênfase acrescentada]; APEL et al., 2004, 210). Porém, como
visto, não está contido nesse uso da palavra direito, nesse contexto, o significado do
uso da palavra direito, por exemplo, nas declarações de direitos humanos, que
referem à liberdade negativa, inclusive de se retirar da comunicação, como
interpretado por Habermas. Tanto isso é verdade que Apel descreve os direitos que
comporiam o princípio do discurso no sentido da sua conexão com a responsabilidade,
portanto, seria uma liberdade vinculada (APEL et al., 2004, 210, 249)
Como anotado, esse é precisamente o ponto destacado por Cohen & Arato,
ponto, aliás, levado a sério por Habermas em Faktizität und Geltung, inclusive no
intento de buscar o tipo de liberdade próprio do direito em uma fonte diversa do
princípio do discurso, a saber, a forma jurídica. Já, o texto de Apel muito embora
sinalize para o problema, qual seja, aquele dos limites da intervenção moral que
poderia beirar a um tipo de totalitarismo (APEL et al., 2004, 110), ele não indícios
de -lo enfrentado.
A bem da verdade, destacam-se dois problemas na abordagem de Apel, a
primeiro, e mais importante, é este do significado dos direitos. O outro problema é
aquele do tratamento da coerção. Senão, veja-se.
Nesse ponto reside uma das maiores discordâncias com Habermas, que,
para este, “a forma jurídica não é um princípio que possa ser „fundamentado‟
epistêmica ou normativamente”
288
discussão se a coerção é elemento central do
uso da palavra direito (HABERMAS, 1997a, 147)
289
, como parecem pensar Hobbes,
Kant, Kelsen, Apel, Dworkin
290
, Habermas, e aqueles que, como Hart, sustentam
que a coerção é no máximo um dos elementos do direito, nem mais e nem menos
importante do que outros elementos, como a moral e as regras (HART, 1994, 18).
Para os que defendem o primeiro ponto, torna-se necessária uma justificação
da coerção. Em geral, essa justificação segue o seguinte esquema: tem-se uma
norma fundamentada moralmente e a coerção se justifica em função desta. No caso
288
Diese Erläuterung ist Bestandteil einer funktionalen Erklärung, nicht etwa eine normative
Begründung des Rechts. Denn die Rechtsform ist überhaupt kein Prinzip, das sich, sei es epistemisch
oder normativ 'begründen' ließe" (HABERMAS, 1994, 143).
289
HUGHES, Robert C. Law and Coercion. Philosophy Compass. v. 8, n. 3, p. 231240, 2013.
290
"O direito é uma questão sobre quais supostos direitos fornecem uma justificação para usar ou
recusar a força coletiva do Estado" (DWORKIN, 1986, 97). No mesmo sentido: "Philosophies of law are
in consequence usually unbalanced theories of law: they are mainly about the grounds and almost silent
about the force of law. They abstract from the problem of force, that is, in order to study the problem of
grounds more carefully" (DWORKIN, 1986, 111). Teorias da desobediência são mais sobre a força do
direito do que sobre os fundamentos (DWORKIN, 1986, 113).
CAPÍTULO VII
122
de Hobbes tal norma é o contrato que tem base na lei natural, um meio para a
obtenção da paz. A coerção é, então, introduzida de forma estratégica: "And
Covenants, without the Sword, are but Words, and of no strength to secure a man at
all” (HOBBES, 1968, chap. XVII). Kant, no § C da Doutrina do direito, define o direito
sem o concurso da coerção, a qual é ajuntada estrategicamente nos dois parágrafos
que seguem, o § D e o §E, como "impedimento de um impedimento da liberdade". O
próprio Apel parece, em algumas passagens, acompanhar essa posição, como a sua
explicação da gênese da moral no sentido de uma compensação para instintos (APEL
et al., 2004, 227-8).
Apel quer algo mais musculado. Ele quer uma fundamentação moral da própria
coerção como forma das normas jurídicas (APEL et al., 2004, 224). Apel intenta
justificar a coerção nos termos do princípio do discurso do seguinte modo. O
princípio do discurso, que é o fundamento da cognição moral, o que ele nomina de
parte A da ética discursiva, implica, como uma espécie de verso da medalha, o
princípio da responsabilidade, ou seja, a determinação de levar a sério um curso
político de realização do princípio do discurso. Com isso, pareceria estar indicada
uma fundamentação ética da coerção do direito, nos próprios termos do princípio do
discurso, enquanto princípio de fundamentação da ética. Para ele, a responsabilidade
seria mais do que deontológica, ela teria um elemento teleológico que estaria
conectado com a realização do Estado de direito (APEL et al., 2004, 231-2). Seria
esse elemento teleológico, como verso da medalha da parte dentológica, que daria a
requerida fundamentação moral. Seria um postulado da razão prática (APEL et al.,
2004, 232).
Realmente, é uma tese forte, pois, um argumento é dizer que haveria
justificação de a moral usar da coerção como meio para seus fins, outra coisa é dizer
que haveria um dever moral de usar da coerção com essa finalidade (APEL et al.,
2004, 126; HABERMAS, 2007, 113). A bem da verdade, o argumento de Apel faz um
sutil deslocamento da fundamentação da coerção para a fundamentação da coerção
do Estado de direito (APEL et al., 2004, 139), o qual é um conceito já normativo, cuja
relação com a coerção gerada pelo poder político é mediada, de tal forma que a
coerção gerada pelo poder político é fenômeno mais primitivo
291
que não é tocado
pelo argumento de Apel, inclusive porque é uma coerção que pode ser usada para
291
"Yet the notion of authority is more primitive than that of law" (GREEN, 1988, 8]. "A política não
se deixa moralizar diretamente" (HABERMAS, 2007, 112).
CAPÍTULO VII
123
outros fins, mesmo considerados imorais, como ocorreu em muitos casos ao longo
da história, de tal sorte que, em realidade, o argumento de Apel não se distingue
substantivamente daqueles de Habermas, Kant e outros, ou seja, de uma
complementaridade funcional entre os dois sistemas. Na verdade, o argumento se
distingue no sentido de que Habermas se encaminha na direção da defesa da
juridicização da política como forma de sua domesticação e não na direção do
"reforço moral das virtudes do agir político, que parece ser a solução acalentada por
Apel" (HABERMAS, 2007, 112). Para Habermas "O que Apel oferece na 'parte B'
como forma de compromisso de uma moral capaz de calcular perspectivas de
sucesso de uma moral em geral, desconhece a dimensão de uma justificação
democrática da política, que poderia ter como resultado uma civilização das
condições de vida" (HABERMAS, 2007, 113).
Nesse sentido da juridificação [Verrechtlichung], um "aproveitamento
funcional de um poder [Gewalt] do Estado" (HABERMAS, 1997a, 169), o qual,
funcionalizado pelo sistema de direitos, ou seja, juridificado, transmuta-se em poder
[Macht] político (HABERMAS, 1997a, p. 169-170). Nesse sentido preciso, uma
implicação ou pressuposição da sanção:
Tais aspectos não constituem meros complementos, funcionalmente
necessários para o sistema de direitos, e sim, implicações jurídicas
objetivas, contidas in nuce nos direitos subjetivos. Pois o poder [Macht]
organizado politicamente não se achega ao direito como que a partir de
fora, uma vez que é pressuposto por ele: ele mesmo se estabelece em
formas do direito. O poder [Macht] político pode desenvolver-se através
de um código jurídico institucionalizado na forma ade diretos fundamentais
(HABERMAS, 1997a, 171).
Desse modo, o argumento parece falhar, que o seu recurso ao Estado de
direito é na verdade o apelo a um conceito normativo, mas nele não está implícita a
coerção. Isso se justamente nas tensões que pode haver entre a soberania que
detém a coerção e o Estado de direito, como conceito normativo que se configura
mediante os direitos humanos. É nesse sentido que Habermas fala em
domesticação do poder político pelo Estado de direito (HABERMAS, 2007, 108), o
qual consiste justamente em uma exigência de usar da coerção de um modo
justificado, de tal forma que o raciocínio feito não pode avançar mais do que o
argumento funcional avançou.
CAPÍTULO VII
124
Uma Ética para a Democracia?
Direitos são melhores candidatos do que a moral para relacionar com a
coerção. Como visto pouco, Habermas sustenta que a coerção é uma implicação
dos direitos e não um complemento funcional, bem como afirma que a coerção é
mesmo pressuposta pelos direitos. Por certo, quem conceba a possibilidade de um
sistema jurídico despido de coerção. Seja como for, boas razões para não
conectar a coerção com a moral. Primeiro, porque o tipo de liberdade que opera na
moral é infensa à coerção. Cediço, também, que a liberdade jurídica é infensa ao
direito, não obstante, assimetrias importantes nos dois casos. Para o direito, a
liberdade, justamente por lhe ser infensa, não lhe concerne, diferentemente da moral
para quem o tipo de liberdade não importa, como pode ser tudo o que importa.
Desse modo, o uso da coerção pela moral não poderia receber uma fundamentação
normativa ou epistêmica porque ela não conseguiria efetivar o tipo de liberdade, cujo
funcionamento a moral exigiria, inclusive, para o caso da ética discursiva. Desse
modo, a ética discursiva pode se aproximar da coerção e desafiá-la para seus
propósitos, mas ciente das limitações, a começar pela dificuldade de justificar um
dever específico de uso da coerção para implementar a moral no mundo,
precisamente o desiderato de Apel, pelo qual, a moral não poderia usar da
coerção para se autoimplementar de maneira funcional, como ela teria o dever de
fazer isso. Com isso, tornar-se-ia obrigatório fazer política para implementar a ética.
Tornar-se-ia um dever implementar estruturas políticas e jurídicas que estivessem de
acordo com a racionalidade comunicativa.
Sem embargo, isso enfrentaria graves problemas. Primeiro porque a coerção
seria um meio ineficaz para tal, tendo que se contentar, ao final, apenas com a conduta
externa dos agentes, o mesmo, aliás, que ocorreria com um povo de diabos. O
coração, morada da moral, é inacessível à coerção. Segundo porque "a moral
constitui uma bússola por demais imprecisa e, inclusive, enganadora" (HABERMAS,
2007, 113).
Se efetivar a ética discursiva for considerado um dever que acompanha o
princípio do discurso, como se fosse o seu verso da medalha, então, o que
significaria implementar a comunidade ideal de comunicação? Forçar as pessoas a
serem livres? Seria um dever implementar a comunidade ideal e preservar a real, sob
pena de irresponsabilidade. Pois bem, o que seria preservar a comunidade real?
CAPÍTULO VII
125
Voltar à idade da pedra no uso dos recursos naturais? Se não, qual o arbitramento
que a ética discursiva poderia ofertar? Qual o nível de preservação? O aborto
atentaria contra a preservação da comunidade real de comunicação? Poder-se-ia
torturar para preservar a comunidade real? E a eutanásia, seria permitida? Até que
ponto a violência poderia ser usada para implementar a democracia? Ademais, se é
uma espécie de ética da política ou ética da democracia, como verso da medalha da
ética discursiva, qual o limite para a incursão na liberdade individual das pessoas, a
fim de torná-las parceiras cooperativas na comunidade de comunicação? Até um
ponto semelhante ao da inquisição? Ademais, de qual democracia tratar-se-ia? Da
liberal? Da marxista?
292
Seria possível sociedades decentes sem democracia? King,
o líder dos movimentos civis, estaria autorizado a usar da violência?
Talvez, essas sejam razões para uma maior modéstia, primeiro, para dizer que
a moral deve se deter na fundamentação e não desenhar um mundo moral. Ademais,
há boas razões para uma justificação no máximo instrumental do uso da coerção por
parte da moral, que tornar a coerção uma face necessária de todo dever
ético implicaria o problema de um governo moral do mundo. Portanto, a parte B da
ética discursiva levanta, a bem da verdade, o questionamento do quão democrática
ela é. Aliás, vale anotar, nesse particular, que Apel não libera a democracia da
submissão à moral (APEL et al., 2004, 300-1). Desse modo, a concepção de Apel é
uma ética da democracia, mas não uma teoria da democracia, pelo menos, não uma
teoria no sentido jurídico, haja vista a ética discursiva, por si mesma, a partir de seus
próprios recursos, não ter como dar conta do aspecto jurídico, ainda que ela possa
fundamentar um determinado tipo de uso da coerção estatal, como faz Kant, por
exemplo.
Na parte B da ética discursiva proposta por Apel, a política é central. O direito
compõe um elemento da parte B que faz a mediação entre a moral da parte A e a
política da parte B (APEL et al., 2004, 115). Não Apel reconhece que isso é muito
vago, como há que se acrescentar um problema pouco tratado, qual seja, a própria
noção de direitos fundamentais. Nesse diapasão, sustenta-se que o máximo que a
perspectiva de Apel poderia ofertar em relação a esse particular seria algo muito
292
"Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capitalistas estiver perfeitamente quebrada,
quando os capitalistas tiverem desaparecido e já não houver classes, isto é, quando não houver mais
distinções entre os membros da sociedade em relação à produção, então é que 'o Estado deixará
de existir e se poderá falar de liberdade'. então se tornará possível e será realizada uma
democracia verdadeiramente completa e cuja regrao sofrerá exceção alguma" (LÊNIN, 2011, 137).
CAPÍTULO VII
126
semelhante à proposta feita por Cohen & Arato, os quais, não obstante, reconheceram
um limite intransponível para uma estrutura conceitual assim entendida. Desse modo,
a rigor, Apel não consegue alocar o direito como instância mediadora entre a ética
discursiva e a política, como intentado. Uma solução possível teria que avançar na
direção de algo semelhante ao que Habermas fez em Faktizität und Geltung, que Apel,
em todo caso, ainda não conhecia até os textos de 1992, incluindo aquele de 1992,
e, quando conheceu tal proposta, ele a rejeitou no texto de 1998, mas não foi capaz
de vislumbrar a limitação que Cohen & Arato corretamente perceberam.
