CHARLES FELDHAUS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

COLETÂNEA COLÓQUIOS HABERMAS

VOLUME 4 – CHARLES FELDHAUS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rio de Janeiro

2023

© 2023 - Editora Salute.

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Autor: Charles Feldhaus.

Organização: Clóvis Ricardo Montenegro de Lima.

Editoração: Andreza dos Santos.

Capa:Tirza Cardoso.

Publicado no Brasil – 2023.

 

Caixa de texto: M52C

Feldhaus, Charles.
      Coletânea Colóquios Habermas, volume 4 : Charles Feldhaus[recurso eletrônico] /Charles Feldhaus ; Clóvis Ricardo Montenegro de Lima (org.) -- Rio de Janeiro : Salute, 2023.

      203 p.

      ISBN:978-65-89784-07-4.

1.	Habermas, Jurgen. 2. Filosofia. I. LIMA, Clóvis Ricardo Montenegro de. II. Título.


CDD: 193
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Ficha catalográfica elaborada na fonte por Andreza dos Santos – CRB 14/866.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

APRESENTAÇÃO

 

 

 

Neste ano de 2023 em que o Colóquio Habermas chega a sua 19ª edição, os seus organizadores estão iniciando a publicação de uma coleção de coletâneas de artigos por autores individuais e temas específicos. Cabe recordar que o Colóquio Habermas é sempre organizado em torno de tema central genérico.

O Colóquio Habermas é um evento que foi idealizado e criado pelos professores da Universidade Federal de Santa Catarina Alessandro Pinzani e Delamar Dutra em 2005. Os Colóquios funcionam como espaço de divulgação e discussão do pensamento do filósofo alemão Jurgen Habermas.

A coleção de Coletâneas de artigos apresentados no Colóquio Habermas inicia com a publicação dos trabalhos de professor Jovino Pizzi, da Universidade Federal de Pelotas. Outras coletâneas serão publicadas, no sentido de ampliar a divulgação dos artigos, no espírito livre da licença Creative Commons.

Esperamos com esta coleção contribuir para a maior difusão e a melhor recepção da obra de Habermas, segmentada entre autores com diferentes leituras e experiências. A diversidade temática aponta para as múltiplas possibilidades de fundamentação e de aplicação com a obra de filósofo, particularmente dedicado a guinada epistemológica com a teoria de agir comunicativo e a razão prática da ética e da política.

A discussão ética e política é extremamente relevante e pertinente neste contexto em que o Brasil vive a sua reconstrução racional após seis anos de obscurantismo de um golpe parlamentar e um governo de extrema-direita. Precisamos de amplo entendimento democrático para orientar e sustentar a construção de uma sociedade justa, livre, igualitária e sustentável.

Rio de Janeiro, 22 de agosto de 2023.

 

Clóvis Ricardo Montenegro de Lima

Organizador

 

 

 

PREFÁCIO

 

 

Comecei a dedicar-me ao pensamento de Jurgen Habermas desde a graduação em filosofiana Universidade Federal de Santa Catarina, com mais ênfase durante o meu curso de doutorado em filosofia na mesma universidade, em que meu principal objeto de pesquisa era a visão do filósofo e sociólogo alemão a respeito da biotécnica. Durante o meu curso de doutorado foi realizada a primeira edição do Colóquio Habermas em Florianópolis e o que apresentei naquela oportunidade é o primeiro capítulo da presente coletânea. Depois disso participei de algumas edições do Colóquio Habermas no Rio de Janeiro, até que em 2011 realizei uma edição do evento na Universidade Estadual de Londrina, universidade em que comecei a trabalhar em 2009. Depois disso o evento foi realizado ano após ano no Rio de Janeiro e participei de todas as edições do evento até agora organizadas e os textos que foram apresentados na forma de conferências e publicados estão reunidos nesta coletânea. Os textos a seguir concentram-se primeiramente em temas relacionados com a minha tese de doutorado, como a concepção de liberdade habermasiana na obra O futuro da natureza humana e sua relação com a concepção de Immanuel Kant na Crítica da razão pura. Uma questão que surgiu durante minha pesquisa no doutorado estava relacionada com o conceito de saúde e doença que estaria pressuposto no argumento de Habermas em O futuro da natureza humana contra a eugenia liberal e por isso adentrei num dentro dentro da sociologia da saúde e da doença buscando situar a visão de Habermas entre dois extremos no campo de estudo, o que em parte está publicado no segundo texto da coletânea. Outro tema que tenho me devotado significativamente nos últimos anos é a expansão do projeto de democracia deliberativa de Habermas em Facticidade e validade à esfera internacional e um dos primeiros textos em que ele realiza esta expansão é um estudo em que avalia o projeto kantiano de uma paz mundial após 200 anos de publicação e o que realizo no terceiro texto é um análise do que Habermas diz sobre isso. É importante observar que a recepção de À paz perpétua de Kant ainda é um tema que me ocupa ainda hoje, uma vez que meu atual projeto de pesquisa consiste na tradução da recepção do opúsculo kantiano até 1800 por seus contemporâneos e na publicação de textos relacionados com a temática. Após a defesa da minha tese e com mais tempo para pensar na posição de Habermas a respeito da eugenia liberal, percebi que algumas suposições da posição do pensador poderiam ser questionadas e uma das quais exploro no quarto texto a seguir. Algum tempo depois me dediquei algum tempo à concepções éticas baseadas na biologia evolutiva, como a de Allan Gibbard e como Habermas trata da concepção de Gibbard em A inclusão do outro dediquei algum tempo a analisar o que ele pensava sobre tentativas de explicar a moralidade da perspectiva do observador como a da biologia e o resultado é o que está publicado no quinto texto da coletânea. O texto a seguir trata do conceito de desobediência civil de Habermas em A nova obscuridade e em Facticidade e validade reconstruindo o pano de fundo da discussão, que foi a instalação de mísseis nucleares em território alemão e foi impulsionado pela discussão dos limites da liberdade de expressão no Brasil num momento em que já se começava a perceber no país uma tentativa de criminalizar os movimentos sociais e desenvolvi tal pesquisa buscando encontrar parâmetros para distinguir manifestações legítimas de manifestações não legítimas, entre atos políticos em prol de uma sociedade mais justa e atos criminosos. Outra questão que começou a me preocupar nos anos seguintes foi a natureza dos direitos humanos e o realismo político, razão pela qual eu procurei entender de que maneira a teoria discursiva de Habermas poderia responder às críticas de Hannah Arendt e dos realistas políticos de que os direitos humanos não protegem todos os seres humanos e que tais direitos podem servir para um uso ideológico que pode inclusive justificar a violência sem  limites, por isso busquei mostrar que o modelo discursivo de direito internacional poderia lidar de maneira adequada com tais objeções. Orientei algumas dissertações de mestrado no pensamento de Axel Honneth nos anos seguintes e por causa disso comecei a me devotar a relação entre o pensamento de Habermas e o pensamento de Honneth. Por isso os oitavo e nono textos da coletânea buscam mostrar como Habermas e Honneth enfrentam as demandas por reconhecimento de identidades ou as demandas culturais como às vezes são chamadas. Um dos textos publiquei em coautoria com Juliana Marques Saraiva, que realizou a tradução do debate entre Axel Honneth e Nancy Fraser ao portugues como parte de sua dissertação de mestrado. Em meu estudo solo procurei mostrar que Habermas entende, contra Charles Taylor, que não seria preciso criar uma nova categoria de direitos culturais para enfrentar as novas demandas por reconhecimento de identidades, mas apenas melhor interpretar tais demandas à luz dos direitos individuais. Entendo que a aproximação de Habermas ao pensamento de Honneth não deixou de ter efeitos e uma das consequências me parece ser a discussão dos direitos humanos de uma perspectiva genealógica à luz do conceito de dignidade humana e isso é o que abordo no décimo texto. A relação com Honneth também acarretou consequências ao pensamento do defensor do modelo do reconhecimento e por isso ele escreveu um texto em resposta ao capítulo de A inclusão do outro que trata de três conceitos normativos de democracia e entender a nova proposta de democracia radical de Honneth foi o foco do décimo primeiro texto da presente coletânea. O texto seguinte foi publicado com Ana Flávia Rossi que orientei em seu trabalho de conclusão de curso no curso de direito da Universidade Estadual de Londrina e é dedicado ao conceito de razão pública em Rawls. Os dois últimos textos da coletânea foram escritos durante as edições que ocorreram durante a pandemia de COVID 19 e tratam da aplicação do arcabouço teórico de Habermas aos desastres e às pandemias, uma vez que uma pandemia por definição é um tipo de desastres. Em ambos os textos sustenta-se que o modelo de democracia deliberativa de Habermas é adequado para enfrentar eventos de pandemia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

 

Capítulo I

 

A CONCEPÇÃO DE LIBERDADE EM HABERMAS: UM CONTRASTE COM KANT   10

Charles Feldhaus.

 

Capítulo II

 

HABERMAS E A SOCIOLOGIA DA SAÚDE.. 28

Charles Feldhaus.

 

Capítulo III

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE HABERMAS E O PROJETO KANTIANO DE UMA PAZ PERPÉTUA   40

Charles Feldhaus.

 

Capítulo IV

 

TERIA HABERMAS RECORRIDO A UMA SUPOSIÇÃO DWORKIANA EQUIVOCADA EM DIE ZUKUNFT DER MENSCHLICHEN NATUR?. 44

Charles Feldhaus.

 

Capítulo V

 

HABERMAS E O EXPRESSIVISMO DE NORMAS DE ALLAN GIBBARD.. 60

Charles Feldhaus.

 

Capítulo VI

 

HABERMAS E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL.. 73

Charles Feldhaus.

 

Capítulo VII

 

A RESPOSTA DE HABERMAS À CRÌTICA DE ARENDT À NOÇÃO DE   DIREITOS HUMANOS  90

Charles Feldhaus.

 

Capítulo VIII

 

HABERMAS, ESTADO DE DIREITO E POLÌTICA DO RECONHECIMENTO.. 105

Charles Feldhaus.

 

Capítulo IX

 

AS DEMANDAS POR RECONHECIMENTO EM JURGEN HABERMAS E        AXEL HONNETH   117

Charles Feldhaus.

Juliana Marques Saraiva.

 

 

Capítulo X

 

A CONCEPÇÃO GENEALÓGICA HABERMASIANA DOS DIREITOS HUMANOS. 128

Charles Feldhaus.

 

Capítulo XI

 

O QUARTO CONCEITO DE DEMOCRACIA RADICAL DE AXEL HONNETH.. 138

Charles Feldhaus.

 

Capítulo XII

 

A IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA SEGUNDO JOHN RAWLS. 147

Ana Flávia Rossi.

Charles Feldhaus.

 

Capítulo XIII

 

A ESFERA PÚBLICA COMO MODELO NORMATIVO DE TOMADA DE DECISÃO EM DESASTRES  162

Charles Feldhaus.

 

Capítulo XIV

 

CRISE DE LEGITIMIDADE E PANDEMIA EM HABERMAS. 174

Charles Feldhaus.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO I

 

 

 

 

 

 

 

 

 


A CONCEPÇÃO DE LIBERDADE EM HABERMAS: UM CONTRASTE COM KANT

 

Charles Feldhaus[i]

 

Es liegt nahe, die bioethische Debatte über mögliche Folgen des technischen Eingriffs in das menschliche Genom im Licht der Dialektik der Aufklãrung zu betrachten; denn darin geht es auch um Grenzen einer praktischen Verfügbarmachung der subjektiven Natur. (HABERMAS, J. ZNR, 2005, 207)

 

INTRODUÇÃO

 

A posição habermasiana é freqüentemente vinculada e, ás vezes até considerada, herdeira da filosofia de Kant sobre vários aspectos, contudo, a conferência principal sobre a eugenia liberal veio explicitar mais algumas diferenças e semelhanças entre estes dois pensadores. No que diz respeito à concepção normativa exposta por Habermas em Die Zukunft der menschlichen Natur, é possível identificar semelhanças entre os posicionamentos de Kant em relação ao dever de beneficência e o dever indireto para com a parte irracional da natureza, os animais[1]. Mas, no que diz respeito à liberdade, o tópico principal do presente estudo, convém ressaltar que Kant, em particular na Crítica da Razão Pura, defende uma noção de liberdade transcendental, ás vezes até é acusado de se comprometer com um tipo de dualismo ontológico. Para Kant, a liberdade é um pressuposto necessário da razão para que ela possa ser pensada como prática. Na Critica da Razão Pura, Kant tenta apenas mostrar que a liberdade não é impossível de ser pensada e consiste apenas numa idéia regulativa e não constitutiva, na Crítica da Razão da Prática, Kant tenta mostrar que a validade da noção de liberdade é imanente ao prático e nesse campo tem realidade objetiva demonstrada por um Faktum der Vernunft. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant apresenta um argumento de bi-implicação entre liberdade e moralidade. Convém ressaltar ainda que na Religião dentro dos limites da simples razão, Kant apresenta uma concepção de liberdade claramente distinta da noção de liberdade moral com que parecia estar mais diretamente preocupado nos dois últimos textos supra citados. Esta concepção de liberdade enfatiza a necessidade da razão na determinação da eficácia causal de tudo aquilo que se inclui no termo kantiano ‘inclinação’. Esta última noção de liberdade, por sua vez, é eminentemente neutra moralmente uma vez que relaciona a escolha livre do arbítrio do ser humano com a determinação ou causação de suas ações.[2]Habermas, por sua vez, sustenta, com correção, que a biotecnologia moderna está transformando algo que na filosofia de Kant era uma pressuposição transcendental em uma noção totalmente destranscendentalizada. Ela está tornando disponível aquilo que era, até então, indisponível. A liberdade deixa de ser uma propriedade de ‘seres inteligíveis em um mundo númenico’ para tornar-se uma propriedade de seres humanos na medida em que não tem seu patrimônio genético manipulado.

Embora existam certas divergências quanto ao estatuto da liberdade entre Habermas e Kant no que diz respeito ao texto O Futuro da Natureza Humana. A caminho da eugenia liberal? E as principais obras, nas quais Kant aborda tal tema, é inegável a influência kantiana nesse próprio texto em vários aspectos. Primeiramente, Habermas parte da distinção entre justo e bem, uma distinção cuja autoria é constantemente atribuída à Kant[3], além disso, ele recorre aos valores da universalidade e do respeito à humanidade da pessoa humana ou da pré-pessoa no caso do embrião ao avaliar esta nova tecnologia.

 

O CONTRASTE PROPRIAMENTE DITO

 

Habermas seria devedor da ética de Kant quando afirma que a biotecnologia moderna, em alguns de seus usos, seria um tipo de instrumentalização da pessoa humana ou da vida humana do individuo geneticamente manipulado. Consistiria em um tipo de atitude para com a pré-pessoa do embrião a ser geneticamente modificado semelhante à atitude que empreendemos quando lidamos com objetos não portadores do direito de respeito e consideração, a saber, (no jargão kantiano) não dotados de ‘dignidade’. Habermas vai mais longe, em seu kantismo, ao adotar inclusive a distinção tratar ‘como um meio’ e ‘tratar apenas como um meio’. O primeiro tipo de tratamento não é necessariamente imoral, mas sim, o segundo, uma vez que o agente não adota a perspectiva de consideração e respeito pelos fins ou intenções da outra pessoa (no caso a pessoa do embrião), mas o trata como um objeto (HABERMAS, 2001, 97). E essa é a idéia central do princípio moral kantiano que “exige de cada um que renuncie à perspectiva da primeira pessoa em favor de uma perspectiva do ‘nós’, partilhada intersubjetivamente” (HABERMAS, 2001, 97). Habermas, nessa passagem, inclusive cita a própria formula da humanidade kantiana na integra e, sustenta, com base nela, a necessidade de adotar uma perspectiva inclusiva para com o embrião a ser fertilizado. É preciso dar voz no discurso prático aos concernidos, e neste caso uma vez que é impossível um diálogo real com a pessoa futura em que o embrião se tornará, se faz necessário imaginar-se no lugar do mesmo e tentar concluir que tipos de intervenções seriam ou não aceitas.

Habermas concorda com a filosofia kantiana também ao vincular a justificação ou não da imputabilidade das ações humanas a certa identidade ou continuidade auto-imposta pelo indivíduo. Kant, na Religião dentro dos limites da simples razão, sustenta que as ações humanas são imputáveis e, por isso, possíveis de se atribuir responsabilidade por poderem ser atribuídas a um caráter inteligível de escolha de máximas. Contudo, a natureza do ato tem status diferente nos dois, uma vez que Habermas parece entendê-lo de modo destranscendentalizado e Kant, por sua vez, de modo transcendental.[4]Habermas inclusive sustenta que a biotecnologia moderna tem implicações para imputabilidade e a atribuição de responsabilidade, pois a pessoa geneticamente modificada poderia ser incapaz de realizar uma ‘autocompreensão revisória’ e incluir as intenções alheias presentes na manipulação em seu ‘poder ser si mesmo’ (Kierkgaard). Por causa disso, a disputa entre Habermas e Dworkin poderia em parte ser considerada uma discussão acerca dos efeitos da biotecnologia moderna às liberdades individuais, cuja solução, em parte, depende da possibilidade ou não de harmonização entre as intenções alheias e as próprias. A possibilidade de haverem casos dissonantes leva Habermas a jogar o ônus da prova para quem defende a tecnologia além do clínico ou corretivo (HABERMAS, 2001, 106).

A discussão desse ponto suscita a questão das semelhanças e diferenças entre a educação e a manipulação genética. Segundo Habermas, a manipulação genética não abre espaço de comunicação nos moldes de uma segunda pessoa, o que a impede de compreender-se como única autora de seu projeto de vida. Nem toda atitude instrumental é moralmente censurável, apenas aquela que trata a pessoa humana ‘apenas como um meio’. A impossibilidade de harmonizar intenções do que realiza a manipulação genética e do geneticamente modificado pode ser um problema não apenas para a eugenia positiva, mas também, para aquela que visa à correção genética. Ainda mais se supõe como o faz Habermas, que é difícil saber até mesmo se uma correção genética seria ou não aceitável pela pessoa manipulada.

Habermas tratando da relação entre a estrutura discursiva da racionalidade e da liberdade, em Wahrheit und Rechtfertigung, define e diferencia a liberdade:

 

A auto-relação prático moral do agente que atua comunicativamente exige uma atitude reflexiva em relação às próprias ações reguladas por normas, do mesmo modo que a auto-relação existencial exige uma atitude reflexiva em relação ao próprio projeto de vida no contexto de uma história individual entrelaçada com formas de vida coletivas já dadas. Que uma pessoa, nessas distintas dimensões, possa distanciar-se de si mesma e de suas manifestações é, além do mais, uma condição necessária da liberdade (HABERMAS, 2005,?).

 

Habermas identifica a atitude reflexiva como conditio sine qua non da ação livre independentemente da esfera à que ela se aplique. As esferas citadas por Habermas são: liberdade de reflexão (teórica), liberdade do arbítrio (pragmática), liberdade da vontade (moral) e liberdade ética (ética). Kant, por sua vez, trata do tema da liberdade da Wille e da Willkür em diversas obras, entre as quais é conveniente ressaltar a Critica da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática, a Critica do juízo, A Fundamentação da Metafísica dos Costumes (MS), Metafísica dos Costumes e A Religião dentro dos limites da simples razão. Na primeira Critica, Kant trata da liberdade no Cânon enquanto um problema de filosofia prática e no terceiro conflito transcendental como um problema cosmológico; na segunda Critica, Kant trata da liberdade na analítica como dotada de realidade objetiva imanente ao prático e intimamente relacionada com o Faktum der Vernunft ao passo que na dialética ela se torna um dos postulados da razão pura prática; na Fundamentação, ele trata da liberdade como co-dependente ou recíproca com o principio supremo da moralidade, a saber, o imperativo categórico; na MS, a liberdade é abordada da perspectiva político-jurídica liberal; na Religião, finalmente, Kant empreende um esclarecimento e um nítido deslocamento entre dois sentidos da liberdade atribuídos respectivamente a duas faculdades volitivas ou do querer, a saber, a Wille e a Willkür. Liberdade como autonomia é uma propriedade da Wille e a liberdade como um tipo de espontaneidade prática consiste em uma propriedade da Willkür.

Ao tratar do problema da liberdade, Habermas retoma o debate entre Adorno e a filosofia prática kantiana, embora os apontamentos habermasianos a respeito da liberdade em Kant dirigem-se particularmente a concepção de liberdade kantiana desenvolvida na Critica da Razão Pura e particularmente a terceira antinomia da razão pura. Ao fazer essa ressalta, quanto ao foco dos apontamentos de Habermas a respeito do tratamento da liberdade em Kant, não se pretende nem realizar nenhum juízo de valor a respeito das considerações habermasianas, mas apenas delimitar o escopo de sua discussão claramente.

Para reconstruir a visão habermasiana acerca da liberdade focar-se-á na conferência principal de Die Zukunft der menschlichen Natur (ZMN) e Zwischen Naturalismus und Religion (ZNR), no que diz respeito a este último livro principalmente os capítulos 6 – Liberdade e Determinismo (ZNR6) e 7 – ‘Eu mesmo sou um bocado de natureza’ – Adorno sobre o enlaçamento entre razão e natureza. Considerações sobre a relação entre liberdade e indisponibilidade (ZNR7). Em ZMN, Habermas deriva algumas conseqüências dos avanços tecnológicos no campo da engenharia genética para a questão filosófica da liberdade, se bem que ele oscile quanto ao que entende por liberdade neste texto. Em ZNR6, ele critica as estratégias reducionistas a respeito da liberdade da vontade discutindo os experimentos de Libet evidenciando a herança epifenomenalistas destas abordagens e tenta avaliar o debate da liberdade da vontade concentrando-se na questão a respeito da correta maneira de naturalização do espírito humano. A questão a respeito da correta naturalização do espírito humano tem implicações normativas para o debate bioético alvo central do presente estudo, pois a engenharia genética implica certa compreensão da mente humana naturalista da qual Habermas discorda e remete a posições criticas anteriores de Habermas relacionadas com a crescente dominação da razão instrumental e da técnica nas sociedades complexas contemporâneas. Essa tendência precisa ser freada ou ao menos limitada, para Habermas. A relação intima entre a crítica de Habermas em relação à eugenia liberal e sua posição anterior a respeito da ciência e da técnica fica mais evidente quando este retoma o debate empreendido por Adorno com a filosofia kantiana, no qual a noção corpo, fundamental em sua objeção à eugenia positiva, ocupa papel predominante na concepção de liberdade condicionada e encarnada na natureza adorniana. Em ZNR7, Habermas reconstrói o debate de Adorno com a filosofia kantiana no que diz respeito à liberdade da vontade, introduz um conceito fenomenológico de liberdade condicionada e enraizada na natureza e por fim retoma o debate a respeito da eugenia liberal à luz destas considerações.

Em ZNR6, Habermas discute as implicações filósofos para a temática da liberdade da vontade de tentativas de explicação reducionista da liberdade da vontade e sua respectiva tese de que a liberdade da vontade constitui um tipo de auto-engano. Ele busca mostrar que as tentativas reducionistas não são bem sucedidas à medida que não cumprem aquilo que prometem e, além disso, sua tentativa de naturalizar a mente ou espírito humano é inconciliável com a auto-compreensão cotidiana de sujeitos capazes de agir, o que ele evidencia pelo exame pragmático dessa auto-compreensão intuitiva. Outro problema apontado por Habermas com as tentativas de reduzir a mente naturalisticamente é que elas não evitam as dificuldades do dualismo ontológico, do qual Kant é acusado, sem que se comprometam com algum tipo de epifenomenalismo. Além disso, para Habermas, tais posições não fazem jus à evidência de nossa consciência que acompanha performativamente nossas ações, a saber, à nossa consciência da liberdade da vontade. Deste modo, ele propõe um naturalismo fraco ou mitigado, não cientificista, a fim de lidar com as dificuldades inerentes ao problema da vontade livre.[5]

Diferentemente de Kant, Habermas entende a liberdade à luz não da filosofia da consciência, mas sim partindo do linguistic turn empreendido na filosofia por Wittgenstein. Conseqüentemente, a liberdade não consiste numa propriedade de sujeitos capazes de conhecer e agir de modo monológico e solipcista, supostamente comprometidos com algum tipo de linguagem privada, mas sim o resultado de um processo entre sujeitos dialógico. Por esta razão, a liberdade é fortemente vinculada por Habermas à capacidade de argumentar. Para Habermas, também a liberdade e a imputabilidade tem um escopo mais amplo do que na visão de Kant, pois se aplicam não apenas a ações morais propriamente ditas, mas a vários tipos de ações tais como ações instintivas, habituais, episódicas, etc. Desde que “todas as ações realizadas conscientemente podem ser examinadas retrospectivamente, tendo em vista sua imputabilidade” (HABERMAS, 2005, 160).

O tratamento habermasiano do tema da liberdade pretende obstaculizar a concepção naturalista cientificista. Para Habermas, a pretensão cientifica de naturalizar a mente e a própria liberdade assim como projetos científicos com implicações similares tal como a engenharia genética e sua pretensão de gerar seres humanos ao modo de um supermercado genético compartilham uma concepção de fundo equivocada. Por isso, para Habermas, não é que “todas as operações do espírito dependem de um substrato orgânico (...) o motivo da controvérsia tem a ver, antes, com o modo correto de naturalização do espírito (...) tem de fazer jus (...) ao caráter normativo de suas operações orientadas por regras” (HABERMAS, 2005, 7).

Em sua conferência sobre a eugenia liberal, Habermas tece várias considerações a respeito da questão filosófica fundamental acerca da liberdade. A consideração de fundo mais importante talvez seja a contida na seguinte passagem em que se refere à filosofia de Kant:

 

Aquilo que Kant incluíra no ‘reino da necessidade’ transformouse com a visão teórico-evolucionista num ‘reino do acaso’. A técnica genética está deslocando a fronteira entre essa base natural indisponível e o ‘reino da liberdade’. A distinção entre essa ‘ampliação da contingência’, relativa à natureza interna, e as ampliações semelhantes da nossa margem de opção está na circunstância de a primeira ‘modificar a estrutura geral da nossa experiência moral’. (HABERMAS, 2001, 52)

 

Em outras palavras, os efeitos da engenharia genética para o tema da liberdade são tão catastróficos, que poderia ser incluído entre eles a modificação da estrutura geral de nossas convicções normativas modernas. Os efeitos, a esta estrutura, vão desde o deslocamento da esfera de livre atuação humana, geralmente situada entre necessidade e contingência, acaso e natureza, etc. até implicações mais especificas como a necessidade de alterar a maneira como é compreendida a responsabilidade num contexto em que a eugenia liberal se tornasse algo corriqueiro.

Quanto à eugenia liberal, Habermas sustenta que a liberdade envolvida na eugenia não é a liberdade reprodutiva e sim a liberdade ética da pessoa geneticamente manipulada. Embora se tenha que reconhecer que essa tese de Habermas é dotada de um calcanhar de Aquiles consequencialista, como ressaltou Kersting (KERSTING, 2005, 95), porque depende da comprovação de nexos causais controversos. Entretanto, além de excluir a liberdade reprodutiva do foco central do debate bioético a respeito da eugenia liberal, Habermas também, mesmo que ainda na esteira da filosofia kantiana, distancia-se da concepção de liberdade de Kant, ao torná-la dependente do substrato orgânico e do corpo.

Mas, mesmo distanciando-se de Kant em alguns aspectos, Habermas ainda permanece preso à intenção transcendental de Kant, quando busca encontrar base pragmática e indiscutível para a liberdade. A liberdade, ao menos a normativamente entendida, apresenta-se como uma das condições de possibilidade do uso da linguagem direcionada ao entendimento, se bem que apenas da perspectiva do participante e não do observador. A liberdade assim compreendida exige permitir todos os concernidos pela norma controversa ter voz, contudo, essa regra estaria sendo violada pela prática da eugenia, uma vez que “os programas genéticos não dão a palavra aos nascidos” (HABERMAS, 2001, 123).

Habermas situa o debate entre determinismo e liberdade na questão da maneira correta de naturalizar o espírito. Para Habermas, a vinculação com argumentos é a característica distintiva da ação livre (HABERMAS, 2005, 159). Além disso, liberdade para Habermas assim como para Kant não é uma liberdade no vazio ou de indiferença. Para Kant, a vinculação com máximas de conduta é conditio sine qua non da determinação da ação por móbeis ou motivos (tese da incorporação). [6] Para Habermas, a ponderação de argumentos é a conditio sine qua non da liberdade e da causação implicada nela. Tanto Kant quanto Habermas parecem compreender a liberdade como um tipo de causalidade da vontade. Ou seja, “o momento da abertura da decisão não exclui sua ‘condicionalidade’ racional” (HABERMAS, 2005, 161). Kant entende que a liberdade embora exija a independência causal de eventos anteriores na determinação da vontade na realização da ação, não exclui algum tipo de causação, pois exige a causação por liberdade. A liberdade ainda é orientada por regras, mas não pela natureza. É necessária a independência motivacional para Kant, para a liberdade ser salva, e não a independência de qualquer tipo de lei. A liberdade consiste na autoimposição de leis ou regras de conduta. Habermas também parece compreender a liberdade como auto-imposição de mediante o uso discursivo da razão, entretanto, ele reconhece ser difícil entender o papel dos argumentos na motivação da ação se o modelo de causação for o mesmo das ciências naturais, a saber, por um estado anterior (HABERMAS, 2005, 161). Por isso, para ele, as concepções reducionistas que tentam derivar todos os processos mentais de influências causais recíprocas e ignoram o papel dos argumentos nas ações por liberdade são tão dogmáticas como as posições idealistas. É preciso reconhecer que a esfera da cultura e da sociedade influencia nos processos mentais e consequentemente nas ações livres (HABERMAS, 2005, 170). Habermas considera mais atraente um dualismo de perspectivas que subtrai a liberdade da perspectiva das ciências da natureza, mas não da perspectiva da teoria da evolução natural. Ele pretende conciliar as intuições normativas kantianas a respeito da liberdade da vontade com a teoria darwiniana da seleção natural e com a conseqüente explicação evolutiva do surgimento das faculdades humanas que permite aos seres humanos moralizar e atribuírem se mutuamente liberdade e responsabilidade. Entretanto, ao contrário do que Kant, a liberdade da vontade não é algo transcendental, mas “deve ter sido fruto de um processo de aprendizado evolucionário e deve ter conseguido comprovarse na disputa cognitiva do homo sapiens com os desafios de um entorno repleto de riscos” (HABERMAS, 2005, 171).

Habermas recorre à diferença na adoção de papéis que ocupamos ao buscar aprender algo a respeito do mundo para explicar melhor o seu dualismo. A perspectiva do observador e a perspectiva do participante, que são as duas abordagens distintas sob as quais podemos apreender algo sobre o mundo, a da ciência e a de participantes em práticas sociais e comunicativas. Para ele, “as condições de entendimento, as quais são acessíveis apenas performativamente, isto é, na visão de participantes de práticas de nosso mundo da vida, não podem ser alcançadas cognitivamente com meios das ciências naturais, ou seja, não podem ser objetivadas completamente” (HABERMAS, 2005, 175). A liberdade inclui-se nessa categoria também, pois não é acessível da perspectiva do observador.

Habermas trata do tema da liberdade à luz das considerações adornianas acerca do mesmo tema. Segundo Habermas, Adorno discutindo com a solução kantiana à terceira antinomia da razão pura recusa a solução idealista e sugere uma materialista compreendida como a pesquisa causal das patologias sociais nas quais se manifesta uma supressão estrutural da liberdade (HABERMAS, 2005, 199-200). A discussão habermasiana da posição adorniana evidencia a origem da terminologia ‘natureza interna’ e ‘natureza externa’ utilizada por Habermas em Die Zukunft der menschlichen Natur na avaliação da eugenia liberal. Distinção naquela oportunidade apenas utilizada, mas não quer justificada quer explicada. É interessante ressaltar que Habermas ao discutir novamente esta distinção reconhece que nela está implícito algum tipo de resquício de uma normatividade jusnaturalista discreta.

No caso da eugenia liberal, Habermas identifica aquilo que Adorno sob influência de Benjamin e Luckacs denomina de natureza exterior com o corpo (Körper) embrionário de uma pessoa futura e natureza subjetiva como o organismo desenvolvido a partir do embrião, ou seja, o soma (Leib). O tópico da distinção entre estes tipos de natureza tem como pano de fundo a temática mais ampla pertencente à escola de Frankfurt da critica ao domínio crescente da razão instrumental nas sociedades contemporâneas. O incremento da dominação por parte do ser humano mediante avanço científico da natureza tem como contraparte a diluição da natureza subjetiva dos seres humanos. A intervenção genética que visa ao aperfeiçoamento genético diluiria a autocompreensão normativa e ética que de certo modo constitui essa natureza subjetiva de sujeitos modernos capazes de agir e julgar moral e juridicamente.

Em ZMN, a noção de liberdade em Habermas assume diversos significados, uma vez que o herdeiro da Escola de Frankfurt oscila em diferentes níveis de reflexão ao tratar do intrincado tema da eugenia liberal. Num nível mais abstrato, a liberdade assume o sentido de uma esfera de ação em que o homem é capaz de agir com independência da necessidade natural, do destino ou até mesmo do acaso. Liberdade é uma atitude de auto-reflexão diante da necessidade causal e dos condicionamentos externos. Esse sentido parece estar presente no momento em que Habermas retoma o insight dworkiano que a engenharia genética torna disponível aquilo que até então era fruto do acaso ou destino, por isso não livre. Liberdade é ai entendida como escopo de atuação da intervenção humana. Num outro nível, no que diz respeito aos efeitos da intervenção genética à estrutura normativa da sociedade democrática liberal moderna, a liberdade assume um sentido normativo. A liberdade é entendida aqui como propriedade de todos os cidadãos das sociedades democráticas contemporâneas. Sentido eminentemente normativo do termo. É uma norma, uma orientação geral de conduta dirigida e atribuída a todos os membros da comunidade a de respeitar e ter respeitado a liberdade. Todavia, num outro nível ainda, mas ainda referida aos cidadãos ou futuros cidadãos das sociedades democráticas contemporâneas assume a liberdade um sentido quase físico. Habermas entende que a manipulação genética que adentra no terreno dos conteúdos das concepções racionais de vida da pessoa futura são nãopermissíveis e até devem ser proibidas. A exigência de respeitar este tipo de concepção das pessoas, o direito às liberdades privadas ou subjetivas burguesas, é sem soma de dúvida normativa, entretanto a caracterização da manipulação genética que visa ao aperfeiçoamento como uma limitação, um fato que se torna um obstáculo ao espaço de livre atuação da pessoa futura, sugere uma base física ao uso da liberdade. Deste modo, diferentemente de Kant, para Habermas, a liberdade é destranscendentalizada e recebe até mesmo uma base física. O corpo e o soma são para ele a base física da liberdade. Base esta que deve permanecer indisponível à intervenção humana.

É possível identificar uma lacuna na estratégia argumentativa habermasiana. Essa lacuna pode ter sido o motivo de certa linha de objeções à estratégia habermasiana em ZMN, a saber, a objeção de certo comprometimento do filósofo com a sacralização da natureza humana. Assumindo que o corpo e a soma é a base do uso ético da liberdade ainda é preciso mostrar que apenas a eugenia positiva é questionável, caso contrário se incorre na posição que a naturalidade do patrimônio genético é valiosa em si mesma. Habermas recorreu ao critério do consentimento presumido. O problema é que Habermas parece estar extrapolando usando a noção de corpo como uma noção normativa, quando ela parece figurar mais adequadamente como uma questão fática. É um fato, uma questão discutível pela ciência, se o corpo delimita ou não o escopo de atuação do indivíduo. Portanto, essa é uma tese sobre fatos e não sobre normas e valores. Contudo, é evidente que se o corpo limita o escopo de ação e ação humana pode intervir na determinação do corpo, pelo critério normativo da não intervenção na liberdade ética, a prática pode ser proibida.

Habermas acredita haver um parentesco entre suas pressuposições idealizadoras fundadoras da ética discursiva e os conceitos ou idéias transcendentais kantianas. À idéia cosmológica da unidade do mundo de Kant, corresponde à suposição pragmática de um mundo objetivo comum existente independente da mente; à idéia transcendental e postulado da liberdade de Kant, corresponde a suposição pragmática da racionalidade dos atores imputáveis; ao movimento totalizador ou a visão da razão como faculdade unificadora, corresponde à incondicionalidade das pretensões de validade no agir comunicativo; à visão da razão como tribunal, corresponde ao discurso racional enquanto fórum iniludível das justificações possíveis (HABERMAS, 2005, 135).

Na terceira antinomia da razão pura, Kant busca refutar a posição que defende o monopólio explicativo causal da causalidade segundo leis naturais buscando evidenciar que a liberdade embora não teoricamente suscetível de ser conhecida pode, contudo ainda ser sustentada ser possível ou ao menos não impossível de ser pensada. [7]Por conseguinte, o resultado da reflexão kantiana na primeira critica tem efeito apenas negativo, ou seja, em nada estende o conhecimento do supra-sensível evidenciando a possibilidade da liberdade como um tipo de causalidade. Na segunda Critica, por sua vez, Kant empreende uma extensão se não do conhecimento ao supra-sensível ao menos do uso das categorias defendendo um acesso a um objeto supra-sensível no campo teórico, mas imanente à perspectiva prática. A liberdade é com a lei moral evidenciada e postulada pela lei moral como um fato da razão.

A proposta habermasiana em Liberdade e Determinismo busca fazer jus à evidência incontestável da intuição da liberdade que acompanha performativamente todas as nossas ações assim como à necessidade de uma imagem coerente do universo, em outras palavras, dar algum tipo de solução a Terceira Antinomia de Kant. Habermas tenta conciliar tal como Kant a causalidade por liberdade com a causalidade por natureza. A solução kantiana, para Habermas, teria incorrido num tipo de dualismo ontológico, que Habermas pretende evitar. A solução habermasiana é um tipo de pragmatismo que pretende conciliar Kant com Darwin e um tipo de naturalismo mitigado ou fraco já previamente desenvolvido em Wahrheit und Rechtfertigung. Habermas pretende dar prosseguimento ao debate a respeito da liberdade e do determinismo kantiano, reinterpretando-o nos termos de uma controvérsia que versa sobre a maneira correta de naturalizar o espírito humano (HABERMAS, 2005, 156).

Habermas, como já havia feito em RE, ressalta a diferença fundamental entre o contexto de discussão da engenharia genética na Europa e nos EUA, só que agora estende a diferença ao naturalismo cientificista que serve de pano de fundo àquele mesmo debate. Para Habermas, os pressupostos do naturalismo cientificista não conseguiram lançar raízes tão profundas na Alemanha, por exemplo, quanto lançou nos EUA, mesmo que a Europa constitua-se de nações em que a visão secular obteve predomínio. Habermas intitula-se porta-voz de uma reconciliação entre Darwin e Kant que faria mais jus ao contexto europeu da discussão da biotecnologia moderna e do tema da liberdade em tela aqui (HABERMAS, 2005, 187-8).

Habermas nega a liberdade de indiferença, ou a do asno de Buridán, pois é necessário o contato com argumentos. Esta negação da liberdade de indiferença existente na proposta habermasiana ecoa a recusa de Kant da liberdade de indiferença contida em A Religião dentro dos limites da simples razão. Para Kant, é sempre necessária a vinculação a regras na conduta humana, ou seja, não há ação alguma sem alguma lei mesmo que subentendida. A estas regras Kant denominara de máximas ou princípios subjetivos do querer que explicitem como o sujeito agente agiu ou pretende agir.

Habermas circunscreve a validade do principio da causalidade natural (HABERMAS, 2005, 175). Além disso, Habermas parece compartilhar com Kant a solução aporética da terceira antinomia, pois julga impossível entender como a causalidade da natureza pode entrar em ação recíproca com a causalidade por liberdade (HABERMAS, 2005, 179). Kant também circunscreveu a validade do principio da causalidade ao campo de toda experiência humana possível, ou seja, todos os eventos da experiência humana estão causalmente conectados a eventos anteriores que se denominam suas causas, entretanto, Kant ainda não tinha a sua disposição a noção somente introduzida no jargão filosófico de ‘jogos de linguagem’ apenas possível pela guinada lingüística. Por isso, Kant recorreu à ‘metáfora’ do dualismo de perspectivas: mundo inteligível e mundo sensível. No mundo sensível o monopólio explicativo é do principio da causalidade, mas no mundo inteligível a liberdade de alguma maneira é capaz de iniciar uma cadeia causal e interagir com a causalidade natural, embora como isso ocorra não seja possível de ser explicado. Todavia, mesmo que Kant recorra à metáfora dos dois mundos ou dois pontos de vista ou perspectivas, que na segunda Crítica, claramente se tornam a perspectiva teórica e prática respectivamente, é possível defender uma leitura não ontologicamente carregada, como o faz, Allison. Allison defende interpretar a pressuposição da liberdade como uma pressuposição conceitual e não como um dualismo ontológico, uma vez que a defesa do dualismo ontológico implicaria um tipo de retorno de Kant a filosofia anterior ao seu empreendimento critico, ao seu criticismo (ALLISON, 1996, 142).

Deste modo, a proposta habermasiana de um dualismo metódico, não ontológico não se distancia tão radicalmente quanto Habermas pretende do dualismo de perspectivas kantiano. Se considerarmos não apenas a primeira Critica, mas principalmente a segunda Critica de Kant, é possível perceber a validade circunscrita das explicações causais naturais e por liberdade na mesma linha defendida por Habermas nos textos discutidos aqui.