A coerção e o poder são fatos brutos multicausados. Eles podem ser
justificados de forma estratégica para a implementação de normas. Porém, um
ponto fundamental da forma jurídica que não como justificar moralmente e nem
pelo princípio do discurso. Ainda que a moral pudesse fundamentar um uso justificado
da coerção, esta, por um lado, continua a ter uma gênese empírica ligada ao poder.
Por outro lado, a própria coerção, mesmo a justificada moralmente ou pelo direito
racional, revela uma dimensão, um aspecto, um sentido, da liberdade que é distinta
da liberdade moral e da liberdade comunicativa. Desse modo, a coerção revela ou
vem acompanhada por um tipo de liberdade específica da forma jurídica.
Conclusão
As discordâncias de Apel e de Habermas em relação à fundamentação do
princípio do discurso se devem mais a uma questão de ênfase do que propriamente
a uma diferença substantiva entre ambos, sem contar que não implicaria grave
prejuízo à posição de Habermas se ele admitisse o que Apel defende e vice-versa.
Isso sob a reserva de que o apelo que Habermas faz ao mundo vivido não chega ao
ponto da substituição da argumentação transcendental. O desacordo é mais sobre o
estatuto dos argumentos transcendentais. O termo quase-transcendental usado por
Habermas sinaliza o teor do desacordo.
Em relação ao programa de fundamentação da ética discursiva, no
essencial, ambos concordam que a ética discursiva pode ser fundamentada no
princípio do discurso. Contudo, Apel concebe o princípio de universalização quase
como o verso da medalha do próprio princípio do discurso, ao passo que Habermas
clama por mais mediações, como a concepção de um princípio como instância para o
funcionamento dos discursos morais, a saber, o princípio de universalização.
CAPÍTULO VII
127
O que Habermas faz em 1992 não é propriamente desacoplar o princípio do
discurso do princípio da moral, pois, ele, a bem da verdade, o fizera
anteriormente, precisamente com o destaque do princípio de universalização em
relação ao princípio do discurso, quase como se fossem espécie e gênero, o que ele,
então, faz, verdadeiramente, em 1992, é desconectar o direito e a democracia do
princípio de universalização e, por consequência, dar destaque a um princípio
próprio para o âmbito do direito e da política. Para tal, ele teve que deixar mais clara
a neutralidade do princípio do discurso, precisamente a tese do texto de 1992.
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CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO VIII
133
2020-2021, OS ANOS DA PESTE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A
VACINAÇÃO, A PARTIR DE KANT E DA ÉTICA DISCURSIVA
Delamar José Volpato Dutra
Os posicionamentos contemporâneos contra a vacina do corona-vírus soam
estranhos para os iluministas que confiam na ciência, às vezes beirando, até
mesmo, a uma posição cientificista. Para uns, a vacina é eficiente e segura. Para
outros, as vacinas seriam inseguras, a longo prazo, que poderiam ter efeitos
deletérios sobre o sistema imunológico humano, resultado de um longo processo
bem-sucedido de evolução e de adaptação a um meio ambiente hostil. Para estes,
soa arrogante a ciência querer interferir em um tal mecanismo, às vezes por razões
de curto prazo, e preponderantemente visando ao lucro fácil e rápido.
À parte a argumentação com base na ciência, seja para se posicionar contra
ou a favor, a orientação contrária à vacina pode contar com um pano de fundo moral
bem consolidado, o qual pode ser mais bem explicitado pelo recurso à filosofia moral
kantiana, inconteste como uma das mais importantes teorias morais da
modernidade, em conjunto com o utilitarismo, especialmente na sua TL. Esse viés
desloca o tratamento da questão do âmbito científico, dos seus efeitos benéficos ou
maléficos, - os quais poderiam, inclusive, encontrar justificativa segundo o modelo da
moral utilitarista, - para o âmbito da moral deontológica. Nesse viés, o tratamento da
matéria prescinde das suas consequências, boas ou ruins, e visa ao seu caráter
propriamente deontológico, ou seja, se a máxima da conduta seria certa ou errada,
em face do imperativo categórico, ditado pela razão prática pura.
1
Com efeito, Unna
defende que, no caso específico da vacina, Kant pôde considerar, como em geral o
faz, se uma prática é moral ou imoral, a despeito dos seus cálculos benéficos ou
maléficos.
2
Deveras, isso é especialmente válido quando não se têm evidências
suficientes para um lado ou para outro. Nesse caso, o risco de praticar algo errado,
como o uso de uma vacina, prevaleceria sobre o risco que se correria, com tal ato,
para a autopreservação.
3
Assim entendido, o problemático seria o agente vir a ser a
1
ROHDEN, Valério. Razão prática pura. Dissertatio. n. 6, p. 69-98, 1997.
2
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment. Kant-
Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 468-9.
3
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment. Kant-
Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 469.
CAPÍTULO VIII
134
causa da sua própria morte.
4
Adotado esse viés, a recusa de que outros vieses, para além dos científicos,
sejam relevantes para o tratamento das decisões morais e políticas pode ser
caracterizado como cientificista
5
, naturalista radical, ou mesmo, no limite,
reducionista, ao negar a liberdade.
6
Dito claramente, outros valores tão
importantes quanto aquele da preservação da vida, como demonstrado pelo
movimento Black Lives Matter, o qual ocorreu em plena pandemia do corona-vírus. A
diretiva sanitária para a permanência nas casas e para evitar aglomerações foi
preterida, parcialmente, naquele momento, pela importante questão do combate ao
racismo, o que levou milhares de pessoas a se aglomerarem nas ruas para
protestar, em várias cidades do mundo. Se a ciência devesse ser a guia
inquestionável das decisões, os seres humanos deveriam ser proibidos de fumar, de
ingerir bebida alcóolica ou de se alimentarem de comida considerada o saudável,
sem contar que, talvez, devessem ser forçadas à prática de exercícios físicos. Vale
registrar que todas essas permissões que as sociedades democrático-liberais
reconhecem têm impactos, ao menos indiretos, na vida dos outros, como nos
sistemas púbicos de saúde, bem como de previdência social.
7
Como bem aponta
Arendt, "[…] tyrannies of 'truth' […] politically speaking, are as tyrannical as other
forms of despotism".
8
Sabidamente, isso não significa dizer, para a filósofa, que a
verdade não tenha relações e contribuições a fazer para o domínio da política, já que
a verdade "is the ground on which we stand".
9
Por isso mesmo, as universidades,
juntamente com o judiciário e a imprensa, teriam que ser mantidos independentes do
4
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment. Kant-
Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 470.
5
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. [F. B. Siebeneichler:
Zwischen Naturalismus und Religion: Philosophische Aufsätze]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2007 [2005], p. 159-160.
6
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. [F. B. Siebeneichler:
Zwischen Naturalismus und Religion: Philosophische Aufsätze]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2007 [2005], p. 170.
7
Ubirajara Rancan de Azevedo Marques, em leitura preliminar deste texto, apontou para assimetrias
fundamentais nas comparações feitas, sendo a mais importante delas o fato de se tratar de moléstia
transmissível, o que impacta fortemente a argumentação liberal de que o mais importante a
considerar, na recusa da vacinação, seriam os aspectos individuais. Isso chama a atenção para a
dependência da presente argumentação da premissa de que a vacinação amplamente disponível
tornaria o próprio sujeito que escolhe não se vacinar aquele que suportaria as consequências mais
importantes de sua decisão, a despeito da transmissibilidade da moléstia.
8
ARENDT, Hannah. Truth and Politics. In BAEHR, Peter. The Portable Hannah Arendt. New York:
Penguin, 2000 [1967], p 560.
9
ARENDT, Hannah. Truth and Politics. In BAEHR, Peter. The Portable Hannah Arendt. New York:
Penguin, 2000 [1967], p 574.
CAPÍTULO VIII
135
poder
10
, pois vão ser o contraponto à facilidade de transformar verdades fatuais em
mais uma opinião
11
, que a política é também um campo de batalha de interesses
conflitantes e parciais.
12
Torna-se possível, nesse sentido, apontar para uma consideração moral que
parece fazer parte do senso comum moral
13
, ainda que ele não seja diretamente
alegado pelos envolvidos nas discussões. A presente reconstrução pretende apontar
para aspectos da moral kantiana, de viés deontológico, que poderiam ser relevantes
no tratamento das questões que estão envolvidas na discussão da vacinação. A
principal hipótese do presente estudo é que a forma interrogativa com a qual Kant
formulou a questão da vacinação deixa aberto um espaço para uma resposta
diferente daquela que o próprio Kant pareceu ofertar à questão, no sentido de que a
vacinação seria proibida moralmente. Isso por duas razões: a primeira é que a
intenção, ou seja, a máxima envolvida na ação, não seria aquela da própria morte,
mas a da autopreservação, de maneira que a vacinação passaria pelo teste do
imperativo categórico; a segunda razão é que a evolução científica das vacinas
tornou o risco à vida tão ínfimo que permitiria responder de forma positiva a pergunta
feita por Kant.
Moral e vacinação: interpretações do Texto Kantiano
O grande problema em relação à interpretação do texto de Kant é que ele
nomina a vacinação como a quinta questão casuística em relação ao dever de não
se suicidar. Mais que isso, o texto termina com um ponto de interrogação: É, pois,
permitida a inoculação da varíola? Os comentadores se dividem entre uma resposta
afirmativa e uma resposta negativa à interrogação.
Gregor argumenta a partir da distinção entre deveres perfeitos e deveres
imperfeitos para concluir por uma resposta positiva. Sabidamente, estes últimos são
10
ARENDT, Hannah. Truth and Politics. In BAEHR, Peter. The Portable Hannah Arendt. New York:
Penguin, 2000 [1967], p. 571-2.
11
ARENDT, Hannah. Truth and Politics. In BAEHR, Peter. The Portable Hannah Arendt. New York:
Penguin, 2000 [1967], p. 557.
12
ARENDT, Hannah. Truth and Politics. In BAEHR, Peter. The Portable Hannah Arendt. New York:
Penguin, 2000 [1967], p. 573. Por certo, para a filósofa, a política não é só isso, mas, também, "the
joy and the gratification that arise out of being in company with our peers, out of acting together and
appearing in public, out of inserting ourselves into the world by word and deed, thus acquiring and
sustaining our personal identity and beginning something entirely new" [ARENDT, Hannah. Truth and
Politics. In BAEHR, Peter. The Portable Hannah Arendt. New York: Penguin, 2000 [1967], p. 574].
13
GMS, AA 04: 392,406.
CAPÍTULO VIII
136
deveres caracterizados pela latitude, entendida como um espaço para exceções
14
,
como uma margem discricionária para o livre-arbítrio.
15
A questão cinge-se a
esclarecer como tratar tais exceções. Segundo uma interpretação rigorista,
exceções não arbitrárias seriam permitidas, por exemplo, nos termos da mencionada
p. 390 da MS, poder-se-ia deixar de ajudar a um estranho para ajudar a um
parente.
16
Já, para uma interpretação não rigorista, os deveres imperfeitos
permitiriam exceções arbitrárias, ou seja, que seriam meramente subjetivas. Sem
embargo, o ponto importante destacado pela comentadora é que todos os deveres,
inclusive os perfeitos, admitem exceções não arbitrárias. De acordo com essa
estrutura conceitual, ela afirma que as questões casuísticas nominadas por Kant no
§ 6 da TL deveriam obter uma resposta afirmativa no sentido da permissão das
exceções mencionadas, que não assentariam em razões contingentes, mas em
outros deveres que teriam mais peso para os casos mencionados, especialmente
aquele da proibição do suicídio:
"And it is only under contingent circumstances that there might occur a case
of suicide which would not be directed to a purely subjective end. Under
special conditions there could arise questions of a collision between grounds
of obligation, in which we might allege a duty (and hence a right) to suicide
on the grounds that our continued existence would imply violation of another
duty."
17
Dito claramente, as exceções não seriam arbitrárias. Ela chega mesmo a
afirmar que seriam exceções moralmente necessárias: "The prohibition against
suicide permits no arbitrary exceptions, but when we descend into contingent
circumstances it does admit morally necessary exceptions."
18
James caminha no mesmo sentido, muito embora por razões diferentes. Ele
contabiliza vinte questões casuísticas
19
, sendo que, para ele, no caso em tela, nem
todo suicídio seria contrário ao imperativo categórico.
20
14
MS, AA 06: 233.
15
MS, AA 06: 390.
16
GREGOR, Mary J. Law of Freedom: A Study of Kant‟s Method of Applying the Categorical
Imperative in the 'Methapysik der Sitten'. Oxford: Blackwell, 1963, p. 111.
17
GREGOR, Mary J. Law of Freedom: A Study of Kant‟s Method of Applying the Categorical
Imperative in the 'Methapysik der Sitten'. Oxford: Blackwell, 1963, p. 135.
18
GREGOR, Mary J. Law of Freedom: A Study of Kant‟s Method of Applying the Categorical
Imperative in the 'Methapysik der Sitten'. Oxford: Blackwell, 1963, p. 102.
19
JAMES, David N. Twenty Questions: Kant's Applied Ethics. The Southern Journal of Philosophy.
V. XXX, N. 3, p. 67-87, 1992.
20
JAMES, David N. Suicide and Stoic Ethics in the Doctrine of Virtue. Kant-Studien. v. 90, n. 1, p. 40-
58, 1999, p. 52, 58.
CAPÍTULO VIII
137
De acordo com Euler, estaria em questão um conflito de deveres, a saber,
entre o dever de se manter vivo e o dever de inocular a varíola para evitar a morte.
Para ele, muito embora Kant não responda à questão que fez, tal resposta deveria
ser favorável à vacinação, com base no cálculo de que a vacinação seria mais
favorável à preservação da vida:
"There is no explicit answer to the question on inoculation in
Kant‟s Doctrine of Virtue; but we may conclude that Kant favored the
first alternative, that is, that inoculation is moral. His reasoning to
answer in this way may be a sort of calculation: it‟s still more probable
to save one‟s life by allowing vaccination than by refraining from it. It
seems that for Kant the inquiry on inoculation does not violate moral
law".
21
Ademais, Euler sugere um viés liberal de resposta, no sentido de que,
considerando os traços da filosofia moral kantiana, especialmente os deveres para
consigo, tratar-se-ia de uma questão de reflexão e de decisão pessoal de cada um:
"it follows from his conception of duties to oneself only that everybody has to choose
maxims suitable to avert danger from his life. Whether he decides to be inoculated or
not, is a matter of his own reflection and resolution."
22
Ao final, muito embora o
comentador sugira esse viés liberal, ele acaba por concluir que uma resposta
satisfatória para Kant deveria ser jurídica, no sentido da obrigatoriedade da
vacinação: "Obviously Kant was not satisfied with this moral approach to solve a
medical problem; for, he suggested that all citizens should be bound by law in
vaccination. The government should command inoculation without exception
because, then, it would be necessary for everyone and, hence, permitted [7, 15.2,
971 f.].[12]."
23
Timmons acompanha a interpretação de Euler, no sentido de que se trata de
21
EULER, Werner. The art to keep healthy and to prolong human life. Is Kant‟s regimen a doctrine of
duties to oneself? In Kant zwischen West und Ost. Zum Gedenken an Kants 200. Todestag und
280. Geburtstag. Hrsg. Von Prof. Dr. Wladimir Bryuschinkin. Bd.2. Kaliningrad, 2005. S. 228 237.
[http://www.kant-online.ru/en/?p=539].
22
EULER, Werner. The art to keep healthy and to prolong human life. Is Kant‟s regimen a doctrine of
duties to oneself? In Kant zwischen West und Ost. Zum Gedenken an Kants 200. Todestag und
280. Geburtstag. Hrsg. Von Prof. Dr. Wladimir Bryuschinkin. Bd.2. Kaliningrad, 2005. S. 228 237.
[http://www.kant-online.ru/en/?p=539].
23
EULER, Werner. The art to keep healthy and to prolong human life. Is Kant‟s regimen a doctrine of
duties to oneself? In Kant zwischen West und Ost. Zum Gedenken an Kants 200. Todestag und
280. Geburtstag. Hrsg. Von Prof. Dr. Wladimir Bryuschinkin. Bd.2. Kaliningrad, 2005. S. 228 237.
[http://www.kant-online.ru/en/?p=539]. Para o entendimento da última referência feita por Euler,
consultar o seu texto.
CAPÍTULO VIII
138
um cálculo:
"It would therefore seem that the reasons for taking the risk (which in the
vaccination case clearly do constitute a putative moral justification) together
with the degree of risk of death or serious injury involved (if any) in refraining
from the risky action, ought to be the chief factors that guide one‟s moral
deliberation."
24
Nessa direção, o princípio parece implicar uma relação de causalidade.
25
Ainda que o cálculo seja putativo, ele não parece ser puramente putativo, o
que permite a conclusão de que, na vacinação, não se trataria de uma máxima de
tirar a própria vida, mas de correr um risco calculado para melhor prote-la: "Kant
does not say that death from the vaccination would be a case of intentionally bringing
about one‟s death; that seems implausible. Thus, one‟s death in this kind of case is
not suicide."
26
Logo, seria correr um risco justificado moralmente, segundo
circunstâncias específicas: "[…] may be an authorized case of risking one‟s life".
27
Nesse sentido, o argumento de Timmons recorre a algo semelhante ao defendido
por Gregor, no indicativo de que a regra da proibição do suicídio poderia ser
preterida por fins não discricionários.
Por outro lado, Unna chega a uma conclusão diferente das anteriores. Para
ela, a resposta de Kant para as cinco questões casuísticas do mencionado § 6 da TL
deveria ser pela negativa.
28
De acordo com ela,
"It does not matter whether the person is considered a hero, a martyr,
an honor-loving man or a person interested in protecting his life. [...]
In the cases discussed, the person uses himself merely as a means,
because he is willing to sacrifice his status as a moral agent to ensure
24
TIMMONS, Mark. The Perfect Duty to Oneself as an Animal Being (TL 6:421 428). In TRAMPOTA,
Andreas, SENSEN, Oliver, TIMMERMANN, Jens [Eds.]. Kant’s “Tugendlehre”: A Comprehensive
Commentary. Berlin: De Gruyter, p. 221-244, 2013, p. 233.
25
TIMMONS, Mark. The Perfect Duty to Oneself as an Animal Being (TL 6:421 428). In TRAMPOTA,
Andreas, SENSEN, Oliver, TIMMERMANN, Jens [Eds.]. Kant’s “Tugendlehre”: A Comprehensive
Commentary. Berlin: De Gruyter, p. 221-244, 2013, p. 231.
26
TIMMONS, Mark. The Perfect Duty to Oneself as an Animal Being (TL 6:421 428). In TRAMPOTA,
Andreas, SENSEN, Oliver, TIMMERMANN, Jens [Eds.]. Kant’s “Tugendlehre”: A Comprehensive
Commentary. Berlin: De Gruyter, p. 221-244, 2013, p. 233.
27
TIMMONS, Mark. The Perfect Duty to Oneself as an Animal Being (TL 6:421 428). In TRAMPOTA,
Andreas, SENSEN, Oliver, TIMMERMANN, Jens [Eds.]. Kant’s “Tugendlehre”: A Comprehensive
Commentary. Berlin: De Gruyter, p. 221-244, 2013, p. 233.
28
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment.
Kant-Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 470-1.
CAPÍTULO VIII
139
the happiness of others or his own. Sacrificing oneself for others can
never mean killing oneself for others."
29
Ela reverbera o argumento de que as máximas das quatro primeiras questões
casuísticas põem o valor da própria pessoa abaixo do valor das outras pessoas, o
que atentaria contra a igualdade de todos.
30
Desse modo, seria uma proibição
incondicional pôr em risco a própria vida, a despeito de qualquer que fosse a
motivação e a finalidade para o suicídio parcial ou total.
31
De outro lado, defende a
comentadora, atentaria contra o conceito kantiano de autonomia querer usar este
como fundamento para cometer tais atos, um argumento contrário, portanto, àquele
sugerido por Euler.
32
Reconstrução da Argumentação Kantiana
A hipótese do presente artigo é que Kant deixou as questões casuísticas do §
6 da TL sob a forma interrogativa, não por uma questão retórica, como se tivesse
que ser clara a resposta, seja afirmativa ou negativa. Se a forma interrogativa na
qual Kant formulou as questões casuísticas fosse retórica, então, as repostas teriam
que ser como segue: óbvio que a resposta é sim; óbvio que a resposta é não.
Porém, como se pôde perceber pela discussão dos comentadores, não
obviedade possível nas respostas. Elas vão depender da reconstrução que for feita
da filosofia prática kantiana.
Uma reconstrução é uma reconfiguração de uma certa teoria tendo em vista a
melhor resposta que ela poderia ofertar, inclusive para o que ela própria buscou
responder. Como afirma Habermas,
"Reconstrução, em nosso contexto significa que uma teoria é decomposta e
recomposta em uma nova forma para que possa assim atingir o fim que ela
mesma se pôs: esse é um modo normal de se relacionar com uma teoria
que, sob diversos aspectos, precisa de revisão, mas cujo potencial de
estímulo (ainda) não se esgotou."
33
29
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment.
Kant-Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 472, ênfase acrescentada.
30
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment.
Kant-Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 472.
31
Para esclarecer esta distinção entre suicídio total e parcial ver MS, AA 06: 421.
32
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment.
Kant-Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 473.
33
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. [Trad. Rúrion Melo: Zur
Rekonstruktion des Historischen Materialismus]. São Paulo: Editora Unesp, 2016 [1976], p. 25.
CAPÍTULO VIII
140
Nesse sentido, a resposta vai depender do peso maior ou menor que for dado
a um ou outro aspecto destacado da filosofia kantiana. Por exemplo, Unna toma
como cavalo de batalha, para a sua resposta negativa, a formulação do imperativo
categórico que proíbe as pessoas se tratarem e tratarem os outros meramente como
um meio, que é o argumento de fundamentação tal qual aparece no final da p. 422 e
início da 423 da GMS, o que seria o caso para todas as cinco questões casuísticas
do mencionado § 6 da TL.
A hipótese, portanto, é que a forma interrogativa que marca o texto kantiano
se deve a que as circunstâncias da ação são importantes e precisam ser
consideradas. Isso é diferente de um cálculo de consequências, o que a filosofia
moral kantiana de todo proíbe, ao menos como sendo o critério determinante.
Deveras, Kant não faz cálculo de consequências, mas também não ignora a
realidade. As circunstâncias o importantes porque toda ação é circunstanciada,
especialmente quando se está no âmbito da metafísica dos costumes, justamente o
caso da TL, onde ele trata da vacinação.
que se distinguir, por consequência, o argumento de fundamentação do
dever, do aspecto metafísico nele envolvido. No caso em tela, o argumento de
fundamentação, como dito, esno final da p. 422 e início da 423 da GMS, a saber,
a proibição de atentar contra a humanidade na sua própria pessoa, tratando-a como
um simples meio. Não obstante, nos exemplos ora em comento, especialmente o da
vacinação, Kant movimenta um outro tipo de argumentação, que leva em
consideração as circunstâncias do cumprimento do dever.
O comentário que Lamego faz à afirmativa de Kant da p. 217 da MS de que
"uma metafísica dos costumes não pode fundar-se na antropologia, mas pode
aplicar-se a ela" é indicativo desta consideração das circunstâncias. Para o
comentador, "Essa noção [de uma antropologia prática (moral)] supõe, de algum
modo, a distensão do 'racional' em direção ao 'empírico'"
34
, o que significa
considerar as peculiaridades da natureza humana.
35
Essa forma de compreensão é
também partilhada por Zingano: "ao mostrar que a razão pura pode ser prática, isto
é, como pode determinar a vontade, cabe mostrar, após, como essa determinação
34
LAMEGO, José. A metafísica dos costumes: a apresentação sistemática da filosofia prática de
Kant. In KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego: Die Metaphysik der
Sitten]. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005 [1797], p. XII.
35
LAMEGO, José. A metafísica dos costumes: a apresentação sistemática da filosofia prática de
Kant. In KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego: Die Metaphysik der
Sitten]. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005 [1797], p. XI.
CAPÍTULO VIII
141
ocorre numa vontade afetada empiricamente e, finalmente, como se realiza nessa
vontade situada em suas decisões no interior do mundo em que age."
36
Destarte, no
primeiro caso, considera-se o patriotismo; no segundo, uma sentença de morte; no
terceiro, uma razão de Estado; no quarto, a hidrofobia. No caso específico da
vacinação, trata-se da escolha de um meio putativo para a conservação da vida: o
que se vacina fá-lo em nome do que acredita ser a melhor salvaguarda para a sua
própria vida, em face de uma doença gravíssima e transmissível. Para todos esses
casos, é possível imaginar um mundo de seres para os quais não haveria essas
contingências, por exemplo, um mundo habitado por anjos, no qual, dificilmente,
haveria Estados, doenças, como a hidrofobia, bem como seria um mundo,
provavelmente, sem vírus, incluindo o da varíola e o corona. Em tal mundo, a
configuração dos deveres categóricos não enfrentaria essas questões específicas;
quiçá, enfrentasse outras
37
, vindo, portanto, a serem diversas as possíveis questões
casuísticas, daquelas do § 6.
Nesse sentido, a rearticulação da teoria kantiana para o caso específico da
vacinação teria que levar em consideração o avanço científico que houve nesse
âmbito, a começar pela clara distinção entre a vacinação e a inoculação. Com efeito,
a inoculação é diferente da vacinação, que, neste caso, trata-se do vírus da
varíola dos bovinos, o qual, aliás, tem efeitos menos gravosos nos humanos, se
comparado ao vírus da varíola humana. Nesse sentido, Unna defende que o termo
einimpfen, usado por Kant na citação da epígrafe, seja entendido como
'inoculação'
38
, muito embora o texto contenha o termo específico 'inoculação' na
expressão Pockeninoculation. O presente argumento defende que, muito embora
Kant pudesse ter ciência da vacinação pelo uso do vírus da varíola bovina, ele
estava a considerar a inoculação do vírus da varíola humana, ainda que, diga-se, do
modo mais controlado possível.
Nesse diapasão do avanço científico, como um termo de comparação, é
conveniente destacar a informação colacionada por Unna, com base no estudo de
Baxby. Unna destaca o seguinte em relação à varíola no século XVIII: a inoculação
das crianças matava de uma a cada cinquenta (1/50) a uma a cada setenta (1/70)
36
ZINGANO, Marco. A. Razão e história em Kant. São Paulo: Brasiliense/CNPq, 1989, p. 188.
37
RAZ, Joseph. Practical reason and norms. Oxford: Oxford University Press, 1990 [1975], p. 158-
9.
38
"'einimpfen' should be understood in the sense of variolation, not vaccination". [UNNA, Yvonne.
Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment. Kant-Studien. v. 94,
n.4, p. 454473, 2003, p. 464, nota 42].
CAPÍTULO VIII
142
dos casos. Já, a doença, em relação às crianças, matava entre uma a cada cinco
(1/5) a uma em cada oito (1/8), sendo que em caso de epidemia a mortalidade
chegava a uma a cada duas (1/2). Durante o século XVIII, a varíola respondia por
uma a cada oito (1/8) a uma a cada catorze (1/14) de todas as mortes. Mais
importante, segundo ela, Kant tinha ciência de tais dados.
39
Ora, um cálculo simples,
a partir desses dados, mostraria a vantagem da inoculação. Contudo, Unna não
aceita esse tipo de cálculo como sendo determinante para o posicionamento de
Kant, ou seja, não se trataria de considerar o risco maior da doença do que o risco
da inoculação.
40
Como dito, para Kant, o que importaria seria não criar a
tempestade, ou seja, não ser o autor da ação que conduziria à própria morte. Esta
seria justamente a vantagem moral do navegante sobre o que inocula o vírus: ele
"não cria a tempestade a que se expõe".