Diferentemente de Kant, que entende a constituição física do indivíduo suas inclinações como obstáculos à liberdade no sentido moral, Habermas entende que a constituição física do indivíduo “não são mais considerados como causas externas que podem influenciar ou irritar a formação da vontade ou da consciência” (HABERMAS, 2005, 166). Em vez de obstáculos ao livre exercício da vontade, a constituição orgânica torna-se para Habermas condição de possibilidade desse. A base orgânica somente torna-se um obstáculo à liberdade ética do indivíduo na medida em que uma intenção alheia é adicionada a esta e uma intenção cuja aceitação posterior por parte do indivíduo geneticamente manipulado é duvidosa, como no caso da eugenia positiva. Nas próprias palavras de Habermas:

 

A fenomenologia da autoria responsável conduziu-nos, no entanto, para o conceito de uma liberdade condicionada enraizada no organismo e numa história de vida, o qual é incompatível com a doutrina cartesiana das duas substâncias e com a doutrina kantiana dos dois mundos (HABERMAS, 2005, 166).

 

Deste modo, para Habermas a liberdade e a responsabilidade, à luz das considerações de Adorno e dele mesmo em ZMN, assumem uma dimensão tal que as torna incompatíveis com a concepção de liberdade cartesiana das Meditações Metafísicas e de Kant na Critica da razão pura. Descartes havia distinguindo entre diferentes substâncias o universo e o próprio ser humano e discute a liberdade do arbítrio para isentar Deus do erro cometido pelos seres humanos ao não manterem sua vontade dentro dos limites da clareza e distinção. Kant, como já visto, recorre a um dualismo entre perspectivas, ao qual atribui os nomes de mundo inteligível e sensível. Entretanto, mesmo que Habermas tenha superado a filosofia do sujeito, da qual tanto o pensamento de Descartes quanto o de Kant são partidários, não parece tão evidente em que medida o dualismo metódico habermasiano supera o dualismo de perspectivas kantiana, caso esse não seja carregado das conotações ontológicas frequentemente atribuídas a ele.

Para Adorno, como para Habermas em ZMN, o substrato orgânico (Leib) e a própria história de vida constituem ponto de referência da ação imputáveis e responsáveis. Deste modo, ao contrário do que sugere em ZMN, a fonte real da concepção de liberdade encarnada habermasiana na discussão da eugenia liberal não é Plessner, mas no fundo a própria escola de Frankfut da qual é herdeiro, em particular a discussão adorniana com Kant a respeito da liberdade da vontade.

Habermas re-formula o problema da terceira antinomia kantiana da seguinte maneira: para superar este conflito de idéias transcendentais seria preciso estabelecer uma relação compreensível entre a auto-experiência do ato de decisão realizado intuitivamente e o evento que ocorre de modo simultâneo e objetivo no substrato do corpo (Leib) (HABERMAS, 2005, 198). Ou seja, seria preciso construir uma ponte entre filosofia e ciência. Para Habermas, Adorno recua diante deste desafio de uma perspectiva externa reformulado da terceira antinomia, contudo considera-o de uma perspectiva interna e tenta resolvê-lo defendendo a liberdade. Empreende uma solução materialista que visa identificar as patologias sociais em que se manifesta algum tipo de supressão estrutural da liberdade.

Para sintetizar a concepção normativa de Habermas recorrerse-á a Warren, que, em The self in discursive democracy, explora a concepção do eu na filosofia habermasiana, em particular a relação entre o eu e a autonomia. Suas considerações podem auxiliar na reconstrução da concepção normativa de liberdade habermasiana. Para Warren, (WARREN, M. E., 172) a autonomia em Habermas é um ideal normativo, ou seja, não é algo dado aos indivíduos pela natureza, também não é uma pressuposição lógica nem uma precondição da democracia, mas uma possibilidade que pode ser desenvolvida nas relações sociais. É importante ressaltar que o foco de Warren é the self na democracia habermasiana e não o intrincado debate bioético a respeito da eugenia liberal. Contudo, as considerações habermasianas a respeito da eugenia liberal oscilam em diversos níveis, inclusive no nível político quando ele discute as implicações da aceitação da eugenia positiva às próprias instituições políticas liberais.

Segundo Warren, a primeira característica distintiva do autonomous self na concepção normativa habermasiana é “aquele que pode identificar-se como um indivíduo que mantém certa continuidade no tempo e que é distinguido por uma única história de vida”. Coincidentemente, esta concepção normativa do eu e da liberdade enquanto autonomia se repete em Die Zukunft der menschlichen Natur, pois o principal motivo da recusa de Habermas da eugenia positiva consiste na impossibilidade do ser geneticamente manipulado compreender-se como autor indiviso e responsável de sua própria história de vida. Ele não seria capaz de “localizar-se em termos de projeções biográficas (‘projetos’) e retrospecções” (WARREN, M. E, 173).

A segunda característica distintiva do autonomous self é a capacidade de agir, ou seja, a habilidade de iniciar projetos, trazer a existência idéias, coisas e relações. O que, por sua vez, também implica algum controle sobre sua própria história de vida (WARREN, M. E, 173). Mais uma vez o paralelo com o debate a respeito da eugenia liberal é frutífero, pois embora a pessoa geneticamente manipulada não seja incapaz de agir no sentido estrito do termo, ela, todavia, tem seu espaço de ação restringido pela escola pré-natal dos progenitores, na medida em que selecionar uma determinada característica genética limita o espaço de opções de vida boa do individuo. Desde que seja assumido o pressuposto fático da influência do corpo e do substrato orgânico, no qual incluiríamos o material genético, na formação da identidade.

 

A terceira característica distintiva do autonomous self é a capacidade de distanciar a identidade do eu das circunstâncias ao mesmo tempo em que se localiza este eu nos termos destas circunstâncias. Ou seja, autonomia consiste num tipo de liberdade, que implica internamente que se possa adotar uma atitude reflexiva para com seus próprios impulsos internos, interpretando, transformando, censurando, etc. já externamente, no que diz respeito ao mundo social, a autonomia ou liberdade implica poder distanciar-se das tradições e das opiniões predominantes. Portanto, autonomia é uma capacidade de julgamento critico (WARREN, M. E, 173).

 

Deste modo, “a identidade do eu autônomo desenvolve-se dentro de uma fábrica intersubjetiva da razão que através da quais os eu são apresentados aos outros” (WARREN, M. E, 174). Numa razão destranscendentalizada, autonomia exige o caráter público. Por isso, Warren acrescenta ainda uma quarta característica distintiva, a saber, “a autonomia do eu depende da capacidade de um indivíduo de participar em processos intersubjetivos de dar razões e resposta” (WARREN, M. E., 174). Ou seja, exige competências comunicativas. O que é vetado, segundo Habermas, no caso da manipulação genética, pois a futura pessoa não recebe o direito a voz, não é ouvida, ao menos no sentido figurado do termo. A saber, é incapaz de poder dizer sim ou não, visto que essa possibilidade não é nem mesmo cogitada.

Como resultado da quarta característica surge uma quinta, a saber, é necessário à participação autônoma na interação lingüística o reconhecimento recíproco das identidades dos falantes (WARREN, M. E, 174). Esse traço da autonomia é retomado por Habermas no debate bioético atual, quando ele ressalta que, a atitude dos pais que realizam a intervenção genética implica um tratamento instrumental que não permite um reconhecimento recíproco da pré-pessoa do embrião, que se tornará um individuo, ele não é tido como igual.

A última característica distintiva do autonomous self consiste em que autonomia implica em certa medida ao menos responsabilidade. No que diz respeito à responsabilidade, ele sustenta que a eugenia liberal cria uma situação de co-responsabilidade, na qual seria possível uma atitude de negação por parte do ser geneticamente modificado do patrimônio genético escolhido e este nunca poderia se compreender como autor indiviso de seu projeto racional de vida.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Para concluir: qual o estatuto da liberdade para Habermas? Para responder essas perguntas se faz necessário delinear algumas características da liberdade expostas. Primeiramente, Habermas explicitamente afirma introduzir um conceito fenomenológico de liberdade de ação; segundo, é um conceito não idealista, ou seja, não parte da distinção moderna entre sujeito representador e objeto representado; terceiro, a consciência dessa liberdade é obtida pragmaticamente nos moldes das condições a priori das pretensões embutidas no uso comunicativo da linguagem voltada ao entendimento; quarto, assim como para Kant não consiste numa liberdade no vazio ou de indiferença, mas sim numa liberdade vinculada a argumentos (eles explicitam os porquês das ações); quinto, não é uma liberdade cuja causalidade implicada na motivação racional embutida nela seja nos moldes de um evento observável causado por outro evento anterior também observável, a única coação relacionada com o ato livre é a do melhor argumento; sexto, não é um tipo de liberdade sem nenhum tipo de condições, ou seja, não é uma liberdade incondicionada, pois “o caráter condicionado de minha decisão não me incomoda” (para Kant, a condição ou exigência da explicação da ação livre e responsável implicava o condicionamento da ação livre por uma máxima adotada, que incorporava algum móbil de proveniência empírica ou racional); quanto a este aspecto tanto em Kant quanto em Habermas a condicionalidade não implica o monismo ontológico, a saber, a inclusão da liberdade na esfera dos entes causalmente ordenados em uma única série; sétimo, para Habermas assim como já o era para Kant, a explicação racional de uma ação não exclui a presença da liberdade e da imputabilidade; oitavo, o conceito de liberdade habermasiano tanto em ZMN quanto em ZNR vincula-se com a possibilidade de identificação do agente com seu próprio corpo e com sua própria história de vida; em síntese, a liberdade é em Habermas um conceito normativo, contudo, tem uma base física.

 

REFERÊNCIAS

 

ALLISON, H. Idealism and freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, 240 p.

 

BUCHANAN, A. From chance to choice: genetics and justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, 397 p.

 

HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, 236 p.

 

HABERMAS, J. Wahrheit und rechfertigung: philosophische Aufsätze. Frankfurt: Suhrkamp, 1999, 336 p.

 

HABERMAS, J. O futuro da natureza humana. A caminho de uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004, 159 p.

 

HABERMAS, J. Die Zukunft der menschlichen natur. Auf dem weg zu einer liberalen eugenik? Suhrkamp Verlag: Frankfurt, 2001, 125 p.

 

HABERMAS, J. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, 399 p.

 

HABERMAS, J. Zwischen naturalismus und religion. Philosophie Aufsätze. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 2005, 372 p.

 

KANT, I. Kants Werke. Akademie Berlin, Walter de Gruyter & Co., 1968.

 

KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rodhen e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1996, 511 p.

 

WARREN, M. E. ‘The self in discursive democracy’, in S. K. White (ed.), The Cambridge Companion to Habermas. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 167-201.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO II

 

 

 

 

 

 

 

 


HABERMAS E A SOCIOLOGIA DA SAÚDE

 

Charles Feldhaus

 

INTRODUÇÃO

 

Em 2001, Habermas publicou Der Zukunft der Menschlichen Natur, desenvolvendo uma estratégia argumentativa sui generis contra o que se convencionou denominar de eugenia liberal. A eugenia liberal consiste na liberação ao mercado da livre concorrência e às escolhas particulares das pessoas (em geral dos pais) a decisão a respeito de que tipos de intervenções genéticas aplicadas à medicina reprodutiva devem ser realizados ou não. Em outras palavras, o Estado deixa de não intervir baseado seja por uma questão de direito à liberdade reprodutiva, uma vez que se interpreta o debate nos mesmos parâmetros do debate acerca do aborto (conflito entre dignidade humana e autodeterminação da mulher), seja por uma questão pragmática relacionada com a introdução de novas tecnologias (os imperativos normativos não conseguiram frear os imperativos sistêmicos da técnica, a pesquisa via continuar em algum lugar e as pessoas começaram a usar mesmo que de modo clandestino).

Embora a estratégia argumentativa de Habermas dirija-se principalmente à eugenia liberal, a saber, a introdução das novas tecnologias genéticas sem controle estatal, ele procura traçar distinções e discriminar entre tipos de intervenções. Ele distingue entre eugenia positiva e eugenia negativa, contudo de modo distinto do que fora feito no passado, quando se idealizou as práticas eugênicas (particularmente, o primo de Charles Darwin, Francis Galton), a eugenia positiva no passado era a promoção da reprodução dos considerados aptos; a negativa, a tentativa de evitar que os considerados então inaptos se reproduzissem; no cenário atual, a eugenia negativa consiste na realização da intervenção genética com objetivo de evitar ou curar doenças; a eugenia positiva consiste no aperfeiçoamento genético propriamente dito; além dessa distinção Habermas cita outras intervenções como clonagem humana, diagnóstico de pré-implantação e pesquisa com células tronco embrionárias.

O argumento principal do texto recorre ao que ele denomina de ética da espécie [Gattungsethik] ou à autocompreensão normativa de nossa moral convencional, a única segundo a qual seria possível nos compreendermos como autores indivisos de nosso projeto racional de vida[8] e situados simetricamente. Esse argumento parece assumir aspectos quase transcendentais porque Habermas parece entender que recorrer à ética da espécie não seria meramente adentrar no campo do que poderíamos denominar de conteúdos (ou questões de vida boa), mas sim garantir a manutenção das condições de possibilidade de uma moral autônoma.

A estratégia argumentativa de Habermas sustenta que a eugenia positiva é proibida moralmente pela impossibilidade de presumir o consenso da pessoa afetada pela intervenção genética, a saber, o individuo no qual o embrião manipulado se tornará. Para Habermas, esse consenso somente pode ser suposto de forma contrafactual no caso de intervenções terapêuticas ou que visam à cura (o que Habermas denomina de lógica da cura [Logik des Heilens]). O problema é que Habermas ao desenvolver esse argumento parece fortemente dependente de uma concepção de saúde, com forte aspecto normativo e não restrita apenas ao biológico, embora ele não desenvolva em lugar algum essa concepção. Por essa razão o presente estudo pretende tecer algumas considerações sobre o que poderia ser a visão de Habermas a respeito da noção de saúde e doença, um tema muito discutido no campo do que se costuma chamar de sociologia da saúde e da doença e, além disso, se pretende aqui aplicar alguns conceitos centrais da concepção de sociedade de Habermas a alguns casos rotineiramente abordados na sociologia médica.

 

 

 

SOCIOLOGIA E A NOÇÃO DE SAÚDE

 

Antes de qualquer coisa, é preciso especificar o que significa perspectiva sociológica em relação ao tema da saúde e da doença. A sociologia é um estudo de base empírica que busca demonstrar como a doença pode ser entendida de modo diferente e que tipos de fatores produzem a condição de doença mediante fatores sociais e não apenas algo proveniente da natureza, da biologia e das escolhas de estilos de vida pelas pessoas. A sociologia parte da suposição que conhecimento não é axiologicamente neutro e, por conseguinte, o conhecimento produzido pelos profissionais da saúde não é distinto nesse sentido. O sociólogo da saúde e da doença recusa-se a aceitar a visão predominante segundo a qual ser saudável é estar funcionando de modo ‘normal’ no contexto de um indivíduo da espécie humana. O conhecimento médico e a interação médico e paciente refletem aspectos estruturais da sociedade na qual eles estão inseridos.

O campo da sociologia da saúde e da doença cobre amplo espectro de questões e busca principalmente problematizar concepções reducionistas de doença e saúde, identificar quais são as principais variáveis que influenciam na produção e distribuição de doenças na sociedade, tais como classe social, gênero, etnia etc. Além disso, esse campo procura examinar a maneira como os profissionais na área de saúde e demais envolvidos definem as condições consideradas como doença e como saúde. Os principais pensadores discutidos na sociologia médica são Marx, Parsons e Foucault, somente para citar alguns. Cada um deles concebe a sociedade, a doença e o papel do profissional da área da saúde de maneira diversa. Para Marx, a sociedade capitalista como sendo prioritariamente exploradora e conflituosa (entre a burguesia e o proletariado), e a ausência de saúde como oriunda da priorização da busca do lucro, em outras palavras, em Marx, se pode dizer que as doenças resultam da comodificação dos serviços de saúde, que transforma os pacientes em clientes e consumidores, transformando o objetivo primário da medicina na maximização do lucro e não na cura de doença e no bem-estar do paciente. Para Parsons, a sociedade consistindo de um conjunto estável e harmonioso de papéis e estruturas sociais inter-relacionadas, e as doenças como resultantes das tensões sociais ocasionadas pelo embate das demandas dos diferentes papéis sociais. Para Foucault, a sociedade é compreendida como uma complexa rede de relações de poder, com nenhuma fonte dominante de poder (um conceito difuso), cuja finalidade é a vigilância administrada dos corpos e das populações. Para ele, as doenças são rótulos utilizados para segregar a população facilitando o controle social. A noção de normalização ocupa papel predominante nos estudos orientados pela perspectiva de Foucault na sociologia da medicina, pois é pela caracterização do que se considera normal ou anormal na sociedade que os profissionais da área da saúde exercem poder de controle social sobre os indivíduos (poder disciplinar) e sobre a população (biopoder). Além desses teóricos, as feministas também ocupam papel predominante nos estudos sociológicos na medicina, as quais compreendem a sociedade como sendo exploradora e repressiva da mulher e impregnada por uma visão patriarcal do papel social da mulher e em que o papel da medicina consiste prioritariamente na medicalização da mulher em torno do papel reprodutivo (maternidade)[9] . Após essa breve caracterização das contribuições de alguns dos principais expoentes do pensamento sociológico à medicina, pode-se perguntar qual seria a principal contribuição de Habermas? Como ele compreende a sociedade? Qual o potencial crítico de suas considerações sociológicas a esse campo?

Apesar das diferentes abordagens resultantes no campo da sociologia da medicina, é possível traçar algumas questões centrais e tendências nesse campo de investigação. Primeiramente, há uma tendência a se compreender as noções de saúde e doença de modo não reducionista ao biológico, uma vez que as doenças são produzidas e distribuídas socialmente e, por conseguinte, não são apenas uma parte da natureza e da biologia humana. Em outras palavras, “reduzir a explicação da condição dos indivíduos a um denominador comum da biologia, a explicação genética sistematicamente exclui uma explicação sociológica, e funciona para desviar nossa atenção da maneiras nas quais a vida social forma nossa experiência da saúde”[10] . Em segundo lugar, os pensadores nesse campo sociológico buscam inverter a ordem dos fatores de uma inferência causal recorrente no discurso sobre a saúde e a doença, a saber: “as pessoas são doentes porque são pobres e não pobres porque são doentes”[11] , ou seja, não é a condição de ser doente que transforma as pessoas em pobres, não é porque a doença torna alguém menos apto no mercado de trabalho da livre concorrência que alguém ser torna pobre, mas sim que o fato de estar em uma condição de partida já pobre favorece o desenvolvimento de certas doenças. A concepção inversa, amplamente difundida é um elemento central tanto das concepções biologicistas quanto das liberais. A visão reducionista da biologia, principalmente quando tenta derivar valores de fatos, assume que alguns são mais aptos que outros e, portanto menos suscetíveis a incidência de doenças. A visão liberal busca sistematicamente atribuir a responsabilidade pela condição social de uma pessoa a suas escolhas individuais.

Como já dito, diferentes abordagens da sociologia da saúde e da doença ocasionam análises distintas do papel do conhecimento médico e das causas sociais de doenças. Há amplo espectro de posições nesse cenário: marxistas, parsonianas, foucaultianas e feministas. As contribuições de Habermas, não obstante, parecem não ter fincado raízes ainda nesse campo de investigação, pois comparado com a influência de outros pensadores, os estudos sobre Habermas ainda estão em fase inicial na sociologia da saúde e da doença.

 

AS CONTRIBUIÇÕES DE HABERMAS À SOCIOLOGIA DA SAÚDE E DA DOENÇA

 

Scambler et al. em Habermas, Critical Theory and Health busca identificar algumas contribuições do arcabouço teórico de Habermas à sociologia da saúde e da doença. Cabe, contudo, ressaltar que esse livro devota-se apenas a aplicar as considerações de Habermas a esse campo de investigação anteriores a publicação de Der Zukunft der Menschlichen Natur. Nem mesmo os textos menores de Die Postnationale Kostellation cuja relevância ao debate sobre a natureza da noção de saúde e doença pretende-se aqui enfatizar foram incluídos.

Segundo Scambler & Britten[12], as relações entre médico e paciente somente podem ser teorizadas de modo abrangente se for levado em consideração o contexto e as estruturas sociais relevantes ao caso. Por exemplo, um paciente com acesso de dor muscular resultante (problema pessoal) oriundo de uma condição de trabalho geradora de doenças (questão contextual) realiza uma visita a um médico mas afirma explicitamente seu desejo de continuar trabalhando, apesar do desconforto, o médico brinca com o senso de responsabilidade e ambivalência do paciente, porém facilita que o paciente continue a trabalhar, exprime com isso a ideologia da responsabilidade individual pela condição doentia, prescrevendo apenas narcóticos, alguns instrumentos de correção postural, algumas pausas durante o dia de trabalho etc. desse modo, o profissional em saúde marginaliza as questões do contexto social do paciente e permanece ausente a crítica as exigências do trabalho.

Em o ZMN[13], Habermas recorre a sua teoria da ação social, em que distingue ação instrumental e ação comunicativa, para avaliar normativa a nova prática. Os recentes avanços científicos estão cada vez mais prevalecer os imperativos sistêmicos de uma única forma de racionalidade e ação, a ação instrumental. Esse avanço da biotécnica, segundo Habermas, traz à memória a lógica da ação médica e essa mesma lógica denunciada aqui por Habermas é fortemente criticada pelos principais expoentes da sociologia da saúde e da doença. Em grande parte, a justificação das pesquisas e dos recursos investidos no campo da engenharia genética se dá pelos imperativos sistêmicos e objetivos biopolíticos[14]. O avanço da biotécnica inclusive teria efeito de colonizar o mundo vivido de tal modo que não seria mais possível distinguir o que é produzido e o que é resultado da natureza[15] .

Um ponto rotineiramente ressaltado no campo da sociologia da saúde e da doença é a sobreposição de imperativos sistêmicos sobre a prática da medicina com o crescente avanço da biotécnica. Esses imperativos sistêmicos obscurecem e ocultam a verdadeira meta da medicina, que é curar doenças. Os imperativos em questão são os da economia, do mercado e da própria técnica. A medicina ao impregnar-se desse outros imperativos sistêmicos encobre sua especificidade, a cura de doenças.

Para Habermas, a sociedade é compreendida tanto como sistema quanto como mundo vivido. O sistema é caracterizado pela racionalidade estratégica e o mundo vivido pela racionalidade comunicativa. Na interação entre médico e paciente, por exemplo, os imperativos sistêmicos podem prejudicar a efetividade do tratamento e comprometer o caráter significativo da compreensão própria de sua condição por parte do doente. A colonização do mundo vivido leva a todos os tipos de problemas sociais: a) redução do sentido compartilhado; b) a erosão dos laços sociais; c) carência de pertença a um grupo; d) um sentimento de desmoralização; e e) a desestabilização da ordem social.

O mundo vivido é compreendido como um tipo de ação comunicativa (frequentemente denominada voz do mundo vivido em sociologia médica) e o sistema, como um tipo de ação estratégica. A ação comunicativa visa à interação linguística orientada ao acordo ou entendimento ao passo que a ação estratégica visa ao sucesso ou êxito. No que diz respeito à relação entre sistema e mundo vivido, Habermas chama a atenção para um aspecto importante, a saber, a colonização do mundo vivido pelo sistema, que “cada vez mais separa as estruturas sociais mediante as quais a interação social ocorre”.[16] Na medicina essa separação crescente e colonização do mundo vivido pelos sistemas do dinheiro, do estado, da voz da medicina (que privilegia a concepção biomédica de saúde e doença e busca atribuir a responsabilidade exclusiva ao usuário por sua condição de doença), o que pode levar a uma perda de identidade e a uma redução do sentimento de pertença social.

Segundo Nicholas Rose,[17] Habermas em Die Zukunft der menschlichen Natur estaria comprometido com o modelo biologicista de saúde e doença baseado em uma nota na qual ele faz referência à concepção adotada por Buchanan et al em From Chance to Chocie. Justice & Genetics,[18] para os quais a noção de funcionamento normal serve de critério normativo para elaborar uma lista de bens naturais primários (intervenções genéticas), que o Estado deveria fornecer aos seus cidadãos a fim de garantir a igualdade equitativa de oportunidades. Não obstante, essa citação e o comprometimento de Habermas com a ideia reguladora de que as intervenções genéticas restritas ao que ele denomina ação clínica [klinischen Handelns] e lógica da cura [Logik des Heilung], uma vez que somente nesse caso seria possível presumir o consentimento [Einverständnis] do afetado, ainda assim defende-se aqui que ele está comprometido com uma concepção de doença e saúde mais complexa que integra a visão biologicista e a visão axiologicamente carregada.

 

A CONCEPÇÃO DE SAÚDE E DOENÇA A PARTIR DE ZMN

 

A favor dessa leitura (que integra elementos culturais e biológicos) de Habermas podem ser apresentadas as seguintes evidências:

a)Em Die postnational Konstellation, Habermas defende em sua tréplica a Dierter E. Zimmer que “a biologia não pode nos tirar das mãos a reflexão moral. E a bioética não deveria dotar-nos de descaminhos biologistas sobre isso”,[19] ou seja, ele critica qualquer tipo de reducionismo nesse pequeno escrito, devemos recorrer apenas a categorias morais quando decidindo sobre questões relativas aos recentes e futuros avanços no campo da engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva. A decisão deve pautar-se em categorias morais, para Habermas de cunho kantiano, como liberdade e responsabilidade e não em elementos fáticos (não devemos cometer o que rotineiramente se denomina navalha de Hume, ou em sua formulação mais recente, falácia naturalista tal como a entende Moore).

b)No mesmo texto, Habermas defende claramente que a definição da noção de mal [Übel] depende de critérios culturais, citando inclusive que no passado a pertença a uma ‘raça inferior’ fora considerada como um ‘mal’.[20] Como o argumento do consenso ou consentimento contrafactual aplica-se contra a eugenia positiva ou ao aperfeiçoamento genético, quando Habermas reconhece que existe uma variabilidade cultural da definição de mal, somos levados a interpretar-lhe como decidindo previamente pela proibição categórica da intervenção genética aperfeiçoadora, não obstante deixando ao escrutínio do debate democrático os casos permitidos, mas não prescritos de intervenção terapêutica. Se há variação cultural, o respeito à perspectiva do mundo vivido e à concepção de democracia deliberativa elaborada em Faktzität und Gelgung, exige deixar aos concernidos deliberar e decidir o que sua sociedade considera como permitido e o que não.

 

Além disso, se a noção de mal ou evitação do mesmo serve de base justificadora das intervenções negativas ou curativas, e entende-se mal [Übel] como contraponto a saúde [Heilung], ou seja, é não saudável ou doente quem sofre de algum mal, então a noção de doença após Die Zukunft der menschlichen Natur envolve valores, pois envolve uma noção variável culturalmente, a noção de mal. O ônus de compreender a saúde e a doença como carregados axiologicamente concerne a um enfraquecimento do argumento principal de Habermas contra a eugenia positiva, uma vez que a base do argumento é a possibilidade de traçar claramente a distinção entre o que é denominado de aperfeiçoamento genético e o que é denominado de tratamento genético cujo critério diferenciador é a lógica da cura, a qual pressupõe que seja possível delimitar claramente o que é doença e o que é saúde. Mas, se saúde e doença são axiologicamente carregadas e variam culturalmente, como determinar o que é aperfeiçoamento e o que está restrito à lógica da cura?

A reconstrução e aplicação do sistema de Habermas à sociologia da saúde e da doença tal como desenvolvida por Scambler et al. e outros evidencia que concepção de sociedade entendida tanto como sistema quanto como mundo vivido, a critica a crescente monopolização do mundo vivido pelo sistema, a distinção entre ação estratégica e ação comunicativa, e a noção de comunicação sistematicamente distorcida implicam uma concepção de saúde e doença em Habermas não reducionista ao biológico e comprometida com a valorização do simbólico e valorativo oriundo do mundo vivido. O que, por sua vez, suscita a questão a respeito da possibilidade de uma mudança de posição de Habermas em Die Zukunft der menschlichen Natur em relação aos textos anteriores, como diz Mendieta, uma nova guinada no seu pensamento. Mendieta sugeriu um novo giro neoaristotélico, aqui talvez se pudesse defender um novo giro revogando seu antireducionismo, uma vez que seu argumento é fortemente dependente de uma noção de saúde e doença com forte viés biologicista, caso contrário o argumento parece perder a plausibilidade. Entretanto, defende-se aqui que talvez o espectro de posições a respeito da saúde e da doença seja maior que a dicotomia entre cultura ou biologia. E a posição de Habermas estaria muito mais na zona central desse espectro do que em qualquer uma das duas margens.

Em outra oportunidade defendi que Habermas com a publicação de Die Zukunft der menschlichen Natur ressalta o aspecto biológico de uma concepção de liberdade dual, que se afasta da concepção transcendental de Kant. Em textos anteriores, como Pensamento pós-metafísico, Habermas abordou o aspecto intersubjetivo do desenvolvimento da liberdade e da autonomia individual, ou seja, é preciso a interação com o outro para tornar-se autônomo, pois liberdade não é um atributo de um sujeito monológico, mas exige a interação linguística. Assim como sua concepção de liberdade não se reduz nem ao biológico nem ao simbólico, defende-se aqui que é bastante plausível acreditar que sua concepção de saúde e doença também não se reduz nem a uma visão biologicista nem a uma visão estritamente valorativa ou axiológica. O que, consequentemente, mina a objeção de impotência do argumento principal de baseado no consenso presumido ou contrafactual contra a eugenia positiva e liberal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Em síntese, buscou-se mostrar aqui que o argumento de Habermas contra a eugenia liberal desenvolvido em Die Zukunft der menschlichen Natur depende de uma noção não desenvolvida por ele sistematicamente. No entanto, a aplicação de algumas das noções centrais do sistema habermasiano evidenciam uma visão de saúde e doença não reducionista, nem a biologia nem a cultura, mas dual, que integra ambas. Apesar de Habermas citar a obra de Buchanan et al que se compromete com uma concepção de saúde com forte viés biológico, entendida como funcionamento normal da espécie, foi possível observar mediante o exame de textos contemporâneos ao seu argumento contra a eugenia liberal, que sua visão está comprometida com elementos que favorecem uma interpretação de saúde e doença como carregadas axiologicamente e não apenas uma descrição do funcionamento normal da espécie. Não obstante, o comprometimento de Habermas com uma concepção axiologicamente carregada de saúde poderia enfraquecer o argumento principal baseado no consenso contrafactual contra a eugenia liberal e positiva. No entanto, foi enfatizado que o espectro de visões de saúde e doença contém mais matizes do que apenas o estritamente biológico e o estritamente cultural e que Habermas se situa com certeza em uma posição intermediária que integra elementos biológicos e culturais em sua concepção de saúde e doença e, por conseguinte, o argumento contra a eugenia poderia manter seu poder de discriminar os casos proibidos (eugenia positiva) dos permitidos, mas não obrigatórios (eugenia negativa) com base numa noção de doença dual (cultura e biologia).

 

REFERÊNCIAS

 

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CHRISTIANSEN, K. The silencing of Kierkgaard in Habermas’ critique of genetic enhancement. Med Health Care and Philos, n. 12, p. 147-156, 2009.

 

COKERHAM, W. C. The blackwell companion to medical sociology. Massachusetts: Blackwell Publishers, 2001.

 

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

 

HABERMAS, J. A Sketch of L’avenir de la nature humaine. Philosophy and Medicine, vol. 03, n. 1, 2003, p. 155-157.

 

HABERMAS, J. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Trad. Vamireh Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

 

HABERMAS, J. Die Zukunft der menschlichen natur: auf dem weg zu einer liberalen eugenik? (ZMN) Suhrkamp Verlag: Frankfurt, 2002.

 

HABERMAS, J. Faktizität und geltung: beiträge zur diskurstheorie des rechts und des demokratischen rechtsstaats. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1992.

 

HABERMAS, J. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt: Suhrkamp, 1983.

 

HABERMAS, J. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? (FHN) Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

HABERMAS, J. Wahrheit und rechfertigung: philosophische Aufsätze. Frankfurt: Suhrkamp, 1999.

 

MENDIETA, E. Comminicative freedom and genetic engineering.

 

MENDIETA, E. Habermas on human cloning. The debate on the future of the species. Philosophy & Social Criticism, vol. 30, n. 5-6 (2004), p. 721-743.

 

SCAMBLER, G. Habermas, critical theory and health. London: Routledge, 2001.

 

WHITE, K. An introduction to sociology of health and illness. London: Sage Publications, 2002.

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO III

 

 

 

 

 

 

 

 


CONSIDERAÇÕES SOBRE HABERMAS E O PROJETO KANTIANO DE UMA PAZ PERPÉTUA

 

Charles Feldhaus

 

Habermas aborda o projeto de Kant de uma paz perpétua em várias oportunidades em sua obra publicada, a saber, Der gespaltene Westen, Die Einbeziehung des Anderen e Zwischen Naturalismus und Religion: Philosophische Aufsätze No segundo livro supracitado, Habermas contém uma capítulo escrito em função da comemoração dos duzentos anos da publicação de Zum Ewigen Frieden de Immanuel Kant, em que procura mostrar que o projeto de uma ordem mundial cosmopolita contém premissas que precisam ser revistas e que alguns elementos da proposta, por essa razão, precisam ser reformulados; ao passo que o primeiro livro supracitado busca avaliar o projeto original do filósofo de Königsberg à luz das recentes tensões internacionais termina apresentando o dilema do direito internacional contemporâneo: Kant ou Karl Schmitt? Habermas acredita que algumas premissas empíricas da proposta de Kant de uma ordem mundial cosmopolita, de uma liga de Estados (repúblicas), são refutadas à luz dos eventos históricos ocorridos desde a sua formulação no final do século XVIII. No capítulo final do terceiro e último livro supracitado, Habermas retoma as considerações feitas em Der gespaltene Westen a respeito do projeto kantiano de uma paz mundial e reitera a necessidade de reformular a proposta de Kant à luz de dificuldades conceituais e inadequação da mesma com nossas experiências históricas recentes.

Habermas critica o recurso de Kant à analogia do estado de natureza ao referir-se à passagem do direito internacional clássico ao direito cosmopolita. Segundo o herdeiro da Escola de Frankfurt, os cidadãos dos Estados nacionais já percorreram um longo processo de formação, por causa disso, estão de posse de um bem político, as liberdades fundamentais garantidas juridicamente, e o colocariam em risco, caso aceitassem uma restrição do poder estatal que visa garantir o estado de direito. O que não acontece com os habitantes fictícios não formados de um estado de natureza bruto, em que os mesmos não tinham nada a perder exceto o medo e o horror do embate de suas liberdades naturais, garantidas apenas pela força, e como ninguém poderia se outorgar o estatuto de mais forte em tal situação, suas liberdades seriam sempre incertas. O que leva Habermas a defender que a analogia é errônea, pois tal transição não é de modo algum análoga, mas antes complementar aos direitos que os cidadãos possuem no Estados democráticos de direito. Habermas afirma ainda que o modelo de uma república mundial é errôneo assim como é falso a afirmação de Kant de que três tendências naturais indubitavelmente estão impulsionando a espécie humana a uma paz mundial, a saber: a natureza pacífica das repúblicas, a força geradora de comunidades do comércio internacional, e a função política da esfera pública. Habermas busca mostrar que, embora seja verdade que as repúblicas (que ele entende como democracias) sejam mais pacíficas entre si, não é verdade que façam menos guerras que outros regimes políticos; além disso, a ONU inclui hoje tanto países democráticos quanto de outros regimes políticos; o comércio mundial aproxima as nações, mas é causa não apenas de paz entre nações, mas pode ele mesmo ser tornar um estopim para a guerra; a esfera pública, que inicialmente era um espaço de discussão política de ideais e de critica do poder político, se tornou ela mesma um meio de manipulação das massas, o que Kant não previu. Habermas, com base na identificação da implausibilidade de certas premissas do projeto 27 kantiano, afirma que uma reformulação conceitual básica se faz necessária. Ele ataca a inconsistência da proposta de Kant de uma federação livre ou aliança de Estados pacíficos por considerar a mesma insuficiente, a ordem cosmopolita tem que garantir ao menos o comportamento exterior adequados dos membros, o que não parece possível numa federação de Estados livres; Habermas defende uma constitucionalização do direito internacional, algo mais forte do que pensara Kant. Para Habermas, o estágio em que se encontra o direito internacional atual já teria superado em alguns aspectos a visão de Kant, uma vez que a soberania dos Estados membros em parte pode ser limitada por acordos internacionais e regulamentações, o que novamente implica em revisão conceitual básica, dado que Kant mantinha a soberania absoluta dos Estados, os mesmos deveriam apenas abandonar o direito à guerra; além do mais, como a ONU hoje inclui Estados democráticos e não democráticos, é preciso revisar a visão de Kant de que a paz ocorre mediante uma expansão das repúblicas. Conforme Habermas, a própria compreensão do que se entende por paz precisa ser modificada, Kant entendia a paz apenas num sentido negativo, como ausência de guerra (de conflito bélico ou de disposição para tal), todavia, Habermas acredita que garantir a paz exige não apenas intervenções de caráter militar, mas também intervenções humanitárias visando exercer influência interna aos Estados nacionais tornando possível que os mesmos sejam autossustentáveis, a participação política dos cidadãos, a tolerância cultural, entre outras coisas. Garantir a paz pode exigir estratégias não militares até mesmo como as sanções econômicas, não obstante de maneira explícita e não camuflada. Por conseguinte, o presente estudo pretende reconstruir as ideias centrais do projeto de Kant e as principais considerações críticas de Habermas nos dois livros supracitados e tentar realizar uma avaliação crítica das mesmas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


TERIA HABERMAS RECORRIDO A UMA SUPOSIÇÃO DWORKIANA EQUIVOCADA EM DIE ZUKUNFT DER MENSCHLICHEN NATUR?[21]

 

Charles Feldhaus

 

INTRODUÇÃO

 

Em seu livro Die Zukunft der menschlichen Natur, Jürgen Habermas apresenta uma estratégia argumentativa contra o que se convencionou denominar de eugenia liberal (termo de Nicholas Agar) que se baseia não em bases morais propriamente ditas, mas antes em uma ética da espécie [Gattungsethik]. O filósofo alemão recorre a essa estratégia argumentativa fortemente baseado em uma tese defendida por Ronald Dworkin em Sovereign Virtue e Buchanan et al em From Chance to Choice, Justice & Genetics, a saber, que os recentes e futuros avanços no campo da engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva ocasionarão uma mudança no limite entre acaso [chance] (loteria natural) e escolha [choice] (aquilo pelo que normalmente os seres humanos podem ser considerados responsáveis). A mudança nesse limite poderia ocasionar, segundo Dworkin, o colapso de elementos centrais de nossa moralidade convencional, em outras palavras, poderia levar a uma situação de queda livre moral [moral free-fall]. Entretanto, as críticas suscitadas por Justine Burley, em Morality and the New Genetics, contra o diagnóstico de Dworkin em Playing God. Genes, Clones, and Luck, se plausíveis, podem significar que Habermas teria escolhido a estratégia indireta de uma ética da espécie [Gattgunsethik] e não de uma avaliação direta pela moralidade discursiva e convencional partindo de uma suposição equivocada do jurisfilósofo estatunidense, o que inclusive poderia minar a estratégia argumentativa do filósofo alemão contra a eugenia liberal desenvolvida em Die Zukunft der menschlichen Natur. Além disso, a resposta que Dworkin oferece às objeções de Burley sugere que a mesma teria interpretado incorretamente a posição do pensador estadunidense e cabe ainda investigar em que medida o pensador alemão não teria também se comprometido com essa interpretação assumida por Justine Burley. No que segue, primeiramente, serão apresentados os traços gerais do que Habermas entende que é a hipótese da queda livre moral; em segundo lugar, serão recontruídas as objeções de Justine Burley à tese da queda livre moral de Ronald Dworkin; em terceiro, será reconstruído a resposta de Dworkin às objeções de Burley; finalmente, buscar-se-á identificar as consequências das objeções de Burley e da resposta de Dworkin às mesmas à escolha de Habermas de basear sua estratégia argumentativa contra a eugenia liberal em uma ética da espécie.