Não obstante o posicionamento de Unna, o ponto a destacar para o presente
estudo é que tais dados devem ter contribuído para Kant deixar na forma
interrogativa a problemática da justificação moral da vacinação. Se os dados fossem
contundentes para um lado ou para outro, provavelmente, Kant não teria levantado a
questão como casuística e deixado a mesma na forma interrogativa. Ora, a evolução
da ciência alterou significativamente o quadro para um dos lados. Por exemplo, os
experimentos conduzidos em relação à vacina contra o corona-vírus, nas suas três
fases, não levaram a óbito algum dos voluntários, sendo os demais efeitos leves. Ou
seja, a vacina se mostrou segura e também eficaz para a prevenção. Sugere-se,
portanto, que se Kant tivesse ciência desses dados, ele não teria deixado a questão
na forma interrogativa, a não ser pela remota hipótese de que ele aderisse à tese
contemporânea de que seria melhor, a longo prazo, para o sistema imunológico do
corpo humano não sofrer interferência de vacinas, muito embora ainda não se tenha
evidências científicas disponíveis a respeito dessa questão.
Como mencionado, o risco da vacinação atual é praticamente zero, pois a
vacinação é diferente da inoculação. Na inoculação, a pessoa é exposta ao próprio
vírus. Já, na vacinação, o exposição ao próprio vírus. Vale lembrar que o vírus
da varíola dos bovinos é menos perigoso para os humanos do que o vírus da varíola
39
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment.
Kant-Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 466, nota 50.
40
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment.
Kant-Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 467.
CAPÍTULO VIII
143
humana.
41
Sabe-se que, mutatis mutandis, as vacinas seguiram essa estratégia
ditada pelo vírus bovino, chegando, hoje, ao uso de partes do vírus ou
mesmo mRNA, implicando risco baixíssimo. No caso, Kant não registrou que a
inoculação podia causar mutilação e morte, como não contava com evidência
suficiente a respeito do próprio conceito de vacina.
42
Porém, o conhecimento
científico sobre as vacinas progrediu imensamente em relação àquele começo
luminoso no final do Século das Luzes, como pode ser representado pela imagem
seguinte, em claro contraste com o quadro satírico apresentado mais abaixo:
Imagem 1.
Fonte: [https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/especiais/coronavirus/2020/11/764874-pfizer-e-
biontech-dizem-que-vacina-contra-covid-19-se-mostrou-90-eficaz.html].
Desse modo, pretende-se reapresentar a teoria kantiana, em face de novos
dados da ciência, os quais não só melhoraram enormemente o índice de mortalidade
ocasionado como efeito das vacinações, reduzindo-o praticamente a zero, como
refutaram várias crenças, como aquela de que a vacinação, no caso específico da
vacina feita com o vírus bovino, conduziria a bestialidades, algo ilustrado pelo
quadro satírico, abaixo, do início do século XIX, crença esta que Unna imputa ao
próprio Kant: "a belief that was shared by many people, including Kant".
43
De acordo
com ela, Kant não teria sido crítico de ambas as técnicas, tanto da inoculação
quanto da vacinação, como teria sido preconceituoso [biased] em relação a ambas,
41
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment.
Kant-Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 465.
42
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment.
Kant-Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 466.
43
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment.
Kant-Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 467, nota 53.
CAPÍTULO VIII
144
incluindo a crença de que a vacinação poderia provocar [impart] bestialidade.
44
Imagem 2 - James Gillray. The Cow-Pock-or-the Wonderful Effects of the New Inoculation! 1802.
45
Fonte: Catalogue of Political and Personal Satires in the British Museum
No parágrafo em comento, o 6, Kant distingue o suicídio total e o suicídio
parcial. No caso de o suicídio ser parcial, ou seja, uma amputação, ela pode ser uma
amputação material [mutilação] ou uma amputação formal, quando atinge uma
capacidade. A análise que Kant faz do uso do ópio e da aguardente, que,
sabidamente, afetam certas capacidades, como a lucidez e a comunicação,
considera-os suicídios parciais formais. No entanto, um ponto importante para a
presente discussão é que ele admite a utilização dos mesmos como medicação,
46
sem contar que o próprio Kant bebia, todos os dias, vinho, o qual contém álcool que
44
UNNA, Yvonne. Kant‟s Answers to the Casuistical Questions Concerning Self-Disembodiment.
Kant-Studien. v. 94, n.4, p. 454473, 2003, p. 466.
45
Curator's comments: (Description and comment from M. Dorothy George, 'Catalogue of Political and
Personal Satires in the British Museum', VIII, 1947) Vaccination had become very general in England,
and had been violently attacked in pamphlets. The scene is evidently the Smallpox and Inoculation
Hospital at St. Pancras, where Dr. Woodville (see BMSat 9925) was the physician. Many French
vaccination caricatures appeared in 1801, and Gillray may have derived his idea from 'Admirable effet
de la Vaccine', 1801, where horns sprout from the forehead of a husband while a pretty young woman
hands a case of knives to the operator. (Hennin, 12,730, in B.M.) This print, as well as 'La Dindonnade
ou le Rivale de la Vaccine', is inset in a copy of 'La Vaccine en Voyage' (Hennin, No. 12,733) in
'London und Paris', vii, 1801, pl. 'N° VIII'. Another print, 'Triomphe de la petite Verole' (Hennin, No.
12,734; reproduced, Weber, p. 77), is pl. 'No IX. Découverte de la Vaccine' (Hennin, No. 12,729) is
also in the B.M. 'Les Malheurs de la Vaccine' and 'Le Nee plus ultra' are reproduced, Weber, pp. 76 ff.
'L'inoculation ou Le Triumphe de la Vaccine' is copied, Jaime, ii, 'Pl. 85. I'. Grego, 'Gillray', p. 289 f.
(reproduction). Wright and Evans, No. 519. Reprinted, 'G.W.G.', 1830. Reproduced, Weber, p. 78. A
copy (coloured), with English title and inscriptions, is Van Stolk, No. 5577."
[https://www.britishmuseum. org/collection/object/P_1851-0901-1091]. O link permite ampliação da
imagem com ótima resolução para detalhes do quadro.
46
MS, AA 06: 428.
CAPÍTULO VIII
145
altera estados mentais, muito embora, nunca bebesse cerveja.
47
As propriedades de
alívio do sofrimento propiciado pelo ópio eram conhecidas de longa data.
48
Do
mesmo modo, a aguardente era usada como anestésico e também pelas suas
alegadas propriedades curativas.
49
Ora, ao que parece, nisso está envolvido um tipo de cálculo, segundo o qual o
possível ganho para a saúde compensaria os seus efeitos ruins sobre determinadas
capacidades próprias dos humanos. Desse modo, com a evolução das vacinas,
poder-se-ia aplicar, para a consideração do seu uso, o mesmo tipo de cálculo que
Kant parece ter aplicado em relação ao uso do ópio e da aguardente, como
medicamentos. Dito claramente, que o uso da vacina torna-se eficiente na
prevenção da doença da COVID-19 e outras doenças de origem viral, bem como é
segura, no sentido de que não causa mortes ou causa raros casos de morte, então,
os possíveis efeitos deletérios ainda desconhecidos sobre a saúde humana
deveriam ser suplantados no possível cálculo do uso das vacinas com a finalidade
de preservação da vida, especialmente no enfrentamento de uma pandemia, como é
o caso atualmente.
Por fim, é verdade que o navegante não cria a tempestade que enfrenta.
Contudo, ao se pôr ao mar, por várias razões, inclusive comerciais, ele assume o
risco, ainda que improvável, de enfrentar uma tempestade que, é verdade, ele não
cria. Ademais, no enfrentamento de uma tempestade, que ele não criou, o
navegante pode decidir tomar vários cursos de ação para enfren-la, sendo que um
deles pode ser mais danoso do que outro. Assim, se ele tomasse a decisão x, que
poderia salvá-lo, e não a y, que de fato o levou à morte, ele deveria ser
responsabilizado por isso?
Mutadis mutandis, no caso daquele que opta por se vacinar, na questão
casuística considerada por Kant, a possível vítima da varíola não cria a pandemia
que enfrenta e, do mesmo modo que o navegante frente a uma tempestade, ele
também tem que tomar uma decisão ou outra para proteger a sua vida, dentre elas,
a vacinação. Nesse sentido, a evolução da segurança e da eficácia das vacinas
47
WOOD, Allen W. Kant. [Trad. Delamar José Volpato Dutra: Kant]. Porto Alegre: Artmed, 2008, p.
30.
48
DUARTE, Danilo Freire. Uma breve história do ópio e dos opióides. Revista Brasileira de
Anestesiologia. v. 55, n. 1, p. 135-146, 2005.
49
PALMA, Monique, SANTOS, Christian Fausto Moraes dos. Não remédio mais singular, nem
mais pronto, nem que tenha as virtudes que tem a aguardente: a finalidade antisséptica da
aguardente no século XVIII. Revista Portuguesa de História. T. XLVI, p. 185-198, 2015.
CAPÍTULO VIII
146
poderiam justificar uma resposta positiva à interrogação kantiana, pois seria um meio
muito mais eficaz de salvar a própria vida do que o aplicar o imunizante. Portanto,
nos dias atuais, soaria como um atentado contra o dever perfeito para consigo de
não se suicidar, ou seja, de autopreservação, não fazer a vacina.
De se registrar, por derradeiro, que tal argumento não amparo à
interpretação de Euler de que poderia ser tornada coativa a vacinação. Isso porque
não caberia ao Estado, em princípio, interferir no corpo da pessoa, especialmente
quando o maior prejudicado pela decisão de não se vacinar é a própria pessoa que
toma tal decisão, que os outros poderiam se proteger justamente usando o
imunizante. Não houvesse essa opção do uso de um imunizante para a
autoproteção, aí, sim, caberiam medidas para evitar uma pandemia, como aquelas
que se tornaram obrigatórias na pandemia do Coronavírus, durante o ano de 2020.
Porém, tais medidas compulsórias perdem a sua justificativa no momento mesmo
em que o imunizante se torna disponível para todos. Em um tal cenário, o sistema de
direitos teria que dar espaço para a escolha de se vacinar ou não, o que incluiria, por
certo, aqueles que fossem adeptos de teorias éticas abrangentes que
considerassem o ato de se vacinar um atentado para com um dever para consigo.
Não custa acrescentar que impactos sobre o sistema blico de saúde, se
fossem considerados procedentes como argumento para esse caso, deveriam
também ser aplicados para outros casos semelhantes, por exemplo, se houvesse a
proibição de uso de carros particulares, haveria muito menos acidentes e, portanto,
menos impactos sobre o sistema público de saúde e previdenciário. Contudo, as
atuais sociedades ainda não decidiram fazer isso. Elas decidiram, em vez disso,
regulamentar a atividade, por exemplo, punindo condutas dolosas e culposas. O
mesmo poderia haver em relação à pandemia. Aliás, o crime de perigo de contágio
de moléstia grave do Art. 131 do Código Penal faz isso: "Praticar, com o fim de
transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o
contágio: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa." Talvez, o sistema pudesse
incluir, também, uma forma culposa que comtemplasse aquele que o se
dispusesse a usar da vacina e concomitantemente não usasse máscara em público.
Poderia incluir, também, a obrigatoriedade de algum tipo de curso de formação, mais
ou menos como para o caso dos candidatos a motoristas. Assim, ter-se-ia um
sistema consistente como é aquele aplicável ao trânsito. Em um tal sistema,
ninguém é obrigado a dirigir. Do mesmo modo, ninguém seria obrigado a se vacinar,
CAPÍTULO VIII
147
porém, para isso, precisaria de uma permissão do Estado, como é a permissão de
dirigir.
50
Deve-se acrescentar que em uma decisão que proibisse dirigir veículos
particulares, os impactos diretos sobre o corpo da pessoa seriam praticamente zero,
diferentemente da vacinação que implica a invasão direta, por uma agulha, do
espaço ocupado pelo corpo, literalmente, o que implica atentado à liberdade interna.
Se, como afirma Kant, "[...] tirar-me da mão a maçã, ou me arrancar do lugar de meu
assentamento, certamente me lesaria em vista do meu interno (da liberdade)"
51
,
muito mais o caso da agulha que invade o corpo lesaria o interno da pessoa
vacinada contra a sua vontade.
Por certo, incapazes poderiam, sim, sofrer a intervenção coativa do Estado,
tendo em vista a finalidade da melhor proteção da sua vida e da sua personalidade.
Ética Discursiva
Para a ética discursiva, uma matéria moral é aquela que trata do interesse de
todos: "[...] normas de ação que podem ser justificados unicamente do ponto de vista
da consideração simétrica de interesses".
52
Ou, ao menos, trata dos interesses de
todos os possíveis concernidos: "que as consequências e efeitos colaterais, que
(presumivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses de cada um dos
indivíduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos
os concernidos".
53
Como se percebe, uma remissão explícita aos indivíduos.
Ademais, por certo, na moral, os concernidos são simplesmente todos os indivíduos,
o que fica explícito na formulação standard do princípio de universalização: "se as
consequências e efeitos colaterais, que previsivelmente resultarem de uma
50
O autor agradece a Franciele Bete Petry, por ter chamado a atenção, em leitura preliminar deste
texto, para o fato de as sociedades liberais criminalizarem certas condutas no trânsito, o que levou o
autor a propor algo semelhante para a conduta de o se vacinar. Com isso, também, fica
evidenciado o caráter social das condutas destacadas, seja no sentido de que compõem o cenário de
uma prática estruturada socialmente, seja no sentido de que têm impactos relevantes sobre os
demais.
51
RL, AA 06: 248.
52
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e
da democracia. [Felipe Gonçalves Silva & Rúrion Melo: Faktizität und Geltung: Beiträge zur
Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats]. São Paulo: Editora da UNESP,
2020 [1992], p. 156.