 

HABERMAS E A HIPÓTESE DA QUEDA LIVRE MORAL

 

A tese da queda livre moral defendida por Dworkin envolve, entre outras coisas, a afirmação de que a moralidade convencional, os valores compartilhados de modo intuitivo, seria impotente diante das questões bioéticas suscitadas pelos avanços científicos em questão. Nas próprias palavras de Dworkin[22]: “minha hipótese é que a ciência genética nos mostrou a possibilidade de um deslocamento moral semelhante e iminente, embora maior [do que aquele que ocorreu com a invenção da bomba atômica e com aperfeiçoamento do tratamento de doenças terminais]”, dado que a engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva, ou seja, a possibilidade de pessoas criarem outras pessoas “altera - de maneira muito mais marcante (..) [do que os dois exemplos citados acima] o limite entre a sorte e a escolha que estrutura todos os nossos valores”. Isso na visão de Dworkin não afeta [no sentido de implicar alguma violação] de maneira significativa nenhum dos valores que compartilhamos, que ele classifica como valores derivados de interesses particulares ou independentes de quaisquer interesses [ou instrínseco ou sagrado, como o estadunidense às vezes os denomina], mas antes “ameaça (...) tornar obsoletos grande parte deles”. Não obstante, a solução para Dworkin, ao contrário do que defenderá Habermas, consiste no abandono dos elementos tornados obsoletos pelo progresso da biotécnociência e encontrar novos valores para lidar com os novos casos. Já, o filósofo alemão considera que, se está vetado o caminho da moral convencional para avaliar a eugenia liberal, o caminho mais adequado seria recorrer às suposições de fundo dessa moral, à autocompreensão normativa dos seres humanos enquanto membros da espécie homo sapiens, à ética da espécie Nas palavras do próprio Habermas: se por ventura “a segunda alternativa estiver correta, não obtemos diretamente um argumento moral decisivo, mas sim uma orientação mediada pela ética da espécie”[Gattungsethik].[23] Segundo Habermas,

 

a forma de lidar com a vida humana pré-pessoal suscita questões de um calibre totalmente diferente. Aludem não a essa ou àquela diferença na variedade de formas de vida cultural, mas a autodescrições intuitivas, a partir das quais nos identificamos como pessoas e nos distinguimos de outros seres vivos – portanto, nossa autocompreensão enquanto seres da espécie.[24]

 

O filósofo alemão, além de se basear na tese da queda livre moral, em sua defesa de um argumento ético, não do indivíduo, mas da espécie, também parece basear-se na afirmação de Höff e,[25] em seu artigo do jornal alemão Zeit, Wessen Menschenwürde? O qual afirma que os novos horizontes éticos abertos pelo avanço tecnológico colocam em questão a própria identidade atual da espécie humana. Ou seja, a eugenia positiva e, até mesmo outros tipos de intervenções genéticas, como a eugenia negativa e o diagnóstico genético de pré-implantação, que coloca em xeque das Bild que as mais diversas culturas fazem do ser humano, tornam incerta a identidade da espécie, e inclusive torna o ser humano consciente da existência de Bilden culturais alternativas. A ética da espécie nesse sentido consiste em querer manter a autocompreensão mínima que sustenta nossa moral convencional e que é resultado da convergência das diferentes visões éticas e religiosas.[26]

Segundo Habermas, é a tecnicização da natureza humana, daquilo que até então era fruto do acaso genético, que leva à modificação da autocompreensão da ética da espécie. [27] Não obstante, ressalta o pensador, os avanços alcançados até agora no campo da engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva não ocasionam ainda essa alteração de autocompreensão ética da espécie. Mas, então o que faltaria da perspectiva habermasiana para ocasionar isso? Na medida em que Habermas recorre ao termo geral ‘liberal eugenics’ para denominar seu estudo e a mesma parece implicar entre outras coisas: ausência de controle estatal dos tipos de manipulações genéticas proibidas e permitidas, abandono do critério de seleção das intervenções às preferências individuais e subjetivas orientadas apenas pela lei do mercado da livre concorrência, apenas pelos imperativos sistêmicos econômicos (do dinheiro), uma vez que, assim como atualmente os pais procuram colocar seus filhos nas melhores escolas, a fim de aumentar as chances competitivas no mercado de trabalho dos mesmos, num cenário em que a manipulação genética se tornasse algo corriqueiro, os progenitores procurariam ampliar o máximo possível as vantagens oriundas da dotação genética, até então determinadas pelo acaso.[28] O risco de que a vida humana, num cenário de eugenia liberal, seja gerada apenas sob condições, parece ser uma das preocupações centrais de Habermas. Desse modo, aqui se poderia pensar numa diferença entre a posição de Habermas e Dworkin, uma vez que segundo a reconstrução de Burley, da posição dwokiana, a mera possibilidade das tecnologias genéticas já seria suficiente para ocasionar a falência de elementos centras de nossa moralidade convencional, ao passo que Habermas claramente está defendendo que embora estejamos no limiar, nada disso ainda ocorreu.

 

AS OBJEÇÕES DE BURLEY À TEORIA DA IGUALDADE DE RECURSOS

 

No capítulo 13 de Sovereign Virtue – Dworkin levanta um conjunto de questões a respeito das implicações normativas dos recentes e futuros avanços no campo da engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva e afirma explicitamente que no que diz respeito às questões relativas à justiça social e distributiva nenhuma mudança significativa irá ocorrer se houver modificações significativas em nossas convicções normativas essas se darão não no campo do valor derivado de interesse propriamente dito, mas no campo do que ele convencionou chamar de valor sagrado, intrínseco ou independente de interesses particulares. Razão pela qual ele então se dedica a examinar se as objeções à engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva com base nesse tipo de valores têm alguma justificativa. No final das contas, Dworkin sustenta que nenhum tipo de valor está envolvido na grande maioria, se não na totalidade da reação de aversão às novas tecnologias, à nova genética, e que essa reação pode ser mais bem explicada como um tipo de objeção da ladeira escorregadia [slippery slope argumment]. Essa reação explicita muita mais uma atitude de medo diante do desconhecido e da incerteza moral do que a violação de algum tipo de valor, seja ele derivado de algum interesse particular, seja ele sagrado. Em outras palavras, embora a eugenia liberal não afete nenhum tipo de valor propriamente dito, ela torna nublada uma distinção que serve de base à moralidade convencional, a saber, a distinção entre acaso e escolha. Segundo Dworkin,[29] “uma tal mudança, não ofende quaisquer de nossos presentes valores, derivados ou independentes, mas, pelo contrário, torna grande parte desses de repente obsoletos”.

Entretanto, essa hipótese de Dworkin e Buchanan foi recentemente colocada em dúvida por Justine Burley em seu artigo Morality and the “New Genetics”. Ela devota-se a três questões gerais relativas à posição de Dworkin no texto supracitado, a saber: “que áreas de nossa ética e moralidade estão sob ameaça? Está Dworkin correto que enfrentamos um estado de queda livre moral? Se não, o que poderia contar a favor dessa forte afirmação?”.[30]

Não obstante, Burley pretende argumentar que o diagnóstico de Dworkin, particularmente sua hipótese da queda livre moral é tanto exagerada quanto falsa e que se alguma concepção de moralidade corre algum risco diante dos avanços da engenharia genética é a própria concepção de moralidade política de Dworkin: a igualdade de recursos. Ou seja, a teoria do individualismo ético é incapaz de reparar as desigualdades dos indivíduos em um cenário em que as capacidades mentais e físicas fossem controladas pela engenharia genética.[31]

Antes de avaliar a hipótese da queda livre moral propriamente dita, Burley busca esclarecer o que ela não é, a saber, não é uma afirmação a respeito do estatuto ontológico e epistemológico sobre valores, não é uma posição metaética. Ela não revoga a posição realista na metaética de Dworkin, um tipo de realismo moral que é compatível tanto com o erro moral quanto com certo grau de indeterminação moral.[32] Para Burley, a hipótese da queda livre moral não diz respeito a uma questão moral propriamente dita, mas antes a uma factual. Uma vez que para Dworkin “nenhum incremento factual na ciência, seja genética seja qualquer outra, poderia alguma vez comprometer o estatuto objetivo dos valores morais. [A hipótese dele] (...) da queda livre moral relaciona-se com nossas opiniões éticas padrões e o pano de fundo moral que informa essas visões”.[33]

Segundo Burley,[34] a hipótese de Dworkin pode ser considerada a partir de três dimensões diferentes: a descritiva factual, a psicológica descritiva, e a normativa. No entender de Burley no que diz respeito à dimensão descritiva factual, a posição de Dworkin é ambígua especialmente a respeito da medida do controle necessário na intervenção genética para que ocorra o cenário de uma queda livre moral, uma vez que, em uma passagem de seu texto,[35] ele afirma expressamente que a ‘mera possibilidade’ já seria suficiente para acarretar a queda livre moral, para engendrar um sentimento de deslocamento moral. Não obstante, em outras passagens ele sugere que somente se fosse possível de fato a clonagem humana e a manipulação genética a hipótese da queda livre moral deixaria de ser uma mera hipótese.

Burley parece entender que a posição de Dworkin no texto em questão pressupõe de algum modo o determinismo genético, uma vez que ela afirma que a “reprodução dirigida geneticamente nunca será completamente controlável”,[36]dado que sempre haverá um golfo considerável entre genótipo e fenótipo. Não obstante, Burley acredita que o progresso até então alcançado já permite o que ela denomina de um controle moderado da reprodução dirigida geneticamente e isso em nada desestabilizou nossas convicções normativas.

Além disso, conforme Burley,[37] para Dworkin, tanto é assim que a popularidade do termo ‘loteria natural’ demonstra a centralidade da convicção de que o que na maior parte nós seres humanos somos é uma questão de acaso [chance] e não escolha [choice]. Embora a grande maioria dos seres humanos ainda sinta-se orgulhoso por atributos físicos e habilidades que não escolheram ou criaram, como aparência física e força. Por conseguinte, isso evidencia para Burley, que Dworkin de alguma maneira insiste que a imutabilidade da constituição genética tem relevância psicológica especial.[38]

Entretanto, afirma Burley: “aqueles de nós que atribuem maior importância moral à sorte social do que Dworkin não precisam fazer maiores ajustes conceituais a como pensamos sobre a relação entre acaso [chance] e escolha [choice].”[39]

No que diz respeito à dimensão normativa, a posição de Dworkin conforme a interpretação de Burley é que a estrutura geral de nossa moralidade e ética convencional depende crucialmente da distinção fundamental entre o que somos responsáveis por fazer e decidir, individualmente ou coletivamente, e o que nos é dado, como um pano de fundo contra o qual agimos e decidimos, e o qual somos impotentes para modificar.[40]

Burley entende que Dworkin está defendendo que noções como a de integridade pessoal e liberdade reprodutiva serão tão drasticamente afetadas pelos avanços da engenharia genética que se tornarão noções irreconhecíveis. O que, segundo ela, faz parte da hipótese da queda livre moral dworkiana. Quanto à liberdade reprodutiva, uma mudança significativa num cenário de controle genético relaciona-se com a modificação do que se entende atualmente pelo reino da responsabilidade, o qual será expandido para incluir a responsabilidade dos procriadores pelos resultados detalhados de suas escolhas reprodutivas.[41]

Burley também se devota a mostrar que o individualismo ético de Dworkin estaria ameaçado pelo advento de uma era de controle genético da reprodução humana. A fim de avaliar normativamente as questões de moralidade política, Dworkin elaborou o que ele denomina de uma concepção moral mais crítica de pano de fundo, a qual denominou de individualismo ético. Essa visão compõe-se principalmente de dois princípios: 1) o da santidade da vida humana, que afirma que é objetivamente importante que qualquer vida humana seja bem sucedida, uma vez iniciada, em não falhe – ou seja, que o potencial dessa vida de seja realizado e não perdido; 2) o da responsabilidade especial, que estipula que cada indivíduo, de quem a vida é, tem uma responsabilidade especial por cada vida humana, e em virtude dessa responsabilidade especial tem o direito de tomar as decisões fundamentais que definem o que é no seu entender uma vida bem sucedida. [42]

Como já dito, Burley defende que a hipótese dworkiana da queda livre moral parece aplicar-se não apenas às nossas convicções normativas tradicionais, mas à própria moralidade crítica que serve de critério normativo para avaliar nossas intuições normativas convencionais, em outras palavras, os próprios ideias humanistas que constituem a posição de Dworkin parecem estar em risco.

Segundo Burley, o primeiro princípio dworkiano mostra-se inadequado para lidar com as questões normativas suscitadas pelos avanços no campo da engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva assim que se presta a devida atenção a sua formulação. Esse princípio enfatiza que a vida humana, uma vez começada, tem um valor sagrado, entretanto, desse modo, “não tem nada muito útil a dizer sobre a bondade ou maldade de decisões procriativas anteriores à criação de vidas”,[43] uma vez que o caso da manipulação genética embrionária, intervenção ocorre antes da inserção do embrião no corpo da futura mãe.

Quanto ao segundo princípio, Burley, afirma que ele parece ser contra qualquer insistência do governo de que os prospectivos pais deveriam respeitar certos limites ou padrões preferidos moralmente de capacidades físicas e que possam ser tomadas quaisquer medidas para assegurar que os que pretendem ter filhos esforcem-se para que o mesmo seja bem sucedido.[44] Apesar dessa suposta incapacidade do individualismo ético em lidar com os avanços no campo da engenharia genética, Burley re-afirma que nada disso se assemelha com uma situação de queda livre moral tal como advogada por Dworkin em relação à moral convencional, muito menos em relação à moralidade crítica.

Burley aponta que Dworkin evita discutir as implicações da ciência genética recente para sua própria teoria da igualdade, mas considera que ele demonstra estar ciente das implicações à mesma desses avanços. A teoria da igualdade de recursos procura garantir igual consideração e igual respeito a todos. Não obstante, ela afirma que a preocupação dele com a igual consideração patrocina “uma estrutura econômica que é sensível às diferenças em escolhas de estilos de vida com que as pessoas se identificam, mas insensível a diferenças não escolhidas nas pessoas em capacidades físicas e mentais”.[45] Por conseguinte, o estadunidense recorre ao esquema do seguro hipotético para assegurar igual respeito a todos, buscando situar todas as pessoas de maneira igual em relação aos seus riscos ex ante. Desse modo, essa concepção de igualdade recusa compensação aos indivíduos se os mesmos carecem de recursos em função do que o filósofo denomina sorte por opção [option luck], e exige compensação aos indivíduos que são vítimas do que ele denomina de bruta má sorte [brute bad luck].[46] O problema para a teoria da igualdade recursos, no entender de Burley, é que a má sorte genética é transformada em sorte por opção na medida em que são vinculadas as escolhas dos pais não poderiam no esquema dworkiano ser consideradas como compensáveis, pois sendo escolhidas pelos pais, na teoria de Dworkin seria um tipo de sorte por opção.[47] A acusação de Burley é ainda mais grave em relação às consequências dos avanços no campo da engenharia genética à igualdade de recursos, ela considera que “se Dworkin se mantiver fiela uma das diretrizes centrais de sua própria teoria da justiça igualitária, a saber, a sensibilidade à escolha, é difícil ver como ele pode resistir a abraçar uma abordagem libertariana na prática (não na justificação)”, [48] ou seja, embora em teoria ele defenda uma teoria igualitária que visa à igual consideração de interesses e ao igual respeito, na prática sua teoria, num cenário de controle genético, teria consequências semelhantes àquelas resultantes de uma posição como a de Robert Nozick em State, Utopia and Society, a saber, os indivíduos desafortunados na loteria genética, agora controlável pelos portadores de poder econômico para tal, teriam sua sorte determinada pela mão invisível do mercado da livre concorrência, a qual costuma ser altamente excludente em relação aos mesmos.

 

A RESPOSTA DE DWORKIN ÀS OBJEÇÕES DE BURLEY À TEORIA DA IGUALDADE DE RECURSOS

 

O próprio Dworkin devota-se brevemente a responder às objeções de Burley no final do volume Dworkin and His Critics. Segundo Dworkin,[49] ela faz duas afirmações centrais: primeiro, afirma que algumas das afirmações são exageradas e que o motivo disso é um temor do próprio Dworkin de que os recentes avanços no campo da engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva afetam não à moralidade convencional como um todo, mas antes apenas a própria concepção de justiça distributiva de Dworkin. A hipótese da queda livre moral se aplica apenas à igualdade de recursos e não à moralidade convencional em geral.

Para Dworkin, a base da segunda afirmação seriam três argumentos distintos baseados em suposições sobre a própria visão de Dworkin. Primeiramente, ela acredita que na visão de Dworkin as pessoas devem ser compensadas por desvantagens de vários tipos apenas quando essas são o resultado de forças naturais (loteria natural) e não quando é o resultado de condições ou decisões sociais (loteria social).[50] Desse modo, num cenário em que a manipulação genética fosse possível, para traços hoje relacionados com a loteria natural, a concepção da igualdade de recursos não consideraria mais compensável, o que é parece ser insensível e implausível de ser defendido. Em segundo lugar, as pretensões a compensação deveriam ser medidas e limitadas apenas àquilo que se poderia esperar que as pessoas razoavelmente estivessem dispostas a comprar uma apólice de seguro supondo que todos partissem de uma situação inicial de igualdade e como é improvável (para não dizer impossível, uma vez que ainda não nasceu) que alguém faça seguro contra escolhas parentais genéticas desvantajosas, segue-se que a igualdade de recursos seria insensível as desvantagens advindas de escolhas dos pais infelizes no momento da concepção e não compensaria esse tipo de desvantagem. Em terceiro lugar, se as promessas da engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva se tornarem factíveis, então parece que seria tanto sábio quanto equitativo que o Estado obrigasse o uso dessas técnicas em alguns casos e proibisse em outros.

Segundo Dworkin,[51]a primeira afirmação de Burley supõe que a hipótese da queda livre moral desenvolvida por ele em Sovereign Virtue tem um escopo muito mais amplo do que aquele pretendido por ele inicialmente. O que Dworkin entende ter afirmado no texto supracitado é que se os sonhos da engenharia genética forem factíveis, esse cenário causaria uma mudança sísmica no limite entre acaso [chance] e escolha [choice], na qual muitas de nossas convicções morais e éticas mais profundas sobre orgulho, vergonha, culpa e responsabilidade pessoal e entre gerações apoiam-se.[52] E, por conseguinte, muitas de nossas atitudes e convicções normativas relativas a essas questões necessitariam ser modificadas à luz desses avanços, embora ainda seja cedo e prematuro apontar exatamente quais.

Dworkin queixa-se que Burley “não menciona quaisquer das particularidades da ética e moralidade ordinária” que ele discutiu.[53] E, além disso, ela sugere que ele teria afirmado que elementos centrais de nossa moralidade convencional se tornariam obsoletos e, por isso, deveriam ser abandonados ou receber emendas substantivas tais como a integridade física e a liberdade reprodutiva. Porém, ele afirma que esses dois elementos da moralidade convencional não são afetados significativamente pela alteração nos limites entre acaso e escolha. Segundo Dworkin, o que no fundo ele está defendendo no texto em questão é que se for necessário mudanças em nossa moralidade convencional à luz dos avanços no campo da engenharia genética, “teríamos que se apoiar em ‘uma parte mais crítica e abstrata de nossa moralidade”, que inclui os princípios políticos profundos do individualismo ético, para decidir quanto e de que maneira essas convicções diárias deveriam ser revisadas”.[54] Esse aspecto da resposta de Dworkin à Burley, a saber, a afirmação de que a manipulação genética afeta à moralidade convencional (a qual nos termos da teoria habermasiana poderia ser entendido como o Lebenswelt) e não à moralidade crítica (que na concepção de ética normativa habermasiana poderia ser interpretado como a própria praxis argumentativa voltada ao melhor argumento), sugere que Habermas pode ter lido equivocadamente o diagnóstico dworkiano a respeito da moralidade diante dos recentes avanços no campo da engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva, uma vez que, ao recorrer à ética da espécie [Gattungsethik], Habermas parece estar pressupondo que Dworkin está afirmando que mesmo a moralidade crítica é incapaz de responder às questões suscitadas pela nova eugenia.

Conforme Dworkin,[55] Burley apóia-se apenas no capitulo II de Sovereign Virtue para apoiar a suposição que a concepção de igualdade de recursos compensa apenas desvantagens oriundas da loteria natural e não oriundas da loteria social, uma vez que essas últimas envolvem algum tipo de escolha, mesmo que dos pais e não do próprio indivíduo. E, além disso, no capítulo III do mesmo livro o estadunidense afirma que se devotou amplamente a argumentos baseados em justiça que condenam certos tipos de desvantagens sociais, e não apenas as naturais, como Burley parece sugerir, entre as quais ele cita desvantagens que são oriundas de algum tipo de discriminação social. Além do mais, ele afirma distinguir claramente entre dois tipos de sorte [Luck], o que ele denomina de bruta má sorte [brute bad luck] e a má sorte por opção [bad option luck]. O primeiro tipo é aquela pelo qual o indivíduo não é considerado responsável, e que por isso deve ter algum tipo de compensação, o que para Dworkin claramente inclui sua herança genética. O segundo tipo é aquela pelo qual o indivíduo é considerado responsável, uma vez que é a má sorte resultante de um risco que o indivíduo decidiu livremente correr. O problema aqui é que Burley considera que da distinção traçada acima por Dworkin se segue que a herança genética, embora atualmente sendo classificada como uma bruta má sorte e, portanto compensável, assim que adentrar no âmbito da escolha, se tornaria um tipo de sorte por opção que pode ser boa ou ruim, e no segundo caso, tratando-se de sorte por opção não mereceria nenhum tipo de compensação, uma vez que poderia ser remetida à escolha dos pais e não mais ao acaso da loteria natural. Para Dworkin, a leitura de Burley envolve algum tipo de non sequitur, pois não se segue do fato que a dotação genética entra na esfera da escolha dos seres humanos, nesse caso dos progenitores, que ela se converta para o próprio indivíduo geneticamente manipulado ou não, que esse fato, que era natural e agora se tornou discricionário para os pais, que sua dotação seja classificada como sorte por opção agora e não sorte bruta simplesmente seja boa ou má. E, por conseguinte, se não deixa de ser bruta má sorte (boa ou má), então ainda pode ser considerada compensável na hipótese da dotação genética recebida trazer desvantagens significativas na sociedade em que o indivíduo vier a viver.

Segundo Dworkin,[56] o segundo argumento de Burley relaciona-se com o modelo do seguro hipotético como fundamento para a compensação por incapacidades e desvantagens. Aqui Dworkin faz referência ao cenário de alguns grupos de pais, particularmente aqueles vinculados a alguma ideologia religiosa, que podem não encontrar nenhum tipo de vantagem, ao menos da perspectiva da comunidade da qual são membros, da manipulação genética para sua prole. Não obstante, o que da perspectiva dos pais pode não consistir em nenhum tipo de desvantagem, pode sê-lo da perspectiva dos próprios filhos, uma vez que aqueles que estão decidindo acerca de que tipo de seguros fazer na situação hipotética podem descobrir que as seguradoras não ofereceriam nenhum tipo de seguro contra defeitos ou falhas que a negligência deixou de evitar. Desse modo, a igualdade de recursos seria similar ao libertarianismo de Robert Nozick, por exemplo. No entender de Dworkin, Burley está equivocada quando “a forma que um mercado de seguridade hipotético funcionaria se tais defeitos fossem suscetíveis de serem prevenidos” geneticamente.[57]

Além do mais, Dworkin não entende que exista nenhum tipo de problema relativo à suposta exigência coativa por parte da sociedade de que os pais realizem os testes genéticos e realizem as intervenções. O estadunidense não vê nenhum tipo de falta de similaridade entre a predição das desvantagens no cenário atual e num cenário em que a engenharia genética se torne corriqueira, e vale lembrar, diz ele,[58] que o modelo hipotético de seguro exige uma alíquota de seguridade da comunidade e não baseada apenas nas escolhas individuais. Vale lembrar que Dworkin é favorável a um sistema de seguridade social e assistência saúde pública. Para Dworkin isso é válido tanto para a cura genética quanto para o aperfeiçoamento genético e ele entende que não identifica “nada na teoria [da igualdade de recursos] ou estrutura de tal seguridade que negaria compensação às pessoas cujos pais recusaram os aperfeiçoamentos disponíveis”.[59]

Para que as pessoas fossem compensadas pelos aperfeiçoamentos genéticos não recebidos seria necessário apenas que houvesse na sociedade em que o indivíduo vier a viver que haja um acordo suficiente a respeito da importância do aperfeiçoamento em questão. Como diz Dworkin, as decisões acerca dessas questões não são nem acidentais e nem resultado de algum artifício secreto, mas antes tem raízes nos princípios da moralidade política já apresentados anteriormente e que constituem a concepção normativa de Dworkin, a sua moralidade crítica e abstrata.

Segundo Dworkin,[60] ao tratar de temas de bioética como o aborto e a eutanásia em outras obras como Life’s Dominion, ele teria afirmado que as pessoas que decidem tomar certas atitudes ou passos no que concerne a suas escolhas reprodutivas, particularmente procurando evitar o nascimento de filhos com defeitos genéticos, fazem isso, não baseados no que ele denomina de valores baseados em interesses particulares, mas antes com base no que ele denomina de valor intrínseco ou independente de interesses, que diz respeito especialmente ao valor da vida da pessoa futura e não aos interesses que supostamente ela poderia ter. Para Dworkin, Burley não está errado em afirmar que ele defende isso, mas sim nas conclusões que tira disso. Ela parece identificar algum tipo de inconsistência entre essa posição e algumas considerações que resultam do problema da não identidade de Parfit. Ponto esse que não se pretende aprofundar aqui.

 

AS CONSEQUÊNCIAS DAS CRÍTICAS DE BURLEY À POSIÇÃO DE HABERMAS EM DIE ZUKUNFT DER MENSCHLICHEN NATUR

 

Habermas faz cinco referências à Dworkin em Die Zukunft der menschlichen Natur, a primeira das quais refere-se à hipótese da queda livre moral e ele afirma[61] o seguinte: “a mudança de perspectiva que a técnica genética produz para as condições consideradas até o momento como inalteráveis ao julgamento moral e à ação moral.” As condições inalteráveis à que Haberrmas faz referência são o limite entre o acaso e a livre escolha que forma a estrutura geral ou espinha dorsal de nossa moralidade convencional. Logo após apresentar o diagnóstico dworkiano, Habermas[62] afirma que o cenário da eugenia liberal nos coloca diante de duas alternativas: ou acreditamos, como faz Dworkin, que a eugenia liberal irá ampliar a autonomia individual, particularmente consistirá em uma ampliação do espaço de livre escolha da pessoa geneticamente manipulada; ou então acreditamos que a eugenia liberal irá minar à autocompreensão normativa de pessoas que conduzem suas vidas elas mesmas e respeitam-se mutuamente (o que, Habermas, parece pressupor que o diagnóstico dworkiano em parte está comprometido). Por essa razão o argumento de Habermas é de natureza hipotética ou condicional, razão pela qual ele inicia a implicação da segunda alternativa com a expressão ‘caso’[Wenn], cujo consequente é o recurso à ética da espécie [eine gattungsethisch vermittelte Orientirung], e um decisão acerca da identidade da espécie, que segundo o entender de Habermas,[63] recomenda a moderação e a cautela e não o abandono da decisão eugênica às preferências subjetivas dos progenitores orientadas apenas pelas regras do livre mercado de concorrência. Para mostrar que a primeira hipótese é inapropriada, Habermas recorre ao exame do argumento moral [moralische Argument] a favor da proteção absoluta da dignidade da vida humana, desde a concepção, recorrente nos debates a respeito da permissibilidade do aborto. O debate acerca do aborto é marcado pela dicotomia entre defensores da vida [geralmente denominados de Pro-life] e defensores da liberdade reprodutiva dos progenitores [geralmente denominados de Prochoice]. Não obstante, as sociedades contemporâneas, ao menos aquelas a quais Habermas está prioritariamente se dirigindo, Estados Unidos da América e Alemanha, é marcada pelo pluralismo axiológico, desse modo “fracassa toda tentativa de alcançar uma descrição ideologicamente neutra, e, portanto, sem pré-julgamentos, do status moral da vida humana”.[64] Ou seja, um argumento moral como aquele baseado na noção de dignidade humana, que remonta à filosofia prática de Kant, poderia ser insuficiente até mesmo no que diz respeito à uma questão bioética tradicional como o aborto, pior ainda para uma questão suscitada pelos recentes avanços no campo da nova eugenia, como é o caso da manipulação genética aperfeiçoadora.

O diagnóstico de Dworkin, segundo a resposta oferecida pelo mesmo à Burley, sugere que o que a alteração do limite entre acaso e livre escolha afetará à moralidade convencional, o que Habermas chamaria de mundo vivido, e não à moralidade crítica, que no caso da ética do discurso seria o próprio procedimento discursivo propriamente dito. Entretanto, também Burley como Habermas parecem ter interpretado a posição dworkiana como referindo-se a valores da moralidade crítica e não da convencional. E é importante frisar que o próprio Habermas[65] distingue entre esses dois níveis da moralidade em Die Einbeziehung des Anderen,

 

Regras morais operam fazendo referências a si mesmas. Sua capacidade de coordenar as ações comprova-se em dois níveis de interação, aclopados de modo reatroativo entre si. No primeiro nível, elas dirigem a ação social de forma imediata, na medida em que comprometem a vontade dos atores e orientam-na de modo determinado. No segundo nível, elas regulam os posicionamentos críticos em caso de conflito. Uma moral não diz apenas como os membros da comunidade devem se comportar; ela simultaneamente coloca motivos para dirimir consensualmente os respectivos confl itos de ação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Enfim, ao se examinar as críticas de Burley à igualdade de recursos e a respectiva resposta de Dworkin a essas, se pode perceber que Habermas parece supor que o diagnóstico do pensador norte-americano se refere à incapacidade da moral convencional, fundada na autonomia e na responsabilidade, de discriminar o moralmente correto do incorreto. Não obstante, Dworkin esclarece, contra àscríticas de Burley, que sua afirmação está comprometida com a tese que aquilo que entra em colapso são as regras morais ordinárias que regulam os comportamentos dos seres humanos e não o pano de fundo de moralidade crítica. Habermas recorre ao argumento da ética da espécie apoiando-se nos testemunhos de Dworkin, Höff e, e Buchanan et al., sem dúvida, uma vez que faz referência aos mesmos em Die Zukunft der menschlichen Natur, entretanto, é duvidoso que Dworkin tenha de fato defendido, que a moralidade crítica é afetada pelos recentes avanços no campo da engenharia genética, e mesmo que assim seja, Dworkin[66] acredita que “mesmo que venhamos a sofrer uma espécie de queda livre moral”, a objeção pode ser entendida como uma interpretação da objeção que é errado bancar Deus, todavia, diz Dworkin, [67] isso é o que temos feito desde o tempo de Prometeu (ser divino da mitologia grega que rouba o fogo dos deuses e é condenado a ficar acorrentado em um rochedo em que um pássaro todos os dias vem lhe comer o fígado, que se regenera novamente), portanto, se nossos valores tornamse ultrapassados, pior para esses valores, diria Dworkin, outros os substituirão. Além disso, a substituição desses valores por outros não será um processo cego e arbitrário, mas orientado por uma moralidade crítica de pano de fundo, o que segundo o arcabouço teórico do autor de Die Zukunft der menschlichen Natur seriam a própria ética do discurso e a concepção de sociedade de duplo nível (sistema e mundo vivido), ou seja, se a escolha da alternativa de uma ética de espécie se deve ao menos em parte a uma má compreensão do que fora dito por Dworkin, talvez seja necessário recorrer, o que Habermas faz em certas passagens do livro aqui discutido, a abordagem habermasiana da ciência e da técnica em textos anteriores de seu itinerário intelectual, o que, não obstante, transcende os limites do presente estudo.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

BURLEY, J. Dworkin and its Critics. Oxford: Blackwell Publishing, 2004.

 

DWORIN, R. Sovereign virtue: the theory and practice of equality. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2000.

 

DWORKIN, R.A virtude soberana: teoria e prática da igualdade. São Paulo; Martins Fontes, 2005.

 

HABERMAS, J. Erläuterungen zur diskursethik. Frankfurt: Suhrkamp, 1991.

 

HABERMAS, J. Die einbeziehung des anderen: studien zur politischen theorie. Frankfurt: Suhrkamp, 1996.

 

HABERMAS, J. Die zukunft der menschlichen natur: auf dem weg zu einer liberalen eugenik. Frankfurt: Suhrkamp, 2002a.

 

HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002b.

 

HABERMAS, J. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.


 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO V

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


HABERMAS E O EXPRESSIVISMO DE NORMAS DE ALLAN GIBBARD

 

Charles Feldhaus

 

INTRODUÇÃO

 

Habermas, nos últimos anos, tem se manifestado a respeito da relação entre a filosofia moral ou ética e a biologia. Em Nicht die Natur verbietet das Klonen. Wir müssen selbst entscheiden, em seu livro Die Postnationale Konstellation, Habermas afirma categoricamente que questões normativas (políticas, morais e éticas da espécie) como a discussão a respeito da permissão ou não da clonagem humana, da nova eugenia ou eugenia liberal, do uso de células embrionárias para pesquisa devem ser decididas com base argumentos de ordem normativa e não de ordem empírica, como é o caso das leis da biologia evolutiva. Em Die Zukunft der menschlichen Natur, ele empreende uma estratégia argumentativa baseado em uma ética da espécie porque supõe que a moral convencional é fortemente afetada pela modificação do limite entre acaso e escolha resultante da normalização da prática da eugenia liberal.[68] Essas intervenções marcam o forte antireducionismo habermasiano no diz respeito às questões éticas e com isso, ao menos em parte, o filósofo alemão concorda com a necessidade de se evitar reduzir valores morais ou decisões morais, a questões fáticas. O que é a despeito da visão habermasiana de que não se deve separar completamente indagações filosóficas e mais empíricas da sociologia, por exemplo, uma posição que permite aproximar as objeções habermasianas ao emprego de argumentos biológicos na reflexão moral da crítica mooreana ao naturalismo na ética e na identificação do principal erro lógico cometido por esse tipo de abordagem à ética, a saber, a falácia naturalista (um tipo de erro categorial identificado por G. E. Moore em Principia Ethica). Entretanto, essas abordagens supracitadas tratam da relação entre questões normativas concretas com a biologia, ao passo que, no primeiro capítulo de seu livro Die Einbeziehung des Anderen, - Eine genealogische Betrachtung zum kognitiven Gehalt der Moral - Jürgen Habermas discute questões relativas à própria gênese da ética, principalmente adentrando em tópicos da metaética. Ele busca defender uma concepção metaética cognitivista, diante do que denomina de não cognitivismo forte e não cognitivismo fraco. Ao contrário de grande parte dessas vertentes da metaética, Habermas desenvolve uma concepção metaética e de ética normativa que tenta dar conta da compreensão da práxis ética que transcende os valores compartilha dos do mundo da vida, a saber, advoga uma concepção de cunho universalista e cognitivista, embora antirealista (uma vez que ele evita qualquer comprometimento ontológico forte com alguma entidade independente da mente humana à que se refiram os enunciados normativos ou avaliativos).

Para Habermas, a melhor alternativa entre as possíveis, como explicação da gênese da ética é aquela que dá conta desse aspecto, a saber, da fenomenologia moral cotidiana. Entretanto, ao fazer isso, Habermas se defronta com algumas variantes bastante sofisticadas do empirismo, quais sejam, o expressivismo de normas de Allan Gibbard, tal como desenvolvido em Wise Choice, Apt Feelings, e o contratualismo moral de Ernest Tugendhat, tal como desenvolvido em Vorlesungen über Ethik. O presente estudo pretende reconstruir e examinar o expressivismo de normas de Gibbard assim como as considerações críticas de Habermas a respeito de uma abordagem empírica como a dele que tenta explicar o funcionamento da ética à luz da biologia. À luz disso tudo tentar-se-á dar alguma resposta à seguinte questão: que tipo de contribuição a biologia poderia oferecer à ética? Quais as vantagens e desvantagens de recorrer à teoria da evolução para explicar de maneira funcionalista o papel da ética no processo evolutivo dos seres humanos?

 

A EXPLICAÇÃO EXPRESSIVISTA DA MORALIDADE DE ALLAN GIBBARD

 

A análise expressivista de normas apresentada por Allan Gibbard, em seus livros Wise Choices, Apt Feelings: A Theory of Normative Judgment, Thinking How to Live e Reconciling Our Aims. In Search of Bases for Ethics busca explicar a natureza da moralidade, contudo, faz de uma maneira que se diferencia da adotada por G.E. Moore, em seu livro Principia Ethica, por exemplo, que busca examinar se seria possível encontrar uma definição para ‘bom’ e critica fortemente a vinculação da ética com estudos empíricos que pretendem identificar o conteúdo de enunciados avaliativos morais com propriedade físicas ou metafísicas. A estratégia de Gibbard procura explicar o significado dos termos morais explicando que tipo de estado mental esse termo é usado para expressar. Gibbard, portanto, parte do uso ordinário das palavras morais, mas seu escrutínio não se restringe a uma explicitação da moralidade de senso comum. Ele introduz em sua reflexão metaética elementos da teoria da evolução humana e hipóteses especulativas psicológicas. Obviamente, recorrendo à biológia como estratégia explicativa, Gibbard também se situa entre aqueles que recusam a identificação de enunciados avaliativos morais com propriedades metafísicas, a saber, sua posição não implica nenhum comprometimento ontológico com entidades morais independentes da mente humana.[69]

A fim de explicar o significado dos termos morais, particularmente buscando mostrar que eles consistem em expressões de estados mentais, Gibbard procura diferenciar dois termos comumente associados por algumas correntes tradicionais da reflexão acerca da moral: racional e moral. Ele quer saber o que racional significa. Ele quer entender a fala sobre moralidade, e, o que são questões morais, no final das contas. O que elas significam e o que elas têm a ver com racionalidade. Ao examinar ‘racional’ ele não pretende apresentar as condições para que uma ação possa ser considerada racional, mas sim, o uso do termo. Chamar alguma coisa de racional é endossá-la.[70] Quem endossa algo, o aceita. Por causa disso, Gibbard buscará, a fim de esclarecer o significado de racional, distinguir a aceitação de normas da mera internalização das mesmas.

Segundo Gibbard, haveria na história da filosofia ocidental duas concepções acerca da relação entre a moralidade e a racionalidade. A primeira que entende a racionalidade no sentido mais pleno e sustenta uma identidade entre moral e racional; uma outra, mais estrita, em que um ato pode ser irracional sem, contudo, ser incorreto. Gibbard adota a concepção de racionalidade mais estrita, segundo ele, adotada também por J. S. Mill em seu livro Utilitarismo.[71] Portanto, nessa visão chamar algo de moralmente errado implica sanções legais, de opinião pública e da consciência. Desse modo, quando se aceita uma norma, se expressa certos sentimentos ou estados mentais por parte do agente e dos observadores da sua ação. A culpa (sanção da consciência) por parte do agente e o ressentimento (sanção da opinião pública, por exemplo) por parte do observador.

Com o intuito de explicar as normas morais, sua relação com a racionalidade e, em que sentido, elas expressam estados mentais, Gibbard sustenta que não pretende apenas “elucidar conceitos ordinários e crenças, mas usá-los como guias”.[72] Ele enfatiza que a moralidade do senso comum reconhece que as normas morais são motivadoras até certo ponto, ao menos. Gibbard introduz uma distinção entre dois sistemas de controle normativo: o sistema de controle animal e o sistema de controle infundido linguisticamente e busca ressaltar qual o papel que a linguagem ocupa na motivação humana. A tese central de Gibbard é que a linguagem tem, no caso humano, a função biológica de coordenar comportamentos e expectativas. Mas, por que a linguagem tem essa função? Que tipo de explicação ou justificativa pode-se oferecer para isso? Segundo Gibbard, a capacidade da linguagem influenciar a maneira como as pessoas se comportam, tem a ver com a evolução humana. A capacidade de ser influenciado por normas obtidas mediante discussão normativa é resultado de pressões seletivas e isso confere certas vantagens adaptativas. A capacidade da linguagem influenciar as ações humanas não se restringe à eliminação de desacordos baseados em diferentes percepções dos estados de coisas no mundo, pois nem todo descordo moral é baseado em desacordo acerca da melhor descrição de um determinado estado de coisas. A linguagem tem outras funções, além da de transmitir informação acerca dos estados de coisas do mundo. A linguagem pode ser usada para criticar, exortar e incitar sentimentos e emoções nas pessoas. Ou seja, com a linguagem não apenas se dizer ‘algo’, mas também se pode influenciar alguém a fazer algo, ao se dizer algo. Esse é o caráter performativo do uso da linguagem, ao contrário do caráter declarativo que restringe-se a diz algo, a passar uma informação. Obviamente, esses dois aspectos da linguagem raramente se encontram sempre misturados e na prática cotidiana geralmente são encontradas tipos mistos, em parte declarativos e em parte performativos, não obstante, não é tema desse estudo adentrar nesse complexo tema de teoria da ação linguística.

Gibbard desenvolve sua explicação expressivista da aceitação de normas considerando o caso da ‘fraqueza da vontade’. Ele cita o exemplo de uma pessoa que acha que deve parar de comer nozes porque considera que isso é algo que faz sentido, ou seja, essa pessoa aceita a norma que deve parar de comer nozes, por razões de melhorar a sua saúde, por exemplo, não obstante, continua a comer nozes. A questão que surge disso é: como compatibilizar a fraqueza da vontade com a tese da psicologia moral ordinária que a aceitação de normas é motivante, ao menos até certo ponto? Que tipo de explicação expressivismo de normas pode oferecer a esse fenômeno? Para explicar isso, Gibbard recorre à distinção entre os dois sistemas de controle normativo: o animal e o linguisticamente infundido. À luz da teoria da evolução, ele ressalta que esses dois sistemas de controle normativo, assim como outros sistemas na biologia podem estar compartilhando a mesma função e agindo de modo independente um do outro, e levando os seres humanos a adotar caminhos de ação antagônicos.

Gibbard exemplifica a função dos sistemas de controle normativo buscando mostrar certa congruência entre as regras de convivência que seres humanos denominam de morais e as vantagens para aqueles que as respeitam. Todavia, não parece adequado sustentar um tipo de egoísmo aqui ou auto-interesse esclarecido, mas sim a existência de um mecanismo que permite aos seres da espécie homo sapiens sapiens obter vantagens mútuas, entre as quais se poderia ressaltar,, as vantagens reprodutivas que aumentam a probabilidade de manutenção da própria espécie humana. Para ilustrar isso, Gibbard cita a coordenação entre vendedor e comprador em que ambos são beneficiados. Ou seja, as regras morais de certa forma melhoram as condições do vendedor e do comprador.

Mas, o conflito pode acontecer também entre normas e não apenas entre normas e apetites, como alguns entendem que seja o caso da fraqueza da vontade.[73] Um conflito entre a regra que se aceita e outras normas sociais. Aqui Gibbard ilustra esse conflito mediante o experimento de Stanley Milgram. Nesse experimento algumas pessoas ficam encarregadas de aplicar choques elétricos, os quais podem ser significativamente dolorosos e até mesmo letais em outros seres humanos, na medida em que esses não acertam a resposta a certas questões. O objetivo do teste não é avaliar o conhecimento daqueles a quem as perguntas são dirigidas, mas , até que ponto as pessoas, que estão aplicando os choques elétricos, obedecem a ordem de aplicar o choque elétrico. O resultado do experimento mostrou que as pessoas continuavam a aplicar o choque até um nível que poderia significar até mesmo a morte daquele que o estava sofrendo. Além do mais, mesmo aqueles que pareciam relutantes a ir tão longe terminavam por seguindo a ordem de aplicar o choque elétrico assim que lhes era dito que o experimento deveria continuar mais ou menos nos seguintes termos: ‘você se comprometeu em cooperar com experimento então continue’. Mas, se há um conflito entre normas nesse experimento, quais seriam essas normas? Para Gibbard, aquele que aplica os choques reconhece e endossa a norma ‘Não devemos causar dano ou dor a seres humanos inocentes’, mas também reconhece normas sociais de cooperação como ‘obedeça e faça tudo que for necessário para cooperar em algo que se engajou’, nesse caso, com o experimento.

Como a diferença entre ‘aceitar’ e ‘internalizar’ normas pode ser utilizada para explicar o comportamento daquele que é considerado dotado de uma ‘fraqueza da vontade’? A aceitação de uma norma envolve endossá-la, mas o ser humano com vontade fraca aceita a norma moralmente correta, a endossa, contudo, age ou de acordo com um apetite contrário ou de acordo com outra norma social. Todavia, no quadro expressivista de normas de Gibbard, ao contrário do que aconteceria na ética kantiana, por exemplo, não existem normas rígidas e meramente racionais que entrariam em conflito com nossas inclinações.[74] No quadro expressivista, a moralidade está intimamente relacionada com os sentimentos e emoções e inclusive é a posse de certos sentimentos e emoções (culpa e ressentimento) que serve para determinar o certo e o errado. A sensibilidade, uma faculdade pretensamente não cognitiva, serve para determinar o certo e o errado. Desse modo, a fraqueza da vontade num quadro expressivista consiste principalmente em agir contrariamente àquilo que o agente considera como o melhor julgamento moral diante das circunstâncias.

Não obstante, ainda precisa ser esclarecido por que o ser humano com vontade fraca não realiza a ação moral que endossa ou aceita, mas outra ação contrária. Como foi ressaltado acima, para explicar esse fenômeno moral, Gibbard9 sustenta que o ser humano participa de dois sistemas de controle normativo: o sistema controle animal, compartilhado por outros animais, que vivem em grupos, e o sistema de controle infundido linguisticamente. No caso do ser humano com vontade fraca, ele concorda no âmbito do sistema de controle infundido linguisticamente, a respeito de qual é a norma correta, entretanto, o faz apenas da perspectiva de um observador independente (detached observer). Diante da situação real da ação, ele não parece ser influenciado pelo reconhecimento que uma determinada norma se sobrepõe ou tem mais peso do que as outras, entre as quais se encontra aquela que está violando. Isso somente pode acontecer, porque “internalizar uma norma é igualmente uma questão de coordenar propensões, mas as propensões são de um tipo diferente: elas trabalham independentemente da discussão normativa.”[75] Ou seja, o ser humano participa de dois sistemas de controle e dependendo das circunstâncias os mesmos podem não promover a mesma alternativa de ação. Porém, dado que fora apresentado alguns traços gerais da proprosta expressivista de normas de explicar a moral à lua biologia evolutiva, agora se faz necessário um exame mais criterioso da plausibilidade desse tipo de explicação da moralidade de um ponto de vista eminentemente funcional. O que Habermas pensa desse tipo de estratégia explicativa da moralidade? E a essa questão que esse estudo procurará agora oferecer uma resposta.

 

CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS DE HABERMAS A RESPEITO DA EXPLICAÇÃO EXPRESSIVISTA DE NORMAS

 

Habermas,[76] em Eine genealogische Betrachtung zum kognitiven Gehalt der Moral, sustenta que o empirismo clássico, em suas duas vertentes principais, a filosofia moral escocesa baseada na teoria dos sentimentos morais e o contratualismo moral baseado na noção de interesse enfrentam o mesmo tipo de dificuldade, a saber, não conseguem explicar com base apenas nos motivos racionais à obrigatoriedade dos deveres morais que remetem para além da obrigatoriedade oriunda da inteligência, racionalidade entendida nesse contexto meramente como razão instrumental ou racionalidade dirigida a fins.[77]

Segundo Habermas,[78] o empirismo baseado nos sentimentos morais não é adequado como uma explicação da moral, uma vez em que em sociedades complexas, como é o caso das sociedades contemporâneas em que vivemos, é difícil, senão impossível manter a coerência no julgamento moral baseado apenas na simpatia e na confiança. Além disso, Habermas[79] considera que não é possível provar a validade de uma teoria normativa da moral com base apenas em considerações de psicologia moral, o que equivaleria a cometer o que Moore já denomina de falácia naturalista em Principia Ethica. Habermas considera que os sentimentos morais são uma base insuficiente para a solidariedade entre os membros de sociedades complexas, particularmente porque em tais sociedades há uma diversidade de concepções de vida entre os indivíduos e os mesmos não podem evitar interações com pessoas ou grupos de pessoas estranhas aos que partilham sua própria visão de vida boa.[80]

O contratualismo moral, por sua vez, abandona completamente o aspecto da solidariedade, uma vez que baseia a fundamentação normativa em interesses egoístas e dirige a atenção aos direitos e não aos deveres. Com isso, equipara o acordo a respeito das normas morais a seguir a um contrato do direito privado. E, por isso, Habermas[81] afirma, tal estratégia de fundamentação está sujeita a duas objeções: 1) a assimilação de questões morais a de justiça política, o que torna difícil justificar uma moral universalista; 2) o problema do oportunismo, em que alguns indivíduos consideram-se vinculados as normas morais apenas na medida em que as percebem como vantajosas para os mesmos, portanto, “um acordo entre interesses não pode per se fundamentar obrigações.”[82]

Habermas[83] entende que à luz do fracasso das duas tentativas de fundamentar a moralidade de maneira empírica, surgiram novas tentativas de dar conta da fenomenologia moral das normas vinculantes em bases ainda empíricas, a saber, o expressivismo de normas de Allan Gibbard, desenvolvido na obra Wise Choices, Apt Feelings, e o contratualismo moral de Ernest Tugendhat, desenvolvido na obra Vorlesungen über Ethik.

Para Habermas,[84] é ponto comum às estratégias de Tugendhat e Gibbard que “toda moral do ponto de vista funcional resolve problemas de coordenação dos atos entres seres que dependem da interação social” e que nossos sentimentos morais regulam a observâncias das normas morais. A diferença entre ambos é que Tugendhat opta por um tipo de contratualismo moral e Gibbard segue o caminho objetivante de uma explicação funcional baseada na biologia e na psicologia. Nas próprias palavras de Habermas:

 

Gibbard emprega a norma para todas as espécies de padrões que dizem por que é racional para nós ter uma opinião, externar um sentimento ou agir de determinada maneira.[85]

 

Gibbard denomina morais as normas que fixam, para uma comunidade, quais as classes de atos que merecem reprovação espontânea. Elas determinam em que casos é racional para os membros sentir vergonha ou culpa ou indignar com o comportamento de outrem.[86]

 

Entretanto, diz Habermas,[87] a proposta oferecida por Gibbard carece de uma noção de racionalidade (provavelmente Habermas aqui está pensando na racionalidade comunicativa) para explicar a normatividade das normas que possa ser reconhecida pelos participantes da perspectiva performativa e não apenas da perspectiva do observador. A autoridade das normas morais se explica apenas da perspectiva do observador com base no valor reprodutivo das normas internalizadas com seus respectivos sentimentos. Mas, para Habermas, ainda permanece a tarefa específica de estabelecer uma conexão plausível entre o que é funcional do ponto de vista do observador, do ponto de vista de uma explicação em bases de biologia evolutiva, e o que é racional aos próprios participantes de uma perspectiva perfomativa. Esse problema se torna mais evidente quando se passa a discussão explicíta de “quais são as normas que devem ser admitidas como válidas”.

Para Habermas,[88] Gibbard até reconhece o papel da linguagem como importante meio de coordenação das ações dos membros da espécie Homo Sapiens Sapiens, a qual entraria em ação principalmente “quando o consenso normativo de fundo desmorona e novas normas precisam ser elaboradas”, o que ele chama de discurso normativo baseado então na aceitação de normas e não na mera internalização das mesmas. Não obstante, diz Habermas,[89] é obscuro que tipo de considerações podem ser utilizadas como apoio a um instrução normativa nesse tipo de discurso. Nas próprias palavras de Habermas:

 

Não podem ser bons motivos, pois esses derivam sua força racionalmente motivadora de padrões internalizados, a respeito dos quais se pressupõe que perderam sua autoridade - caso contrário não teria surgido à necessidade de um entendimento discursivo.[90]

 

Do que Habermas[91] conclui que “Gibbard não poderia compreender o entendimento discursivo” a respeito das normas controversas conforme o padrão de uma busca cooperativa da verdade, o que faz a ética do discurso, por exemplo, mas como um processo de “mútua influenciação retórica”. Os participantes podem apenas tentar contagiar seus interlocutores mas não convencer, o que leva Habermas a dizer que “o convencimento mútuo é substituído por algo assim como uma harmonização recíproca”[92]. E por causa disso, Habermas sustenta que não se poderia falar em fundamentação moral partindo do ponto de vista do expressivismo de normas de Gibbard.

É importante enfatizar que, ao tratar da discussão normativa, Gibbard fazferência à teoria discursiva de Habermas em nota de rodapé. Nesse contexto, ele trata especificamente dos padrões de resolução de desacordos morais. Ele afirma que ao enfatizar a discussão e a obtenção de um consenso está seguindo o caminho de Habermas. Porém, a obra a que Gibbard faz referência aqui não é e inclusive nem conta nas Referências Bibliográficas Consciência Moral e Agir Comunicativo, mas A crise de legitimidade no capitalismo tardio, a qual é claramente uma obra de teoria política e não de filosofia moral. Gibbard[93] acrescenta nessa nota que nada do que ele diz está em desacordo com a ideia de Habermas de uma comunidade de comunicação em uma busca cooperativa orientada pela verdade. Ele discorda apenas de Habermas quanto à estória espistemológica que Habermas conta, a saber, “que juizes competentes são aqueles que têm alcançado um consenso em uma busca cooperativa pela verdade”; Gibbard recorre à ideia de influência mutua no lugar de uma busca cooperativa pela verdade, e por isso, diz:

 

Nessa leitura discordo: uma pessoa pode, sem confusão pensar algo racional, mas ter uma estória do que torna [um] julgamento normativo competente que não é a de Habermas.[94]

 

Enfim, para Habermas,[95] Gibbard:

 

Gibbard precisa explicar por que, sob condições de comunicação pragmaticamente excelentes, elas deveriam encontrar anuência justamente nas normas que demonstram ser as melhores do ponto de vista funcional de seu ‘valor de sobrevivência’, objetivamente elevado e específico.[96]

 

Ou seja, tem que enfrentar o problema de compatibilizar os resultados obtidos da perspectiva do observador baseado na biologia evolutiva darwinista com os resultados que os participantes da discussão se convencem e consideram sensatos da sua própria perspectiva enquanto participantes dos debates normativos orientados ao consenso[97]. Uma saida para Gibbard, segundo Habermas em nota ao final da seção, seria mediante a apropriação pelos participantes das descrições biológicas, contudo, para Habermas: tal autodescrição objetivante ou destruiria a autoconsciência prática dos sujeitos capazes, ou, no caso da mudança do observador, mudaria essencialmente o seu sentido da perspectiva dos participantes.[98]

 

REFERÊNCIAS

 

DALL’AGNOL, D. Valor Intrínseco: metaética, ética normativa e ética prática em G. E. Moore. Florianópolis: UFSC, 2005.

 

DUTRA, D. J. V. Seria a Eugenia liberal míope? Natureza humana e autocompreensão moral em Habermas. Revista Ethic@, v. 4, n. 3, p. 327-337.

 

DUTRA, D. J. V. Razão e consenso em Habermas: a teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da biotecnologia. Florianópolis: Editora da UFSC, 2005.

 

GIBBARD, A. Wise choices, apt feelings: a theory of normative judgment. Oxford: Oxford University Press, 1990.

 

GIBBARD, A. Thinking how to live. Cambridge: Harvard University Press, 2003.

 

GIBBARD, A. Reconciling our aims: in search of bases for ethics. New York: Oxford University Press, 2008.

 

HABERMAS, J. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt: Suhrkamp, 1983.

 

HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

 

HABERMAS, J. Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen Theorie. Frankfurt: Suhrkamp, 1996.

 

HABERMAS, J. A Inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

 

HABERMAS, J. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

HABERMAS, J. Die Zukunft der menschlichen natur: auf dem weg zu einer liberalen eugenik. Frankfurt: Suhrkamp, 2002.

 

HABERMAS, J. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.

 

HABERMAS, J. Die postnationale konstellation: politische essays. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1998.

 

HARE, R. The language of moral. Oxford: Oxford University Press, 1952.

 

MILL, S. O Utilitarismo. Trad. Alexandre Braga Massella. São Paulo: Iluminuras, 2000.

 

MOORE, G. E. Principia ethica. A revised edition. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

 

PUTNAM, H. Ethics without ontology. London: Harvard University Press, 2004.

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO VI

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


HABERMAS E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

 

Charles Feldhaus

 

Boa parte da literatura filosófica que acabei de mencionar parece, a primeira vista, excessivamente terminológica. Os filósofos políticos devotaram muita atenção à definição de desobediência civil, a questão de como ela é diferente de outros tipos de atividade criminosa politicamente motivada. Esses exercicios são terminológicos, porém, apenas na superficie. Tem como objetivo descobrir diferenças na qualidade moral de diferentes tipos de ações, em diferentes situações. (Dworkin, 2000,p. 155).

 

INTRODUÇÃO

 

Em julho de 1981, em uma pequena cidade nas proximidades de Stuttgart – Alemanha, Großenstigen, treze manifestantes se abraçaram para impedir o trafêgo na entrada das barracas do acampamento do exército alemão, em que estavam estacionados mísseis nucleares americanos desde 1976. Esses protestos alcançaram seu ápice em 1982 com cerca de 700 manifestantes e com duração nessa oportunidade de uma semana inteira. Os protestantes se dividiam em grupos de afinidades de aproximadamente 15 pessoas em turnos de seis horas. No total foram aproximadamente 50 grupos de afinidade (Bezuggruppen) e cerca de 400 manifestantes foram presos (Quint, 2008, p. 12-3). Essas manifestações, que ficaram conhecidas como protestos de Tent Village, eram estritamente pacíficas e inclusive os membros desses movimentos recebiam treinamentos, para internalizar os princípios da não violência e para não reagirem de forma violenta, mesmo diante de atitudes agressivas de outras pessoas como a provocação policial (Quint, 2008, p. 13-4). A pertença a grupos de afinidade ocupava um papel fundamental em oferecer aos indivíduos, que participavam dos protestos evitar o sentimento de isolamento e gerar uma base de confiança entre os membros da manifestação (Quint, 2008, p. 15).

Como diz Quint (2008, p. 16):

 

Em conclusão, esse protesto dramático fez pouco para afetar a instalação de mísseis nucleares. Porém permaneceu na história do movimento do protesto como o primeiro exemplo de desobediência civil em ampla escala dirigido contra os mísseis nucleares na Alemanha, e tiveram um efeito importante na forma dos bloqueios subsequentes em Mutlangen.

 

Em 1983, 108 mísseis nucleares Pershing II foram instalados em território alemão pela OTAN na pequena cidade de Mutlangen. É importante ressaltar que a instalação desses mísseis nucleares ocorreu em reação a modernização e instalação de mísseis nucleares SS 20 pela União Soviética, o que para alguns, como o Chanceler alemã Helmut Schmidt, representava „uma séria ameaça à paridade de forças entre oriente e ocidente“. (Quint, 2008, p. 17). O problema é que a instalação desses novos mísseis suscitou o temor de uma catástrofe nuclear em território alemão. Os membros do movimento pacifista alemão afirmaram que a instalação desses mísseis não somente aumentava significativamente o risco de uma guerra nuclear em território alemão, mas também que a instalação consistia numa violação do direito à vida e à integridade física, garantidos pela legislação alemã, mas também numa transferência parcial da soberânia da Alemanha ocidental a um governo estrangeiro, uma vez que a decisão a respeito do emprego desses mísseis nucleares estava centralizada nas mãos do presidente norte-americano (Quint, 2008, p. 21-2).

Como consequência disso, seguiram-se cerca de quatro anos e meio de manifestações em Mutlangen (1983 a 1987). Elas termiram apenas depois que os presidentes norteamericano e russo, Reagen e Gorbachev, assinaram um tratado que resultou na retirada dos mísseis nucleares Pershing II. O ápice das manifestações em Mutlangen foi o que se costuma chamar deBloqueio de Outono (em setembro e outubro de 1986), que durou cerca de quatro semanas de manifestações quase ininterruptas nas proximidades das bases de mísseis (Quint, 2008, p. 24-5).

Habermas aborda o tema da desobediencia civil em A nova obscuridade [Die Neue Unübersichlichkeit], em Entre Faticidade e Validade [Faktizität und Geltung] e em algumas entrevistas. Habermas devota dois capitulos de Die neue Unübersichlickeit ao tema da desobediência civil: Desobediência civil – a pedra de toque do estado de direito democrático e Direito e violência – um trauma alemão. A tese central do primeiro seria que a presença da desobediência civil em uma sociedade seria uma marca distintiva da maturidade da cultura política democrática nessa sociedade (Habermas, 2015, p. 135) e portanto um componente normal e necessário de uma democracia (Habermas, 2015, p. 173) e não algo que devesse ser considerado como meramente ilegal, como um ato criminoso comum. Habermas procura, primeiramente, traçar uma distinção entre os movimentos pacificitas que ocorreram na Alemanha na década de 1980 dos movimentos estudantis, ao quais ele já havia se oposto em outras oportunidades, que ocorreram na Alemanha na década de 1960 e, dos movimentos terrorristas da década de 1970. Essa mudança dos movimentos sociais na Alemanha entre a década de 1960 e a de 1980, com forte influência dos movimentos sociais norte-americanos, também seria evidência de uma mudança no cenário político dos protestos na Alemanha ocidental. Aos movimentos estudantis da década de 1960 faltava uma identificação com os principios constitucionais da Republica Federal da Alemanha (a Alemanha ocidental). Como diz Haysom (2011, p. 179): “[o]s estudantes [que se manifestavam na década de 1960] concluíram que quaquer tentativa de mudar essa situação através dos canais normais políticos (especialmente através do partido social democrata) era provável levar meramente a integração e neutralização” Essa seria razão pela qual eles optaram por uma prática revolucionária que contrariava as regras do estado de direito democrático.

 

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL COMO GUARDIÃO DA LEGITIMIDADE DO ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO

 

Em Desobediência civil – a pedra de toque do Estado democrático de direito, Habermas ocupa-se, antes de mais nada, com a questão da tipicidade penal dos atos de desobediencia civil. Ele inicia chamando a atenção às modificações que ocorreram no cenário político alemão entre a década de 1960 e a então atual década de 1980, em que estavam ocorrendo às manifestações pacificista contra a instalação de mísseis nucleares no território europeu e na Alemanha em particular. Ele ressalta a diferença entre os movimentos estudantis, aos quais se opôs na decada de 1960, que“se inspirou em modelos revolucionários falsos”, uma vez que „faltava a identificação com os princípios constitucionais de uma república democrática“ (Habermas, 2015, p. 131) e os movimentos pacificistas, mas orientados agora pelos modelos norte-americanos de desobediência civil. Os protestos dos movimentos pacifistas em Mutlangen e Großenstigen consistiram essencialmente em „bloqueios, correntes formadas por pessoas impedindo o trânsito“ (Habermas, 2013, p. 130). O ponto central de diferença entre os movimentos da década de 1960 e os então recentes movimentos pacifistas contra a instalação dos mísseis Cruise e Pershing II consiste na ausência de violência, o caráter simbólico e „o propósito de apelar a capacidade de discernimento e ao senso de justiça da maioria“ (Habermas, 2013, p. 131-2). Habermas nesse ponto baseia-se ao menos em parte nas considerações de John Rawls, em A Theory of Justice, a respeito do direito à desobediencia civil de um ponto de vista político. Embora ele deixe claro que gostaria de oferecer não uma resposta jurídica, mas uma resposta baseada na filosofia do direito à questão da justificação ou não da desobediência civil, a qual ele confessa que não saberia dizer com certeza se concordaria com aquela apresentada por Rawls em A Theory of Justice (Habermas, 2015, p. 136). Rawls entende que um ato de desobediencia civil consiste em „uma ação pública, não violenta, determinada pela consciência moral, mas contrária à lei, que deve suscitar de hábito uma modificação das leis ou política governamental“ (Rawls, 1999, p. 133). Rawls também apresenta algumas condições, que deveriam ser cumpridas, a fim de que um ato de desobediência civil pudesse ser considerado como justificado, a saber: 1) esses atos precisam dirigir-se contra casos bem circunscritos de injustiças graves; 2) é necessário que já tenham sido esgostados todos os meios legais possíveis; 3) esses atos não podem desafiar a ordem jurídica como um todo, ou seja, não podem ameaçar a manutenção da ordem jurídica (Habermas, 2013, p. 133). Com base nisso, Habermas apresenta sua própria definição de desobediência civil como

 

um protesto moralmente fundamentado, ao qual não podem subjazer convicções de fé privada ou interesses próprios; ela é um ato público, que via de regra é anunciado e cujo decurso pode ser calculado pela polícia; ela inclui infração propositada de diversas normas jurídicas, sem afetar a obediência à ordem jurídica em seu todo; ela requer disposição de responder pelas consequências jurídicas da infração de normas; a infração de regras em que se manifesta a desobediência civil tem uma caráter exclusivamente simbólico – e disso resulta a restrição aos meios de protestos isentos de violência“ (Habermas, 2015, p.134).

 

Ou seja, a ausência de convições de fé privada ou de interesses próprios marca uma diferença entre a desobediência civil e a objeção de consciência, uma vez que a marca distintiva da desobediencia civil, ao menos da concepção política liberal da mesma, consiste no apelo aos principios constitucionais de um estado de direito democrático, os quais tem pretensão à imparcialidade e não se baseiam apenas em interesses individuais. O carácter público e anunciado marca uma diferença com atos de infração de regras comuns, dado que esses atos via de regra são ocultos e não anunciados, ou seja, criminosos comuns procuram ocultar seus atos de infração das regras estabelecidas e evitam a todo custo se responsabilizar pelas consequências penais de seus respectivos atos crimosos. O traço característico do respeito à ordem jurídica estabelecidade marca a diferença com atos revolucionais, os quais procuram via de regra mudar não apenas essa ou aquela lei ou política governamental, mas a própria ordem jurídica existente. Como já ressaltado, a próxima característica distintiva da desobediência civil, a disposição a responsabilizar-se penalmente pelas ações cometidasmarca uma diferençaa com os atos criminosos comuns, em que via de regra se procura evitar a punição. Do ponto de vista moral a disposição a se responsabilizar costuma evidenciar a força do comprometimento dos protestantes para com a causa e aumentar o apelo moral ao senso de justiça da maioria em relação às mudanças reivindicadas pelos manifestantes.

O traço distintivo da ausência de violência consiste num ponto central da discussão de Habermas do tema da desobediência civil no contexto histórico alemã da década de 1980, uma vez que, como será visto mais adiante, ele procura mostrar que a desobediência civil não pode ser compreendida como um crime comum e que este modo de compreender os movimentos pacificistas contra a instalação de mísseis nucleares em território alemão estava sendo uma tendência por parte de alguns setores da sociedade alemã de então. Habermas entende que estava sendo aplicado aos protestos pacifistas em questão um falso paralelo em relação aos movimentos de direita que desencadearam a passagem mediante regras estabelecidas da ordem jurídica de um estado de direito a um estado autoritário e totalitário. Essa visão ele chama de legalismo autoritário e consiste em traçar limites demasiado abruptos entre violência e direito, uma vez que, mesmo atos pacíficos como o bloqueio do trânsito estavam sendo interpretados como violência. Com base em Günter Frankenberg, Habermas entende ausência de violência como aquele ato, que embora constitua uma infração de regras, “não esteja em desproporção com a finalidade almejada do protesto” (Habermas, 2015, p. 131). Ou seja, os atos praticados a título de protesto contra uma política ou ato governamental, visando apelar ao senso de justiça e discernimento da maioria da sociedade, deve guardar a devida proporcianalidade entre a regra, à qual a infração é dirigida (o que em alguns casos trata-se claramente de uma regra distinta daquela que se pretende modificar no ordenamento jurídico, como no caso dos movimentos pacifistas aqui discutidos, que dirigiamse contra a instalação dos mísseis nucleares, mas recorreram ao bloqueio do trânsito de veículos em certos locais) e a modificação reivindicada pelos protestos. Guardadas as devidas proporções entre reivindicação e regras jurídicas violadas, aplicar o conceito de violência a esse tipo de manifestação seria errôneo da perspectiva habermasina.

Como vimos, um dos traços distintivos dos atos de desobediência civil é o apelo ao senso de justiça e ao discernimento da maiorida, a qual em sociedades democráticas contemporâneas geralmente possui o poder de decisão. Os casos de desobedência civil, além disso, dirigem-se a modificar a posição da maioria em relação a certas questões. Ronald Dworkin, em Desobediência civil e protesto nuclear, uma adaptação de uma conferência apresentada em 1983 em Bonn na Alemanha, a qual foi organizada por Habermas, publicada em 1985 no livro Uma questão de princípios, defende que os atos de desobediência civil podem ser classificados em atos baseados em considerações de integridade, baseados em questões de justiça e baseados em questões políticas (Dworkin, 2000, p. 156-8). Os movimentos pacifistas contra a instalação dos mísseis nucleares em terrtório alemã são classificados por Dworkin como do terceiro tipo, a saber, como baseados em questões políticas, uma vez que estariam dando a entender que a instalação dos mesmos seria não sábia, estúpida e colocaria em perigo não apenas uma minoria, mas a maioria e as minorias, a sociedade alemã como um todo (Dworkin, 2000, p.166-7). Dworkin também distingue entre os tipos de estratégias que os praticantes de atos de desobediência civil empregam, a fim de obter seus objetivos, qual sejam, estratégias persuasivas, que procuram fazer a maioria ouvir as reivindicações da minoria, por exemplo, quando a maioria trata sistematicamente de modo não igualitário e oprime uma minoria, como no caso das manifestações pelos direitos civis dos afro-descendentes nos Estados Unidos da Américas organizadas por Martin Luther King Jr; essa seria uma desobediência civil baseada na justiça empregada de forma persuasiva; e estratégias não persuasivas que procuram fazer com que a maioria mude de opinião a respeito de algo aumentando o custo de manter certo status quo. Essa parece ter sido o caso das manifestações dos movimentos pacífistas alemãos na década de 1980 discutidos aqui.

Mas onde se encontra a injustiça contra qual esses movimentos se dirigem? Habermas considera, contrariamente ao que alguns manifestantes defenderam, que não parece se tratar de uma infração do direito à vida e à integridade física garantido constitucionalmente, ele diz que esse seria um candidato fraco como norma contra qual a instalação dos mísseis atenta (Habermas, 2015, p. 176). Ele acredita que um suposto dever constitucional em relação à manutenção da paz seria um candidato mais fraco ainda (Habermas, 2015, p. 176). Ele acredita que aquilo que mais se aproxima seriam as regras dos direitos da gente, particularmente a regra que afirma que em um conflito bélico seria necessário distinguir entre alvos civis e militares, o que seria impossível em um conflito nuclear (Habermas, 2015, p. 177). ““Além disso, embora reconheça que a desobediência civil não se justifica com base na „violação manifesta de direitos fundamentais” (Habermas, 2015, p. 146), ele acredita que „se podem derivar outras razões para a desobediência civil” (Habermas, 2015, p. 146). “Aqui Habermas recorre ao ponto de vista de Erhard Eppler, „um dos protagonistas mais influentes e sérios do movimento pacifista”, que sustenta que: primeiramente, se pôde perceber uma alteração na estratégia norte-americana, que então parecia „aspira [r] (…) a capacidade de ganhar uma guerra atômica limitada [em território europeu] (Habermas, 2015, p. 147); em segundo lugar, o tipo de armamento utilizado (a saber, os foguetes Pershing II) sugerem que o governo norte-americano não tinha „interesse em um acordo que afete a composição prevista“ de armas instaladas em solo alemão, uma vez que não se tratava de um simples contrapeso aos mísseis SS 20 soviéticos (Habermas, 2015, p. 147); em terceiro lugar, a ameaça então existente forçava os soviéticos a dar máxima prioridade aos mísseis Pershing II instalados em solo alemão e tranformava a Alemanha em „alvo de ataque preventivo“ e „refém potencial“ (Habermas, 2015, p. 147); em quarto lugar, a instalação desses foguetes corroborava a „incapacidade das grandes potências de ao menos suspender a espiral armamentista“ (Habermas, 2015, p. 147). Habermas reconhece que não seria necessário partilhar todos os aspectos da intepretação de Eppler da situação, contudo, considera essa interpretação como comprovada e refletida para que se possa levá-la a sério quando está em questão a justificação do movimento pacificista nessse período (Habermas, 2015, p. 148). Entretanto, Habermas oferece argumentos adicionais a favor da desobediência civil nesse contexto, supondo obviamente a plausibilidade da interpretação da situação de Eppler. Habermas, como consequência disso, situa a questão da justificação da desobediência civil à luz das „decisões de princípio da política de segurança“ e sua base de legitimação com base na regra da maioria simples.

Uma vez que a regra da maioria e a desobediência civil podem encontra-se em conflito, Habermas se devota a identificar as condições de validade da regra da maioria, a fim de avaliar a plausibilidade e a justificação dos movimentos pacifistas na década de 1980 na Alemanha. Contudo, ele termina apresentando muito mais critérios negativos do que positivos, uma vez que sustenta que entre os pressupostos mínimos, a fim de manter a validade da regra da maioria, se encontram a inexistência de minorias inatas (aqui Habermas pretende evitar qualquer tipo de separatismo na sociedade, como por exemplo foi o caso da situação nos EUA quando dos movimentos dos direitos civis contra a segregação racial) (Habermas, 2015, p. 151). Outro pressuposto mínimo consiste na inexistência de decisões irreversíveis com base na regra da maioria, uma vez que a mesma opera sob as condições factuais, que se distanciam da situação ideal de fala, de limitacao de informações e tempo escasso (Habermas, 2015, p. 151). Não é muito claro porque Habermas pensa que a decisão da maioria simples que levou à instalação dos mísseis nucleares em território alemão seria irreversível. Talvez Habermas estivesse pensando que, como esse tipo de arma coloca em risco a própria existência da comunidade alemã, caso ocorresse uma conflito bélico nuclear, o resultado dessa decisão poderia não ser reversível, uma vez que antes da ocorrência de um 353 tal conflito a retirada dos mísseis revogando a decisão seria plenamente possível. Como veremos mais adiante, ao tratar de algumas críticas a posição de Habermas a respeito da desobediência civil, Dworkin considera que o argumento de Habermas contra a instalação dos mísseis inadequados para decidir essa questão.

 

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL E O REALISMO POLÍTICO

 

Em Direito e violencia – um trauma alemão, Habermas se devota, sobretudo, a relação entre o que chama de trauma alemão e os movimentos pacificistas na década de 1980. O trauma, a que Habermas se refere, foi „causado por uma passagem, efetuada de forma legal, do Estado democrático ao regime totalitário“ (Habermas, 2015, p. 162). O regime totalitário, a que ele se refere aqui, sem dúvida é o regime nazista. Entretanto, o ponto com que ele se ocupa diz respeito à vinculação do cenário, que precedeu à ascenção do regime nazista ao poder, e os movimentos pacifistas da década de 1980 na Alemanha contra a instalação de mísseis nucleares em território alemão. Como diz ele, o receio de alguns hoje seria que „o que naquela época veio da direita vem hoje da esquerda“, ou seja, alguns acabam „colocando o pacifismo e o fascismo no mesmo denominador comum“ (Habermas, 2015, 165). Razão pela qual Habermas devota grande parte do texto a tentar mostrar que as infrações das leis daqueles que praticam a desobediência civil, em particular dos atos de desobediência civil cometidos durante o período histórico em questão aqui, não podem ser classificados como crimes comuns e não deveriam receber o mesmo tratamento das autoridades que os atos praticados pelos criminosos comuns. Desse modo, o pensamento, que Habermas denomina de legalismo autoritário e hobbesianismo alemão, identifica aquele que realiza ou promove um ato de desobediência civil como rebeldes que assumem o duplo papel de cidadão e inimigo ao mesmo tempo, o que tornaria esses atos moralmente reprováveis (Habermas, 2015, p. 169). A fim de superar essas concepção equivocada da desobediência civil, como um ato moralmente censurável, Habermas recorre a uma distinção entre dois tipos de obediência à lei do estado, a saber, entre obediência condicional ou qualificada e obediência incondicional (Habermas, 2015, p. 170). Com essa distincão, ele procura chamar a atenção a um fato possível não contemplado pela concepcão legalista autoritária e hobbesiana alemã da desobediência civil, qual seja, a existência no interior de uma ordem jurídica legítima (cujas leis resultam de fato dos procedimentos legais estabelecidos na sociedade, por exemplo, da regra da maioria) de uma injustiça que perdura durante longo tempo, porém deixa de ser corrigida (Habermas, 2015, p. 171).

Habermas interpreta a ascenção desses novos movimentos pacifistas como uma oportunidade e ao mesmo tempo como uma evidência de amarudercimento da esfera pública política alemã. Razão pela qual ele advoga uma dissociação entre o conflito a respeito da desobediência civil (a respeito de sua tipificação penal, a respeito de sua avaliação moral) do trauma alemã relativo a ascenção de uma regime autoritário e totalitário mediante instrumentos legais no passado. A desobediência civil tem um carácter específico que torna difícil tipificá-la legalmente e até moralmente, ao menos isso se torna difícil quando ainda se vive a tensão que ela acarreta entre a garantia da paz jurídica do estado dotado do monopólio da violência e da pretensão à legitimidade (Habermas, 2015, p. 163). Habermas inclusive compreende que esses teóricos do legalismo autoritário e do realimo político, inspirados em Hobbes e Schmidt, estariam comprometidos com uma leitura seletiva dos princípios do estado de direito, na medida em que supõem que a paz e a seguranca interna da sociedade seria colocada em xeque, caso os cidadãos pudessem „decidir por si mesmo [s] quando ocorre uma situacão de resistência justificada“ (Habermas, 2015, p. 167). Aqui Habermas remete aos argumentos de Thomas Hobbes e Immanuel Kant recusando à desobediência civil como um direito jurídico constituicional, uma vez que isso acarretaria a existência simultânea de dois soberanos no estado e num tipo de contradição.

Além do mais, para Habermas, esse tipo de postura diante da desobediencia civil, que se baseia em uma delimitação rígida entre direito e violência, naturalmente termina simplificar algo de natureza um tanto quanto complexa, a saber, „permite desonerar a esfera jurídica de uma grande medida de questões sobre a legitimação“ (Habermas, 2015, p. 168). O problema dessa simplificação é que ela parece ignorar um elemento central das sociedades democráticas contemporâneas, qual seja, „a crença dos cidadãos na legitimação se regenera a partir de convicções morais“, a partir da cultura política de um povo, a qual deixa de existir numa sociedade em que esses conceitos (de violência e direito) são talhados dessa forma (Habermas, 2015, p. 168).

 

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL EM FAKTIZITÄT UND GELTUNG

 

Habermas em Faktizität und Geltung reconstrói o conceito de direito racional com base em uma teoria discursiva. Habermas acredita que essa reconstrução teórico-discursiva do direito é capaz de reconstruir o conceito do direito de forma mais adequada do que outros teóricos do direito. Para fazer isso, ele retoma a tradição do direito civil alemão do século desenove e os contratualistas modernos (Hobbes, Rousseau e Kant). Habermas identifica uma inconsistência na tentativa de fundamentar o estado de direito moderno apenas no autointeresse esclarecido dos contratantes na filosofia de Thomas Hobbes (1588-1679), dado que o mesmo estaria se comprometendo implicitamente com regras com conteúdo moral (Habermas, 1992, p. 121), as quais seriam inacessíveis a contratantes que estivissem vinculados apenas à perspectiva de primeira pessoal do singular (Habermas, 1992, p. 120). Habermas também identifica alguns problemas nas tentativas de conciliar a autonomia pública e autonomia privada nos pensamentos políticos de Jean Jacques Rousseau (1712-1788) e Immanuel Kant (1724-1804). Kant estaria comprometido com uma leitura moral dos direitos humanos (ou autonomia privada) e com isso estaria subordinando o direito à moral. Rousseau, embora consiga conciliar direitos humanos e autonomia pública, o faz apenas sob a suposição de uma leitura ética do conceito de soberania popular, a qual estaria vetada as sociedades pluralistas contemporâneas. Habermas busca mostrar que alguns aspectos da legitimidade do direito moderno que caracteriam a tensão geral entre facticidade e validade do direito podem não apenas ser conciliados de forma mais adequada do que os clássicos da filosofia do direito em seu modelo de democracia deliberativa, mas também que a esfera pública política ocupa um papel preponderante nesse modelo e que movimentos sociais, como componentes periféricos do sistema político podem servir como impulsionadores das reformas políticas e garantidores da legitimidade e, por isso, faria sentido chamar a desobediência civil de guardião da legitimidade como fez em A Nova Obscuridade e não conceber esse movimentos como contradiórios com a concepção discursiva do direito de Habermas, como veremos que sustenta Thomassen mais adiante. Enfim, Habermas acredita conciliar com sua intepretação discursiva do direito à soberania popular e com os direitos fundamentais, a autonomia pública e a autonomia privada, o que ele às vezes ele identifica com a distinção clássica de Benjamin Costant entre liberdades dos antigos e liberdade dos modernos e tenta lidar com a tensão dentre facticidade e validade inerente ao direito. É importante ressaltar que a dicotomia entre facticidade e validade serve, como aponta Baxter (2011, p. 62), para organizar a ordem de exposição da obra Faktzität und Geltung:

 

A primeira parte, no lado da validade, e a teoria normativa e reconstrutiva: a teoria discursiva do direito propriamente dita, estabelecida através de uma análise reconstrutiva da autocompreensão das ordens jurídicas modernas. A segunda parte, no lado da facticidade, e a teoria comunicativa da sociedade, em que Habermas examina do ponto de vista da teoria comunicativa da sociedade, se a teoria discursiva reconstrutiva é plausível sob as condições que se obtem factualmente da complexidade social moderna.

 

Habermas em Faktizität und Geltung distingue entre a periferia e o centro do sistema político e situa as estruturas da esfera pública política, que são vinculadas com as esferas da vida privada, com a sociedade civil. Aqui ele novamente refere-se a espiral armamentista nuclear e os riscos envolvidos mesmo num uso pacífico da energia nuclear assim como em projetos tecnológicos de experimentação científica como a engenharia genética como exemplos de questões que foram trazidas a pauta política do dia sob a influência da periferia do sistema político, em muitos casos através do emprego da desobediência civil ou outros tipos de manifestações no espaço público político (Habermas, 1992, p. 460-1). Esse último tema ele tratará em pormenor em sua obra Die Zukunft der menschlichen Natur.

Em Faktizität und Geltung Habermas afirma que a justificação da desobediência civil se apóia numa compreensão dinâmica da própria constituição, a qual deve ser compreendida como um processo de aperfeiçoamento constante e não como algo acabado. “o estado de direito democrático não representa uma estrutura acabada mas um empreendimento delicado e sensível – sobretudo falível e revisável, cujo propósito é realizar o sistema de direitos novamente em circunstâncias cambiantes“ (Habermas, 1992, p.464). Desse ponto de vista, os cidadãos tentam na prática superar a tensão [Spannung] entre facticidade e validade. A desobediência civil refere-se desse modo à própria origem da sociedade civil e em situações de crise, o conteúdo do estado de direito democrático tem que ser atualizado mediante a formação pública da vontade e superada a inércia sistemática da política institucional (Habermas, 1992, p. 463), na qual a desobediência civil pode ocupar um papel importante como guardião da legitimidade, dado que mediante “infrações às regras “, eles [os atos de desobediência civil] são experimentos moralmente fundamentados, sem os quais (…) não se pode conservar (…) [nem a] capacidade de inovação nem a crença de seus cidadãos na legitimação” (Habermas, 2015, p. 141).