53
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. (Trad. Guido A. de Almeida:
Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989 [1983], p.
86.
CAPÍTULO VIII
148
obediência geral da regra controversa para a satisfação dos interesses de cada
indivíduo, podem ser aceitos sem coações por todos."
54
Ainda que a noção de
interesse possa ser bastante indeterminada, o ponto principal não reside, para a
ética discursiva, na possibilidade de uma determinação do interesse de forma
independente da argumentação. Ao contrário, um interesse concernente a todos
deverá ser escrutinado via discurso, via argumentação.
Nesse sentido, uma certa assimetria com a teoria discursiva do direito. Um
dos pontos principais desta é a fundamentação de um sistema de direitos básicos,
sendo o primeiro deles aquele da "maior medida possível de iguais liberdades
subjetivas de ação".
55
Este direito, junto com outros quatro conjuntos de direitos,
pode, inclusive, ser apontado pelo teórico, de forma bastante independente da
argumentação: "O teórico [Theoretiker] diz para os civis quais são os direitos que
eles teriam que [müßten] reconhecer reciprocamente, caso desejassem regular
legitimamente sua convivência com os meios do direito positivo."
56
É verdade que
isso precisa ser complementado pelas deliberações democráticas: "os direitos
fundamentais inscritos no código do direito permanecem, por assim dizer,
insaturados. Eles precisam ser interpretados e configurados por um legislador
político conforme as circunstâncias. O código do direito o pode ser estabelecido
em abstrato."
57
Mesmo que necessitem de complementação, a ética discursiva
parece ter escopo bem mais modesto, que não se arrisca a indicar um código de
normas morais
58
, de forma análoga ao conjunto dos cinco direitos básicos traçados
em Facticidade e validade.
O ponto do presente texto sobre a vacinação em Kant consiste em tentar
54
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. (Trad. Guido A. de Almeida:
Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989 [1983], p.
116.
55
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e
da democracia. [Felipe Gonçalves Silva & Rúrion Melo: Faktizität und Geltung: Beiträge zur
Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats]. São Paulo: Editora da UNESP,
2020 [1992], p. 172.
56
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. [Trad. F. B.
Siebeneichler: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 163.
57
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e
da democracia. [Felipe Gonçalves Silva & Rúrion Melo: Faktizität und Geltung: Beiträge zur
Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats]. São Paulo: Editora da UNESP,
2020 [1992], p. 175.
58
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e
da democracia. [Felipe Gonçalves Silva & Rúrion Melo: Faktizität und Geltung: Beiträge zur
Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats]. São Paulo: Editora da UNESP,
2020 [1992], p. 163.
CAPÍTULO VIII
149
reconstruir um argumento moral favorável à vacinação, que poderia ser mobilizada
na argumentação, seja no âmbito moral do princípio de universalização, seja no
âmbito do princípio da democracia, o qual determina que " podem pretender
validade legítima as leis jurídicas capazes de receber o assentimento [Zustimmung]
de todos os parceiros do direito em um processo discursivo de produção normativa,
articulado ele próprio juridicamente."
59
Neste último particular, sabidamente,
Habermas concedeu papel de destaque para as argumentações morais, como pode
ser percebido no modelo processual de formação política racional da vontade por ele
proposto
60
:
Imagem - 3
Segundo o modelo, os argumentos morais têm um certo primado que ele
nomina de heurístico.
61
Tal primado ocorre porque os discursos morais exercem um
papel de veto em relação às matérias que podem vir a ser objeto de deliberação
democrática. Esse papel de filtro se explica porque uma sobreposição de
características fundamentais do que é tratado pela moral e pela democracia. Ambos
os princípios discursivos versam, a seu próprio modo, sobre a aceitação de
interesses, contudo, a moral trata dos interesses de todos os indivíduos, já, a
democracia trata dos interesses dos cidadãos de uma determinada comunidade
59
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e
da democracia. [Felipe Gonçalves Silva & Rúrion Melo: Faktizität und Geltung: Beiträge zur
Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats]. São Paulo: Editora da UNESP,
2020 [1992], p. 159.
60
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e
da democracia. [Felipe Gonçalves Silva & Rúrion Melo: Faktizität und Geltung: Beiträge zur
Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats]. São Paulo: Editora da UNESP,
2020 [1992], p. 222.
61
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [V. 1]. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 287.
CAPÍTULO VIII
150
política. É isso que justifica esse papel desempenhado pelos discursos morais no
modelo pensado por Habermas, visto que o caráter mais restrito das deliberações
democráticas tem que mostrar algum tipo de consonância com as argumentações
morais, as quais realizam um escrutínio mais cerrado, posto que voltados à
universalidade.
que se ressaltar, também, que a proposta da ética discursiva não mais
trata de deveres para consigo.
62
Não obstante, uma comunidade concreta de
argumentação moral terá que enfrentar, provavelmente, diversos argumentos
advindos de éticas abrangentes que envolvem deveres para consigo, como aquela
de Kant. Nesse sentido, argumentar nos termos dessas teorias para mostrar que não
haveria atentado contra um dever para consigo próprio, como que abre o caminho
para que possa haver deliberação daquele aspecto que a ética discursiva considera
relevante, a saber, o interesse dos outros ou o interesse de todos. Por certo, no caso
em tela, da vacinação, parece haver claramente, também, um aspecto que diz
respeito ao interesse dos outros. Aliás, nesse sentido, com as devidas vênias, Kant
não parece ter dado a atenção merecida ao fato de que a varíola seria uma doença
infectocontagiosa, fato que, se por um lado não tem o condão de simplesmente
deslocar o seu tratamento do âmbito dos deveres para consigo para aquele âmbito
dos deveres para com os outros, por outro lado, não deixa de ter aspectos
relevantes a serem destacados no que concerne aos deveres para com os outros.
Dito claramente, uma argumentação moral sobre o ato de se vacinar poderia
chegar à conclusão de que se vacinar não só não atentaria contra um possível dever
para consigo, de acordo com uma ética abrangente, exemplarmente aquela de Kant,
como poderia vir a demonstrar se tratar de algo que deveria ser considerado no
interesse de todos, mesmo dos que não viessem a se vacinar, já que também teriam
seus interesses atendidos por meio da ação alheia de se vacinar. Vencida, portanto,
esta etapa moral, seja no referente a uma ética abrangente que inclui deveres para
62
Mackie, Habermas, Schopenhauer, incluindo o próprio Tugendthat, excluem do âmbito ético os
deveres para consigo [TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. (E. Stein: Vorlesungen über Ethik).
Petrópolis: Vozes, 1996, p. 164-165, 192]. Machie chega a afirmar que dar uma lei a si mesmo, na
condição de um indivíduo, não seria algo racional [MACKIE, J. L. Can There be a Right-Based Moral
Theory? Midwest Studies in Philosophy. V. 3, N. 1, p. 350359, 1978, p. 352]. Aliás, Hobbes já
chamara a atenção para a inconsistência do conceito "E a ninguém é possível estar obrigado perante
si mesmo, pois quem pode obrigar pode libertar, portanto quem está obrigado apenas perante si
mesmo não está obrigado." [HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado
eclesiástico e civil. [Trad. J. P. Monteiro e M.B.N. da Silva: Leviathan, or Matter, Form, and Power of a
Commonwealth Ecclesiastical and Civil]. 2. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1979 [1651], cap. XXVI].
CAPÍTULO VIII
151
consigo, seja no sentido de uma ética mais austera como a ética discursiva, a
matéria abrir-se-ia para a deliberação democrática, tendo em vista os direitos
fundamentais. Caberia, então, a pergunta: uma comunidade de cidadãos poderia
democraticamente deliberar pela vacinação compulsória? Poderia fazê-lo por
quórum majoritário? Uma possível vacinação compulsória feriria o mencionado
direito fundamental à "maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de
ação"?
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CAPÍTULO VIII
153
ZINGANO, Marco. A. Razão e história em Kant. São Paulo: Brasiliense/CNPq,
1989.
CAPÍTULO IX
BRASIL: FUNDAMENTAR OU APLICAR OS DIREITOS HUMANOS?
Delamar José Volpato Dutra
Edna Gusmão de Góes Brennand
iii
Jovino Pizzi
Introdução
A ideia de que os direitos humanos são essenciais, em termos de
fundamentalidade e universalidade, é marcada pelas lutas de inclusão e exclusão
dos conteúdos de diversos grupos e seus contextos culturais específicos. Nesse
sentido, a evolução do conceito de direito natural expressa formas plurais de
conquistas político-jurídicas, que viabilizam a existência de âmbitos semânticos
variados e interpretações diversas, em função dos respectivos contextos culturais e
sociais. A ambivalência com que esta ideia é expressa tem gerado seu uso retórico
e dificuldade de sua realização, devido à complexa e heterogênea conformação
sociocultural da realidade construída socialmente e das relações de força entre o
político-simbólico e o normativo-jurídico.
Nas últimas décadas do século XX as lutas por reconhecimento,
desencadeadas por diversos movimentos sociais, trazem pontos controversos sobre
que tipo de tratamento jurídico-normativo será capaz de transformar uma igualdade
formal em uma igualdade material. Uma questão importante que permeia os
diversos discursos é que estamos face a um indireto reconhecimento de um direito à
diferença formal, ligado a um princípio da igualdade também formal e que
compromete sua efetivação. As reflexões críticas ou não, ligadas ao significado de
direitos humanos, expressam as exigências sociais de autonomia das diversas
esferas dos discursos, bem como dizem respeito à inclusão de pessoas e grupos.
Assim, esse artigo objetiva discutir transformações estruturais das sociedades e as
expectativas de inclusão jurídica universal frente à uma pluralidade conflituosa de
expectativas de pessoas e grupos no tocante a valores e interesses.
Partindo da compreensão de que os direitos humanos carregam em sua
gênese o dissenso, pretende-se colocar em relevo idiossincrasias do caso brasileiro,
que tende a ver os direitos humanos apenas como sendo direitos de uma parte dos
humanos. Desse modo, apoiados nas controvérsias sobre a fundamentação dos
direitos humanos, este texto tem como objetivo dialogar com diversos autores, tais
como Bobbio, Habermas, Fraser, Caranti, Douzinas, Honneth e outros, sobre uma
possível fundamentação para os direitos humanos, sem, contudo, ter a pretensão de
esgotar esse rico e complexo debate.
Bobbio e a fundamentação ilusória dos direitos humanos
Bobbio (2000) qualifica a busca por um fundamento absoluto para os direitos
humanos como ilusória. O pensador sugere a ideia de que os direitos humanos
fundamentados absolutamente funcionaram como um empecilho para a modificação
dos mesmos ou para gestação de novos direitos, sendo um caso típico o do direito
de propriedade. Esse direito foi considerado como sagrado e inviolável, mas veio
a sofrer limitações durante o século XX
1
. A ilusão, apontada por Bobbio (2000),
decorreria de quatro dificuldades sicas, as quais impediriam que as duas
estratégias de fundamentação absoluta, por ele apontadas, funcionem
adequadamente. Para maior clareza, dissertaremos sobre essas duas estratégias de
fundamentação, bem como as quatro dificuldades. A primeira estratégia, remete ao
conceito de natureza humana, a partir do qual poder-se-ia deduzir os direitos
humanos
2
. A segunda, consiste em considerar tais direitos como verdades evidentes
em si mesmas.
As quatro dificuldades apontadas pelo teórico, concernentes à fundamentação
dos direitos humanos, são as seguintes: 1) a vagueza da expressão direitos
humanos, que não se consegue definir claramente o conceito, a o ser que se
use algum elemento valorativo; 2) a variabilidade dos direitos humanos, como
exemplo pode-se citar os direitos sociais, que não eram mencionados nas primeiras
declarações, assim como o direito dos animais ou das crianças; 3) a
heterogeneidade das pretensões. Assim, para alguns direitos, há a pretensão de que
valham sem exceções, como a interdição da tortura [art. V]. Já, para outros, não
essa pretensão, como a censura [art. XIX]; 4) o caráter antinômico dos direitos
1
A Constituição da República Federativa do Brasil é exemplar nessa formulação. De fato, o art. 5º,
XXII, o qual garante o direito de propriedade, é imediatamente seguido do inc. XXII, o qual determina
que “a propriedade atenderá sua função social”.
2
Poder-se-iam formular, nesse particular, três subargumentos de fundamentação: necessidades
básicas, agência, interesses universais [TASIOULAS, John. On the Foundations of Human Rights. In
CRUFT, Rowan, LIAO, S. Matthew, RENZO, Massimo [eds]. Philosophical Foundations of Human
Rights. Oxford: Oxford University Press, p. 45-70, 2015, p. 66].
humano. A título de exemplo, os conflitos entre os direitos negativos, do liberalismo
clássico, e os direitos positivos, como os direitos sociais.
Pode-se dizer que essa quarta dificuldade atinge mais a primeira estratégia
de fundamentação. O exemplo apontado por Bobbio (2000) é aquele concernente ao
direito de sucessão. Três soluções foram concebidas para esse problema, são elas:
os bens após a morte do de cujus deveriam retornar à comunidade; os bens
deveriam ir para os descendentes do de cujus; os bens deveriam obedecer à última
disposição de vontade do proprietário. No entanto, nenhuma dessas soluções
pareceria realizar com mais precisão a natureza do ser humano.
Desse modo, as três soluções são compatíveis com a natureza humana, uma
vez que se pode definir o ser humano como: 1) membro de uma comunidade, 2)
genitor, e 3) pessoa livre e autônoma. Sabidamente, as três soluções acabaram
sendo aceitas na maior parte das legislações contemporâneas. Intrinsecamente,
essa problemática aponta para a dificuldade de definir a natureza humana. Afinal, o
que corresponde à natureza humana, o direito do mais forte ou a liberdade e a
igualdade? Como bem observou MacIntyre (1991), toda definição de natureza
humana já pressupõe uma posição avaliativa.