 

ALGUMAS CRÍTICAS À CONCEPÇÃO DE DESOBEDIÊNCIA CIVIL DE HABERMAS

 

Conforme Haysom (2011, p. 191), em Civil Society and Social Movements, Habermas reconhece a dinâmica necessariamente conflituosa [contentious] da contestação pública na esfera pública política das sociedades constitucionais democráticas contemporâneas e a mesma serve como base da concepção de política democrática deliberativa e como um elemento distintivo da concepção de teoria ideal em sua teoria política em relação às teorias de John Rawls e Ronald Dworkin, por exemplo, em que o reconhecimento dessa característica da esfera pública seria ao menos evidente do que em Habermas. Acrescenta ainda que „o potencial normativo da política democrática é liberado, não mediante um mecanismo puramente procedimental plenamente incorporado na política como um sistema de governo, mas muito mais mediate atores ante- ou extra-sistêmicos que desafiam o sistema e forçam-lhe a reconhecer suas pretensões e ao público como um todo“ (Haysom, 2011, p. 191). Entretanto, existe quem discorde que o modelo de democracia deliberativa desenvolvido por Habermas em Faktizität und Geltung poderia ser compatível com a desobediência civil. Lasse Thomassen sustenta, em Within the Limits of Deliberative Reason Alone. Habermas, Civil Disobedience and Constitutional Democracy, que, ao incluir a desobediência civil como um componente normal e como marca distintiva de uma democracia constitucional madura, Habermas estaria implicitamente reconhecendo que seu modelo de democracia deliberativa seria incapaz de submter todas as questões e distincões ao uso público da razão na esfera pública política e resolver discursivamente a questão da legitimidade do direito. Thomassen sustenta que a discussão do tema da desobediência civil expõe uma ambiguidade no pensamento de Habermas. Ele afirma que consegue contemplar duas leituras diferentes e divergentes a respeito do pensamento político habermasiano: numa primeira interpretação, legalidade e legitimidade poderiam ser conciliados, ao menos em teoria (2007, p. 201); numa segunda interpretação, a lacuna [gap] constitutiva entre legalidade e legitimidade nunca poderia ser preenchida. Thomassen pretende com isso defender que a imperfeição de toda tentativa de conciliação entre legitimidade e legalidade seria uma marca constitutiva das sociedades democráticas e parece querer apontar para a inadequação de se recorrer a um modelo discursivo de democracia para resolver esse problema, uma vez que o consenso racional a respeito de diversas questões políticas, seria algo incomum, dado que a disobediência civil fizesse parte do cotidiano normal de uma democracia constitucional. Thomassen sugere, no lugar do modelo discursivo de Habermas, um modelo descontrutivo baseado em Jacques Derrida.

White & Farr respondem às críticas de Thomassen, em „No-Saying“ in Habermas (2012), sustentando, primeiramente, que a ideia de desobediência civil, tal como reconstruída por Habermas não é internamente contraditória; segundo, eles procuram mostrar a centralidade da „ideia de dizer não“ na esfera pública política das sociedades democráticas contemporâneas mediante o exercício da desobediência civil no paradigma comunicativo habermiasiano, particularmente eles procuram enfatizar que Habermas reconhece em Faktizität und Geltung que permanece um „núcleo anárquico“ ineliminável (While & Farr, 2012, p. 33-4) e, por causa disso, o momento da contestação seria tão importante quanto o momento do consenso na concepção de democracia deliberativa habermasiana (While & Farr, 2012, p. 37);

Baxter afirma que o ponto da análise do sistema de direito de Habermas não seria que o sistema de direitos e os princípios do estado de direitos resolveriam completamente a tensão entre soberania popular e direitos humanos. Até porque isso seria inconsistente com a principal tese de teoria discursiva do direito, a saber, que a tensão entre facticidade e validade seria continua e inescapável (Baxter, 2011, p.73). Outro ponto que Baxter ressalta e que poderíamos utilizar como resposta à crítica de Thomassen, seria que o assentimento que está envolvido no exercício do discurso racional no direito não poderia ser lido de forma forte, uma vez que Habermas aceita a possibilidade de compromisso e até mesmo barganha nesse processo, desde que as partes sejam situadas de maneira simétrica (Baxter, 2011, p.75).

Por fim, Dworkin em Desobediência civil e protesto nuclear, classifica os atos de desobediência civil praticados na década de 1980 na Alemanha contra os mísseis nucleares como baseados em considerações políticas e empregados de forma não persuasiva, ou seja, o pacificista aqui „não espera persuadir a maioria a aceitar seu ponto de vista obrigando-a a levar em conta seus argumentos, mas sim fazê-la pagar tão alto por sua política a ponto de fazê-la desistir sem se convencer“ (Dworkin, 2000, p.164). O problema aqui diz respeito ao fato de ser a maioria e não a minoria que tem o direito de determinar o que seria o interesse comum. Por causa disso, Dworkin afirma que os meios não persuasivos de emprego da desobediência civil são aqueles que encontram mais dificuldade de obter uma justificação (Dworkin, 2000, p. 165). No fundo, como o próprio Dworkin reconhece, a divergência entre a posição de Habermas a respeito da justificação dos atos de desobediência civil na década de 1980 na Alemanha em Mutlangen dizem respeito a questões de fundo, ou seja, Dworkin considera que „não é evidente, de modo algum, se é mais provável que a colocação de mísseis na Europa irá desencorrajar ou provocar a agressão“ (Dworkin, 2000, p. 165) e também não consegue compreender em que medida o recurso à desobediência civil nesse contexto ajudaria a esclarecer a questão e, por conseguinte, ele interpreta atos de desobediência civil sob tais circunstância como mera „chantagem civil“, em que uma minoria quer obrigar à maioria a render-se a seu ponto de vista (Dworkin, 2000, p. 166). Dworkin inclusive busca examinar um 359 caso alternativo, a fim de avaliar se a estratégia não persuasiva poderia ser empregada como meio para se obter o que se defende em um ato de desobediência civil no caso de decisões econômicas equivocadas e conclui que não parece correto que a minoria imponha seu ponto de vista à maioria, sem que haja algum tipo de convencimento de que seu ponto de vista seria o correto (Dworkin, 2000, p. 166).

Dworkin também posiciona-se em relação ao critério de Habermas da insuficiência da aprovação obtida, a saber, por uma maioria simples, para instalação dos mísseis em território alemão. Ele sustenta que recorrer ao critério da maioria qualificada ou simples não parece resolver a questão, dado que existe uma simetria entre duas posições possíveis, tanto a instalação dos mísseis nucleares em território alemão, quanto a não instalação teria dificuldades em ser aprovada em algo maior do que uma maioria simples pelo governo alemão de então (Dworkin, 2000, p. 167). Disso Dworkin conclui que: „ao aceitar os mísseis, nenhum governo viola nenhum princípio de legitimidade que não teria violado ao rejeitá-los“ (Dworkin, 2000, p.167). Dworkin, entretanto, deixa claro que não seria impossível encontrar outros argumentos que justicassem os atos de desobediência civil sob tais circunstâncias.

Como uma breve e direta resposta às críticas de Dworkin, acredito que se poderia prestar mais atenção ao papel da desobediência civil na concepção de democracia deliberativa de Habermas, a saber, como uma guardião da legitimidade e como inovadora (Thomassen, 2007, p. 203). Ou seja, diante de casos de desobediência civil baseada na justiça, por exemplo, ela opera como uma garantidora da legitimidade buscando evitar que minorias ou grupos específicos da sociedade sejam sistematicamente oprimidos ou discriminados. Diante de caso de desobediência civil baseada na integridade, ela abre espaço para deliberação a respeito dos limites do razoável no que diz respeito às concepções de vida boa. Também no caso da desobediência civil baseada na política, o objetivo consiste em abrir espaços de deliberação a respeito da adequação de certas políticas do governo e aqui se torna altamente relevante a questão da proporcionalidade entre a reivindicação e as infrações cometidas. Não parece haver nenhum tipo de falta de proporção entre manifestações não violentas contra a instalação de mísseis nucleares em território alemão. Todo o peso da crítica de Dworkin parece cair sob as formas não persuasivas de desobediência civil, a saber, nos casos em que uma maioria não se deixa convencer pelas reivindicações de uma minoria. Agora suponha que a reivincação da minoria seja legítima, deveria ela abandonar a sua causa, uma vez que a maioria se recusa a reconhecer a legitimidade de sua reivindicação ou deveria ela tentar também formas não persuasivas de desobediência civil, buscando tornar onerosa a opção da maioria em deixar de 360 reconhecer a legitimidade de sua reivindicação. Além disso, como definir o que seria uma reivindicação legítima e uma ilegítima? Naturalmente, essa dificuldade também seria um problema para a concepção de Habermas e nesse ponto ele recorre a história e sustenta que „é possível que se equivoquem [aqueles que recorrem à desobediência civil e] (...) se valem de discernimentos morais (…) Os loucos de hoje nem sempre são os heróis de amanhã; mesmo amanhã, muitos permanecem os loucos de ontem. A desobediência civil se move frequentemente na penumbra da história da época; essa penumbra dificulta a avaliação política e moral para o contemporâneo“ (Habermas, 2015, p. 141).

 

REFERÊNCIAS

 

ARENDT, Hannah. Civil Disobedience. In: Crises of the Republic. New York: Harvest Book, 1972.

 

BAXTER, Hugh. Habermas: the discourse theory of law and democracy. Standford: Standford University Press, 2011.

 

DWORKIN, Ronald. Uma questao de principio. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

HABERMAS, J. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechtes und des demokratischen Rechtsstaats. Suhrkamp: Frankfurt, 1992.

 

HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms. Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridre: MIT Press, 1996.

 

HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Trad. Luiz Repa. Sao Paulo: Editora Unesp, 2015.

 

HAYSON, Keith. Civil Society and Social Movements. In: FULTNER, Barbara. Jurgen Habermas. Key Concepts. Durham: Acumen, 2011, pp. 177-195.

 

RAWLS, John. A theory of justice. Revised Edition. Cambridge: Harvard University Press, 1999.

 

RAZ, Joseph. The autority of law. Essays on law and morality. Oxford: Oxford University Press, 1979.

QUINT, Peter E. Civil disobedience and german courts. The pershing missile protests in comparative perspective. New York: Routledge-Canvedish, 2008.

 

SCHLEGINSER, Steven R. Civil disobedience: the problem of the seletive obedience to law. Hasting Constitutional Law Quartely, vol. 3.

 

THOMASSEN, Lasse. Within the limits of the reason alone. Habermas, civil disobedience and constitutional democracy. European Journal of Political Theory. Vol. 6 (2), n. 200, 2007, pp. 200-218.

 

THOMASSEN, Lasse. Comunicative reason, descontruction, and foundationalism: reply to white and farr. European Journal of Political Theory, 41 (3), 2013, pp. 482-488.

 

WHITE, Stephen K. & FARR, Evan Robert. „No-Saying“ in Habermas. European Journal of Political Theory, 40 (1), 2012, pp. 32-57

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO VII

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


A RESPOSTA DE HABERMAS À CRÌTICA DE ARENDT À NOÇÃO DEDIREITOS HUMANOS

 

Charles Feldhaus

 

INTRODUÇÃO

 

Essa pretensão cosmopolita significa que o papel dos direitos humanos não pode se esgotar na crítica moral das relações injustas de uma sociedade mundial altamente estratificada. Os direitos humanos dependem de sua incorporação institucional em uma sociedade mundial constituída politicamente. (Habermas, Sobre a constituição europeia, 2012, p. 5).

 

O tema dos direitos humanos é recorrente no pensamento de Jürgen Habermas. Em sua principal obra de filosofia do direito - Faktizität und Geltung (1992) - ele reconstrói o sistema de direitos moderno baseado em sua concepção discursiva de racionalidade desenvolvida em Teoria da Ação Comunicativa (1981). Ele afirma que uma reconstrução adequada do direito moderno exige lidar de forma adequada com a tensão entre direitos humanos e autonomia política. Em Faktizität und Geltung, Habermas reconstrói esse conceito de direito moderno num debate com os clássicos da filosofia do direito, entre os quais convém ressaltar aqui, Kant, Hobbes e Rousseau. Habermas critica a fundamentação de Hobbes do estado, apontando para sua insuficiência e critica Rousseau e Kant por falta de êxito na tentativa de conciliar as duas liberdades de Benjamin Constant, a saber, a liberdade dos antigos e as liberdades dos modernos. Habermas identifica a liberdade dos antigos com a autonomia política e a liberdade dos modernos com os direitos humanos; ele considera que Kant não conseguiu conciliar adequadamente essas duas noções porque teria comprado uma interpretação moral dos direitos humanos, a saber, teria derivado os direitos subjetivos modernos da moral e com isso subordinando o direito à moral. Rousseau, por sua vez, teria sido até mais bem sucedido em sua concepção política ao fundar o estado na vontade geral, porém essa tentativa carece de aplicabilidade em uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de bem (para usar o termo de Rawls) como são a grande maioria das sociedades contemporâneas, em particular aquelas a que Habermas se dirige. A fim de resolver essa tensão entre direitos humanos e autonomia política, Habermas desenvolve seu próprio sistema de direitos. Ele deriva esse sistema de direitos de sua concepção discursiva, a saber, o sistema de direitos surge da aplicação do princípio do discurso neutro (ou seja, não se trata da versão ética do mesmo) à forma jurídica e disso resultam cinco categorias de direitos básicos. Porém, os direitos humanos têm recebido críticas de diversas vertentes do pensamento político contemporâneo e entre os principais críticos se encontram os comunitaristas e os realistas políticos. Mas Hannah Arendt também ocupa um lugar central entre as pensadoras críticas em relação à noção de direitos humanos. Ela compreende que existe uma contradição na noção de direitos humanos, uma vez que, por definição, eles deveriam ser direitos que protegem todos aqueles que pertencem à espécie humana, contudo esse não tem sido o caso na história recente e atual. Seres humanos que não pertencem a uma determinada comunidade política acabam ficando sem nenhum tipo de proteção, por conseguinte, os direitos humanos protegem os seres humanos apenas na medida em que eles fazem parte de uma comunidade política.

 

A CRÍTICA DE HANNAH ARENDT À NOÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

 

Em O declínio do Estado nação e o fim dos direitos do homem, na obra Origens do Totalitarismo (1950), Hannah Arendt se devota à questão dos direitos humanos e aponta diversas contradições e perplexidades na noção tradicional de direitos humanos. Os direitos humanos são geralmente compreendidos como portadores de valor absoluto, embora a dignidade humana seja rotineiramente respeitada apenas de modo relativo. Os direitos humanos não têm evitado que diversos grupos de pessoas fossem oprimidos, particularmente aquelas pessoas que não possuem nenhuma nacionalidade tem sido deixadas desprotegidas. Os direitos humanos têm protegido apenas aqueles seres humanos que pertencem a uma determinada comunidade política. O recurso aos direitos humanos tem tido o efeito perverso de transformar os beneficiários dos direitos humanos em vítimas e com isso situados essas pessoas na condição de seres sem fala e seres humanos de segunda categoria. Direitos humanos têm sido compreendidos como direitos de segunda ordem, aos quais se recorre apenas quando os direitos civis, garantidos pelas ordens constitucionais vigentes são ineficientes. Embora o discurso oficial seja que os direitos humanos são inalienáveis, na prática eles são inaptos a serem exigidos coativamente, uma vez que não existe nenhuma instituição capaz de fazer isso atualmente. Os direitos humanos, embora pensados como direitos que pertencem aos seres humanos apenas em função de pertencerem à espécie humana, são violados até mesmo numa democracia. Os direitos humanos são carentes de fundamentação, uma vez que a história e a natureza não podem servir como fundamento. Além disso, não é claro como a ideia de humanidade possa servir de fundamento aos direitos humanos, dado que, quando um ser humano deixa de ser cidadão de uma comunidade nacional e torna-se apenas humano, ele perde todo tipo de proteção aos seus direitos e isso abre caminho para que seres humanos sejam inclusive privados da condição de humanos.

Como solução às perplexidades encontradas na noção de dignidade humana e de direitos humanos, Hannah Arendt propõe a noção de um “direitos a ter direitos”, o qual ela compreende entre outras coisas como o direitos a pertencer a uma comunidade política. Como diz ela em Origens do Totalitarismo, os eventos de desrespeito sistemático à dignidade humana ocorridos no século XX “demonstram que a dignidade humana precisa de nova garantia, somente encontrável em novos princípios políticos e em uma nova lei da terra, cuja vigência desta vez alcance toda a humanidade, mas cujo poder deve permanecer estritamente limitado, estabelecido e controlado por entidades territoriais novamente definidas” (Arendt, 60 1989. p. 13). Obviamente, Arendt era cética em relação à instituição de uma ordem mundial baseada na ideia de direitos humanos, porém não deixa de ser relevante investigar em que medida uma proposta de constitucionalização do direito internacional, tal como proposta por Habermas sob a influência do projeto de Immanuel Kant de uma federação de estados livres em Zum ewigen Frieden, poderia resolver ao menos alguns dos problemas apontados por Arendt em relação a noção de direitos humanos.

 

A SOLUÇÃO DE ARENDT AO PROBLEMA DOS DIREITOS HUMANOS

 

Em Conclusion: The Political Instituitions of Rights to Have Rights em Hannah Arendt and Human Rights (2006, p. 132-142), Peg Birminghan reconstrói o que Arendt diz em alguns textos, a fim de responder a questão a respeito de que tipo de instituições seria necessário para garantir o “direito a ter direitos”, como substituto à noção de direitos humanos, ou seja, em vez dos direitos humanos, teríamos um único direito pertence ao ser humano apenas em função de ser humano, o direito a pertencer a uma comunidade política. Primeiramente, Arendt também compreende que o respeito aos direitos humanos é prejudicado pelo vínculo entre direitos humanos e soberania nacional. Razão pela qual ela defende que a noção de soberania nacional é obsoleta como um conceito básico da filosofia política, dado que os estados nacionais atualmente não são mais capazes de garantir nem mesmo aos seus próprios membros a proteção dos direitos humanos, quem dirá dos imigrantes e dos refugiados. Por isso é preciso uma nova compreensão do que seja um estado nação e do que seja um cidadão. Porém ela também tem todo cuidado em evitar a alternativa de uma saída mediante o direito internacional em substituição ao nacionalismo. Por causa disso ela diferencia entre política global e política internacional. A política global supõe um colapso dos estados nacionais. Ela se opõe à política global e defende um tipo de estrutura política federada mundial, contudo, a proteção dos direitos humanos, ou de seu substituto, o direito a ter direitos exige organizações regionais. Como veremos, a alternativa oferecida por Habermas não incorre no que Arendt chama aqui de uma política global, uma vez que ele não defende a eliminação dos estados nacionais tal como hoje existentes, mas muito mais a expansão das instituições de cunho democrático à esfera internacional. Mas agora primeiramente consideremos como Habermas trata do direito de imigração, o direito daqueles que não são protegidos pela constituição de seu estado nacional de origem ou foram forçados a deixar seu estado nacional de origem na Alemanha da década de 1990, mas que consiste 61 num tema bastante atual, dado a crise que passa hoje a Europa diante do fluxo constante de imigrantes adentrando em seus territórios.

 

HABERMAS E O DIREITO À IMIGRAÇÃO

 

Habermas trata do direito à imigração em A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito, em A Inclusão do outro (1996). O tema central é a reação adversa da maioria da população alemã e europeia em relação ao crescimento da imigração, o que inclusive levou a aprovação de leis mais restritivas na Alemanha em 1993 em relação ao direito de asilo político. Habermas, por conseguinte pergunta: “justifica-se essa política de isolamento contra imigrantes?” (1997, p. 26). Habermas afirma que pretende discutir a questão, primeiramente, de maneira mais abstrata e, posteriormente, dedicar ao caso específico do debate alemão a respeito do asilo político em 1992 e 1993, que levou à reformulação da lei de asilo político. A questão mais abstrata diz respeito à relação entre a imigração e a autocompreensão ético política da nação. A presença crescente de imigrantes numa sociedade como uma questão fática altera a maneira como a população de uma sociedade é composta no que diz respeito à autocompreensão ético-cultural da respectiva sociedade. Se isso é caso, alguém podería sustentar que a imigração coloca em risco a identidade cultural da sociedade e com isso “não esbarra justamente no direito de uma coletividade política a manter intacta sua forma de vida político cultural?” (1997, p. 257). Nesse cenário também surgem questões como: “Sob que condições cabe ao Estado negar a cidadania aos que tornam válida uma pretensão de naturalização?” (Habermas, 1997, p. 257).

Habermas distingue dois níveis de assimilação: a) concordância com os princípios da constituição; b) uma disposição à aculturação; “só é preciso esperar dos imigrantes que eles se disponham arraigar-se na cultura política de sua nova pátria, sem que por isso tenham de renunciar à forma de vida cultural de sua origem” (Habermas, 1997, p. 258). “Quem, no entanto, realmente tem direito à imigração?” (Habermas, 1997, p. 259). Habermas defende uma ampliação da definição de refugiado, a fim de incluir, por exemplo, a defesa das mulheres contra atos de estupros coletivos, de refugiados de locais marcados por guerras civis, trabalhadores imigrantes e fugitivos da pobreza, que buscam escapar de condições miseráveis de existência humana em seus países de origem (Habermas, 1997, p. 259-260). Habermas sustenta que é preciso superar a perspectiva apenas dos imigrantes como 62 destinatários de direitos e buscar assumir a perspectivas daqueles que procuram a salvação mediante a imigração e à luz disso então tentar responder a questão se existe um direito legítimo à imigração. Habermas ressalta que a Europa historicamente foi favorecida pelos fluxos migratórios nos séculos XIX e XX (1997, p. 260-261), se bem que essas razões “não bastam para justificar a garantia de um direito individual à imigração” (1997, p. 261). Habermas defende que não se deveria limitar os contingentes de imigração com base nas carências econômicas dos países que acolhem esses imigrantes, mas com base em critérios que seriam aceitáveis de um ponto de vista todos os afetados (Habermas, 1997, p. 261-262). Por causa disso, Habermas considera que não pode ser justificado do ponto de vista normativo o acordo que ocorreu na Alemanha em 1992 e 1993, que levou à alteração da lei de asilo do país, porque ele compreende que existem três erros nas premissas do respectivo acordo: a) regulamentação se limita ao asilo político, mas precisa também incluir outras opções jurídicas aos imigrantes, como aquele decorrente da pobreza; b) se destrói o teor essencialmente individualista do direito ao asilo político, uma vez que joga o ônus de imigração a outros países da Europa oriental; c) recusa dupla cidadania aos estrangeiros já residentes. Habermas também ataca a visão de que a Alemanha não seria um país de imigração à luz de dados estatísticos do último século que contrariam essa afirmação e ressalta a necessidade uma “mudança dolorosa da autocompreensão nacional dos alemães” (Habermas, 1997, p. 264).

 

OS DIREITOS HUMANOS EM FAKTIZITÄT UND GELTUNG

 

Como já dito, em Faktizität und Geltung Habermas reconstrói o conceito de direito moderno e sustenta que os direitos humanos são direitos fundamentais de estados democráticos de direito. As três primeiras categorias de direitos abstratas são: 1) “direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação”, na qual se incluem a dignidade, a liberdade, a integridade física e a inviolabilidade da pessoa; 2) “o status de membro”, em que se incluem os direitos de pertencer a um Estado – a cidadania e a proibição de extradição; 3) “possibilidade de postulação judicial”, em que se incluem os meios de salvaguarda da autonomia privada de civis como a proibição do efeito retroativo, do tribunal de exceção, entre outros. 4) “à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade”; e, finalmente, 5) “a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente (...) para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos”. (HABERMAS, 1992. p. 155-157). Em seu livro Era das Transições, Habermas 63 reapresenta as categorias dos direitos fundamentais: 1) liberdades subjetivas; 2) de status de membro; 3) de proteção individual; 4) igualdade de condições na participação política. Contudo, Habermas não cita novamente a quinta categoria que trata especificamente dos direitos sociais (HABERMAS, 2003, p. 169).

Nesse contexto ele interpreta os direitos humanos como direitos fundamentais [Grundrechte] dos Estados democráticos constitucionais modernos e não como direitos morais propriamente ditos. O que, obviamente, não significa que esses direitos possam violar valores morais, mas apenas que não podem ser identificados com direitos morais no sentido estrito do termo sob pena de uma fundamentação moral do direito. Como veremos, Habermas vincula os direitos humanos não a uma interpretação moral dos mesmos, mas a noção moderna de direitos subjetivos, a saber, direitos capazes de ser exigidos coativamente; ou seja, vincula os direitos humanos à tradição do direito liberal moderno de Locke e Rousseau. Entretanto, após a publicação de Faktizität und Geltung, Habermas começa a abordar o tema de uma expansão desse sistema de direitos a uma ordem cosmopolita, ao direito internacional e não apenas restrita a um estado democrático constitucional. Um texto importante quanto a esse ponto é aquele que ele escreve em comemoração ao bicentenário da publicação de Zum ewigen Frieden de Immanuel Kant, A ideia kantiana de paz perpétua - à distância histórica de 20 anos, publicado na obra A inclusão do outro (1996) Em sua obra de 2011, Sobre a Constituição da Europa, ele vincula a discussão dos direitos humanos com a temática da dignidade humana. Habermas discute a tese de que o conceito jurídico de dignidade humana surge muito mais tardiamente que o conceito moral de dignidade humana após o Holocausto (Habermas, 2012, p. 10). Não obstante Habermas pretendeu mostrar que havia um vínculo conceitual entre ambos esses conceitos desde o início.

Em suas próprias palavras, ele pretende mostrar “a origem dos direitos humanos a partir da fonte moral da dignidade humana explica a força política explosiva de uma utopia concreta” (2012, p. 12). Enfim, não pretendo adentrar mais nesse texto, ressalto apenas que Habermas quer dar a entender, que a dignidade humana é aquilo através do qual o conteúdo igualitário universalista da moral migra ao direito e que a tomada de consciência disso seria algo tardio.

 

A RESPOSTA DE HABERMAS A OBJEÇÃO DE HANNAH ARENDT EM ZUR VERFASSUNG EUROPAS

 

Habermas (2012, p. 30, nota) responde explicitamente, porém de forma muito breve, à crítica de Arendt aos direitos humanos numa nota de rodapé ao texto O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos, em Sobre a constituição da Europa. Ele sustenta que a suposta contradição apontada por Arendt entre os direitos humanos e os direitos dos cidadãos não poderia ser resolvida apenas pela expansão dos estados globais somada à noção arendtiana de “um direito a ter direitos”, a saber, um direito a pertencer a uma comunidade política. Habermas acredita que essa contradição poderia ser resolvida por uma condição jurídica cosmopolita que superasse o estado de natureza internacional do direito internacional clássico e pela ampliação da noção de identidade coletiva para além dos limites dos estados nacionais existentes. Essa expansão da ideia kantiana de uma ordem mundial cosmopolita é desenvolvida por Habermas num debate com a projeto de uma paz duradoura de Kant e com a constitucionalização do direito internacional europeu no processo de formação da União europeia.

Em A ideia kantiana de paz perpétua à distância histórica de 200 anos, em A Inclusão do Outro, Habermas critica três aspectos da proposta de Kant:

1) Natureza Pacífica das Repúblicas;

2) Força Geradora de Comunidades do Comércio Internacional;

3) Função Política da Esfera Pública.

Para Habermas, os três foram falsificados; o que revelaria que as premissas subjacentes à visão a de Kant, válidas para as condições históricas do século XVIII, no século XX já não podem mais ser consideradas corretas, se bem que ele acredite que "elas também depõem em favor de que uma concepção do direito cosmopolita, reformulada de acordo com os novos tempos (...) bem poderia aplicar-se" (HABERMAS, 2002, p. 192).

Habermas (2002, p. 200) acredita que o projeto kantiano original precisa ser revisado quanto aos seguintes aspectos: a soberania externa dos Estados nacionais precisa ser restringida, ao menos no que diz respeito ao direito de iniciar a guerra e no que diz respeito à proteção dos direitos humanos; o caráter relações interestatais deve ser modificado; a soberania interna dos Estados nacionais pode ser limitada, por exemplo, no caso de flagrantes violações dos direitos humanos; as restrições normativas da política clássica devem ser 65 abandonada, uma vez que a manutenção da paz não deve ser promovida apenas com base no equilíbrio de forças; a compreensão do que seja 'paz' deve ser alterada, de modo a que ações possam ser tomadas no intuito de evitar a guerra antes que as mesmas aconteçam. Após terminar o exame crítico da proposta de Kant à luz de 200 anos de história, Habermas afirma: “A reformulação da ideia kantiana de uma pacificação cosmopolita da condição natural entre os Estados (...) inspira (...) esforços enérgicos em favor da reforma das Nações Unidas” (Habermas, 2002, p. 210). Mas que tipo de reformas pensa Habermas que sejam necessárias?

1) Instalação de um Parlamento Mundial;

2) Ampliação da Estrutura Jurídica Mundial;

3) Reorganização do Conselho de Segurança.

Quanto ao Parlamento Mundial, Habermas afirma que é necessário criar um tipo de Senado Federal e que o mesmo deve partilhar suas competências com uma Segunda Câmara. Quando houverem países que se neguem a permitir a eleição de deputados mediante a democracia, os representantes desses respectivos estados poderiam ser organizações não estatais designadas pelo próprio Parlamento Mundial, e que poderiam ser, por exemplo, representantes das populações oprimidas. (Habermas, 2002, p. 210).

Quanto à ampliação da estrutura jurídica internacional, Habermas afirma que: é preciso modificar as competências do Tribunal Internacional, da tal maneira que “a jurisdição penal, que até hoje só se instalou ad hoc para processos específicos de crimes de guerra, teria que institucionalizar-se de forma permanente”. (Habermas, 2002, p. 211). Quanto à reorganização do conselho de segurança, Habermas afirma que é necessário se fazer adaptações à nova situação mundial, a fim de que ao lado das potências mundiais seja concedido o direito de voto aos regimes continentais, e também deveria ser suprimida a exigência de voto unânime entre os membros permanentes e no lugar do mesmo seria preciso introduzir o voto por (Habermas, 2002, p. 211). Ainda a respeito do conselho de segurança, Habermas defende que é preciso reforma-lo de tal maneira que funcionasse segundo o modelo do Conselho de Ministros de Bruxelas, a fim de permitir que o poder executivo fosse capaz de desempenhar funções policiais (Habermas, 2002, p. 211).

 

A RESPOSTA DE HABERMAS ÀS OBJEÇÕES REALISTAS POLÌTICAS AOS DIREITOS HUMANOS

 

Além disso, Habermas se devota a responder algumas objeções céticas em relação aos direitos humanos, em particular aquelas oriundas do pensamento político realista de Carl Schmitt: o humanismo, a visão defensora dos direitos humanos, “tem suas raízes na hipocrisia de um pacifismo jurídico que pretende fazer ‘guerras justas’ sob o signo da paz e do direito cosmopolita” (Habermas, 2002, p. 212). Acredito que essa resposta de Habermas ao realismo político poderia ser ao menos em parte utilizada também como resposta a alguns dos aspectos da crítica de Arendt à noção de direitos humanos, uma vez que tanto o realismo político quanto as críticas de Arendt aos direitos humanos compartilham algum pessimismo em relação à noção de direitos humanos.

Segundo Habermas (2002, p. 212), o realismo político quando se dirige ao discurso dos direitos humanos, entende que “a política de uma organização mundial que se inspira na ideia kantiana de paz perpétua e que visa à construção de uma condição cosmopolita obedece à mesma lógica: o paninterevencionismo leva obrigatoriamente a uma pancrimininalização, e, com isso, à perversão dos objetivos aos quais ela se propõe servir”. Diante disso, Habermas afirma que “gostaria de tratar do argumento em geral e chegar, passo a passo, ao cerne do problema” (Habermas, 2002, p. 212), que ele divide em duas asserções: a) “a política dos direitos humanos ocasiona guerras que, disfarçadas de ações policiais - assumem qualidade moral”; b) “a moralização classifica opositores como inimigos, de modo que essa criminalização dá rédeas largas à desumanidade”. Segundo Habermas (2002, 213), esses dois ‘enunciados parciais’ da visão de Schmitt, contém duas premissas: a) “a política dos direitos humanos serve à imposição de normas que são parte de uma moral universalista”; b) “juízos morais obedecem ao código de ‘bem’ e ‘mal’, a valoração moral negativa (de um oponente político ou) de um opositor bélico destrói a limitação juridicamente institucionalizada do combate militar”.

Habermas defende que a primeira premissa é falsa e que a segunda sugere um pressuposto falso (Habermas, 2002, 213). Primeiramente, ele afirma que os direitos humanos remontam à cartas constitucionais (1776, 1789) e que essas cartas são inspiradas no conceito de direito racional de Locke e Rousseau e, por conseguinte, “os direitos humanos só assumem uma figura concreta no contexto das primeiras constituições (...) como direitos fundamentais garantidos no âmbito de uma ordem jurídica nacional”. A despeito de sua proveniência jurídica, acredita Habermas, os direitos humanos têm uma ‘caráter duplo’ [uma face de Janus]: enquanto normas constitucionais tem validade positiva, mas como direito que se vincula a cada ser humano (não apenas aos cidadãos de um estado em particular) eles tem validade também suprapositiva; portanto, tem uma face voltada ao direito e outra voltada à moral universalista. Enfim, a respeito da natureza moral dos direitos humanos, suposta na objeção realista, Habermas diz: “Os direitos humanos são já a partir de sua origem de natureza jurídica. O que lhes confere aparência de direitos morais não é seu conteúdo, nem menos ainda sua estrutura, mas um sentido validativo que aponta para além das ordens jurídicas características dos estados nacionais” (Habermas, 2002, p. 214).

Entretanto, Habermas com isso não pretende cair no que denomina de um ‘malentendido positivista’ acerca dos direitos humanos, qual seja, que qualquer que seja o conteúdo dos direitos humanos que for estabelecido pelo legislador isso seria suficiente, embora ele tenha que reconhecer que como direitos jurídicos não se pode evitar que possam ser alterados ou suspensos com a mudanças do regime de governo (Habermas, 2002, p. 214). Não obstante, diz Habermas, como são direitos jurídicos de ordens constitucionais democráticas, eles gozam de um duplo sentido de validade: como normas positivadas baseadas na capacidade de sanção ao não cumprimento [Gültigkeit] e como normas que reivindicam legitimidade ideal, passíveis de serem justificadas racionalmente [Legitimität] (Habermas, 2002, p. 214) Além disso, Habermas chama a atenção à especificidade dos direitos fundamentais [Grundrechte] em relação aos demais direitos constitucionais. Diz ele: “os direitos fundamentais liberais e sociais tem a forma de normas genéricas endereçadas aos cidadãos em sua qualidade de seres humanos [als Menschen] e (não de integrantes do Estado [als Staatsangehörige])” (Habermas, 2002, p. 214). E, segundo Habermas (2002, p. 215),seria essa especificidade dos direitos humanos, como Grundrechte de estados democráticos, que aproxima a validade dos direitos humanos das normas morais, diz ele: “É essa validação universal, voltada a seres humanos como tais, que os direitos fundamentais tem em comum com as normas morais.” Ou seja, embora os direitos humanos sejam jurídicos em sua origem, sua validade transcende a validade das normas jurídicas ordinárias. Habermas acrescenta ainda que pela sua especificidade esses Grundrechte somente podem ser fundamentados com argumentos morais, ao contrário das demais normas morais que aceitam fundamentos de origem ético-política ou pragmática. A razão dessa restrição quanto ao tipo de fundamentação diz respeito ao tipo de interesse que esse tipo de direito pretende proteger. Nas próprias palavras de Habermas (2002, p. 215): “o asseguramento [die Gewährleistung] de regras como 68 essas despertam em igual medida o interesse de todas as pessoas na sua qualidade de pessoas em geral [acrescente: não apenas enquanto pessoas de um determinado estado], ou ainda, por que elas são igualmente boas para todos mundo.”

Habermas acredita que essa exigência de fundamentação específica não prejudica a natureza jurídica desses direitos e nem os transforma em normas morais. Habermas acredita que as normas jurídicas recebem sua especificidade da estrutura que possuem e não do seu conteúdo (fundamentado com argumentos morais no caso de Grundrechte). Como direitos subjetivos eles abrem um espaço de discricionariedade em que os indivíduos podem agir segundo preferências próprias. (Habermas, 2002, p. 215).

Habermas entende que o direito moderno, do qual os direitos humanos [Menschenrechte] também surgem, resultam de uma mudança de perspectiva empreendida por Hobbes que abandona a moral deontológica e busca fundar o Estado no auto-interesse esclarecido dos indivíduos. Com essa mudança “tudo que não é explicitamente proibido por leis gerais de restrição da liberdade é permitido” (Habermas, 2002, p. 216). Além disso, no próprio direito moderno, Habermas sustenta (o que considero controverso) que Kant deriva todos os direitos humanos do direito inato (não adquirido) da liberdade na Doutrina do Direito, primeira parte de A Metafísica dos Costumes. O caráter controverso dessa derivação dos direitos humanos do direito inato à liberdade de Kant é que não é evidente que o filósofo de incluiria muitos direitos humanos atuais como direitos derivados do direito inato. Enfim, embora os direitos humanos tenham um teor moral, o que a objeção de Arendt parece supor, uma vez que o sistema de referência dos direitos humanos é a humanidade como um todo e não apenas os cidadãos de um estado nacional em particular, eles exigem “o status de direitos fundamentais cuja observância se deve assegurar no âmbito de uma ordem jurídica subsistente, seja ela nacional, internacional ou global.” (Habermas, 2002, p. 217). Com isso Habermas acredita ter respondido ao primeiro enunciado parcial de Schmitt, desde que teria mostrado que direitos humanos não seriam morais desde sua origem, como a objeção realista supõe, uma vez que Schmitt entende que: “a imposição global dos direitos humanos seguiria uma lógica moral e, portanto, conduziria a intervenções apenas disfarçadas em ações policiais” (Habermas, 2002, p. 217).

Habermas acredita que ao mesmo tempo também é abalado o segundo enunciado, a saber: “que a política intervencionista teria de degenerar em uma ‘luta contra o mal’", por que ele supõe que o direito internacional clássico seria suficiente, restrito apenas a conflitos comedidos, para dar um rumo civilizado aos conflitos militares. Mesmo que isso fosse correto(o que é controverso) - uma organização mundial com poder policial seria mais apta a isso (Habermas, 2002, p. 217) E porque seria uma solução mais civilizada? Por que “o estabelecimento de uma situação cosmopolita significa que as violações dos direitos humanos não são julgadas e punidas imediatamente sob pontos de vista morais, mas sim perseguidas como ações criminosas no âmbito de uma ordem jurídica estatal - e segundo procedimentos institucionalizados” (Habermas, 2002, p. 217). Habermas procura então oferecer uma resposta ou um argumento metacrítico contra a posição realista (2002, p. 218). Ele afirma que é preciso desnudar, ou seja, tornar visível, a teoria de fundo subjacente a esse realismo político e avançar até o núcleo central do argumento. A primeira vista, o argumento visa civilizar a guerra por meio do direito internacional clássico (retornando a ele); e, preservar a ordem internacional já assegurada, o que seria colocado em perigo pelo discurso dos direitos humanos. Habermas ressalta que Schmitt procura refutar a distinção entre ‘guerra de ataque’ e ‘guerra de defesa’, com isso implicando um conceito moralmente neutro de guerra e buscando desresponsabilizar as pessoas individuais pelo que acontece na guerra, uma vez que declará-la seria uma prerrogativa dos estados como sujeitos do direito internacional clássico. Não se trata aqui ainda das consequências desastrosas do universalismo moral, mas apenas de uma oposição à limitação da atividade bélica. Disso Schmitt conclui que é necessário retornar a um status quo ante ‘da guerra delimitada’, uma vez que seria mais realista a alternativa de ‘uma pacificação cosmopolita da condição natural entre os estados’. Habermas (2002, p. 219) considera utópico esse objetivo de civilizar a guerra e por isso coloca em dúvida o realismo dessa sugestão. O equilíbrio de potências historicamente mostrou-se um fracasso nesse ponto, para Habermas, uma vez que houveram guerras totais. Enfim, Habermas acredita que: “As sanções e intervenções de uma comunidade de povos organizada ainda podem domesticar essas forças melhor que um apelo (juridicamente inócuo) ao discernimento dos governos soberanos” (2002, p. 219). Dado a fragilidade dessa posição realista, Habermas acredita que isso é um indício de que a argumentação jurídica é uma fachada que oculta restrições de outro tipo. Habermas parece aqui remeter a Historikerstreit em que se envolveu logo após a Segunda Guerra mundial, uma vez que vincula a posição de Schmitt a uma tentativa de buscar diferenciar os crimes de guerras já existentes no direito internacional clássico e aquelas atrocidades (O Holocausto). Ele pensa que o realista político queria que deixassem de ser crimes a guerra de agressão e também a ruptura civilizacional do extermínio de judeus.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Desse modo, Habermas (2002, p. 225) compreende que objeções realistas desse tipo somente fazem sentido quando se parte de “uma moralização não-mediatizada da política”, mas uma vez que existem instituições internacionais adequadas a cumprir as exigências de um tribunal que sentencie de modo imparcial essas objeções perdem muito em força. O mesmo poderia ser dito em alguma medida das objeções de Arendt, uma vez que houvessem instituições internacionais competentes para julgar e proteger os direitos humanos, a contradição da noção de direitos humanos poderia desaparecer. Além disso, Habermas sustenta que o argumento de que uma comunidade política com identidade própria pressupõe uma língua comum, uma história comum, e uma tradição comum não resiste a uma verificação mais precisa (2006, p. 79). Esse tema é importante à discussão do direito de imigração, uma vez que a questão da imigração muitas vezes é colocada como contraposta ao direito da manutenção de uma identidade coletiva como base de uma comunidade política. Entretanto, Habermas compreende que a ideia de identidade coletiva e a ideia de solidariedade são também frutos de um processo de construção, o que não impediria de se constituir uma nova identidade coletiva além dos estados nacionais e que permitisse compreender todos os seres humanos como membros da mesma identidade coletiva e, por conseguinte, da mesma comunidade política internacional. Desse modo, os direitos humanos seriam os direitos fundamentais de uma comunidade política mundial e por isso todos os seres humanos apenas pela condição de serem humanos seriam membros dessa comunidade política e teriam sua dignidade protegida. Para concluir, cito Habermas:

 

Para o funcionamento de uma organização mundial, que inclua todos os estados e não permita mais uma delimitação social entre ‘ins’ e ‘outs’, basta, na medida em que ela se restrinja às funções da política de direitos humanos e da garantia de paz, uma base de legitimação estreita. Para a solidariedade entre cidadãos do mundo basta a indignação moral, consensual em relação a violações flagrantes da proibição do uso de força e dos direitos humanos. (HABERMAS, 2006, p. 83).

 

REFERÊNCIAS

 

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BAXTER, H. Habermas: the discourse theory of law and democracy. Standford: Standford University Press, 2011.

 

BIRMINGHAM, P. Hannah Arendt and Human Rights. The Predicament of Common Responsability. Indianapolis: Indiana University Press, 2006.

 

FELDHAUS, C. Habermas e o projeto kantiano de uma paz perpétua. In: FELDHAUS, C. & DUTRA, D. J. V. Habermas e interlocuções. São Paulo: DWW, 2012.

 

HABERMAS, J. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1997.

 

HABERMAS, J. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechtes und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.

 

HABERMAS, J. A Inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.

 

HABERMAS, J. O Ocidente dividido. Tradução de Luciana Villas Boas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006.

 

HABERMAS, J. Sobre a constituição da Europa. Um ensaio. Tradução de Denilson Luis Werle, Luiz Repa e Rúrion Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

 

MENKE, Christoph. “Aporien der Menschenrechte” und das “einzige Menschrecht“. Zur Einheit von Hannah Arendts Argumentation. In: GEULEN, Eva; KAUFFMANN, Kai; MEIN, Georg. Hannah Arendt und Giogio Agamben. Parallelen und Kontroversen. Munchen: Wilhelm Fink, 2008, pp. 131-147.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO VIII

 

 

 

 

 

 

 


HABERMAS, ESTADO DE DIREITO E POLÌTICA DO RECONHECIMENTO

 

Charles Feldhaus

 

INTRODUÇÃO

 

Em 1993, Habermas publica o texto Struggles of Recognition in the democratic Constitutional State na coletânea Multiculturalism: Examining the Politics of Recognition, organizado por Gutman. Em 1996, esse mesmo texto é publicado como capítulo no livro A inclusão do outro. Este texto de alguma forma é uma resposta de Habermas à posição de Charles Taylor a 49 liberais contemporâneas. Taylor sustenta que o liberalismo clássico é incapaz de atender esse tipo de demandas, razão pela qual sugere uma concepção alternativa de liberalismo que deixe de ser cego às exigências dos movimentos sociais a favor de direitos de ordem cultural, em particular ao direito de coletividades a terem sua autonomia e autenticidade respeitada. Taylor defende que o liberalismo, ao menos na forma alternativa proposta, deveria admitir a promoção de metas coletivas fortes e ser mais respeitoso à diversidade das identidades coletivas (Cooke, p. 260). Habermas, por sua vez, pretende mostrar em A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito que é possível integrar numa concepção de direito talhada na linguagem dos direitos individuais as reivindicações por reconhecimento. A concepção de direito moderno, inclusive aquela reconstruída por Habermas em Facticidade e Validade, é ancorada na ideia de direitos fundamentais de cidadãos individuais, entretanto, os novos movimentos sociais e as novas reivindicações por igualdade nas sociedades democráticas e liberais contemporâneas exigem o reconhecimento não apenas da igualdade social de direitos dos cidadãos individuais, mas também de grupos ou coletividades assim como a mudança do padrão cultural de pano de fundo. Não obstante, a exigência de que o Estado democrático de direito não apenas tolere as diferentes concepções de vida boa e de identidades coletivas, mas também as fomente como uma questão de justiça social exige ao menos algum tipo de explicação a respeito da compatibilidade, a fim de supostamente garantir a neutralidade ética do Estado de direito. O que geralmente se apresenta como uma exigência que é feita ao Estado de direito moderno. Habermas defende que não existe um conflito entre uma concepção de direito baseada numa teoria individualista e as demandas por reconhecimento, uma vez que “questões ético políticas são um componente inevitável da política” e, por conseguinte, batalhas culturais e demandas por reconhecimento contra culturas majoritárias é algo com que sociedades democráticas e liberais precisam conviver rotineiramente. Da mesma forma, ele entende que a ideia de neutralidade ética do estado é algo difícil, uma vez que toda efetivação dos direitos fundamentais em comunidades éticas concretas é impregnada de algum conteúdo ético. Além disso, ele procura mostrar que a noção de identidade nacional é algo construído e não um fato natural, o que favorece um tratamento mais igualitário das identidades coletivas que ingressam nos estados nacionais com a presença dos imigrantes, por exemplo, e por isso o respeito e o reconhecimento dessas identidades é algo plenamente compatível com o estado democrático de direito baseado numa teoria do direito individualista, desde que compreendida da forma adequada.

 

O DESAFIO TAYLORIANO AO LIBERALISMO CLÁSSICO

 

Em A luta por reconhecimento no estado democrático de Direito, Habermas se devota a avaliar a compatibilidade entre o estado de direito moderno, baseado na noção de direitos subjetivos e individuais, e as reivindicações de direitos coletivos, uma prática, poderíamos dizer sem medo de errar, comum, nos dias atuais. Estas reivindicações pelo reconhecimento de direitos coletivos têm sido costumeiramente denominadas de política do reconhecimento e concentra-se, não apenas, mas principalmente num suposto direito de proteção às identidades do indivíduo e formas de ação ou visões peculiares de mundo ou identidades coletivas. Este tipo de exigência possui um significado ambíguo, uma vez que ás vezes parece dizer respeito à exigência de respeitar ou reconhecer o caráter distintivo de alguns indivíduos pertencentes a alguns grupos específicos, como os homossexuais. Às vezes parece dizer respeito à exigência de reconhecer que certos grupos de indivíduos precisam de algum tratamento diferenciado, a fim de receber um tratamento igualitário, como por exemplo, as mulheres, que muitas vezes exigem legislação especial no mercado de trabalho, na disputa por cargos políticos, etc. Às vezes parece dizer respeito à proteção de certas identidades coletivas como se fossem espécies em extinção, como por exemplo, o reconhecimento das identidades culturais de tribos indígenas e grupos de pessoas que pertencem a comunidades tradicionais como comunidades ribeirinhas ou similares.

Charles Taylor, em A política do reconhecimento, defende que o liberalismo clássico seria incapaz de assimilar as demandas por reconhecimento das sociedades contemporâneas atuais, razão pela qual ele propõe uma nova versão do liberalismo, que seja capaz de atender esse tipo de demandas. O liberalismo tradicional abstrai das particularidades das identidades e formas de vida, razão pela qual não seria capaz de atender as demandas por reconhecimento que parecem exigir uma atenção especial às particularidades. O liberalismo tradicional exige uma neutralidade do estado diante das concepções de vida boa ou abrangentes das pessoas e coletividades. A exigência que uma concepção de justiça para uma sociedade pluralista como são as sociedades democráticas e liberais contemporâneas que se recorra apenas a argumentos que poderiam ser aceitos por todos e não a elementos específicos de concepções abrangentes de vida boa. Entretanto, Taylor dá a entender que a neutralidade exigida não é apenas normativamente equivocada, é até mesmo impossível garantir que o estado de direito democrático e liberal seja neutro do ponto de vista ético. Embora existam vários pontos de desacordo entre a concepção de Taylor e Habermas a respeito de como responder às demandas por reconhecimento, Habermas concorda com Taylor que o estado de direito democrático não é axiologicamente neutro. A suposta neutralidade ética do estado de direito moderno é de certa forma uma ficção.

 

CONTRA UM MODELO ALTERNATIVO DE LIBERALISMO

 

O modelo de liberalismo defendido por Taylor defende que juntamente com as garantias dos direitos fundamentais e individuais deveria haver garantias de status que restringe esses direitos quando entrarem em conflito com direitos coletivos. Para ilustrar seu ponto de vista, Taylor recorre ao caso canadense do Quebec, em que de alguma forma se tenta proteger a identidade coletiva da população francofônica diante da maioria anglofônica. Não obstante, Habermas sustenta que “uma teoria dos direitos se entendida de forma correta, jamais fecha os olhos para as diferenças culturais” (p. 234). Além disso, Habermas ressalta que apenas uma leitura paternalista do liberalismo tradicional, que ignora a co-originariedade entre direitos humanos e autonomia política, entre autonomia privada e pública, o que seria uma característica básica do conceito de direito moderno na reconstrução habermasiana em Facticidade e Validade. Segundo Habermas (p. 235), “um sistema de direitos não fecha os olhos nem as condições de vida sociais desiguais, nem muito menos as diferenças culturais”. Por causa disso, Habermas sustenta (p. 235) que, contrariamente ao que pensa Taylor, não é necessário um novo modelo de liberalismo que corrige o viés individualista do sistema de direitos liberal, mas apenas uma realização coerente do sistema de direitos liberal tradicional. Esse sistema coerente parece implicar um sistema que preste a devida atenção ao caráter intersubjetivo de formação da identidade individual e coletiva. Em outras palavras, Habermas dá a entender que o sistema de direitos fundamentais reconstruído em Facticidade e Validade pode dar conta, sem acréscimos, das novas demandas por reconhecimento das sociedades democráticas e liberais contemporâneas.

 

ELUCIDAÇÃO MEDIANTE AS DEMANDAS FEMINISTAS POR IGUALDADE SOCIAL

 

Habermas (2002, p. 235) sustenta que o caso das demandas feministas pode ser considerado como um modelo para tratar das questões relativas à dialética entre igualdade de direitos e igualdade de fato. Habermas trata das demandas feministas em Facticidade e Validade e em Inclusão do outro. Ele recorre ao caso das demandas feministas por igualdade, a fim de evidenciar a falência de dois outros paradigmas jurídicos e mostrar a vantagem do paradigma jurídico procedimentalista reconstruído em Facticidade e Validade (Cap. III e IV). Os dois paradigmas jurídicos criticados são o liberal e o do bem-estar social. O paradigma liberal simplesmente ignora completamente as demandas feministas por igualdade e entende que a igualdade formal é suficiente. O paradigma do bem-estar social reconhece o problema da dialética entre igualdade de direito e igualdade fática em relação às mulheres, contudo, apresenta uma solução inadequada ao problema. O paradigma liberal entende que a igualdade legal e formal de chances a homens e mulheres garante a existência de uma situação igualitária, porque ignora as especificidades das mulheres na luta por cargos e salários no mercado de trabalho, por exemplo. Principalmente, ignora que a igualdade formal de tratamento leva a uma desigualdade no tratamento factual das mulheres. Por causa disso, muitas feministas acabaram exigindo algum tipo de regulamentação especial para as mulheres. O paradigma do bem-estar social reconheceu esse tipo de demandas e criou regulamentações específicas para as mulheres. O problema aqui não é a existência de regulamentações específicas para as mulheres em si, mas a maneira como as mesmas foram elaboradas. O paradigma jurídico do bem-estar social adota uma atitude paternalista em relação às mulheres e por causa disso deixa de levar em consideração a co-originariedade entre direitos humanos e autonomia política. As mulheres afetadas pelas regulamentações especiais são consideradas apenas como destinatárias de direitos e não como autoras de direitos. O paradigma jurídico procedimentalista exige que, primeiramente, exista um debate público a respeito da interpretação adequada das carências ou necessidades das mulheres que precisam de reparação ou regulamentação especial (Habermas, 2002, p. 237).

 

DIREITOS COLETIVOS COMO UMA ANOMALIA JURÍDICA

 

Habermas (2002, p. 238) sustenta que uma compreensão democrática dos direitos fundamentais pode corrigir a forma seletiva da maneira como a teoria dos direitos, ao menos na leitura do paradigma liberal clássico, interpreta o exercício de direitos, entre os quais o direito à igualdade perante a lei. Por causa disso, Habermas acredita que não se faz necessário adotar a estratégia de solução defendida por Taylor, a saber, contrapor dois modelos de liberalismos, para lidar com o problema da dialética entre igualdade de direito e igualdade de fato. Não se faz necessário incluir uma categoria de direitos coletivos no ordenamento jurídico, a fim de poder atender as demandas por reconhecimento de certos movimentos sociais, como as feministas. Habermas acredita que introduzir uma nova categoria de direitos coletivos pode ser um problema adicional e não uma solução. Os direitos coletivos seriam uma categoria estranha num sistema talhado no vocabulário dos direitos individuais e haveria grande dificuldade em conciliar num mesmo sistema de direitos, os coletivos e os direitos individuais. Como decidir qual deveria ter precedência no caso de conflito entre essas duas categorias de direitos? A solução de Habermas parece passar por uma melhor especificidade dos direitos individuais, a fim de atender as demandas por reconhecimento como violações do princípio da igualdade legal. Aqui se poderia dizer existir alguma concordância entre a posição de Habermas e a posição de Axel Honneth, que também é relutante em aceitar uma nova esfera do reconhecimento, a fim de atender as demandas dos direitos coletivos e culturais (Fraser & Honneth, pp. 161-170). As demandas por reconhecimento, mesmo aquelas oriundas de grupos supostamente baseados em direitos culturais, poderiam ser compreendidas como demandas por reconhecimento numa das três esferas: amor, direito e realização ou até em mais do que uma. Contudo, não tratarei da posição de Honneth diante das demandas do multiculturalismo no presente estudo, esse será tema de outro estudo.

 

UMA TAXONOMIA DAS DEMANDAS POR RECONHECIMENTO

 

A seguir, Habermas se devota à questão do fenômeno propriamente dito das demandas por reconhecimento e afirma a necessidade de evitar confundir práticas, que ele considera (Habermas, 2002, p. 238) aparentadas entre si, mas não idênticos, a saber: feminismo, multiculturalismo, nacionalismo e a luta contra a herança eurocêntrica do colonialismo. O ponto em comum esses diferentes movimentos diz respeito à existência de uma luta pelo reconhecimento de sua identidade específica por parte das mulheres, das minorias étnicas e das minorias culturais diante de uma cultura majoritária, mas as reivindicações dizem respeito não apenas às questões de ordem cultural, mas também às questões sociais e econômicas. O feminismo se dirige principalmente contra uma cultura dominante que coloca as mulheres numa posição de assimetria e que dificulta o exercício da igualdade de direitos. Além disso, contra uma cultura que não leva em consideração as experiências peculiares ao gênero feminino na luta por uma maior escolaridade, por um emprego, por um salário melhor, etc. Por isso, Habermas (2002, p. 238) entende que a política por reconhecimento no casoespecífico das mulheres tem a ver com uma luta pela interpretação dos interesses e realizações peculiares dos gêneros. O que Habermas (2002, p. 239) acredita que é diferente no caso das lutas por reconhecimento das minorias étnicas e culturais que reivindicam um reconhecimento de sua identidade coletiva e pelo fim do que consideram uma cisão social ilegítima. Além disso, existe falta de unidade entre estes diferentes tipos de movimentos. Alguns desses movimentos são endógenos, a saber, são grupos que se originaram dentro da própria sociedade e que por algum motivo podem vir a deixar de existir ou sua existência está ameaçada por algum fator. Alguns desses movimentos são de grupos que surgiram na sociedade a partir de fora, pela imigração, por exemplo, o que levanta a questão do respeito e do reconhecimento dos valores das comunidades das quais esses grupos são oriundos. O processo de integração dos imigrantes pode exigir que os imigrantes respeitem os valores das sociedades em que estão ingressando, que respeitem os princípios da constituição, mas não poderia exigir que os imigrantes abandonem completamente suas identidades existentes previamente ao ingresso na nova sociedade. A ideia é que para permanecer o imigrante precisa dominar o idioma num nível mínimo específico e a cultura da nova sociedade em que ingressou, além de respeitar os princípios constitucionais, precisa adentrar numa nova identidade nacional. E o nacionalismo é o próximo grupo que Habermas (2002, p. 239) se dedica a analisar. Os nacionalistas, que inclusive não poucas vezes acusam a imigração de ser uma ameaça à identidade nacional, baseiam-se em grande medida na noção de um passado histórico comum e numa comunidade de ascendência comum. A demanda por reconhecimento nesse caso diz respeito à manutenção de grupos étnicos homogêneos linguisticamente e com ascendência comum. Aqui também Habermas ressalta a falta de unidade nos grupos que fazem esse tipo de demandas assim como a maneira como se formaram diferentes estados na Europa ou fora dela. Alemanha e Itália são as nações mais tardias da Europa. Outros estados como França e Inglaterra teriam surgido pela via republicana após a Revolução Francesa. Outros nascem pela queda de grandes impérios como o Reino Otomano e União Soviética. Habermas (2002, pp. 255-262) volta ao tema do nacionalismo na seção V - Imigração, cidadania e identidade nacional, particularmente vai discutir a política de asilo da Alemanha na década de 1990 para criticar as suposições daqueles que se opõem a um direito de imigração mais amplo. Ele (Habermas, 2002, p. 252) critica a ideia que culturas sejam algo fixo e que precise ser preservado em sua forma original. Culturas, diz ele, “só sobrevivem se tiram da crítica e da cisão a força para uma autotransformação” (Habermas, 2002, p. 252). Ele acredita que o tradicionalismo, ou aquelesque procuram defender a permanência de culturas em sua suposta forma original de uma origem comum e de um idioma comum, tem uma autocompreensão errônea e falta a essas visões de mundo a consciência da falibilidade (Habermas, 2002, p. 252). Habermas (2002, p.240) trata ainda do eurocentrismo e do predomínio da cultura ocidental num nível supranacional, da correção política e da dificuldade de alcançar acordos mútuos entre culturas. Mas não aprofundaremos esses temas aqui.

 

AS ESPECIFICIDADES DO CONCEITO DE DIREITO MODERNO

 

Habermas (2002, p. 242) apresenta as características básicas do direito moderno, de alguma forma já desenvolvidas principalmente em sua obra Facticidade e Validade, a fim de preparar o caminho para discutir um dos temas centrais dessa conferência, a saber, a questão da neutralidade ética do estado de direito democrático. O direito moderno é formal, abstrai dos conteúdos e considera permitido tudo que não é explicitamente proibido; é individualista, situa o indivíduo como o único portador de direitos; é coercitivo, exige apenas comportamento conforme a norma, ou seja, pode exigir apenas o agir conforme o dever e não o agir por dever, na terminologia de Immanuel Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes; é positivo, uma vez que remete às decisões de um legislador político e não a direitos naturais, pré-existentes ao ordenamento jurídico; e finalmente, é procedimental, legislado mediante o processo de tomada de decisão democrática. Essa última característica do direito moderno é algo mais controverso, uma vez que filósofos que tentaram reconstruir o direito moderno, como Hart, na obra O conceito de direito, sustentam apenas a existência de uma regra de reconhecimento como garantidora da legitimidade das decisões que criam normas ou direitos. Mas a norma de reconhecimento, ao menos em Hart, não precisa ser idêntica ao procedimento de tomada de decisão democrática. Contudo, não me dedicarei mais a esse tema aqui.

 

A SUPOSTA NEUTRALIDADE DO ESTADO DE DIREITO EXAMINADA

 

Chega o momento então de confrontar a questão central ao texto de Taylor, a questão relativa à neutralidade ética do estado de direito democrático. Aqui Habermas (2002, p. 243) retoma o caso da disputa canadense a respeito do Quebec. A concepção de liberalismo que Taylor defende exige que o Estado “se empenhe em favor da sobrevivência e fomento de uma determinada nação, cultura ou religião” (Habermas, 2002, p. 244). Entretanto, esse tipo de posição parece em contradição com a precedência dos direitos em relação aos bens coletivos e essa seria a característica marcante de uma teoria dos direitos baseada no conceito de direito moderno. Essa alternativa oferecida por Taylor num viés comunitarista supõe que a teoria dos direitos do liberalismo clássico precisa de uma correção, a fim de não ignorar formas culturais de vida e identidades coletivas. Habermas não ignora a necessidade dos estados de direito moderno levar em consideração às demandas por reconhecimento dos grupos que exigem respeito a sua identidade coletiva, não obstante, ele entende que o apelo a fins coletivos não deve destruir a própria estrutura da forma jurídica como tal (Habermas, 2002, p. 245). A estrutura a que se refere Habermas parece dizer respeito à precedência dos direitos individuais em relação aos fins coletivos ou supostos direitos coletivos. Razão pela qual ele agora se dedica a tentar mostrar que a presença de elementos oriundos de razões éticas, a saber, de concepções de vida boa, de visões abrangentes, não apenas não são contraditórios com a estrutura da forma jurídica moderna, mas que costumeiramente “desempenham um papel nos aconselhamentos e justificações de decisões políticas” (Habermas, 2002, p. 245). Sustenta ainda que são um componente inevitável da política numa ordem jurídica moderna e um elemento propulsor do processo de efetivação dos direitos fundamentais. Uma ordem jurídica moderna é simultaneamente um espelhamento do teor universalista dos direitos fundamentais, mas também a expressão de uma forma de vida concreta. A posição político-jurídica de Habermas se situa aqui entre o universalismo e o particularismo. Habermas recorre ao exemplo da constituição alemã e das garantias institucionais da mesma em relação à família para ilustrar seu ponto. A maneira como é concebida a família pelo ordenamento jurídico alemão, apesar da existência no mesmo ordenamento do direito ao livre exercício de crença religiosa, certos tipos de parcerias entre seres humanos recebem um status diferenciado sob a proteção da lei. O que Habermas está dizendo aqui pode ficar ainda mais claro quando se pensa na posição de Honneth a respeito de tema similar. Honneth defende que a luta por reconhecimento das especificidades dos membros homoafetivos da sociedade, por exemplo, diz respeito ao menos a uma disputa pela interpretação do princípio da igualdade legal na esfera do direito, ou seja, a igualdade legal formal concedida apenas às famílias tradicionais supõe como digna de reconhecimento legal apenas a certos tipos de parcerias entre humanos, não todas. Isso evidencia uma impregnação ética do estado de direito em favor de certos grupos religiosos, que entendem que família consiste apenas na união entre um homem e uma mulher.

Habermas, por conseguinte, entende que a teoria dos direitos não proíbe que se validade de alguma forma no âmbito da ordem estatal alguma concepção de vida boa ou ética, o que “se proíbe (...) no interior do Estado, que se privilegie uma forma de vida em detrimento de outra” (Habermas, 2002, p. 248). No caso das demandas por reconhecimento dos nacionalistas, ele (Habermas, 2002, p. 247) afirma que é preciso levar em consideração quando se altera o conjunto básico de cidadãos de uma sociedade são desenvolvidos outros discursos e são almejados outros fins.

 

A INUTILIDADE E INCOERÊNCIA DE UMA CATEGORIA DE DIREITOS COLETIVOS

 

Habermas considera que esses direitos não são apenas desnecessários, a fim de atender as demandas por reconhecimentos geralmente vinculadas a valores ou identidades culturais, são até mesmo questionáveis. Ele acredita que há um tipo de transposição do discurso de proteção das espécies ameaçadas, às quais atribuímos algum tipo de valor intrínseco na continuidade de sua existência, para o discurso a respeito da conservação das identidades coletivas. O problema é que essa transposição tem uma suposição equivocada a respeito de como se formam e se desenvolvem as identidades coletivas, sejam de grupos sociais específicos, sejam de estados nacionais ou nações. Talvez a metáfora melhor não seja a da conservação das espécies biológicas, mas da luta pela sobrevivência natural diante das pressões seletivas. O tradicionalista gostaria de impedir que o processo natural de desenvolvimento da identidade coletiva ocorresse com a criação de direitos coletivos, a fim de promover a sobrevivência independente das pressões externas da identidade. Habermas, por sua vez, entende que se modificar e se aperfeiçoar-se diante das pressões externas é algo benéfico às identidades coletivas.

Por conseguinte, se poderia dizer, como faz Cooke (p. 229), que a concepção de direito de Habermas em Facticidade e Validade é sensível ao problema do reconhecimento das diferenças específicas aos grupos e inclusive seria um sistema que teria muitas vantagens no tratamento desse tipo de questões, uma vez que reconhece que o processo de formação da identidade seja do indivíduo, dos grupos e dos estados nacionais é um processo intersubjetivo de enfrentamento com outras concepções de mundo, com a ciência, as exigências legais de respeito a outras concepções diferentes, etc. A concepção de direito de Habermas também reconhece que a impregnação ética do estado de direito democrático é parte natural do processo de desenvolvimento de uma sociedade democrática e que a questão no fundo não é se o direito deve ser impregnado eticamente, mas de que forma deve ser impregnado eticamente. Cooke (p. 275) sustenta que Habermas tem tornado no decorrer dos anos menos rígida sua distinção entre moralidade e ética, o que provavelmente teria implicações para a questão da prioridade da autonomia e para a neutralidade do estado de direito. Ele considera que os três mais importantes desenvolvimento são: a) a introdução de uma categoria de discursos éticos; b) a insistência que os discursos éticos tem uma posição importante na política; c) o reconhecimento da impregnação ética do estado constitucional. Esses três elementos ocupam um papel central na resposta de Habermas a proposta de Taylor de uma interpretação alternativa do liberalismo como condição necessária para enfrentar as recentes demandas por reconhecimento na política (Cooke, p. 275).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Como foi possível observar, Habermas defende que o surgimento daquilo que se costuma de chamar de política do reconhecimento não necessariamente exige uma reformulação do liberalismo clássico, com a criação de direitos coletivos, que supostamente protegeriam de forma mais adequada às especificidades das demandas por igualdade e à diversidade de concepções de vida boa ou identidades reinantes nas sociedades democráticas e liberais modernas. Ele entende que uma compreensão adequada do conceito de direito moderno, principalmente se percebendo que uma teoria do direito modelada com base em direitos individuais não é cega às demandas por reconhecimento das especificidades das identidades coletivas, uma vez que sejam entendidas que essas demandas podem ser interpretadas como violações dos direitos de sujeitos individuais. Além disso, Habermas compreende que a suposta neutralidade do estado de direito e sua compatibilidade com as demandas por reconhecimento precisa considerar que toda concretização dos direitos fundamentais carrega consigo a expressão de uma determinada forma de vida concreta. A questão não é no fundo se o Estado de direito é impregnado ética ou não, a questão é que tipo de discurso ético recebe uma expressão concreta com o ordenamento jurídico. Acredito que a percepção do caráter eticamente impregnado do direito carrega implicitamente intuições básicas que vão dar origem a teoria do reconhecimento de Axel Honneth, a saber, o estado de direito, que diz respeito à segunda esfera do reconhecimento do sistema teórico de Honneth, pode ser impregnados em concepções de vida boa, quando determina que tipos de parcerias são consideradas uniões protegidas legalmente e que tipos de parcerias não, pensando aqui nas demandas dos homossexuais; o estado de direito pode mediante julgamentos de crimes procurar regras comportamentos considerados adequados e que comportamentos não e assim por diante. Por fim, Habermas critica até mesmo a concepção de desenvolvimento das identidades individual, coletiva e nacional. As identidades são o resultado de um processo intersubjetivo e um processo falível e sujeito à revisão e não algo como uma espécie em extinção que precise ser preservada num laboratório ou num museu.

 

REFERÊNCIAS

 

BAXTER, H. Habermas. The discourse theory of law and democracy. Standford: Standford University Press, 2011.

 

COOKE, Maeve. Autenticity and autonomy: Taylor, Habermas and the Politics of Recognition. Political Theory, vol. 25, n. 2, 1997, pp. 255-288.

 

DUTRA, D. J. V. & FELDHAUS, C. Habermas e interlocuções. São Paulo: DWW, 2012.

 

FRASER, Nancy & HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition? A political philosophical Exchange. London: Verso, 2003.

 

HABERMAS, J. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechtes und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.

 

HABERMAS, Jurgen. A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito. In: Habermas, Jurgen. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

 

KANT, I. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Stuttgard: Reclam, 2011.

 

TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition. In: GUTMAN, Amy. Multiculturalism. Examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994.


 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO IX

 

 

 

 

 

 

 

 

 


AS DEMANDAS POR RECONHECIMENTO EM JURGEN HABERMAS E        AXEL HONNETH

 

Charles Feldhaus

Juliana Marques Saraiva[ii]

 

INTRODUÇÃO

 

O debate político contemporâneo, ao menos dentro do espectro do que poderíamos chamar de pensadores igualitaristas, a saber, que consideram a igualdade social um tema a ser enfrentado seriamente, tem cada vez mais se dedicado a reivindicações ou exigências que não parecem se enquadrar muito bem nas demandas por redistribuição de recursos dos defensores de um papel redistributivo do Estado. Há até mesmo quem defenda que existe uma forte dicotomia entre aqueles que defendem a política do reconhecimento e da diferença em contraposição o que fora chamado de política por igualdade econômica apenas. Nancy Fraser e Axel Honneth publicaram um livro em conjunto em que se devotam a esse debate, a saber, Redistribution and Recognition. A Political Philosophical Exchange. Para Nancy Fraser, a guinada teria ocorrido num período específico enquanto para outros, como Axel Honneth, as reivindicações sociais por igualdade foram desde sempre por reconhecimento. Habermas, em A luta por reconhecimento no Estado de direito democrático, trata da compatibilidade entre uma teoria orientada pelos direitos individuais e as demandas por reconhecimento baseadas na noção de afirmação de identidades coletivas. Nesse texto ele recorre ao exemplo das demandas feministas por igualdade, um tema que ele já havia trabalhado em Facticidade e Validade, no capítulo em que se dedica aos paradigmas do direito (paradigma liberal, paradigma do Estado de bem estar social e paradigma procedimentalista). Contudo, na obra A Inclusão do Outro, em que trata das demandas por reconhecimento ele se refere explicitamente a concepção normativa de Axel Honneth em Luta por reconhecimento (1993), razão pela qual o presente estudo pretende reconstruir os traços gerais da concepção de igualdade como reconhecimento de Axel Honneth, principalmente enfatizando a maneira como a visão monista do mesmo realiza um diagnóstico das injustiças sociais e identifica que tipo de remédio seria mais apropriado para lidar com esse tipo de situação em comparação com a proposta discursiva de Jürgen Habermas assim como desenvolvida em Facticidade e Validade.

 

AS DEMANDAS POR RECONHECIMENTO E A SUPOSTA GUINADA CULTURALISTA

 

O discurso sobre a política do reconhecimento tem se tornado cada vez mais frequente no debate filosófico contemporâneo. Há quem diga, como Nancy Fraser, que isso seria fruto de uma guinada culturalista nas exigências dos movimentos sociais. Há quem diga, por outro lado, que todas as demandas sociais por igualdade sempre foram demandas por reconhecimento e não exatamente demandas por redistribuição de recursos financeiros, como 209 Axel Honneth. Com a publicação da obra Luta por reconhecimento Axel Honneth tem defendido a necessidade de se adotar uma perspectiva baseada na noção de reconhecimento para melhor diagnosticar as situações de injustiça social. As situações de injustiça social seriam conflitos a respeito da interpretação adequada de algum ou alguns dos princípios de reconhecimento de cada uma das três esferas de reconhecimento, a saber, amor, direito e realização. Os princípios de cada uma dessas esferas seriam respectivamente: cuidado, igualdade e mérito. Não obstante, nos primeiros capítulos da obra Luta por reconhecimento Honneth procura contrastar o modelo baseado na noção de reconhecimento do modelo da teoria da escolha racional e do realismo político. O modelo da teoria da escolha racional e do realismo político compreende os agentes sociais como dotados apenas de racionalidade instrumental e carentes de motivações morais em suas interações mútuas. O modelo da política do reconhecimento advogado por Honneth, por sua vez, compreende os agentes sociais como motivados moralmente e não orientados apenas pelos interesses pessoais. De certa forma, se poderia dizer que nesse ponto Honneth como membro da terceira geração da Escola de Frankfurt está seguindo o pensamento de Jürgen Habermas, o qual defende que agentes sociais não orientados apenas pela ação instrumental e estratégica, mas também pela ação comunicativa. É importante lembrar que Habermas, de forma similar ao que Honneth parece estar novamente tentando fazer com sua concepção de política do reconhecimento, atacou o predomínio da perspectiva da ação instrumental e da ação estratégica, quando introduziu a distinção entre trabalho e interação. Essa distinção serviria de base para a distinção entre agir instrumental, agir comunicativa, e agir comunicativo na obra Teoria do Agir Comunicativo.

 

A CONCEPÇÃO NORMATIVA DE AXEL HONNETH E AS DEMANDAS SOCIAIS

 

Axel Honneth em sua notável obra Luta por Reconhecimento publicada em 1995 começa a delinear aquela que acabaria sendo uma das propostas mais fortes da nova Teoria Critica. Um de seus objetivos era colocar como problema central o problema do reconhecimento. Depois de demarcar onde na obra de Hegel é modelado o processo de construção desse problema – o do reconhecimento – Honneth começa a dar novos toques ao conceito, de modo que mais de vinte anos depois da publicação de seu livro, a tarefa ainda não parece estar concluída. Aqui isso o é dito, pois ainda que seu trabalho seja amplo de modo a permitir que se derivem inúmeras hipóteses de qual seria a solução para o problema doreconhecimento, o filósofo não parece ter particularmente parece ter deixado de lado quais seriam as vias práticas para resolver esse problema nas bases de uma teoria da justiça que lide com a questão da igualdade. Isso não significa, no entanto, que não se possa identificar essa discussão em sua bibliografia, uma vez que ela parece fornecer bases fortes para entender os problemas sociais contemporâneos. A tentativa deste texto é, portanto, usar o conceito de reconhecimento em suas diferenciações para pensar problemas contemporâneos e pensar um diagnóstico que parta dos pressupostos do reconhecimento e a completude de seu processo em todos os níveis das relações intersubjetivas. Com tal reconstrução, o que se objetiva é mostrar que a estrutura do reconhecimento como proposta por Honneth, com suas três categorias, parece ser suficiente para acomodar questões de sociedades complexas, como a questão do multiculturalismo.

O aspecto fundamental do reconhecimento é a intersubjetividade. É possível afirmar que isso se dá em partes porque desde o começo do desenvolvimento hegeliano da consciência estão pressupostas duas partes interagindo reciprocamente, em co-dependência, de modo que se uma parte falha, também falhará a outra. Para garantir que minha consciência é, de fato, consciente, preciso de outro indivíduo consciente para relacionar-me. Essa dinâmica está presente na estrutura do reconhecimento tal qual elaborada por Honneth de modo mais complexo, e transpassa suas categorias. Honneth concebe o reconhecimento em três esferas, a saber, amor, leis e autorealização. Partindo de uma micro esfera para uma macro esfera, começando nos núcleos familiares e chegando à sociedade, cada esfera tem particularidades que têm de serem satisfeitas se o que se pretende é garantir a cada individuo condições igual de participação social.

Remetendo ao pediatra Donald Winnicott e sua concepção de endosimbiose – em que o recém-nascido depende vitalmente da mãe por um período de seu primeiro amadurecimento – a primeira esfera, a do amor, diz respeito ao primeiro estágio do desenvolvimento individual. Um recém-nascido requer cuidados muito atentos e como lhe é impossível conseguir as coisas das quais necessita, a figura materna deve estar presente a todo o momento. Essa relação tem se modificado com o passar dos anos de modo que o pai tem desempenhado papel mais ativo, mas aqui aquilo de que se fala são as tarefas intransferíveis da mãe para com o filho. O primeiro relacionamento humano é compreendido entre o bebê e a mãe, e então ela é o primeiro sujeito com que se estabelecem laços. Ao passo que crescemos nos tornamos mais capazes, e então a relação com outros membros da família se torna mais vívida. Esses agentes também têm de garantir um tratamento saudável para conosco, sob a ameaça de prejudicar a inserção social. Todas essas relações familiares anexas são igualmente importantes para a completude deste primeiro estágio, ou esfera.

Cada indivíduo é diferente. Da cor dos cabelos à personalidade, as características individuais são particulares e pedem por igual apreciação. Hoje em dia os movimentos sociais deixam dolorosamente claro que quando sofrem privações de direitos ou condições igualitárias de justiça, o que se segue é uma hostilidade à vida. Quando, por exemplo, casais homo afetivos desejam constituir uma família, ou mulheres querem tratamento igual em relação ao tratamento dispensado aos homens, estes são problemas que ultrapassam aqueles que ocorrem dentro das unidades familiares. O que parece ser o caso é uma falta de empatia das instancias legais para com suas experiências de injustiça, o que representa uma ruptura no processo de reconhecimento. A particularidade de cada um deve ser enxergada igualmente de modo a proporcionar um ambiente de desenvolvimento social igual. É necessário que essas particularidades estejam representadas nas leis, para que estas então resguardem os direitos de cada grupo, sem danos à suas individualidades.

Supondo que um sujeito tenha tido uma infância saudável, não encontre barreiras legais para alcançar seus objetivos de vida, então o que se espera é uma articulação social tão satisfatória quanto possível. Se esse não é o caso, existe então um problema latente que pode de algum modo passar pelas duas ultimas esferas. A auto-estima é um sentimento necessário que dá ao indivíduo algo como um sentimento de realização. Isso inclui o que alguém pode fazer de si mesmo em um conjunto de circunstancias, mas esse sentimento depende profundamente do apreço social. Ele depende, então, 1) da estrutura familiar durante os primeiros estágios da vida, 2) das leis que guardem os direitos e a integridade individual e 3) do sucesso dessas instâncias juntas nas relações sociais. Então temos um processo que pressupõe três níveis de interação estabelecidos pelo indivíduo. Partindo da fórmula da consciência de Hegel, Honneth desenvolve uma compreensão tripartite da auto-constituição, representando a intersubjetividade de outra forma.

Levando em consideração então as três esferas do reconhecimento tanto em suas relações quanto independentemente, podemos ver como se dá então um processo adequado de reconhecimento. Em 2003 juntamente com Nancy Fraser, Honneth em Redistribuição ou Reconhecimento? Um Diálogo Político-Filosófico considera que os movimentos sociais contemporâneos podem ser acomodados sob o raio de erros no processo de reconhecimento. As reivindicações dos movimentos sociais querem resolver problemas da ordem de misrecognitions. Quando ocorre um erro, seja ele em qualquer nível, rupturas sociais acontecem. Fraser no livro acima mencionado coloca outro denominador em cena, que seria o do elemento da justiça distributiva. O ponto aqui não é lidar com ambas as propostas, mas apenas mostrar que problemas sociais podem ser entendidos dentro dos limites do reconhecimento. Se o levarmos como elemento crucial da constituição individual, e sua ausência conduzindo a problemas sociais, podemos considerar que todos os indivíduos merecem a completude de suas três esferas – o amor, as leis e a auto-realização – sendo que as experiências de misrecognitions levam ao desrespeito e à sensação de injustiça e insatisfação social.

Se pensarmos uma situação em que a um individuo é negado a condições de alcançar seus objetivos, sendo essa negação em qualquer esfera, então sua individualidade não está sendo respeitada. Sob esse ponto de vista, podemos dizer que resolver esse problema viria de encontro às reivindicações sociais. Como fazê-lo, quais os papeis desempenhados individualmente pelos agentes sociais, o que vem desse diagnóstico, não está determinado. Mas podemos justificar o respeito ao processo de reconhecimento do outro garante o respeito ao meu processo de reconhecimento, já que partimos do pressuposto da co-dependência desenhada desde as noções hegelianas. Uma vez que esse processo de reconhecimento pede por dois agentes – sujeito-mãe, sujeito-leis, sujeito-sociedade – uma pessoa precisa de outra para se desenvolver. Sendo assim, negar reconhecimento a outro ou outros indivíduos é, em ultima análise, prejudicar-se a si próprio.

Compreendido de forma satisfatória, o processo de reconhecimento tal qual desenvolvido por Honneth parece fornecer elementos suficientes para se compreender a formação individual e também quais são os problemas sofridos por conta de erros nesse processo. Os pleitos sociais poderiam então serem inseridos em uma ou mais categorias do reconhecimento, sendo possível diagnosticar as carências dentro da dinâmica de cada uma delas. Os pleitos culturais não são exceção, e podem ser compreendidos dentro desse sistema, não sendo necessária ao menos à primeira vista, nenhuma esfera ou categoria inédita para lidar com suas aflições. Essa é a posição defendida por Honneth em sua réplica a Nancy Fraser em Redistribuição ou Reconhecimento e parece também ser o caso da posição defendida por Habermas.

 

HABERMAS E OS DIREITOS CULTURAIS

 

Em A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito, publicado como capítulo da obra A inclusão do outro, Habermas parece se opor a solução defendida por pensadores como Charles Taylor, assim como Honneth, que compreendem que é necessário reformular o liberalismo, a fim de contemplar em seu bojo certas demandas normalmente defendida sob a rubrica de direitos culturais. Habermas entende que, em primeiro lugar, quem defende a necessidade da criação de uma categoria de direitos culturais está supondo algo errôneo, a saber, está supondo que uma teoria dos direitos, que seja moldada com base na noção de direitos individuais, como é o caso do liberalismo, é cega e incapaz de atender as demandas por reconhecimento das diferenças culturais. Não obstante, essa suposição é falsa, uma vez que se presta atenção ao fato que uma teoria baseada na noção de direitos individuais, desde que adequadamente considerada pode atender as demandas específicas dos multiculturalistas como violações de direitos individuais dos respectivos grupos aos direito à igualdade, por exemplo. Dessa maneira, no entender de Habermas não se trata de desenvolver um novo sistema de direitos, que inclua em si direitos coletivos, mas aplicar de forma adequada o sistema de direitos reconstruído na obra Facticidade e Validade.