As demais dificuldades se aplicam à segunda estratégia, pois direitos
considerados evidentes num dado período da história deixaram de ser em outros. A
tortura, por exemplo, foi por séculos considerada como meio legítimo de prova e
depois deixou de ser. Da mesma forma, a propriedade, como mencionado, foi
considerada como sendo um direito evidente. Hoje, em muitos documentos da
Organização da Nações Unidas (ONU), essa prerrogativa não aparece mais, como é
possível observar no Pacto Internacional Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e
no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, ambos de 1966.
Portanto, à luz de Bobbio (2000), pode-se afirmar que os direitos humanos
são gestados historicamente, atendendo a desafios que a humanidade enfrentou.
Assim, é possível falar em gerações (ou dimensões) de direitos. O filósofo enumera
quatro gerações: a primeira, seria aquela constituída pelos direitos liberais, que inclui
os direitos políticos; a segunda, seria composta pelos direitos sociais; a terceira,
residiria nos direitos ecológicos, como o direito de viver em um meio ambiente não
poluído; e a quarta geração, diz respeito aos direitos biológicos, como a integridade
do patrimônio genético.
A primeira geração de direitos defenderia os interesses individuais. A
segunda, por sua vez, buscou legitimar os direitos coletivos. A terceira e a quarta
gerações estariam voltadas para os interesses difusos. Esses seriam distintos dos
coletivos, por não se referirem a um conjunto de pessoas identificáveis, como é o
caso dos direitos das gerações futuras sobre o meio ambiente
3
. Em suma, os
direitos humanos têm um processo de nascimento e, também, de morte, que
alguns deles podem desaparecer ou serem fortemente limitados, como é o caso do
direito de propriedade [Art. XVII] ou do direito de remuneração igual por trabalho
igual [Art. XXIII].
Bobbio (1992) aponta, então, para um caminho alternativo e plausível aquele
do consensus omnium gentium, “o que significa que um valor é tanto mais fundado
quanto mais é aceito”. Com o argumento do consenso, substitui-se a prova da
objetividade pela prova da intersubjetividade, considerada impossível ou
extremamente incerta. Trata-se, certamente, de um fundamento histórico e, como
tal, não absoluto, contudo, esse fundamento histórico do consenso é o único que
poderia ser fatualmente comprovado (BOBBIO, 1992, p. 27)”. Para ele, a maior
prova de tal consenso, contemporaneamente, seria justamente a aceitação pelas
nações da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Pressuposta a aceitação e
incorporação de tais direitos nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, o teórico
pode defender a tese de que o maior problema com relação aos direitos humanos
não seria filosófico [justificação], mas político, qual seja, protegê-los.
Essa tese compreende uma certa dose de juspositivismo que, embora
confortável teoricamente, não consegue dar conta de todo o âmbito normativo
envolvido na problemática dos direitos humanos. Isto é palpável no próprio
Preâmbulo da Declaração, quando afirma: “considerando que os direitos humanos
sejam protegidos por um regime de direito, a fim de que o homem não se veja
compelido ao supremo recurso da rebelião contra a tirania e a opressão”. Ora, o
direito de desobediência remete a um elemento normativo para além do direito
vigente
4
. Nesse sentido, o consensus omnium gentium de Bobbio (1992) não pode
3
O art. 81, da lei 8.078/90, que dispõe sobre a proteção do consumidor e outras providências,
conceitua o direito difuso como transindividual, de natureza indivisível, sendo os titulares desses
direitos sujeitos indeterminados. os direitos coletivos são, também, transindividuais de natureza
indivisível, sendo titulares desse direito grupo, categoria ou classe. Por fim, define os direitos
individuais homogêneos como os decorrentes de origem comum.
4
“O modo de validade do direito aponta, não somente para a expectativa política de submissão à
decisão e à coerção, mas também para a expectativa moral do reconhecimento racionalmente
motivado de uma pretensão de validade normativa, a qual só pode ser resgatada através de
argumentação. E os casos-limites do direito de legítima defesa e da desobediência civil, por exemplo,
ser reduzido à aceitação jurídica por parte dos estados, remetendo, portanto, a uma
aceitação coletiva dos mesmos. Mas, isso ainda é insuficiente, pois tais consensos
mudam e, como ele mesmo afirma, são históricos e contingentes. Essa observação
autoriza a pensar como importante a busca de um fundamento fora da via proposta
pelo filósofo. No entanto, no presente texto, a via seguida será aquela da disputa
pela implementação ou aplicação dos direitos humanos, partindo do consenso
constitucional vigente.
Métricas para análise e a aplicação dos direitos humanos
Formulações como as de Bobbio (1992; 2000), que focam em gerações de
direitos, ou seja, na sua gênese histórica, acabam por engendrar um problema de
aplicação. Com efeito, um ponto controverso que vem ganhando escopo é aquele do
esfacelamento dos direitos humanos. Deveras, no momento, há uma pletora de
declarações. as declarações para os direitos civis, políticos, culturais,
econômicos, contra a tortura, direitos das crianças, da mulher, dos deficientes, entre
outras. Douzinas (2000) nomeia essa problemática de floating signifier: Nas palavras
do mesmo,
Using the terminology of semiotics, one can argue that the 'man' of the rights
of man or, the 'human' of human rights, functions as a floating signifier. As a
signifier, it is just a word, a discursive element that is not automatically or
necessarily linked to any particular signified or concept (DOUZINAS, 2000,
p. 255).
Dssa forma, essa perspectiva leva a um processo sem fim de criação de
direitos, o que ocorre porque “Rights are pure combinations of legal and linguistic
signs, and they refer to more signs, words and images, symbols and fantasies
(DOUZINAS, 2000, p. 255). Ainda, segundo ao autor, “This symbolic excess turns
revelam que tais argumentações podem romper a própria forma jurídica que as institucionaliza”
[HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. [Trad. F. B.
Siebeneichler: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997 [1992], p. 247]. Um
ordenamento jurídico o pode estabelecer o direito de desobediência, pois isso implicaria uma
contradição. No caso de uma tal formulação, “a legislação suprema encerraria em si uma disposição
segundo a qual o seria soberana, e o povo, como súdito, num mesmo e único juízo se constituiria
soberano daquele a quem está submetido, o que é contraditório. Essa contradição é fragrante se
alguém fizer a seguinte reflexão: quem, pois, deveria ser juiz na contenda entre o povo e o soberano?
[...] É evidente que aqui o primeiro quer ser juiz em sua própria causa” [KANT, Immanuel. Princípios
metafísicos da doutrina do direito. [Trad. J. Beckenkamp: Metaphysische Anfangsgründe der
Rechtlehre]. São Paulo: Martins Fontes, 2014 [1797], p. 320].
the signifier 'human' into a floating signifier, into something that combatants in
political, social and legal struggles want to co-opt to their cause in order to benefit
from its symbolic capital”.
Esse mesmo diagnóstico é acompanhado com Caranti (2017)
Maybe we should have a shorter list. Is it really the case that everyone has a
human right to rest and leisure, including holidays with pay, as famously
stated by Article 24 of the Universal Declaration of Human Rights? And what
about a human right to the „highest attainable standard of physical and
mental well-being‟, as declared by Article 12, section 1 of the International
Covenant on Economic, Social, and Cultural Rights? And what about less
famous cases of ambitious rights such as article 27, first paragraph, of the
UDHR which reads, „Everyone has the right freely to participate in the
cultural life of the community, to enjoy the arts and to share in scientific
advancement and its benefits‟? (CARANTI, 2017, p. 42).
Hamilton (2003) sugere que a proliferação dos direitos humanos conduziu a uma
conflitividade que, por sua vez, reforçou o poder judiciário. Ele chega a afirmar que o
problemático dos direitos, não seria tanto o caráter individualista, mas seu caráter
jurídico [jural], o qual teria um efeito de despolitização.
Por certo, é possível reconstruir aspectos semânticos para além da pura
discursividade dos direitos humanos, como o sofrimento humano, desfilado no
conceito de dignidade humana
5
. Ainda assim, o problema é efetivo, na medida em
que o esfacelamento gera uma dificuldade de aplicação, não porque se torna
mais difícil atender a todos, inclusive no que se refere à infraestrutura, mas muitas
vezes ocasiona a sobreposição de meios.
Considerando que os direitos humanos se aplicam a todos os seres humanos,
talvez fosse conveniente um tratamento mais holístico dos mesmos, a partir da
perspectiva da justiça tridimensional defendida por Fraser (2009). A autora propõe
que a justiça seja analisada de forma tridimensional, tendo como foco a
redistribuição, o reconhecimento e a representação. No quesito redistribuição,
estariam incluídos os direitos sociais. No reconhecimento, as demandas culturais e
de identidade. Por último, no quesito representação, as demandas políticas. Essa
formulação pode ser adequada para se pensar eixos temáticos de justiça ao redor
dos quais os direitos humanos poderiam ser agrupados. A clássica formulação das
gerações de direitos poderia se adaptar a essa linguagem mais normativa e menos
5
HABERMAS, Jürgen. The Concept of Human Dignity and the Realistic Utopia of Human Rights.
Metaphilosophy. V. 41, n. 4, 2010, p. 464-480.
histórica. Essa formulação poderia dar conta de um certo diagnóstico de
esfacelamento do discurso dos direitos humanos, na medida em que poderiam ser
reagrupados por temáticas estruturais para a justiça.
Autores como Rawls (1999) e Habermas (2020) pensam em um sistema de
direitos. Para Rawls, o princípio 1 de justiça (P1) responderia pelos direitos
individuais e pelos direitos de participação política. o princípio 2 de justiça (P2)
poderia ser realizado mediante direitos sociais. Por sua vez, para Habermas, haveria
três conjuntos de direitos, os liberais individuais, os direitos de participação política e
os direitos sociais e ecológicos.
De acordo com os autores mencionados a seguir, quando se põe a questão
da aplicação surge também a questão da prioridade. Sabidamente, Rawls (1999)
prioridade lexical ao P1 sobre P2, bem como, dentro do P1, ao tratar do Estado de
direito, parece conferir prioridade para os direitos individuais em relação aos de
participação política. Ainda destaca que as necessidades básicas têm prioridade
lexical como condição de possibilidade dos direitos e liberdades de P1 (RAWLS,
2000, p. 49).
Habermas (2020), por seu turno, torna os direitos sociais normativamente
dependentes dos direitos individuais e de participação. O problemático em relação
aos direitos sociais é que eles não indicam uma liberdade, mas um dever dos outros,
por isso, seu fundamento só pode ser uma pretensão, no sentido de Hohfeld (1913)
6
.
Assim, no coração dos direitos como liberdade, a rigor, não precisaria haver deveres
por parte de ninguém (HOHFELD, 1917). Ademais, é controversa a relação entre os
direitos individuais e os direitos políticos, em face da tese da cooriginariedade entre
ambos . Nesse sentido, Habermas (2020, p. 152) defende que: “A argumentação
desenvolvida no livro tem por objetivo essencialmente demonstrar que Estado de
direito e democracia não apenas uma conexão histórica contingente, mas uma
conexão conceitual ou interna”. Um senão nessas reflexões diz respeito ao
posicionamento de Habermas em relação a Taylor, pois, neste caso, Habermas
parece defender um tipo prioridade do individual sobre o coletivo que sugere
exorbitar a tese da cooriginariedade
7
.
Fraser (2003) prioriza a escala da paridade de participação e não a dimensão
6
Ver também: HOHFELD, Wesley Newcomb. Faulty Analysis in Easement and License Cases. The
Yale Law Journal. V. 27, n. 1, 1917, p. 71.
7
Ver: VOLPATO DUTRA, Delamar José. Tolerância, cultura e direitos humanos em Habermas.
Aurora. V. 33, p. 918-946, 2021a.
da redistribuição propriamente dita.
Honneth (2007) considera a igualdade legal. O autor atribui muito das lutas
por reconhecimento a um fato antropológico-psicológico, que ele remete a Hobbes e
a Rousseau, dito claramente, nossa identidade seria dependente dos outros. Dessa
forma, ele parece admitir que as questões de reconhecimento respondem pelo
aspecto da gênese da moralidade. Sem embargo, direitos e deveres morais
precisam ser justificados por razões universais, que independentes dessa gênese,
devem ter como base as lutas por reconhecimento em conexão com a fragilidade e a
segurança da integridade da identidade pessoal. Assim,
[...] falando estritamente, mesmo a moralidade do reconhecimento segue as
intuições que sempre prevaleceram na tradição kantiana da filosofia moral:
no caso de conflito moral, as pretensões de todos os sujeitos ao igual
respeito pela sua autonomia individual goza de prioridade absoluta
(HONNETH, 2007, p.141).
-se bem porque o filósofo precisa conferir esse tipo de prioridade, haja vista
o caráter teleológico do bem-estar humano, que porta as lutas por reconhecimento,
o qual precisa ser controlado para evitar o perigo do consequencialismo e do
utilitarismo (HONNETH, 2007, p. 137-138). Sendo assim, a teoria do reconhecimento
precisar de uma âncora deontológica como prioridade. Nessa mesma direção,
Fraser e Honneth (2003) afirmam:
The moral grammar of the conflicts now being conducted around
„identity-political‟ questions in liberal-democratic states is essentially
determined by the recognition principle of legal equality. […] the
majority of identity-political demands can be meaningfully grasped
only as expressions of an expanded struggle for legal recognition
(FRASER & HONNETH, 2003, p. 179-180).
Ao que tudo indica, para Honneth, a gramática da emancipação ainda seria a
jurídica, não a do reconhecimento propriamente dito, como aparece claramente na
perspectiva de Taylor. O reconhecimento responderia pela gênese, mas não pela
justificação, ao que se pode ajuntar como prova nessa direção também o seu livro
sobre O direito da liberdade (HONNETH, 2011).
Ademais, aparentemente, todos esses autores não defendem a prioridade de
direitos grupais sobre direitos individuais. Exemplarmente, Rawls
8
e Habermas
9
argumental que o respeito seria devido a todos, ao passo que a estima deveria ser
realizada intragrupos. Uma voz discordante desta perspectiva é aquela de Taylor
(1994). Por isso mesmo, talvez, os autores de língua inglesa tendam a tratar Taylor,
e não Honneth, como o primeiro representante da perspectiva do reconhecimento.