A reivindicação de direitos culturais como um complemento necessário para atender as demandas de reconhecimento de uma política da diferença geralmente vem acompanhada de uma discussão a respeito da necessidade do estado de direito moderno ser neutro do ponto de vista axiológico, ser neutro do ponto de vista das concepções abrangentes de vida boa. Numa sociedade pluralista, uma concepção política de justiça, em termos rawlsianos, tem que se justificar de forma independente das concepções religiosas e das concepções de vida boa. Entretanto, conforme Habermas (2002, p.245), a pretensa neutralidade do Estado de direito moderno é uma ficção, qualquer tentativa de concretização do sistema de direitos fundamentais é impregnada do ponto de vista ético, razão pela qual a questão não seria se o estado de direito deve ser neutro do ponto de vista ético, do ponto de vista das concepções abrangentes de vida boa, mas que tipo de concepção ética impregna ou se encontra presente na concretização do respectivo sistema de direitos. É preciso examinar mediante o recurso ao paradigma discursivo do direito, mediante o escrutínio da esfera pública da sociedade, que tipo de carências e necessidades dos grupos sociais dificultam ou impossibilitam o exercício de direitos fundamentais individuais. A fim de prestar contemplar a co-originariedade entre direitos humanos e autonomia política, entre autonomia privada e autonomia pública, os concernidos ou afetados pelas regras controversas devem ter direito a voz a respeito da interpretação das necessidades e carências assim como a respeito como as mesmas devem ser atendidas. Os afetados não podem ser compreendidos apenas como destinatários de direitos, como faz o paradigma jurídico do estado de bem-estar social, mas devem também se compreender como autores do direito. Obviamente, que os afetados não são a única e a última voz na interpretação de seus próprios interesses, mas sua voz precisa ser ouvida e suas reivindicações não podem ser simplesmente ignoradas como sendo completamente infundadas, sem escrutínio prévio da esfera pública, como faz o paradigma jurídico liberal.

Outro aspecto que Habermas parece considerar problemático na posição de Taylor diz respeito à própria concepção de identidade coletiva e a maneira como a mesma se forma. O modelo discursivo de Habermas, e aqui Honneth segue caminho semelhante, compreende que a identidade coletiva é o resultado de um processo intersubjetivo e, além disso, identidades não são algo similar às espécies em extinção que exigiriam uma proteção incondicional contra as influências externas que colocassem em risco a sobrevivência das espécies em extinção. As identidades coletivas são o resultado de um processo completo e sobrevivem num processo de influência mútua com outras identidades e outras influências externas. Esse processo faz com que se modifiquem rotineiramente, por causa disso a ideia de direitos culturais como meio de proteção de identidades coletivas carrega alguma má compreensão a respeito do que seja uma identidade. As identidades nacionais, as quais geralmente são contrapostas aos direitos de autonomia na manutenção das concepções das sociedades de origem dos imigrantes ou de minorias étnicas, são resultado de um processo de construção e reinterpretação e os próprios fluxos migratórios influenciam de forma significativamente a composição e a própria identidade nacional. A identidade nacional não é um fato natural. A sobrevivência das identidades nacionais e de grupos étnicos, por exemplo, não surge do isolamento e da proteção, como parecem pretendem alguns que defendem direitos coletivos, mas “se tiram da crítica e cisão, a força para uma autotransformação” (Habermas, 2002, p. 252). A vitalidade das identidades culturais resulta do revisionismo das mesmas e não da paralisia e da manutenção das mesmas como espécies em extinção ou artefatos de museu. A crítica de Habermas se dirige à autocompreensão equivocada a respeito do que seja uma identidade coletiva e de como ela se desenvolve e sobrevive no decorrer do processo histórico.

Por fim, Habermas (2002, p. 243-248) considera que a introdução de direitos coletivos no Estado de direito moderno é um problema, caso isso fosse realizado, visto que a existência simultânea no mesmo ordenamento jurídico de direitos individuais e direitos coletivos pode colocar em dificuldade o sistema jurídico, conteria duas orientações normativas básicas, uma orientada pela noção de direitos e outra orientada pela noção de bens coletivos, cuja compatibilidade em muitos casos concretos seria difícil ou até mesmo impossível de alcançar. O melhor caminho para lidar com as demandas por reconhecimento das identidades coletivas seria interpretando essas demandas como reivindicações pela correção de violações a direitos individuais como o direito à igualdade perante a lei, o direito à igualdade de oportunidades, entre outras.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Como foi possível observar, apesar da euforia em torno das demandas por reconhecimento pela introdução de uma categoria de direitos culturais básicos, dois dos maiores representantes da teoria crítica, Axel Honneth e Jurgen Habermas entendem que este tipo de exigências poderiam ser atendidas de forma satisfatória num sistema de direitos moldado com base na noção de direitos individuais. Honneth compreende que as demandas supostamente por direitos estritamente culturais podem ser interpretadas, não como uma quarta esfera de reconhecimento, mas como conflitos a respeito de um ou mais dos princípios que norteiam as três esferas da concepção normativa de Honneth, a saber, amor, direito e autorealização. Habermas, por sua vez, entende que os direitos culturais podem ser interpretados como conflitos a respeito de como interpretar as carências e as necessidades daqueles afetados pelas normas de ação controversas num empreendimento cooperativo na esfera pública. Honneth acredita que o paradigma do reconhecimento com três princípios e três esferas de reconhecimento consegue atender as demandas culturais sem nenhum acréscimo. Habermas acredita que o paradigma procedimental do direito reconstruído em Facticidade e Validade consegue atender as demandas culturais sem nenhum acréscimo.

 

REFERÊNCIAS

 

BAXTER, H. Habermas. The discourse theory of law and democracy. Standford: Standford University Press, 2011.

 

COOKE, Maeve. Autenticity and autonomy: Taylor, Habermas and the Politics of Recognition. Political Theory, vol. 25, n. 2, 1997, pp. 255-288.

 

DUTRA, D. J. V. & FELDHAUS, C. Habermas e interlocuções. São Paulo: DWW, 2012.

 

FRASER, Nancy & HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A politicalphilosophical Exchange. London: Verso, 2003.

 

HABERMAS, J. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechtes und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.

 

HABERMAS, Jurgen. A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito. In: Habermas, Jurgen. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

 

TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition. In: GUTMAN, Amy. Multiculturalism. Examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994.

 

HONNETH, Axel; The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts; translated by Joel Anderson, The MIT Press, Massachusetts, 1995.

 

HONNETH, Axel; O eu no nós: reconhecimento como força motriz de grupos. InSociologias, Porto Alegre, ano 15, n 33, 2013, p. 56-80.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO X

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


A CONCEPÇÃO GENEALÓGICA HABERMASIANA DOS DIREITOS HUMANOS

 

Charles Feldhaus

 

“Minha investigação consistiu em ampliar ou corrigir a trilha aberta por Habermas rumo a uma concepção do social calcada nas relações de comunicação pela orientação mais rígida de uma teoria do conflito. ” Axel Honneth

 

INTRODUÇÃO

 

Em O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos (2012), Habermas adota uma abordagem em relação aos direitos humanos que se distancia da abordagem eminentemente normativa de obras como Faktizität und Geltung e outros estudos que aborda este tema no campo da teoria política. Ele opta por tratar dos direitos humanos de um ponto de vista genealógico, procura identificar um tipo de fio condutor na maneira como novas categorias de ou novos direitos humanos surgiram na história da humanidade. O que pode suscitar a alguns estudiosos do pensamento de Habermas a questão da compatibilidade entre a posição que o mesmo defende em obras em que trata dos direitos humanos de uma perspectiva eminentemente normativa com base em sua concepção de sociedade baseada numa concepção de dinâmica social orientada pelo paradigma discursivo, em que a distinção entre sistema e mundo vivido, democracia deliberativa, princípio da democracia, direitos fundamentais de estados nacionais ocupam um papel central e a mais recente posição baseada numa perspectiva genealógica. Em especial porque ele parece identificar um valor moral como base da própria dinâmica de surgimento dos direitos humanos, a saber, a dignidade humana. Alguém poderia sustentar que, se no fundo é o valor da dignidade humana e não a prática discursiva que determina os conteúdos dos direitos humanos, que papel em última análise teria o paradigma discursivo na explicação desta mesma dinâmica. Se o modelo discursivo não ocupasse mais nenhum papel, poderia isto ser considerado uma evidência a favor quer do reconhecimento de Habermas da falência do modelo ou ainda da adoção de um modelo alternativa, embora ainda não reconhecido. Eu acredito que este não é caso. Habermas nem reconheceu a falência do modelo, nem adotou um modelo alternativo de teoria crítica. Se bem que defenderei que o contato com um novo modelo de teoria crítica, em particular o modelo da terceira geração da teoria crítica pode ser uma explicação plausível para esta aparente guinada de Habermas na direção de uma explicação genealógica dos direitos humanos. O contato com o paradigma do reconhecimento de Axel Honneth e da concepção genealógica de Hans Joas podem ter contribuído em alguma medida para uma guinada, se assim podemos chamar, do tratamento de Habermas dos direitos humanos. Neste estudo tratarei mais especificamente da relação entre Habermas e Honneth, mas num estudo futuro não está excluída a possibilidade de uma comparação entre as concepções de direitos humanos de Hans Joas, uma abordagem eminentemente genealógica, e a abordagem normativa e genealógica de Habermas.

Ao adentrar numa perspectiva genealógica a respeito dos direitos humanos, Habermas defende que “as experiências da dignidade violada promovem uma dinâmica conflituosa de indignação que dá um impulso renovado” à instituição global dos direitos humanos (HABERMAS, 2012, p. 5). Desta maneira se poderia dizer que a hipótese geral de O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos de Habermas é que desde o começo existia um vínculo conceitual implícito entre direitos humanos e dignidade humana (HABERMAS, 2012, p. 10). Contudo, surge então a questão que o filósofo e sociólogo alemão se dedica a procurar entender porque na esfera jurídica o discurso a respeito dos direitos humanos precedeu o discurso a respeito da dignidade humana (HABERMAS, 2012, p. 9). Outra hipótese central é que a dignidade humana funciona como um tipo de fonte moral a partir da qual os direitos humanos extraem o seu conteúdo (HABERMAS, 2012, p. 11). O conteúdo dos direitos humanos são, por sua vez, respostas às experiências de desrespeito à dignidade humana, que se manifestam como algum tipo de opressão, humilhação ou arbitrariedade (HABERMAS, 2012, p. 10). Estas experiências de desrespeito ou violação da dignidade humana tem no desenvolvimento das diferentes gerações de direitos humanos a função de descoberta. A ideia básica aqui é que em cada momento são atualizadas novas dimensões de sentido da dignidade humana (HABERMAS, 2012, p. 14). Ele cita inclusive diferentes casos de violações da dignidade humana, a saber: a marginalização das classes sociais empobrecidas; o tratamento desigual entre homens e mulheres no mercado de trabalho; a discriminação dos estrangeiros, das minorias culturais, das minorias linguísticas, das minorias religiosas ou raciais (HABERMAS, 2012, p 14). Com base nestes diferentes tipos de violações da dignidade humana teriam surgido as distintas gerações de direitos humanos que conhecemos atualmente: os direitos econômicos, os direitos culturais, os direitos sociais, os direitos ecológicos e genéticos (HABERMAS, 2012, p. 15). Habermas, por assim dizer, emprega diversas metáforas para se referir a este papel da dignidade humana na gênese de novos direitos humanos. A dignidade humana é a fonte (2012, p. 11), é o catalisador (2012, p. 12), é a cortina de fumaça (2012, p. 13), é o sismógrafo (2012, p. 17), é a porta (2012, p. 17), é a dobradiça conceitual (2012, p. 17), é a promessa moral (2012, p. 18) que conecta a moral igualitária e a moral do respeito igual ao direito e ao conteúdo dos direitos humanos em particular e “que pode ser traduzida no medium do direito coercitivo” (HABERMAS, 2012, p. 18-9).

É importante destacar que com esta guinada genealógica a respeito dos direitos humanos Habermas (2012, p. 19, nota) não acredita que seja necessário qualquer revisão conceitual na introdução originária dos direitos humanos em Faktizität und Geltung. Ele acrescenta ainda que naquele tempo não havia levado em consideração dois pontos: a. Não tinha observado que “as experiências cumulativas de dignidade violada formam um fonte de motivação moral” às práticas constitucionais de institucionalização de novos direitos em um ordenamento jurídico, em particular de novas categorias de direitos humanos; b. Não tinha observado que “a noção geradora de status social do reconhecimento social da dignidade do outro” consiste numa ponte conceitual da moral do respeito igual à forma jurídica; ele parece acreditar ainda que a inclusão destes novos elementos não parece afetar a sua interpretação deflacionada do princípio do discurso. Acredito que Habermas está respondendo aqui às críticas de Axel Honneth em obras como Crítica ao poder. Uma vez que a dimensão do conflito e da luta social parece substituir o papel do consenso no modelo genealógico dos direitos humanos uma vez que “a reivindicação e a imposição dos direitos humanos raramente transcorre de modo pacífico” (HABERMAS, 2012, p. 28).

 

AS CRÍTICAS DE HONNETH À CONCEPÇÃO DE ESFERA PÚBLICA HABERMASIANA

                       

Oliver Voirol, em A esfera pública e as lutas por reconhecimento: De Habermas a Honneth (2008), identifica quais são as principais críticas de Axel Honneth em obras como Crítica do poder ao modelo de esfera pública habermasiano. Entre as principais críticas de Honneth à concepção de Habermas encontram: a. A concepção de mundo da vida habermasiana opera sem nenhum tipo de relação de poder; é importante lembrar aqui que Honneth reabilita uma certa concepção de poder oriunda do pensamento de Michel Foucault; b. Na concepção habermasiana a noção de lutas sociais parece não ocupar um papel muito claro, se algum papel ocupa; aqui acredito que o problema seria que uma concepção de esfera pública e poder focada apenas no consenso, que ignorasse o dissenso ou desacordo frequente nos debates a respeito da gênese de categorias de direitos novas, no que diz respeito aos direitos humanos, e em debates a respeito de questões de justiça básica, seria uma descrição inadequada da própria dinâmica social. Além disso, a concepção discursiva habermasiana reconstrói o processo de desenvolvimento da dinâmica social orientando por uma pragmática universal que se concentram em elementos comunicativos, que do ponto de vista de Honneth seria uma abordagem muito abstrata, que deixaria de lados alguns elementos importantes da dinâmica social, em outras palavras, o modelo baseado na pragmática universal seria muito abstrato. O modelo baseado na pragmática universal estaria orientado apenas pelo emprego adequado das competências linguísticas no exercício de uma tomada de decisão política na esfera pública informal, buscando evitar o empregos não legítimos de participação na esfera pública como uso da coerção neste tipo de interação, mas estaria ignorando, por exemplo, que o discurso na esfera pública possui uma dimensão moral e não se orienta apenas a uma busca da autonomia mas também de uma relação positiva dos sujeitos da interação para consigo mesmos, por uma luta por reconhecimento, para empregar o termo central do paradigma de Honneth. Os sujeitos da interação na esfera pública não estariam apenas levantando expectativas de justificação de suas pretensões de validade criticáveis, mas também estariam esperando de alguma forma que sua pessoa fosse considerada de maneira positiva no espaço público. Com isso, o que Honneth está sugerindo é uma definição alargada das relações intersubjetivas e das interações sociais no âmbito da esfera pública. As interações na esfera pública não diriam respeito apenas a questões relativas ao emprego adequado da linguagem, mas também de aspectos relacionadas com experiências de falta de reconhecimento. Deste modo, se poderia dizer com Voirol (2008, p. 46), que “as condições comunicativas do entendimento sem coerção (...) [da] pragmática universal não esgotam o conjunto de condições da interação social”. O modelo da dinâmica da esfera pública centrado nas competências linguísticas precisa ser complementado por um modelo centrado na integridade de si na visão de Honneth. Eu arriscaria a dizer que Habermas parece concordar com esta necessidade de complementação, uma vez que em O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos ele inclui alguns elementos em sua maneira de tratar do tema dos direitos humanos que são análogos ou similares a maneira como uma concepção centrada no paradigma do reconhecimento faz ao tratar da dinâmica social e das lutas por direitos. Apenas para fins de comparação, em Faktizität und Geltung, Habermas trata das demandas feministas por igualdade, um tema também tratado pelo modelo do reconhecimento e poderíamos empregar este caso para comparação.

No capítulo IX de Faktizitat und Geltung, Paradigmas do direito, Habermas procura mostrar como três modelos ou paradigmas distintos do direito tratam com a questão da dialética entre igualdade de direito e igualdade de fato presente nas demandas feministas. Habermas sustenta que o primeiro modelo, o modelo liberal de direito, costuma ignorar completamente as demandas específicas ao gênero feminino, uma vez que compreende que, quando ocorre um tratamento igual de todos perante a lei, a igualdade teria sido respeitada. O problema do primeiro modelo é que ignora as diferenças específicas ao gênero completamente. Ele ignora que um ordenamento jurídico pode ser discriminatório em relação a grupos específicos, mesmo quando trata a todos de forma igual perante a lei. Tratar aqueles que são diferentes de forma igual, já dizia Aristóteles, obviamente num outro contexto, é tratar as pessoas de forma não igual, por isso, um tipo de injustiça. O segundo modelo ou paradigma do direito é o do Estado de bem-estar social. Diferentemente do modelo liberal, este segundo modelo reconhece que podem existir diferenças relevantes entre indivíduos ou grupos que podem exigir um tratamento diferenciado do ordenamento jurídico. O problema com este segundo modelo jurídico tem a ver com a solução que ele oferece ao problema. Este modelo adota uma atitude paternalista em relação aos membros discriminados ou marginalizados da sociedade. Na crítica a este segundo modelo fica mais evidente o foco do terceiro paradigma discursivo nas competências linguísticas. Habermas entende que o modelo discursivo consegue lidar de forma mais adequada do que os dois primeiros modelos com as demandas feministas porque concede um direito à voz a todos os concernidos pela norma ou regra controversa. O modelo discursivo evita o erro do modelo liberal, ao também reconhecer a existência de demandas legítimas de grupos, neste caso das feministas, mas também evita o erro do modelo do bem-estar social, ao evitar monopolizar as decisões a respeito de como resolver o tratamento não igualitário das mulheres na mão de homens e mulheres de classes privilegiadas. As principais afetadas pelas regulações específicas às mulheres não são nem os homens e nem as mulheres de uma elite política, mas as mulheres de classes sociais menos abastadas, muitas vezes com filhos e solteiras, sem contar que outros tipos de discriminações podem se sobrepor a estas como fazer parte de um grupo étnico alvo de preconceito social. Em síntese, os dois primeiros modelos comentem o mesmo erro: “oprime as vozes daquelas que são as únicas capazes de enunciar as razões relevantes para a igualdade ou desigualdade de tratamento” (HABERMAS, 1997, Vol. II, p. 161). No paradigma do reconhecimento de Axel Honneth, todas as demandas sociais podem ser incluídas como demandas por reconhecimento em três diferentes esferas do reconhecimento. A primeira esfera do reconhecimento se orienta pelo princípio do cuidado, a esfera do amor. A segunda esfera do reconhecimento se orienta pelo princípio da igualdade, a esfera do direito. A terceira esfera do reconhecimento se orienta às vezes pelo princípio do mérito, mas nem sempre, pois também é chamada às vezes de solidariedade, é a esfera da realização. Para fins de comparação, a segunda esfera é mais promissora, se bem que seja necessário ressaltar que Honneth entende que as demandas sociais podem dizer respeito a mais de uma esfera. Se Honneth hipoteticamente tratasse do tema que Habermas trata, da falência dos paradigmas jurídicos, ele concordaria com Habermas que o paradigma liberal é cego às desigualdades, uma vez que ignora desigualdades fáticas de tratamento tal como o caso das demandas feministas. Talvez o motivo não fosse exatamente o mesmo para este diagnóstico, uma vez que acredito que Honneth empregaria aqui a ideia de que o sistema jurídico é carregado moralmente e que, por isso, a suposta neutralidade do paradigma liberal não é neutra, mas uma posição moral camuflada de neutra. Confesso não ter certeza do que Habermas diria a respeito deste ponto agora. Mas avançando na comparação e contraste entre modelos. Habermas critica ambos os modelos por questões de participação na interação linguística na esfera pública. Em Consciência moral e agir comunicativo, Habermas desenvolve as suposições do emprego da linguagem orientada ao entendimento e sustenta na regra (3.3), por exemplo, que não é permitido impedir algum falante por qualquer tipo de coerção interna ou externa ao discurso de participar da interação linguística (HABERMAS, 1989, p. 112). O erro do paradigma de bem-estar social consiste como já dito, é impedir a todas as mulheres de participação da gênese de direitos relativos às diferentes específicas de seu gênero no mercado de trabalho e na sociedade em geral. Habermas obviamente não exclui explicitamente ao menos a natureza litigiosa da participação das mulheres na esfera pública, mas ao menos neste momento não incluí este aspecto no modelo discursivo do direito. Honneth é mais explícito quanto a este ponto, uma vez que entende desde o início que a participação dos grupos sociais excluídos na esfera pública é de natureza conflituosa. O motor da dinâmica social é o conflito a respeito da interpretação dos princípios de cada esfera de reconhecimento. No caso aqui discutido, a interpretação do princípio da igualdade é o motivo do conflito. São as experiências de desrespeito ou falta de reconhecimento que surgem como a motivação moral das demandas por igualdade social. As experiências de violência psíquica, de exclusão da coletividade e de humilhação pública que motivam o surgimento dos movimentos sociais a favor do direito a um tratamento igualitário perante a lei das mulheres. O problema da abordagem focada apenas nas habilidades linguísticas dos falantes é que fracassa em “tentar dar conta da riqueza de experiências sociais da vida cotidiana” assim como não chega a dar conta da dinâmica das lutas sociais (VOIROL, 2008, p. 47). Além disso, a concepção de Honneth dá a entender que a expressão pública dos sentimentos de injustiça pode se encontrar abafada por algum tipo de forma de repressão simbólica e por causa disso o modelo de esfera pública habermasiana não consegue dar conta de “experiências não organizadas linguísticamente em um sistema de convicções morais explícitas” (VOIROL, 2008, p. 49). A concepção genealógica dos direitos humanos, que Habermas desenvolve em O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos, situa estas experiências no centro do processo de desenvolvimento das diferentes categorias dos direitos humanos.

 

ELEMENTOS CENTRAIS DA CONCEPÇÃO GENEALÓGICA HABERMASIANA DE DIREITOS HUMANOS

 

Ao desenvolver sua concepção genealógica dos direitos humanos, Habermas sustenta que existe uma vinculação forte entre os direitos humanos e a noção moral de dignidade humana. Habermas (2012, p. 10) entende que desde o início, mesmo que de forma ainda não explícita, esta vinculação existe. Diz ainda que os direitos humanos “sempre surgiram primeiro a partir da oposição à arbitrariedade, opressão e humilhação” que são compreendidas como diferentes formas de violação da dignidade humana. Eu arriscaria dizer como hipótese interpretativa, obviamente falível, que Habermas atribui ao conceito de dignidade humana função similar à noção de reconhecimento no paradigma de Honneth. Diferentes experiências de injustiça sociais contidas nas diferentes gerações de direitos humanos (direitos liberais de liberdade, direitos de participação democrática, direitos sociais e econômicos, direitos culturais, direitos a um meio ambiente saudável, direitos a um patrimônio genético não modificado) possuem uma mesma base moral comum, o valor da dignidade da pessoa humana. Estas diferentes categorias de direitos resgatam uma promessa moral de respeito à dignidade humana (HABERMAS, 2012, p. 15). Nesse novo modelo genealógico, ocupam um papel importante as experiências de sofrimento, exclusão e discriminação (HABERMAS, 2012, p. 16). Habermas sustenta inclusive que a noção de dignidade humana funciona como um sismógrafo (o texto é carregado de metáforas) que “mostra o que é constitutivo para uma ordem jurídica democrática” (HABERMAS, 2012, p. 17). Mais adiante afirma ainda que o mesmo conceito é como uma porta (mais uma metáfora) mediante a qual o conteúdo de uma moral igualitária universalista é importado da moral ao direito (HABERMAS, 2012, p. 17). Outra metáfora ainda na mesma página surge. A dignidade humana funciona como um tipo de dobradiça conceitual que conecta uma moral do respeito universal com o direito positivo (HABERMAS, 2012, p. 17). Habermas procura ainda mostrar no texto a razão pela qual a vinculação explícita entre dignidade humana e direitos humanos teria ocorrido apenas de forma tardia. Ele mostra como um conceito que se referiu originalmente em certo momento apenas ao status privilegiado de um grupo dentro da sociedade se torna um status privilegiado a todos os seres humanos. Um conceito que originalmente tinha mais a ver com honra social, sociedades tradicionais e sociedades hierárquicas termina se referindo a uma dignidade atribuída a todos os membros da sociedade. O surgimento do direito moderno teve papel preponderante nesta passagem de um conceito particular para um conceito universal de dignitas. Por fim, Habermas reconhece a dimensão conflituosa e baseada em experiências de violação da dignidade humana, o que se enquadra perfeitamente nos problemas apontados por Honneth em Crítica ao poder. Os direitos humanos são o resultado de lutas por reconhecimento social e lutas revolucionárias e não apenas de consensos. Deste modo, acredito que não se trata de um modelo contraditório ao modelo normativo de direitos humanos, mas de um modelo complementar. O que Habermas diz mais próximo ao fim do seu texto sugere que ele reconhece que está respondendo às críticas de Honneth, uma vez que defende que a origem conflituosa dos direitos humanos “explica apenas em parte” (HABERMAS, 2012, p. 29) o caráter polêmico dos direitos humanos. É preciso reunir a origem conflituosa, baseadas nas experiências de sofrimento, humilhação, falta de reconhecimento, e a carga moral explosiva do conceito de dignidade humana. Deixarei de lado por ora ao menos se a concepção de Honneth não contém esta dimensão moral, mas acredito que Habermas reconhece mesmo que implicitamente ao tratar dos direitos humanos de uma perspectiva genealógica, que o modelo normativo precisava ser complementado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Como foi possível observar, Habermas desenvolve uma concepção genealógica dos direitos humanos mais recentemente, o que para alguns pode parecer com algum tipo de guinada radical no pensamento do filósofo e sociológico alemão, contudo, acredito que se trata muito mais de uma complementação do modelo desenvolvido em obras anteriores do que exatamente algo novo. Honneth havia sustentado que antes da década de 1970 Habermas possuía um modelo de esfera pública mais inspirado em Hegel do que em Kant e que tal modelo seria melhor para tratar dos problemas aqui discutidos como, por exemplo, de um mundo da vida carente de conflitos e de um papel maior para as lutas sociais no modelo. Não tenho como responder a esta sugestão de Honneth aqui e fazer isso exigiria um estudo mais aprofundado das obras iniciais de Habermas do que tenho feito recentemente, mas talvez se possa pensar numa continuidade, no sentido de uma retomada deste modelo anterior no texto discutido aqui e não numa ruptura.

 

REFERÊNCIAS

 

HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução Guido A de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

 

HABERMAS, Jurgen. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Berlin: Suhrkamp, 1992.

 

HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade (Vol. I e II). Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997.

 

HABERMAS, Jurgen. Zur Verfassung Europas. Ein Essay. Berlin: Suhrkamp, 2011.

 

HABERMAS, Jurgen. O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos. In: Habermas, J. Sobre a constituição da Europa. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

 

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003.

 

HONNETH, Axel. Critica del poder. Fases en la reflexión de un Teoría Crítica de la sociedad. Tradução ao espanhol de Germán Cano. Madrid: Machado Libros, 2009.

 

HONNETH, Axel. Reconhecimento entre estados. Sobre a base moral das relações internacionais. Civitas, v. 10, n. 1, Porto Alegre, 2010, pp. 134-152.

 

HONNETH, Axel. Direito da liberdade. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

 

VOIROL, Olivier. A esfera pública e as lutas por reconhecimento: de Habermas a Honneth. Cadernos de Filosofia Alemã, n. 11, Jan-jun 2008, p. 33-56.


 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO XI

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


O QUARTO CONCEITO DE DEMOCRACIA RADICAL DE AXEL HONNETH

 

Charles Feldhaus

 

INTRODUÇÃO

 

Com a publicação de obras como A crítica ao poder, A luta por reconhecimento, e O direito à liberdade, apenas para citar os mais relevantes ao tema que será tratado a seguir, Axel Honneth apresenta algumas críticas ao modelo discursivo de Jurgen Habermas e desenvolve um novo modelo de teoria crítica e de democracia. Honneth desenvolve o novo modelo de democracia num artigo de 1998 Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje e em O direito à liberdade. Esse artigo é uma resposta direta ao artigo publicado por Habermas em A inclusão do outro, Três modelos normativos de democracia. Nesse artigo Habermas procura situar o modelo de democracia desenvolvido em sua principal obra de filosofia do direito Entre facticidade e validade diante de outros modelos liberal e republicano de democracia. Sem dúvida, Habermas reconhece que esse tipo de tipificação ideal dos modelos de democracia consiste num tipo de simplificação e numa redução de complexidade de concepções de democracia muito mais complexas. Mas para fins de argumentação e comparação esse tipo de redução de complexidade não deixa de ter alguma relevância e utilidade filosófica. Habermas acredita que é possível apontar vantagens e desvantagens em ambos os modelos de democracia e, por causa disso, ele pretende reconstruir um novo modelo de democracia procedimentalista, o que fez, como já dito, em Entre facticidade e validade como seu modelo de democracia deliberativa.

 

O MODELO DE DEMOCRACIA DELIBERATIVA HABERMASIANO

 

Um modelo de democracia de Habermas, desenvolvido em Entre facticidade e validade e esquematizado em Três modelos normativos de democracia, procura situar-se entre a democracia direta (algo mais próximo ao modelo republicano) e a democracia meramente representativa (algo mais próximo ao modelo liberal). O modelo de democracia deliberativa, discursivo ou procedimental de Habermas procura obter as vantagens de ambas as abordagens à democracia e evitar as desvantagens de ambas também. Uma das vantagens do modelo republicano é que se vincula “ao sentido radicalmente democrático de uma auto-organização da sociedade pelos cidadãos unidos de forma comunicativa e não reduz os fins coletivos a um deal entre interesses privados opostos” (Habermas, 2018, 406). Uma das principais desvantagens do modelo republicano é que seria “muito idealista e torna o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos orientados para o bem comum” (Habermas, 2018, 407). O problema do modelo republicano é conduzir a política de maneira estritamente ética ou de forma muito dependente dos discursos ou acordos éticos pré-políticos. Uma crítica semelhante Habermas já havia feito ao modelo rousseauniano de conciliação entre a soberania popular e os direitos subjetivos ou entre autonomia pública e autonomia privada em Entre facticidade e validade. A estratégia de solução de Rousseau pressupõe uma identidade ética compartilhada entre os membros de uma comunidade política, algo que seria inalcançável no contexto de sociedades contemporâneas marcadas pelo pluralismo axiológico. O mesmo argumento é empregado no debate entre modelos de democracia, dado que Habermas diz que “nas condições de um pluralismo cultural e social” é necessário alcançar um equilíbrio entre os conflitos políticos na esfera política que não pode ser obtido por discursos éticos (Habermas, 2018, 407). O modelo liberal, por sua vez, concentra-se na concepção de Estado como um guardião de uma sociedade estritamente econômica (Habermas, 2018, 409). O modelo liberal não consegue eliminar a distinção entre o aparato estatal e a sociedade, seria possível apenas superar a distância entre a sociedade e o aparato estatal através do processo de formação da vontade democrática entre cidadãos compreendidos apenas como pessoas autointeressadas, e tal modelo se restringe a uma forma minimalista de constituição política orientada a “disciplinar o poder estatal por medidas normativas (como direitos fundamentais, separação de poderes e a administração vinculada às leis)” (Habermas, 2018, 411). Desta maneira, o modelo liberal não se concentra no processo de autodeterminação democrática dos cidadãos que participam de uma deliberação, mas na “normatização (...) de uma sociedade econômica que [preza] pela satisfação das expectativas de felicidade privadas de cidadãos que atuam de modo produtivo” (Habermas, 2018, 411-2). O modelo liberal não se orienta pelo input de contribuições democraticamente legítimas no espaço da esfera pública política informal, mas muito mais no output de um balanço positivo das atividades estatais. Como veremos mais adiante, o problema central do modelo liberal de democracia é que não é um modelo de democracia radical. Ele concentra praticamente toda atividade de participação política no processo de escolha dos representantes políticos em eleições periódicos e regulares. No modelo liberal é como se a cada eleição o povo concedesse uma carta de confiança aos representantes políticos. O modelo de democracia discursivo habermasiano assim como o modelo republicano, que Habermas vincula ao pensamento político de Hannah Arendt, orienta-se por uma perspectiva de democracia radical. A democracia radical não se resume ao exercício periódico do direito ao voto em eleições regulares. A democracia radical exige uma participação política mais ativa dos cidadãos, a democracia radical exige cidadania ativa. Exige participação constante na esfera pública política informal. Desta maneira, o modelo discursivo se orienta a “institucionalizar os pressupostos comunicativos exigentes do procedimento democrático” de uma democracia radical (Habermas, 2018, 412). Entre as pressuposições exigentes dos processos de tomada de decisão democrática radical se encontram as cinco categorias de direitos fundamentais do modelo procedimental habermasiano de Entre facticidade e validade como: 1. Direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação; 2. Direitos que resultam da configuração do status de membro de uma comunidade política; 3. Direitos que resultam da possibilidade de postulação judicial; 4. Direitos de participação em igualdade de chances do exercício de autonomia política; 5. Direitos à igualdade de chances quanto às condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente (Habermas, 1997, 159-160).

Como se pode observar claramente, no modelo discursivo o processo de formação democrática da vontade não se restringe a função “exclusiva de legitimar o exercício do poder político” (Habermas, 2018, 414, grifo do autor). Mas também procurar transformar a esfera pública política informal em “uma arena para percepção, identificação e tratamento de problemas que atingem a sociedade como um todo” (Habermas, 2018, 416). O caminho escolhido por Habermas para garantir uma tomada de decisão democrática legítima e radical consiste na “implementação jurídica de seus pressupostos comunicacionais (...) as opiniões públicas culturalmente mobilizadas, que (...) encontram uma base nas associações de uma sociedade civil igualmente distante do Estado e da economia” (Habermas, 2018, 417). Embora o modelo discursivo procedimental habermasiano se afaste da estratégia republicana arendtiana de pressupor a existência de virtudes cívicas nos cidadãos que participam do processo de tomada de decisão política na esfera pública política informal, a abordagem discursiva concentra-se nas instituições jurídicas como solução problema de radicalização da democracia.

 

O MODELO DE DEMOCRACIA RADICAL BASEADO NO PARADIGMA DO RECONHECIMENTO DE AXEL HONNETH

 

Como vimos, o modelo discursivo de democracia se baseia numa ampliação do espaço discursivo na esfera pública através da institucionalização de certos procedimentos jurídicos. Contudo, isso pode ser considerado um tipo de restrição ao que é relevante ao processo de tomada de decisão. Tanto que essa restrição da radicalização aos aspectos jurídicos é aquilo que será o alvo da crítica de Axel Honneth ao modelo procedimental de democracia. A radicalização da democracia exige mais do que reformar as instituições jurídicas e estatais. Exige considerar aspectos não institucionais que podem influenciar o processo de tomada de decisão democrática. Eu tenho a impressão que o modelo democrático radical do reconhecimento honnethiano segue o mesmo caminho proposto por Martha Nussbaum em Political Emotions. Why Love Matters for Justice, em que a pensadora sustenta que um modelo de participação democrática adequado exige a promoção de sentimentos positivos em relação à política. Um meio marcado pelo ódio não parece um ambiente adequado à tomada de decisões democráticas. Por causa disso, não se pode dizer que os sentimentos que as interações políticas produzem não sejam relevantes. Desta maneira, a opção não consiste em contrapor uma política com sentimentos contra uma política com sentimentos. A opção, em última análise, é entre uma política com sentimentos favoráveis ao processo de tomada de decisão democrática contra uma política com sentimentos desfavoráveis ao processo de tomada de decisão democrática como o ódio entre os opositores políticos que não conseguem empreender um simples diálogo. Talvez os tempos atuais sejam um bom exemplo do que ocorre com a política quando os sentimentos desfavoráveis tomem conta da esfera pública política informal e no nosso caso formal também. Mesmo que as instituições políticas ainda existam formalmente, a ausência de sentimentos favoráveis ao exercício da tomada de decisão democrática parece tornar muito difícil o bom funcionamento das instituições jurídicas, políticas e a própria troca de opiniões na esfera pública informal.

Honneth apresenta seu modelo de democracia radical primeiramente num artigo de 1998 Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje e posteriormente na obra O direito da liberdade de 2011. Concentrarei na minha conferência de hoje na teoria democrática radical de Honneth no artigo de 1998 e deixarei para uma próxima oportunidade comparações e considerações a respeito do modelo de O direito da liberdade, em particular gostaria de avaliar o instigante artigo de Delamar José Volpato Dutra Com Honneth contra Honneth a favor de Habermas publicado em 2017, em que Dutra procura, após extensa e minuciosamente apresentação dos principais elementos da teoria democrática de Honneth em O direito da liberdade, defender que o modelo de Habermas baseado no direito é melhor do que o modelo do reconhecimento de Honneth baseado em três conceitos de liberdade e que Honneth se equivoca a respeito do seu diagnóstico. É importante observar que uma crítica ao modelo do reconhecimento de Honneth relacionada com a capacidade de diagnóstico do modelo do reconhecimento é uma crítica ser levada seriamente em consideração, uma vez que tanto em Luta por reconhecimento, como em O reconhecimento entre Estados, a principal vantagem do modelo do reconhecimento diante do modelo da teoria da escolha racional diz respeito exatamente a capacidade superior do modelo do reconhecimento em diagnosticar as patologias sociais. Se o modelo do reconhecimento é um modelo pior quanto ao diagnóstico das patologias sociais de um sistema político democrático, por exemplo, esse defeito não é um defeito a se ignorar. Mas, como disse, retornarei as críticas de Dutra ao modelo do reconhecimento aplicado à teoria democrática em outra oportunidade. Agora é momento de apresentar os traços gerais da posição esboçada por Honneth em Democracia como cooperação reflexiva.

Honneth (1998, 63, nota) ressalta já no início do texto, que se une ao menos em alguma medida ao diagnóstico de Habermas no texto Três modelos normativos de democracia no que diz respeito à classificação dos principais modelos de democracia da atualidade, a saber, liberalismo, republicanismo e o próprio procedimentalismo habermasiano. Honneth assim como Habermas também reconhece os riscos de simplificação exagerada numa abordagem que procura classificar as concepções vigentes de democracia em apenas alguns grupos, mas acredito que como Habermas acredita que é possível se alcançar bons frutos de uma reflexão filosófica a respeito das vantagens e desvantagens de modelos de democracia, mesmo que considerados apenas como tipos ideais na terminologia de Max Weber. Os tipos ideais se justificam pelo seu poder explicativo e acredito que no caso dos modelos de democracia em conflito isso não é diferente.

Como Habermas, Honneth (1998, 64) sustenta que a concepção liberal restringe a democracia a uma atividade de legitimar de maneira periódica o exercício do poder estatal e que um conceito de democracia realmente radical exige uma atividade permanente de participação política na esfera pública. A diferença é que Honneth se refere não apenas ao aparato institucional, mas também à parte pré institucional, buscando identicar num debate com a proposta de Dewey e os dois outros modelos de democracia (republicano e discursivo ou procedimental) as condições pré políticas do exercício de participação política. Honneth diferencia na concepção de Dewey um período de juventude e um período de maturidade em relação à concepção de democracia. As principais influências da juventude seria fortemente Hegel e o jovem Marx. As principais influências da maturidade seriam os estudos epistemológicos e a transferência de certos discernimentos a respeito da efetividade da busca da verdade e do conhecimento nas ciências à esfera da política. Tanto na prática científica quanto na prática da participação política existe um tipo de sociedade caracterizada por uma prática cooperativa de resolver problemas (Honneth, 1998, 68). Em última análise, o que Honneth pretende apresentar é “a justificação dos princípios de uma democracia expandida” (Honneth, 1998, 67). Nessa proposta, Honneth seguindo Dewey parece estar propondo um modelo de cooperação social na solução de problemas no lugar de um modelo de consulta comunicativa. Se poderia dizer que com Dewey Honneth está enfatizando o fato que não é suficiente apenas abrir espaços institucionais de consulta comunicativa como parece pressupor o modelo de democracia de Habermas, mas é necessário também que exista práticas de cooperação pré institucionais entre os cidadãos, a fim de que as próprias práticas de consulta comunicativa aconteçam de maneira apropriada. Os cidadãos precisam se compreender como parceiros num empreendimento cooperativo e reflexivo de solução de problemas comuns. Precisam perceber os problemas políticos como problemas comuns e não como algo distante da sua vida cotidiana. São as práticas pré institucionais que preparam os cidadãos para o exercício da participação política significativa. Honneth (1998, 67) ressalta que a teoria da democracia de Dewey é geralmente identificada como o antecedente teórico tanto do republicanismo quanto do procedimentalismo na democracia. Quando na verdade a mesma poderia ser compreendida como uma terceira alternativa diante do republicanismo e do procedimentalismo que sintetiza elementos de ambas. Uma síntese que pode ser considerada como uma “opção superior” (Honneth, 1998, 68). A democracia para Dewey não deixaria de conter uma dimensão instrumental, uma vez que consiste no melhor procedimento racional de resolução de problemas de uma comunidade autogovernada ou democrática (Honneth, 1998, 67). Nesse modelo associações sociais pré políticas e a participação dos indivíduos nas mesmas também ocupam papel importante, dado que servem como uma espécie de laboratório para o exercício da participação política. O modelo de Dewey reúne procedimentos reflexivos, comunidade política, deliberação, finalidades, divisão de trabalho a fim de realizar as finalidades, busca cooperativa de solução de problemas, entre outros aspectos. Desta maneira, a abordagem de Dewey que inspira o modelo do reconhecimento de Honneth tenta evitar o que seria uma tendência ruim da “filosofia social contemporânea de ver na democracia só uma mera forma organizacional de governo do Estado” (Honneth, 1998, 70). Essa visão da democracia tem o defeito de pressupor que a sociedade consiste numa massa de indivíduos desorganizada e isolados (Honneth, 1998, 70). Mas as sociedades em geral já consistem de organismos sociais em que existe a cooperação como um fato social e uma divisão de trabalho entre os indíviduos, de modo que as atividades dos individuos contribuem com a manutenção da sociedade (Honneth, 1998, 71).