De todo modo, um ponto a ser destacado é que as demandas de efetivação
ou aplicação dos direitos humanos não são um jogo de soma-zero, dessa forma,
para que alguém usufrua de um direito não é necessário que alguém não o usufrua.
Assim, ainda que os casos de aplicação sejam difíceis, é possível que todos
usufruam dos direitos humanos, senão por outra razão, pela razão mesma que
direitos humanos não são direitos de minorias ou de grupos, mas direitos de todos
em razão da humanidade/dignidade de cada um.
Demandas de efetivação ou aplicação dos direitos humanos no Brasil:
controvérsias.
Expectativas da efetivação dos direitos pelos tribunais
A expectativa temporal da efetivação dos direitos humanos passa pela forma
de funcionamento dos tribunais. Então, se as falhas se tornam estruturais, o direito
não funciona adequadamente, em razão do tempo. Ele é um fator determinante para
a efetivação dos direitos. Ainda que o judiciário não seja o único nem o principal dos
poderes a efetivar direitos. Se tal órgão principal houvesse, ele seria o poder
executivo. No entanto, o poder judiciário é um bom termômetro para se ter uma
visão da efetivação dos direitos humanos, haja vista ele ser chamado quando algo
não funcionou quando deveria ter funcionado. Como salienta Hart (1994, p. 40),
The principal functions of the law as a means of social control are not to be
seen in private litigation or prosecutions, which represent vital but still
ancillary provisions for the failures of the system. It is to be seen in the
8
A “sociedade não é em si uma comunidade, nem pode sê-lo tendo em vista o fato do pluralismo
razoável.” [RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. [Cláudia Berliner: Justice as
Fairness A Restatement]. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [2001], p. 29]. “Uma sociedade
democrática não é e não pode ser uma comunidade.” [RAWLS, John. Justiça como equidade: uma
reformulação. [Cláudia Berliner: Justice as Fairness A Restatement]. São Paulo: Martins Fontes,
2003 [2001], p. 4]. Isso está em acordo com o §67 de “Uma teoria da justiça.
9
VOLPATO DUTRA, Delamar José. Tolerância, cultura e direitos humanos em Habermas. Aurora. V.
33, p. 918-946, 2021a.
diverse ways in which the law is used to control, to guide, and to plan life out
of court.
Assim, levantaremos alguns exemplos brasileiros sobre a efetividade dos
direitos humanos, no sentido de assinalar algumas questões práticas que implicam a
aplicação da norma mais favorável para a proteção da dignidade da pessoa. Uma
vez que esta deve ser a razão e a finalidade de ser de todo o sistema, a sua
essencialidade.
No quesito da justicialização, especialmente em relação aos tribunais
constitucionais, é válido nos remeter ao estudo de Hirschl (2004). O autor analisa a
atuação dos tribunais constitucionais de Israel, do Canadá, da África do Sul e da
Índia, em relação a quatro grupos de direitos: devido processo, vida privada, direitos
sociais e direitos sindicais. Com estas reflexões inferiu-se que os tribunais foram
pródigos em realizar os direitos do devido processo, principalmente no âmbito penal,
bem como em relação às proteções da vida privada. Além disso, foram avaros na
realização dos outros dois grupos de direitos. O estudo mostra que esses tribunais
cumprem uma agenda política favorável às elites e, por isso, lhes é conveniente
passarem as decisões que mais lhes interessam para tais tribunais constitucionais,
inclusive para evitar desgaste político.
Aventa-se que se um estudo desse tipo fosse realizado no Brasil, poderia
registrar resultados semelhantes, tendo em vista que o próprio acesso ao Superior
Tribunal Federal (STF) é facilitado para aqueles que detêm poder econômico, em
razão de terem numerário para pagar os melhores advogados, bem como dispor dos
recursos financeiros que envolvem um processo que tramita na Capital Federal.
No ano de 2020, segundo o Relatório Justiça em Números, do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), “os assuntos sobre Direitos Humanos mais recorrentes,
além de assistência social, foram, respectivamente sobre: „pessoas com deficiência‟,
„pessoa idosa‟, „intervenção em Estado/Município‟, „alimentação‟ e „moradia‟
(BRASIL, 2021, p.301). Ainda, segundo o relatório, “houve um expressivo aumento
do número de casos novos sobre Direitos Humanos chegando quase a triplicar o
quantitativo referente a 2019 (342% de aumento) considerando a totalidade destes
assuntos” (BRASIL, 2021, p.312).
Talvez, um dos maiores problemas seja referente à discrepância entre
a unanimidade dos direitos humanos, relacionada a juristas e intelectuais, e a sua
recusa por uma grande parte da população. Nesse particular, na vigência do Plano
Nacional de direitos Humanos (PNDH 1), como se verá abaixo, foi tipificado o
crime de tortura (Lei 9.455/97). Não obstante, dados atuais do CNJ indicam que
essa ainda é uma prática corrente no Brasil. Vejamos os números: no ano de 2016,
foram 4,13 mil; em 2017, 8,4 mil; em 2018, 8,2 mil; em 2019, 13,9 mil; em 2020, 6,6
mil; em 2021, 12,4 mil; e em 2022, foram 11,2 mil.
Os registros indicam que atualmente a prática da tortura ocorre durante a
prisão e a condução do preso a delegacia, mas não na própria delegacia. Segundo
Eduardo Reina (2022)
A tortura é praticada hoje, em larga escala‟, nas abordagens policiais
contra jovens, negros e pobres, segundo o presidente do Grupo Tortura
Nunca Mais. Contudo, ele diz que os casos dentro das delegacias
diminuíram. „Hoje nas delegacias são mais comuns as extorsões do que as
torturas. Porém, as pessoas são torturadas antes de chegarem às
delegacias, nas abordagens dos policiais militares‟ (REINA, 2022)
10
.
Talvez, haja um simbolismo que fala por si só, quando nos deparamos com o
modo como os presos são conduzidos no Brasil. No geral, depois de efetuada a
prisão, são postos no bagageiro das viaturas policiais. Pois bem, o que é colocado
comumente nos bagageiros dos carros? Coisas, não seres humanos. Em muitos
países, os presos são conduzidos no banco de trás das viaturas, separados dos
bancos da frente, onde ficam os policiais que conduzem o preso, por algum tipo de
grade, inclusive com sinto de segurança para todos. No Brasil, além de ser
conduzido no bagageiro, como se fosse uma coisa, o preso vai algemado com as
mãos nas costas. Porém, se o preso for do colarinho branco, ele será conduzido no
banco de trás.
10
Para mais informações: REINA, Eduardo. Constituição desrespeitada: 34 anos depois da
aprovação do fim da tortura, número de casos explode no país. In: Revista Consultor Jurídico. 3 de
agosto de 2022. Disponível em: ConJur - 34 anos após aprovação do fim da tortura, casos explodem
no país. Acesso em 04/08/2022.
Gráfico 1 - Anuário brasileiro de segurança pública 2022
11
.
Fonte: Brasil, 2022.
Esse simbolismo se traduz em dados de letalidade policial. Os números de
2014 revelaram que nos últimos cinco anos, a polícia [brasileira] matou 9.691
pessoas. […] Os dados norte-americanos apontam 11.090 mortes em 30
anos”(2014)
12
. Esses dados com o passar dos anos de agravaram, se em 2014 o
número de mortes foi de 3.146. De 2018 a 2021, os números dobraram, chegando a
mais de 6.000 mortes por ano. Conforme é possível observar no gráfico 15, do
Nesse diapasão, o que dizer das condições de muitas prisões brasileiras?
Vale o registro que, em 3 de julho de 2019, o Tribunal de Justiça de Turim negou a
extradição de um advogado brasileiro, também cidadão português, condenado no
Brasil. De acordo com Canário (2022):
Segundo o acórdão, o sistema carcerário brasileiro é notoriamente
degradante e desrespeitoso com os direitos fundamentais dos presos. A
decisão cita alguns dos casos de rebeliões em presídios que terminaram
com decapitações de presos, a superlotação da maioria das prisões e a
decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro reconhecendo o estado
inconstitucional de coisas‟ do sistema carcerário” (CANÁRIO , 2019).
11
Anuário brasileiro de segurança pública 2022. Ano 16, 2022, p. 78.
[https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5].
12
Para mais informações: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/11/policia-brasil-mata-em-5-
anos-mais-que-dos-eua-em-30.html 13/11/2014. Acesso em 16/08/2022.
Pesou, também, na decisão do tribunal, a substituição, em junho de 2019, de
todos os membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
(MNPCT), do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, por policiais e
militares notoriamente antagônicos aos direitos humanos. Talvez, em casos como
esses, o sofrimento seja tão intenso ou grave que se torne tortura. Desse modo,
deixa de ser um caso de dor ou sofrimento inerente ou acidental, e torna-se um caso
de sofrimento grave, inerente a sanções legais.
Vale relembrar aqui o caso do reitor Cancellier, da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC)
13
. O reitor foi preso e submetido a uma revista íntima,
vexatória, desnecessária e totalmente abusiva. Esse tipo de procedimento, além ser
uma violência sexual institucionalizada, é claramente incompatível com a dignidade
humana. Nas palavras de René Ruschel (2021),
O reitor foi submetido a uma vexatória revista íntima por duas vezes, na
Polícia Federal e na Penitenciária , e mantido nu durante mais de duas
horas diante de outros presos, para finalmente vestir o uniforme do presídio,
ser algemado e acorrentado nos pés. Seu martírio durou cerca de 30 horas.
No âmbito dos direitos econômicos ou dos direitos sociais o é demais
repetir o quão desigual o Brasil é. A questão não é propriamente referente à
desigualdade. Ela até pode ser justificada por uma teoria da justiça, como o
faz Rawls (1999). No entanto, o Brasil tem traços de desigualdades salariais
amplamente divulgados, tais como: o valor do salário-mínimo para 2023
será de R$ 1.294 (Um mil, duzentos e noventa e quatro reais). Vale o
registro que 66%, dos 36 milhões de beneficiários do INSS, recebem o valor
de um salário-mínimo, ou seja, mais de vinte milhões de pessoas. Um
professor titular de uma Universidade Federal, em contrapartida, ganha em
torno de 15 vezes esse valor, cerca de R$ 20.000 (vinte mil reais). Desse
modo, um docente titular federal recebe em um mês, quase o valor total do
que o aposentado com salário-mínimo ganha em um ano. um ministro do
STF passará, em 2023, a receber uma remuneração de provavelmente R$
46.000 (quarenta e seis mil reais), o que corresponde a 35 vezes o salário-
mínimo, e duas vezes o salário de um professor titular. O aposentado, com
um salário-mínimo, levará mais de três anos para receber o valor que um
ministro ganha em um mês.
Segundo dados do IBGE
14
, a “renda mensal dos que fazem parte do 1% mais
rico da população é, em média, R$ 15.816. o rendimento mensal dos 50% mais
pobres é de R$ 453”. Isso põe o professor titular de uma universidade federal e os
13
Para mais informações vide: "LEVARAM O REITOR"| Documentário sobre o caso Cancellier. [S. l.:
s. n.], 13 dez. 2021. vídeo (1 h 16 min 1 s). Publicado pelo canal TV GGN. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=6GOgdEpKUp4 Acesso: 20 out. 2022.
14
Para mais informações: CARDIM, Maria Eduarda. IBGE: 1% mais rico ganha 35 vezes mais
renda do que os 50% mais pobres. In: Correio Braziliense. 19 de novembro de 2021. Disponível
em: https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/11/4964315-ibge-1-mais-rico- ganha-35-
vezes-mais-renda-do-que-os-50-mais-pobres.html. Acesso em 12 ago. 2022.
ministros do STF no 1% mais rico da população. Obviamente, estes são
exemplos, mas valem para todos aqueles que ganham mais do que R$ 15.000
(quinze mil reais) mensais.
O problema não é a disparidade ou a desigualdade enquanto tal. Mas, a
noção de que o salário-mínimo é insuficiente para se levar uma vida digna. Com
efeito, o
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE)
15
calcula que o valor do salário-mínimo atualmente deveria ser em torno de R$ 6.000
(seis mil reais). Por outro lado, o salário de um ministro do STF, mesmo com o
aumento salarial, ainda seria sete vezes maior que o valor sugerido pelo DIEESE,
muito mais do que um ser humano precisa para ter uma vida digna. Talvez, um
ministro até pudesse ganhar o que ganha atualmente, mas somente se todos
ganhassem o mínimo proposto pelo DIEESE.
Políticas de implementação dos direitos humanos no Brasil
No Brasil, as políticas de implementação dos direitos humanos são
concebidas no discurso como ferramentas de transformação social. Considerando o
panorama das desigualdades latentes no processo civilizatório brasileiro, as formas
de construí-lo parecem abstratas e inteligíveis. Se visualizado através dos caminhos
violentos que marcaram o processo de construção das matrizes étnicas formadoras
da nossa identidade: brancos colonizadores, índios e negros africanos, as manobras
discursivas oferecem um referenciamento epistemológico que pressupõe a
necessidade de reparação histórica dos silenciamentos impostos às minorais e a
promoção da justiça social, a partir da Constituição de 1988.
As lutas pelo reconhecimento desenvolvidas por negros, índios e pobres
levaram a novas formulações das dinâmicas pluralistas e multitemporais da
fundamentação dos direitos humanos no país. Pode-se afirmar que os três Planos
Nacionais de Direitos Humanos (PNDH 1, 2 e 3) expressam a polissemia,
polivalência e entrecruzamento dos modelos de análise e intervenção na realidade
social. A produção dos PNDH possui inspiração e origem na “Declaração e
Programa de Ação de Conferência Mundial de Viena de 1993, organizada pela
15
SALÁRIO mínimo nominal e necessário. In: DIEESE. Disponnível em: https://www.dieese.org.
br/analisecestabasica/salarioMinimo.html Acesso: 19 out. 2022.
Organização das Nações Unidas, que instou os Estados a concatenar os esforços
rumo à implementação de todas as espécies de direitos humanos” (CARVALHO
RAMOS, 2018, 11.2.).
O PNDH-1 foi implementado pelo decreto 1.904/1996, sob a gestão do
presidente da república Fernando Henrique Cardoso. O plano visava a verificar
situações de não cumprimento dos direitos humanos e aprimorar a legislação
brasileira.
Os direitos em foco sob a perspectiva do PNDH 1 eram referentes aos direitos
civis, com especial foco no combate à impunidade e à violência policial. Em 2002, o
PNDH-2 foi aprovado pelo decreto 4.229, de 13 de maio de 2002, com ênfase
nos direitos sociais. Ainda, segundo o teórico,
Nos „considerandos‟ do novo programa, foram identificados avanços obtidos
nos seis anos de vida do PNDH-1, entre eles a adoção de leis sobre: 1)
reconhecimento das mortes de pessoas desaparecidas em razão de
participação política (Lei 9.140/95), pela qual o Estado brasileiro
reconheceu a responsabilidade por essas mortes e concedeu indenização
aos familiares das vítimas; 2) a transferência da justiça militar para a justiça
comum dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares
(Lei nº 9.299/96); 3) a tipificação do crime de tortura (Lei nº 9.455/97); 4) e a
proposta de emenda constitucional sobre a reforma do Poder Judiciário, na
qual se incluiu a chamada „federalização‟ dos crimes de direitos humanos
(ver o tópico sobre o Incidente de Deslocamento de Competência, supra)
(CARVALHO RAMOS, 2018, 11.2.p.).
Com isso, houve uma mudança no foco da proteção de direitos humanos. O
PNDH-1 concentrou-se nos direitos civis, considerando-os importantes para a
consolidação do regime democrático no Brasil. o PNDH-2, que foi produzido
após13 anos do fim da ditadura militar (1989) e primeira eleição direta para
presidente, preferiu focar em temas sociais e de grupos vulneráveis, como os
direitos dos afrodescendentes, dos povos indígenas, de orientação sexual,
consagrando, assim, o multiculturalismo. Outra característica importante do PNDH-2
é que sua aprovação se deu no último ano do segundo mandato do presidente
Fernando Henrique Cardoso (1994-2002). Sua implementação, então, incumbia ao
seu opositor, o presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010).
O PNDH-3 foi adotado pelo decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009,
que oficializou o Programa, dividindo-o em seis eixos orientadores, 25 diretrizes, 82
objetivos estratégicos e 521 linhas de ações. Sendo assim,
Esse detalhamento do PNDH-3 e a absorção de uma linguagem de
direitos humanos próxima das demandas da sociedade civil fizeram com
que seus enunciados fossem percebidos como sendo de iminente
implementação, o que a linguagem abstrata dos anteriores o havia
realçado. Essa sensação gerou ampla repercussão negativa na mídia
tradicional e em grupos organizados contrários a determinadas ideias
defendidas no PNDH-3, em especial no que tange à descriminalização do
aborto, laicização do Estado, responsabilidade social dos meios de
comunicação, conflitos sociais no campo e repressão política da ditadura
militar (CARVALHO RAMOS, 2011, 11.2.p. ).
A análise dos fundamentos propostos pelos três PNDH deixa visível a
sensação de retrocesso em relação às políticas de implementação. Os documentos
expressam a força de pressão do ativismo na promoção de renovações
epistemológicas, com vistas ao enfrentamento das vozes silenciadas, ao
implementar a luta pelo direito de ter direitos. Esses planos apontaram para a
necessidade de mudanças paradigmáticas consistentes no campo dos Direitos
Humanos, levando a um reposicionamento dos fundamentos da alteridade, da
humanidade e da universalidade.
É possível assinalar que, mesmo diante das violências perpetradas e
escancaradas por relatórios e estatísticas, sobre as formas de autoridade exercidas
durante o processo de formação socioeconômico e cultural que, por sua vez, são1
permeadas por conflitos e sofrimento impostos às camadas subalternas, os
documentos relativizam esses dados pelo discurso humanista e civilizatório das
instituições.
Os três documentos elaborados visam minimizar a recorrente privação de
direitos. Apesar da evolução registrada pelas políticas públicas de proteção, a luta
pela sobrevivência e reconhecimento ainda possuem ecos fortes no Brasil
contemporâneo, devido ao limitado acesso aos direitos e as violações da dignidade
recorrentes. A efetividade dos direitos humanos pode ser vista como possuidora de
duas faces: a oficial, projetada pela normatividade em construção; e a real, forjada
na pulsação de vida e na necessidade de domesticação dos corpos em movimento,
clamando por transformar-se em sujeitos de direitos. Nas disjunções morais e nas
contradições do projeto democrático, a força policial justifica a máxima de que ainda
é necessário incorporar a violência à legitimidade do Estado. Nesse sentido, o
sistema não necessita, para se viabilizar, contar com a lealdade de todos os que
estão a ele submetidos. Estes documentos, porém, precisam ser submetidos a um
escrutínio rigoroso de juristas, intelectuais e representantes da sociedade civil
organizada.
À guisa de conclusão
De tudo o que foi dito, seria consolador se Bobbio (1992, 2000) tivesse razão.
Ainda que seja difícil discordar do discurso dos direitos humanos, objeto de
soberana unanimidade entre juristas e intelectuais, não a sua efetivação é palco
de controvérsias, mas a sua própria fundamentação. Nesse sentido, a aplicação dos
direitos humanos é controversa, não por uma questão com viés político, mas
também teórico. Por exemplo, a tortura é proibida absolutamente. Talvez, seja o
único direito humano formulado em uma determinação absoluta, sem exceções.
Nem o direito à vida ou à igualdade tem tal status. No entanto, o que é torturar?
Quais atos são tortura e quais não são?
Considera-se que a formulação dos direitos humanos é indeterminada, como
mostra Douzinas (2000). Não é sem razão, portanto, que pululam teorias que visam
dar conta da aplicação dos direitos, especialmente os direitos humanos, como a
doutrina da ponderação de Alexy (2003), o interpretativismo de Dworkin (1996), a
teoria discursiva da adequação de Habermas (1997) e de Günther (1988). Ademais,
pode-se acrescentar a essa discussão a seguinte problemática: a natureza dos
direitos humanos é individual, grupal ou algo de toda a humanidade? Devido a isso,
as controvérsias sobre direitos humanos acabam sendo sempre resolvidas por
maiorias. Parece um desiderato das democracias ser sempre majoritárias e
representativas. Consoante, ainda que a jurisdição constitucional referente aos
direitos humanos pretenda ser contra majoritária, as decisões nos próprios tribunais
constitucionais são majoritárias. Dessa forma, permanece um desafio combinar de
forma adequada a decisão majoritária e a deliberação argumentativa a respeito das
controvérsias sobre os direitos humanos.
As narrativas sobre a crise do conceito de direitos humanos estão criando
campos semânticos como direitos fundamentais, direitos coletivos, direitos
individuais, em um movimento que aponta para a dificuldade de situar uma
fundamentação universal. Entendemos não ser possível realizar dicotomias entre
eles. nessas narrativas uma relação rizomática, que envolve enovelamentos,
entrelaçamentos e conexões. Mesmo reconhecendo a importância deste debate,
acrescentamos ser imprescindível, para além do falso dilema estrutura/mudança,
que os campos semânticos sobre os direitos humanos consigam contribuir para
revelar as materialidades das práticas recorrentes de crueldade, tortura, letalidade e
extermínios. É preciso reconhecer que os limites de interpretação do mundo são
atravessados por possibilidades de processos flexibilizadores, ocasionados por um
encontro entre narrativas e dados de realidade.
No Brasil real, construído por uma história com marcas profundas de
escravidão, violências, desigualdades sociais e regionais, são comuns as narrativas
documentais cujas versões enfraquecidas do conceito de direitos humanos,
descartam sua pretensão de universalidade. O grande desafio consiste em encontrar
um justo equilíbrio entre o protagonismo dos sujeitos sociais e as dinâmicas dos
acontecimentos. Talvez seja a Constituição Federal (1988), o locus privilegiado para
a obtenção de respostas concretizadoras, uma vez que, ela mesma, foi
transformada em um texto aberto, que permite interpretações e justificações de
respostas. Sendo assim, na direção do que argumenta Dworkin (1996), é necessário
combinar princípios jurídicos com objetivos políticos para indagar sobre uma
fundamentação possível para os direitos humanos.
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2021b.
SOBRE OS AUTORES
i Delamar José Volpato Dutra - Graduado em Filosofia
(UCS) e em Direito (UFSC), doutor em Filosofia pela
UFRGS, com estágio de doutorado na Université
Catholique de Louvain, Bélgica. Fez pós-doutorado na
Columbia University (New York) sobre a relação entre
Dworkin e Habermas. Fez também pós-doutorado na
Aberystwyth University (País de Gales, Reino Unido)
sobre o tema "Habermas's Critique of Kant and Hobbes".
É professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina, com atuação na
graduação, no Programa de s-graduação em Filosofia (nota 7) e no Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (nota 5). Foi membro da
Comissão Assessora da CAPES (Portarias nº 86/2017, n° 73/2020). Foi membro por
duas vezes da comissão de avaliação da CAPES para a área de Filosofia. Compôs
a diretoria da ANPOF e coordenou o GT Teorias da Justiça. É pesquisador do CNPq
desde 1999. Foi membro do CA-Filosofia/CNPq entre 2017 e 2020, tendo sido seu
coordenador no último ano. O projeto de pesquisa ora em curso versa sobre "O
direito à desobediência civil e a democracia deliberativa em Habermas". Pesquisa
sobre a fundamentação e a aplicação do direito, bem como sobre a relação entre
moral, direito e política. Publicou os livros "Razão e consenso em Habermas", "A
reformulação discursiva da moral kantiana" e "Manual de Filosofia do Direito".
ii Jovino Pizzi - Graduação em Filosofia e em Comunicação Social - Jornalismo;
mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI
(Espanha, 2002), onde foi pesquisador visitante por duas vezes (2005-2006 e 2007).
Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015). É professor da
Universidade Federal de Pelotas, PPGs em Filosofia e em Educação. De 2005 a
2018, coordenou a coletânea Diálogo Crítico Educativo, com o primeiro livro
publicado em 2008. O evento e a coletânea continuou nos anos seguinte. Em 2017,
publica-se o volume VIII. O destaque para essa atividade coletiva marca um esforço
constante e permanente de expandir contatos e relações entre pesquisadores e,
assim, o conjunto de textos da série reúne autores não só do Brasil, mas da América
Latina, Estados Unidos, Europa e da Oceania. No total, são mais de 120 autores
diferentes, uma interação entre distintos pesquisadores, significando mais de uma
década de diálogo, seja do âmbito nacional e internacional e, por isso, com
diferentes abordagens. A partir de 2018, passou a integrar o projeto do Observatório
Global de Patologias Sociais, integrando agora outros PPGs da UFPel. Nesse
projeto, é responsável pelo Seminário Avançado sobre Patologias Sociais, em três
edições (I, II e III), com estudantes de diversos cursos de pós-graduação da UFPel,
em consonância com o projeto CAPES/Print. Atualmente, é o Coordenador do
Observatório de Patologias Sociais, CAPES/Print. Com Maximilaino Censi,
organizou o Glosário de Patologías Sociales (2021), com 23 autores, de oito países,
e 15 instituições distintas. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-3722-7343.
iii Edna Gusmão de Góes Brennand - Professora Titular da Universidade Federal
da Paraíba. Realizou s-Doutorado nas seguintes Instituições: Université
Catholique de Louvain-UCL Bélgica ; Universidade de València, Espanha;
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT) Portugal . Possui
Doutorado em Sociologia - Université Paris I Panthéon Sorbonne . Mestrado em
Educação pela Universidade Federal da Paraíba. Atuou junto ao Groupe de
Recherches en Médiation des Savoirs (GReMS )du Centre de Recherche en
Communication de lUniversité Chatolique de Louvain e do grupo de Teoría Crítica da
Universidade de València. Coordena a Rede Interdisciplinar de estudos e Pesquisas
(RIEV) em parceria com a Universidade Federal da Santa Catarina (UFSC); a
Universidade de València e a Universidade Federal de Alagoas (UFAL);
Universidade Federal da Santa Maria (UFSM). Coordena o grupo de pesquisa
Cultura Digital, Violências e Educação. Seus atuais interesses de pesquisa estão
voltados para as abordagens interdisciplinares entre a cultura digital violências e
educação com destaque para: processos educativos e a construção dos direitos
humanos; Habermas e a educação; ação comunicativa e processos deliberativos;
práticas sociais e violências , net-ativismo, ação comunicativa e violências;
inteligência artificial, ecologias cognitivas e aprendizagem; ciberdemocracia e
cibercrimes. Consultora da CAPES e da Universidade Aberta do Brasil (UAB).
Membro do Conselho Científico do Instituto de Creatividad y Innovaciones
Educativas (IUCIE) da Universidade de València. Membro do Conselho Científico e
Pesquisadora do Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital (LAVID) da UFPB.
Membro do Comitê de Governança Digital da UFPB. Foi Coordenadora Técnica do
Projeto Africanidade desenvolvido na África em Cabo Verde e Guiné Bissau .
Coordenadora da Biblioteca Digital Paulo Freire (www.paulofreire.ufpb.br).
Idealizadora e Coordenadora Geral do Programa de Televisão ? Conexão Ciência?
TVUFPB canal 43. Foi Coordenadora dos Cursos de Mestrado e Doutorado em
Educação da UFPB, Coordenadora do Mestrado Profissional em Gestão nas
Organizações Aprendentes(MPGOA), Presidente do Fórum Nacional da Área de
Pedagogia CAPES UAB e Presidente do Fórum de Coordenadores de Pós-
Graduação do Norte e Nordeste.