A participação pública dos cidadãos na esfera pública política e nos procedimentos democráticos de resolução de problemas políticos “pressupõe uma forma de associação pré política” tal como as que existem em comunidades pequenas e que podem ser observadas nos distritos municipadis” nos Estados Unidos da América (Honneth, 1998, 83-4). Nesse tipo de atividades é possível perceber a existência de ações cooperativas com metas comuns e a relevância dos procedimentos democráticos na garantia da racionalidade das decisões tomadas. Uma concepção de democracia radical adequada em Honneth e Dewey exige o desenvolvimento de uma consciência comum nesse tipo de associações políticas (Honneth, 1998, 84). Em síntese, nas próprias palavras de Honneth (1998, 85): “orientar-se por procedimentos democráticos pressupõe uma forma de vida ética democrática que não é ancorada em virtudes política, mas na consciência da cooperação social”. Uma prática democrática radical exige a experiência comunal da fraternidade, da liberdade e da igualdade. Não apenas a institucionalização dos procedimentos jurídicos necessários à participação democrática. A inclusão formal de todos os concernidos não parece suficiente à concepção democrática de Dewey e Honneth.

 

CONCLUSÃO

 

Como foi possível observar, Honneth desenvolve um modelo de democracia como cooperação reflexiva que integra aspectos geralmente ignorados pelos demais modelos de democracia, mesmo pelos modelos de democracia radical republicano e discursivo. Honneth com Dewey entende que a prática da participação democrática radical exige a formação de uma identidade comum entre os cidadãos, exige a promoção de relações em que a liberdade, a igualdade e fraternidade façam parte da prática cotidiana das pessoas numa democracia. O exercício da democracia pressupõe uma igualdade social minimamente razoável. Em Habermas, por exemplo, a igualdade parece surgir apenas após o estabelecimento dos procedimentos jurídicos institucionais para garantir o exercício da democracia. Os próprios cidadãos decidem o conteúdo da última categoria de direitos fundamentais relacionada com os direitos sociais. Em Honneth e Dewey, a igualdade social é pré condição do próprio exercício da tomada de decisão democrática. Como já disse, não pretendo avaliar no presente estudo a pertinência da proposta de Honneth de uma alternativa ao modelo discursivo de Habermas centrado no direito, mas numa outra oportunidade.

 

REFERÊNCIAS

 

DUTRA, Delamar José Volpato. Com Honneth contra Honneth a favor de Habermas. Veritas. V. 62, n. 1, jan-abril 2017, p. 130-168.

 

HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia, entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997.

 

HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de Denílson Luiz Werle. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

 

HONNETH, Axel. Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje. In: SOUZA, Jessé (org). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora Unb, 2001.

 

HONNETH, Axel. O direito da liberdade. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

 

NUSSBAUM, Martha. Political emotions. Why Love Matters for Justice. Cambridge: Harvard University Press, 2013.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO XII

 

 

 

 

 

 

 

 

 


A IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA SEGUNDO JOHN RAWLS

 

Ana Flávia Rossi[iii]

Charles Feldhaus

 

INTRODUÇÃO

 

A origem da ideia de razão pública está intimamente ligada à concepção de sociedade democrática constitucional bem-ordenada. Isso porque, de acordo com John Rawls, é da cultura de livres instituições, característica básica dos regimes democráticos, que resulta um pluralismo de visões abrangentes e conflitantes que dificulta o consenso mútuo entre os cidadãos. No intuito de fazê-los honrar a estrutura dessa sociedade, consentindo com as leis nela promulgadas, é que surge a razão pública tal como pensada por Rawls.

Nesse sentido, o presente texto busca explorar, inicialmente, o conflito entre doutrinas abrangentes razoáveis e conflitantes que levou ao surgimento da ideia de razão pública, da qual também serão discutidos o conceito, a forma e o conteúdo, o que será feito a partir de uma reconstrução do texto A Ideia de Razão Pública Revista, publicado como apêndice da obra O Direito dos Povos e da edição expandida de Liberalismo político, sendo abordados também os requisitos por que uma doutrina é considerada razoável e a questão da substituição das doutrinas abrangentes de verdade e direito pela ideia do politicamente razoável na razão pública.

Na sequência, serão tratados individualmente os cinco aspectos diferentes atribuídos por Rawls à razão pública, reconstruindo o que Rawls chamou de critério da reciprocidade e como este serve de base para a ideia de legitimidade política. Também serão abordados conceitos como fórum político público, além de devidamente analisada a separação feita pelo autor entre ideia e ideal de razão pública e discutidos os três sentidos que delimitam o porquê a razão é considerada pública, contrapondo-a as razões não públicas presentes no que o autor denominou cultura de fundo, a fim de responder, por fim, de que maneira é possível fazer com que os cidadãos respeitem a estrutura do regime democrático constitucional e aquiesçam às leis e aos estatutos nele decretados quando questões de justiça básica e elementos constitucionais essenciais estejam em jogo.

DA IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA SEGUNDO JOHN RAWLS

 

ORIGEM, CONCEITO E CONTEÚDO DE IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA

 .

Uma sociedade democrática constitucional bem-ordenada, assim como é chamada por Rawls, abarca necessariamente uma pluralidade de visões abrangentes de todos os tipos, que, apesar de consideradas razoáveis, podem vir a conflitar entre si. Assim é que a democracia tem como uma de suas características mais elementares o que o autor chamou de pluralismo razoável, traduzido nas numerosas doutrinas abrangentes, sejam elas de cunho religioso, filosófico ou moral, razoáveis e conflitantes entre si, que surgem normalmente a partir da cultura democrática das livres instituições.

Nesse sentido, a ideia, o conteúdo e a forma da razão pública fazem parte da própria ideia de democracia, vez que é diante desse conflito de doutrinas que os cidadãos, ao perceberem a impossibilidade de compreensão mútua e, por consequência, de se chegar a um acordo, precisam ponderar acerca de quais razões podem fornecer uns aos outros, de maneira razoável, quando estão sendo discutidas questões políticas fundamentais[99] (RAWLS, 2004, p. 174).

É na razão pública, então, que Rawls propõe serem as doutrinas abrangentes de verdade ou direito substituídas por uma ideia do politicamente razoável dirigido aos cidadãos como cidadãos, passo este que, segundo o autor, é imprescindível para que seja estabelecida uma base de raciocínio político passível de compartilhamento entre todos os cidadãos, na condição de livre e iguais entre si (RAWLS, 2004, p. 224).

O politicamente razoável, então, ao contrário do que ocorre com as doutrinas abrangentes razoáveis e conflitantes, pode ser compartilhado por todos os cidadãos, aqui considerados pessoas razoáveis, livres e iguais[100] , munidos dos poderes morais referentes à capacidade de uma concepção de justiça e à capacidade de uma concepção do bem (RAWLS, 2005), de modo que representa uma solução do autor à impossibilidade de consenso mútuo até então verificada.

É necessário entender que uma sociedade democrática constitucional abrange incontáveis e diferentes doutrinas, todas em atividade e dotadas de certa influência, e que tais doutrinas podem divergir quando de uma para outra sociedade (RAWLS, 2004, p. 174). Todavia, não são todas as que se consideram razoáveis – para isso, a doutrina precisa aceitar um regime democrático constitucional e, por conseguinte, a ideia de lei legítima que o acompanha.

Assim, se a doutrina abrangente rejeita a concepção de sociedade democrática constitucional, resta também preterida a própria ideia de razão pública nela inclusa. Segundo o autor, são criticadas, portanto, apenas as doutrinas incompatíveis com os componentes essenciais do regime político-democrático acima listados e, consequentemente, da razão pública em si.

Define-se a ideia de razão pública, então, como a razão de cidadãos iguais que integram um corpo coletivo e, mediante decisões, exercem poder político uns sobre os outros (RAWLS, 2005, p. 213), evidenciando os valores morais e políticos que devem estabelecer a relação entre o governo democrático constitucional e seus cidadãos e destes entre si, auxiliando-os na deliberação a respeito de quais razões devem ofertar uns aos outros, a fim de buscar um entendimento comum, quando estão em jogo perguntas políticas consideradas fundamentais. Nesse tocante, explica Denis Coitinho Silveira:

 

A razão pública não opera com as ideias de verdade ou correção que seriam inferidas de doutrinas abrangentes, mas, antes, faz uso da ideia do politicamente razoável que afirma valores morais-políticos normativos a partir do critério de reciprocidade, a saber: dever de civilidade, que implica a defesa da virtude de amizade cívica e de um ideal de cidadania democrática, que toma por base a legitimidade da lei, o que significa a defesa dos princípios de tolerância e liberdade de consciência, assegurando os direitos, liberdades e oportunidades básicas dos cidadãos na estrutura básica da sociedade (SILVEIRA, 2009, p. 13).

 

Aos valores morais políticos normativos citados por Rawls, como o dever de civilidade mútua (duty of civility), a amizade cívica (civic friendship) e o ideal de cidadania democrática (democratic citizenship), é conferida uma espécie de valor inerente, isto é, não constituem apenas obrigações jurídicas dos cidadãos, mas sim deveres cujo caráter é absoluto e intrinsecamente moral, como, por exemplo, os deveres políticos, e, portanto, possuem significação própria, independentemente de suas relações com outras coisas, de modo que as liberdades e direitos básicos sejam defendidos a partir dos princípios da tolerância e da liberdade de consciência.

Assim é que a ideia de razão pública esclarece que, a partir de um consenso sobreposto (overlapping consensus) entre diversas doutrinas abrangentes razoáveis, são endossados, por todos os cidadãos, valores políticos a partir dos quais se afirmam as questões de justiça política fundamental – que mais adiante serão divididas em elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica (basic justice), de modo que sejam estabelecidas condições políticas mínimas e se priorize a justiça, visando sempre ao bem comum (SILVEIRA, 2009, p. 2).

Outrossim, as liberdades religiosas e artísticas, o ideal de equidade, solidariedade e bem comum são expressos em termos de valores políticos e, assim, constituem princípios substantivos de justiça, que, por sua vez, integram a família de concepções políticas de justiça que compõe o conteúdo da razão pública (SILVEIRA, 2009, p. 12).

Pode-se dizer, dessa forma, que ao deliberar acerca de uma concepção política razoável, utilizando-se para isso de valores políticos compartilhados pelos demais cidadãos que são livres e seus iguais, o cidadão fará uso da ideia de razão pública, satisfazendo, assim, o mencionado critério de reciprocidade[101]. Nesse sentido, a ideia de razão pública faz referência ao “tipo de razões em que os cidadãos baseiam seus argumentos políticos no processo de justificação de normas que, referidas a elementos constitucionais essenciais e a questões de justiça básica, invocam o emprego efetivo da coerção pública pelo poder político” (ARAÚJO, 2011, p. 4-5).

As condições históricas e sociais da sociedade podem, contudo, provocar alterações no conteúdo da razão pública, vez que esta deve sempre abarcar e discutir temas que, naquele determinado tempo e espaço sociais, tenham sido reivindicadas, de modo a conferir não só a estabilidade social, como, também, a segurança do estabelecimento dos princípios de justiça (BONFIM e PEDRON, 2017, p.10).

 

ASPECTOS DA IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA

 

A estrutura da ideia de razão pública comporta cinco aspectos bem definidos, que, caso ignorados, fazem com que sua aplicação pareça inverossímil. Os aspectos listados por Rawls são: i) as questões políticas fundamentais a que a razão pública se aplica; ii) as pessoas a quem a razão pública se aplica, mais especificamente os funcionários do governo e os candidatos a cargos públicos; iii) o conteúdo da razão pública, dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça; iv) a aplicação dessas concepções em discussões de normas coercitivas a serem decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático; e v) a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivam das suas concepções de justiça que satisfazem o critério de reciprocidade (RAWLS, 2004, p. 175).

A respeito do primeiro aspecto, isto é, das questões políticas fundamentais às quais a ideia de razão pública se aplica, Rawls discorre que estas se dividem em elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica. Estas últimas compreendem não só questões em matéria de justiça social e econômica, como, também, matérias não disciplinadas em uma constituição, enquanto os primeiros abrangem direitos e liberdades de cunho político, que podem estar inclusos em uma constituição (BONFIM e PEDRON, 2017, p. 11). A razão pública estaria limitada, portanto, por aquilo que, depois de obtido mediante consenso mútuo, se constata nos princípios constitucionais.

Não estão abarcadas, porém, todas as discussões políticas de questões fundamentais, e sim apenas aquelas a que chamou fórum político público (RAWLS, 2004, p. 176). Tal fórum restou dividido em três partes, em razão de a ideia de razão pública não ser aplicada da mesma maneira aos três casos discutidos, nas quais será tratado o segundo aspecto da ideia de razão pública – as pessoas a quem esta é aplicada, em um âmbito público, incluindo funcionários do governo (poderes legislativo, executivo e judiciário) e candidatos a cargos públicos.

A primeira parte diz respeito ao discurso dos juízes em suas discussões e, especialmente, dos juízes de um tribunal supremo, aos quais a ideia de razão pública é especialmente aplicada, de modo mais estrito (RAWLS, 2005, p. 216). Isso porque no poder judiciário, em particular o Supremo Tribunal, os magistrados precisam sempre fundamentar suas decisões de acordo com a constituição – circunscrevendo as sentenças, portanto, a questões constitucionais essenciais – com os estatutos relevantes e com os precedentes judiciais, estão sempre envolvidas também as questões de justiça básica, de modo a exemplificar perfeitamente a aplicação da ideia de razão pública.

Nesse sentido, Vinícius Silva Bonfim e Flávio Quinaud Pedron sustentam:

[…] ao Judiciário caberia, sobretudo, garantir o devido processo constitucional. Isso significa que, entre os processos de efetivação de direitos, em um ordenamento jurídico composto por normas – regras e princípios –, a atividade jurisdicional não pode ser discricionária; quer dizer, não podem as convicções pessoais do decisor, por mais que sejam determinadas por um horizonte histórico de sentidos, definir subjetivamente o conteúdo da decisão. É preciso que se atente a todo um contexto de aplicação e de justificação das normas no ordenamento jurídico. Nesse sentido, cada vez mais a doutrina tem encontrado amparo em princípios constitucionais que regem a atividade jurisdicional, haja vista o dever da fundamentação das decisões, hoje, ser compreendido como norma constitucional2 primeiro, por expressa disposição; segundo, por ser um desenvolvimento do princípio do contraditório – que desde muito sob a lógica da cooperação, mostra-se como verdadeiro dever de participação e influência sobre a decisão –, além de estar conectado com os princípios da eficiência, da não surpresa, do duplo grau de jurisdição e com os princípios institutivos do processo, entre tantos outros (BONFIM e PEDRON, 2017, p. 2).

 

O papel da deliberação é fundamental, portanto, quando se trata das decisões de um tribunal, vez que estas tem de ser tomadas a partir da reflexão sobre valores políticos de justiça e razão pública (AFONSO DA SILVA, 2009, p. 209). Os magistrados não podem levar em consideração ideologias pessoais, religiosidades, ou ainda, suas próprias moralidades na justificação e fundamentação das sentenças, razão por que o tribunal é, por excelência, o local da deliberação racional e da aplicação da ideia de razão pública.

A segunda parte faz referência aos discursos dos funcionários do governo, em especial aqueles que ocupam funções executivas, como, no caso do Brasil, o presidente da república, e também os que são membros do poder legislativo. Nesse tocante, em que pese a razão pública não opere no sentido de determinar ou solucionar questões que aludam especificamente a leis ou políticas públicas, é ela quem estipula as razões que devem ser utilizadas ao serem tomadas decisões no âmbito das instituições públicas (BONFIM e PEDRON, 2017, p. 17).

A deliberação e a exigência de que sejam apresentadas as razões que fundamentaram tais decisões é o atestado de que as estruturas das instituições estão sujeitas à inspeção e a verificação de que os valores políticos que as norteiam não tenham sido distorcidos. A justificação pública tem por objetivo, portanto, delimitar a ideia de justificar apropriadamente as concepções políticas de justiça em uma sociedade democrática constitucional marcada pela pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis. Seu endereçamento é, sempre, “aos outros que discordam de nós e, consequentemente, deve sempre proceder para algum consenso, isto é, para premissas que nós e os outros publicamente reconhecemos como verdadeiras” (SILVEIRA, 2007, p. 2). Nesse sentido:

 

A exigência de dar razões na justificação pública coloca frontalmente a pessoa política diante da construção e da concepção de um regime democrático e do sentido político de justiça, que prevê a participação política do cidadão, o diálogo e uma interação pública na construção dos sentidos normativos (BONFIM e PEDRON, 2017, p. 9).

 

A terceira parte, por fim, alude ao discurso dos candidatos a cargos públicos e de seus chefes de campanha, mormente no discurso público, nas plataformas de campanha e declarações políticas (RAWLS, 2004, p. 176). Ainda, é de se ressaltar que, nessa subdivisão, o autor traça um limite entre a) candidatos, b) administradores de campanha e c) cidadãos politicamente engajados em geral, estabelecendo que os dois primeiros devem ser considerados responsáveis pelo que é dito ou feito em nome dos candidatos, enquanto estes últimos não.

No que se refere ao terceiro, quarto e quinto aspectos da ideia de razão pública, Rawls especifica duas características especiais da relação política fundamental de cidadania presente nas sociedades democráticas constitucionais, quais sejam: a relação que os cidadãos possuem com a estrutura básica da sociedade e a relação de cidadãos livres e iguais. Na visão do autor, tais características seriam responsáveis por dar início ao questionamento a respeito de como cidadãos assim relacionados poderiam honrar a estrutura da democracia constitucional em que vivem, aquiescendo aos estatutos e leis nela promulgados, quando questões políticas fundamentais estão em pauta?

É de se ressaltar que o pluralismo razoável de doutrinas abrangentes acaba por fomentar ainda mais essa discussão, uma vez que, como já explicitado, as diferenças entre os cidadãos podem fazer com que suas visões sejam conflitantes e, por conseguinte, impedir que se reconciliem e cheguem a um consenso. No intuito de responder à questão, Rawls entende que os cidadãos, compartilhando igualmente o poder político último que lhes é conferido, devam delimitar mediante quais princípios ou, mais precisamente, por quais ideias deverão exercer tal poder a fim de que as decisões políticas estejam justificadas de forma minimamente razoável para todos (RAWLS, 2004, p. 179).

Nesse sentido, as razões serão consideradas razoáveis quando ofertadas pelos cidadãos que, inseridos em um sistema de cooperação social durante algumas gerações, e enxergando a todos como livres e seus iguais, ofertam uns aos outros termos de cooperação justos, de acordo com aquilo que entendem a concepção mais razoável de justiça. Ademais, isso também é verificado se, à custa de seus interesses particulares, os cidadãos acordam agir na medida dos termos escolhidos.

O conteúdo da razão pública, então, conforme preconiza o terceiro aspecto, é dado por uma família de concepções políticas de justiça, na qual são inclusas, também, visões religiosas, como as já citadas ideias de bem comum e da solidariedade, desde que estas estejam traduzidas em termos de valores políticos. Sobre o tema, Rawls discorre:

 

[…] doutrinas abrangentes razoáveis, religiosas ou não-religiosas, podem ser introduzidas na discussão política pública, contanto que sejam apresentadas, no devido tempo, razões políticas adequadas – e não razões dadas unicamente por doutrinas abrangentes – para sustentar seja o que for que se diga que as doutrinas abrangentes introduzidas apoiam. Refiro-me a essa injunção de apresentar razões políticas adequadas como proviso, e ela especifica a cultura política pública em contraste com a cultura de fundo. É importante também observar que a introdução na cultura política pública de doutrinas religiosas e seculares, contanto que o proviso seja cumprido, não mude a natureza e o conteúdo da justificativa na própria razão pública. Essa justificativa ainda é dada em função de uma família de concepções políticas razoáveis de justiça (RAWLS, 2004, p. 200-01).

 

Tais concepções políticas, usadas nas discussões acerca das perguntas políticas fundamentais, no fórum político público, possuem três características: (i) seus princípios têm aplicação na estrutura básica da sociedade; (ii) podem ser apresentados de forma autossustentada (sem fundamentação em doutrinas abrangentes); (iii) podem ser elaborados a partir de ideias fundamentais da cultura política de um regime constitucional (SILVEIRA, 2009, p.12).

De acordo com o quinto e talvez mais importante aspecto da razão pública, os cidadãos devem, posteriormente, verificar se os princípios que derivam de suas concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade, que, por sua vez, ordena que os cidadãos, ao ofertarem os termos de cooperação justa que considerem ser os mais razoáveis, levem em conta que estes também o sejam para outros cidadãos, que, como eles, na condição de livres e iguais, possam aceitá-los, sem que estejam sofrendo qualquer forma de dominação, manipulação ou pressão referente a ocuparem posição política ou social tida como inferior (RAWLS, 2004, p. 180).

Em que pese os cidadãos possam vir a discordar acerca das concepções políticas que pensem ser as mais razoáveis, o critério de reciprocidade garante, então, que todas sejam minimamente razoáveis para todos, de modo que seu aceite seja política e moralmente obrigatório aos cidadãos, vez que, como todos expuseram e votaram suas visões daquilo que era considerado, no mínimo, razoável por todos, o dever de civilidade foi cumprido e, também, a ideia de razão pública foi honrada.

Se todos os cidadãos pensam, portanto, como se legisladores fossem, e todos os funcionários governamentais seguem e agem de acordo com a ideia de razão pública quando estão em debate perguntas políticas fundamentais, aquilo que, disposto juridicamente, denote a opinião da maioria, será considerado lei legítima (RAWLS, 2004, p. 181). Isso porque se acredita que o exercício do poder político restou adequadamente demonstrado e suficientemente fundamentado a partir das razões ofertadas, o que serve de base, dessa forma, para a ideia de legitimidade política.

Sobre o critério de reciprocidade, pode-se dizer que seu papel seria o de delimitar a amizade cívica como sendo a natureza da relação política existente em uma sociedade democrática constitucional, além de estabelecer valores como a cidadania democrática e a ideia de lei legítima de uma maneira mais profunda na democracia deliberativa, vez que, ao deliberar sobre determinada questão política pública, os cidadãos debatem suas razões que, naturalmente, denotam suas diferentes opiniões (SILVEIRA, 2009, p. 12).

Ainda, Luiz Bernardo Leite Araújo explica que a razão pública pensada por Rawls não acusa a necessidade de os cidadãos se desfazerem de demais valores que prezam, como os religiosos, ao adentrarem o fórum político público a fim de discutir perguntas políticas fundamentais ( ARAÚJO, 2011, p. 5). É necessário, apenas, que a avaliação por eles realizada seja restrita ao que se considere por argumento passível de ser aceito sem supor a verdade de qualquer concepção de vida boa ou abrangente, isto é, tido como, no mínimo, razoável, pelos demais cidadãos.

Se aos cidadãos, portanto, não se confere a oportunidade de apresentação dos fundamentos, isto é, das razões que consideram ao menos razoáveis, resta violado o critério de reciprocidade, essencial à ideia de legitimidade política presente na democracia deliberativa. As manifestações que ocorrem nos fóruns políticos públicos, em que os cidadãos explicitam suas razões, é a base para a construção da legitimidade da ideia de razão pública.

Outra distinção importante trazida por Rawls é a entre a ideia de razão pública e o ideal de razão pública. Este último, diferentemente da razão pública estruturada a partir dos cinco aspectos já discutidos, é concretizado quando os funcionários governamentais, juízes, membros principais do executivo e do legislativo e, também, os candidatos a cargos públicos, pensam e, consequentemente, agem em conformidade com a ideia de razão pública, explicando aos demais cidadãos sobre que razões suas posições políticas fundamentais se sustentam, levando-se em consideração a concepção política que acreditam ser a mais razoável (RAWLS, 2004, p. 178-79).

As ações em consonância com a ideia de razão pública devem ser mostradas de maneira contínua, não só na conduta diária dos juízes, membros do executivo e legislativo e candidatos, como, também, nos discursos que proferirem, de forma a satisfazer o já mencionado dever de civilidade mútua e para com os cidadãos.

O ideal de razão pública também pode ser satisfeito pelos cidadãos que não ocupam cargos governamentais, na medida em que, ao discutirem e decidirem questões políticas a respeito de interesses essenciaisdevem

 

[…] pensar em si mesmos como se fossem legisladores, e perguntar a si mesmos quais estatutos, sustentados por quais razões que satisfaçam o critério de reciprocidade, pensariam ser mais razoável decretar. Quando firme e difundida, a disposição dos cidadãos para se verem como legisladores ideais e repudiar os funcionários e candidatos a cargo público que violem a razão pública é uma das raízes políticas e sociais da democracia, e é vital para que permaneça forte e vigorosa, Assim, os cidadãos cumprem o seu dever de civilidade e sustentam a idéia de razão pública fazendo o que podem para que os funcionários do governo mantenham-se fiéis a ela. Esse dever, como outros direitos e deveres políticos, é um dever intrinsecamente moral (RAWLS, 2004, p. 179).

 

Cabe, portanto, aos cidadãos, uma espécie de verificação do cumprimento da ideia de razão pública, questionando sempre se o critério de reciprocidade é satisfeito por determinada lei ou estatuto e se os representantes políticos, por sua vez, a seguem ao justificar suas posições em função da concepção política que consideram como a mais razoável.

Assim restará cumprido o dever de civilidade, impedindo que os funcionários governamentais se afastem da ideia de razão pública e, por conseguinte, que as concepções sejam distorcidas. Pode-se dizer, portanto, que a defesa do ideal de razão pública por parte dos cidadãos, numa sociedade democrática constitucional, ocorre não por motivos de disputa política e, sim, em razão de suas doutrinas razoáveis (SILVEIRA, 2009, p.4).

O ideal de razão pública concretizado por meio dos cidadãos deve ser entendido, portanto, como aquele em que as discussões a respeito de perguntas políticas fundamentais sejam conduzidas em conformidade com o que cada um deles considera como concepção política de justiça baseada em valores de cunho político, ofertando razões que todos considerem minimamente razoáveis e que, portanto, são passíveis de aceitação coletiva.

 

POR QUE A RAZÃO É PÚBLICA?

 

Segundo Rawls, são três as maneiras por que a razão é considerada pública, quais sejam: i) como razão de cidadãos livres e iguais, é razão do público; ii) seu tema é o bem público na medida em que diz respeito a questões políticas fundamentais, isto é, aos elementos constitucionais essenciais e às questões de justiça básica; e iii) sua natureza e seu conteúdo são públicos (RAWLS, 2004, p. 175).

Assim é que, como razão do público, a ideia de razão pública faz menção ao corpo coletivo formado pelos cidadãos que, iguais entre si, exercem o poder político último que possuem uns sobre os outros ao discutirem questões políticas fundamentais. Nesse sentido, apenas valores de cunho político devem ser utilizados nesses atos decisórios, que buscam esclarecer e delimitar, por exemplo, perguntas como quem teria direito ao voto, ou ainda, como deve ser garantida a igualdade equitativa de oportunidades – questões fundamentais que, por si só, já especificam qual o objeto da razão pública.

A razão pública não é, portanto, delimitada por uma concepção política em particular, e sim por uma variedade de concepções políticas variável no tempo e no espaço, que buscam atender demandas sociais de uma determinada época. A proposta é que a estrutura e o conteúdo das bases sociais fundamentais sejam caracterizados, então, pela própria ideia de razão pública, por cidadãos que, unidos em um corpo coletivo, compartilham condições iguais de cidadania. Nesse sentido:

 

A razão pública capacita a democracia constitucional a reconhecer direitos e a legitimar a formação política das instituições públicas. Ela se configura como a razão dos cidadãos, que, como corpo coletivo, exercem o poder político uns sobre os outros ao aprovar leis e emendar sua Constituição, aplicando-se somente a questões que envolvem os elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica (BONFIM e PEDRON, 2017, p. 10).

 

No intuito de diferenciar e delimitar ainda mais a ideia de razão pública, é importante registrar a separação que Rawls faz entre a razão pública e as razões não públicas. Segundo o autor, ainda que a ideia de razão pública e as inúmeras formas de razões não públicas sejam compatíveis, estas últimas são aquelas compartilhadas no interior das diversas associações presentes na sociedade civil (RAWLS, 2004, p. 205).

A razão pública, como já dito anteriormente, é aplicada estritamente ao que Rawls denominou fórum político público, quando estão em jogo questões de justiça básica e elementos constitucionais essenciais – o que implica dizer que somente se aplica à cultura política pública, e não à cultura de fundo (background culture), que, conforme será explicado, abarca as numerosas razões não públicas.

Nesse sentido, as razões não públicas podem ser definidas como aquelas de caráter social, englobando, portanto, as razões das igrejas, das organizações da sociedade civil, das universidades e demais instituições de aprendizado de todos os níveis, como, por exemplo, as escolas profissionais e as sociedades científicas, e, também, dos grupos profissionais. Não são, entretanto, consideradas privadas, vez que constituem a cultura de fundo da sociedade e, assim, fornecem os valores e princípios da cultura política pública. Esta, por sua vez, constitui o objeto das deliberações públicas e da aplicação da própria ideia de razão pública.

Acerca das razões não públicas, Silveira explica que estas

 

[…] utilizam critérios e métodos diferentes e dependem da maneira de interpretar a natureza, o problema e o objetivo de cada associação e as condições com que procuram alcançar os seus fins. Rawls ressalta que em uma sociedade democrática os cidadãos, considerados como livres e iguais, endossam visões abrangentes, quer sejam religiosas, filosóficas ou morais, e isto está no âmbito da competência política, especificada por direitos e liberdades constitucionais que fundamentam a concepção política liberal (SILVEIRA, 2009, p. 4).

 

Assim é que as razões não públicas fazem parte do âmbito cultural que é pano de fundo da sociedade democrática constitucional. A cultura de fundo, portanto, se encontra apartada do fórum político público, ao qual, como visto, a ideia de razão pública é aplicada. O que se entende por cultura política não pública é responsável, outrossim, pela mediação entre a cultura política pública e a cultura de fundo (RAWLS, 2004, 177).

É natural, também, que em uma sociedade democrática constitucional, berço das mencionadas e numerosas doutrinas abrangentes razoáveis, o pluralismo de agentes e associações que compõem a vida interna seja assegurado por uma estrutura legal, em que são protegidas as liberdades de expressão e, obviamente, de associação. Por esse motivo, é nítido que a cultura de fundo não é guiada por ideias ou princípios centrais, de caráter político ou religioso.

Em que pese já se tenha afirmado que a ideia de razão pública é passível de aplicação apenas no debate de questões naquilo que se chamou fórum político público, é importante frisar que aquela não se aplica à cultura de fundo, tampouco possuindo aplicação no que tange aos meios de comunicação de todo e qualquer tipo que nela se encontram abarcados, sejam eles jornais, revistas, televisão, rádio etc.

Nesse sentido:

 

Uma outra característica fundamental da razão pública é que seus limites não se aplicam às deliberações e reflexões individuais sobre as questões políticas, isto caracterizando a cultura de fundo de uma sociedade, aplicandose especificamente aos cidadãos, quando atuam em uma argumentação política em um fórum público (SILVEIRA, 2009, p. 3).

 

A importância da cultura de fundo se manifesta na medida em que as discussões envolvendo a ideia de bem e interesses comuns dificilmente se iniciam no âmbito legislativo, ou, ainda, político – é na sociedade civil que tais debates se desenrolam de forma livre, como, por exemplo, dentro das universidades, no espaço jornalístico e, ainda, nas próprias comunidades religiosas, componentes estes que, primariamente, sustentam o valor cultural (HOLLENBACH, 1994).

O motivo dessa não aplicação da ideia de razão pública está explicitado no simples fato de que as diversas doutrinas abrangentes, seguidas e praticadas nos espaços que lhes são conferidos pela sociedade civil, possuem diferentes conceitos do que seja o bem, e assim, os cidadãos, nesse âmbito intersubjetivo, advogam em prol de interesses específicos e particular que prescindem de justificação pública, a qual, por sua vez, não pode ser reduzida apenas à argumentação considerada válida, e sim ser entendida como a argumentação que se dirige ao outro (RAWLS, 2005, p. 465).

A justificação que ocorre no espaço do fórum político público, como já mencionado, deve ser por meio de razões que todos os cidadãos possam, ao menos considerar razoáveis e, por conseguinte, cogitem aceitá-las – dessa forma, é dirigida ao outro que, apesar de ostentar igual status de cidadania, diverge quanto à questão política fundamental em discussão. Mais que claro, portanto, o porquê de não ser aplicada às manifestações das razões não públicas que integram a cultura de fundo, em que o interesse é a defesa de um ponto de vista subjetivo, ainda que a argumentação utilizada para tal possa ser considerada válida.

 

CONCLUSÃO

 

As sociedades democráticas constitucionais naturalmente asseguram diversas liberdades, como a de expressão e a de livre associação, de modo que os diferentes agentes que a integram acabam por professar diferentes doutrinas abrangentes razoáveis, sejam elas de cunho religioso, filosófico ou moral, além, obviamente, das demais doutrinas irrazoáveis, não abarcadas na Ideia de Razão Pública Revista por se adotar uma concepção normativa ideal de governo democrático, isto é, em que a conduta e os princípios seguidos pelos cidadãos considerados razoáveis sejam predominantes.

Em que pese sejam razoáveis, as diferentes doutrinas abrangentes adotadas pelos cidadãos de uma sociedade democrática constitucional podem ser irreconciliáveis, impedindo, portanto, que estes se aproximem de um consenso mútuo. A ideia de razão pública surge, portanto, como uma espécie de solução ao problema da persistência natural em uma sociedade sob instituições livres da impossibilidade de se alcançar um acordo unânime ou uma conciliação nas doutrinas abrangentes razoáveis, buscando atingir a concordância a partir de um mínimo politicamente razoável que, ofertado por meio de termos de cooperação, é passível de aceitação por todos os cidadãos. A ideia de razão pública, todavia, permite um tipo de acordo no que diz respeito aos valores políticos que fazem parte das doutrinas ou concepções abrangentes razoáveis, a que Rawls chama de consenso sobreposto.

Não é, de nenhuma forma, uma tentativa de apagar as doutrinas abrangentes razoáveis que florescem na cultura de fundo da sociedade civil, em componentes como as instituições de ensino e as comunidades religiosas, que constituem importante valor cultural, na medida em que iniciam os debates acerca do que são considerados interesses e bem comuns. É, por outro lado, assumir que tendo todos os cidadãos exposto e votado de maneira minimamente razoável, ofertando termos de cooperação que consideravam os mais razoáveis, a decisão jurídica tomada a partir da opinião expressa da maioria ostentará a qualidade de legítima.

Portanto, em que pese cada qual individualmente possa discordar acerca de qual razão é a mais legítima e, ainda, sustentar internamente que aquela por ele ofertada deveria ter sido escolhida pelos demais, todos, na forma de corpo coletivo que exerce um poder político último, concordarão com a obrigatoriedade moral e política da decisão tomada, porquanto tenha sido deliberada em conformidade com a ideia de razão pública e satisfeito o critério de reciprocidade.

Assim é que os cidadãos, quando do debate referente às questões de justiça básica e aos elementos constitucionais essenciais, respeitarão e honrarão a estrutura da sociedade democrática constitucional, e, por conseguinte, aquiescerão aos estatutos e leis nela promulgados.

 

REFERÊNCIAS

 

AFONSO DA SILVA, Virgílio. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública. Revista de Direito Administrativo, n. 250, 2009, p. 197-227.

 

ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite. John Rawls e a visão inclusiva da razão pública. Dissertatio, Pelotas, n. 34,2011, p. 91-105.

 

BONFIM, Vinícius Silva; PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. A razão pública conforme John Rawls e a construção legítima do provimento jurisdicional no STF. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 54, n. 214, abr./jul. 2017, p. 203- 223. Disponível em: https://goo.gl/sVz2P7. Acesso em: 12 fev. 2021.

 

HOLLENBACH, David. Civil society: beyond the public-private dichotomy. Responsive Community 5 (Winter, 1994-95), p. 15-23.

 

RAWLS, John. A ideia de razão pública revista. In RAWLS, John. O direito dos povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

RAWLS, John. Political liberalism. New York: Columbia University Press, 2005.

 

SILVEIRA, Denis Coitinho. A justificação por consenso sobreposto em John Rawls. Philósophos. 12 (1): 11-37, jan./jun. 2007. Disponível em: http://www.revistas.ufg. br/index.php/philosophos/article/view/4764. Acesso em: 10 fev. 2021.

 

SILVEIRA, Denis Coitinho. O papel da razão pública na Teoria da Justiça de Rawls. Filosofia Unisinos, v. 10, n. 1, p. 65-78, jan./abr. 2009. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/view/5005/2258. Acesso em: 16 maio 2017.

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO XIII

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


A ESFERA PÚBLICA COMO MODELO NORMATIVO DE TOMADA DE DECISÃO EM DESASTRES

 

Charles Feldhaus

 

INTRODUÇÃO

 

Provavelmente o primeiro grande desastre natural que causou repercussão na comunidade filosófica tenha sido o terremoto de Lisboa no dia de todos os santos de 1755. Esse acontecimento levantou a questão da bondade divina diante de tamanho infortúnio causado à humanidade. Voltaire, Leibniz e Rousseau foram as figuras predominantes nesse debate, mas outros filósofos, entre eles Kant, não deixaram de contribuir de alguma maneira ao menos para o debate científico a respeito das causas dos terremotos. Entretanto, eu diria que esses eventos ainda são muito pouco debatidos entre os filósofos na contemporaneidade. Juergen Habermas, o pensador que dá nome a esse colóquio, sempre procura se manifestar em periódicos europeus a respeito dos temas do momento. A pandemia do COVID 19 não seria nenhuma exceção. É possível encontrar numa busca rápida na internet uma entrevista de Habermas com o título: “A solidariedade é a única cura”. Nessa entrevista ele discute o valor da dignidade humana e sua incorporação nos ordenamentos nacionais, o que, por sua vez, proíbe os Estados nacionais de tomar qualquer decisão que implique na morte deliberada de seus cidadãos. O que acredito que seria mais uma razão para os Estados nacionais pensarem seriamente naquilo que vai ser denominado a seguir de ‘preparação para desastres’ e não apenas focar em ações que evitam a morte deliberada de cidadãos ou naquilo que vai ser denominado a seguir de ‘resposta para desastres.” Ressalto já de antemão que pretendo abordar aqui menos o que Habermas diz na entrevista supracitada depois do início da pandemia do COVID 19 e muito mais pretendo aqui na forma de um ensaio tentar pensar em que medida as ferramentas teóricas da ética do discurso poderiam ser relevantes para debater algumas questões éticas e política relacionadas com o enfrentamento de desastres e uma pandemia, como será possível observar, é um evento de desastre em qualquer definição apropriada do termo. Dessa maneira, a questão aqui é uma questão de ética aplicada ou ética prática, em particular de aplicação de teorias normativas aos casos concretos. Todavia, antes de aplicar teorias morais às questões concretas é sempre importante traçar distinções claras a respeito do que se está de fato discutindo a fim de evitar adentrar em pseudo problemas.

 

UMA DEFINIÇÃO PLAUSÍVEL DE DESASTRE

 

Quando se pensa em desastres, se pode imaginar uma grande diversidade de eventos bastante distintos, mas que em função de poderem ser agrupados numa única definição devem possuir elementos em comum. Porém, é preciso começar apontando que a definição de desastres não pode ser considerada completamente neutra, ao menos não é essa a percepção do emprego do termo na mídia e nos meios de comunicação em massa em geral. Dependendo quem são as vítimas de tais eventos, o termo pode ser empregado para descrever alguns desses eventos ou não, ou seja, pode existir algum preconceito na maneira como o termo é empregado. Muitas vezes a mídia emprega o termo ‘desastre’ para se referir a um acidente de automóvel que mata uma única pessoa, mas evita empregar o respectivo termo para uma catástrofe natural que mata centenas de pessoas em países periféricos. Se poderia tentar especular aqui se seria apenas uma imprecisão definição ou um comprometimento implícito com o valor intrínseco das vidas humanas de pessoas que vivem em alguns países e não em outros, o que novamente traria à tona o ponto ressaltado por Habermas na entrevista supracitada, que é preciso reconhecer o valor intrínseco da vida humana, é preciso reconhecer o valor da dignidade da pessoa humana independente do Estado nacional ao qual ela porventura venha a pertencer. Porém, a despeito de toda variabilidade na maneira como o termo pode ser empregado cotidianamente ou na mídia em geral, se poderia buscar uma definição mais plausível de desastre e Naomi Zack, em Ethics for Disaster, um livro que já parece ter se tornado um clássico no debate sobre desastres, define desastre da seguinte maneira:

 

Um desastre é um evento (ou uma série de eventos) que causa danos ou mata um número significativo de pessoas ou então prejudica severamente ou interrompe suas vidas diárias na sociedade civil. Desastres podem ser naturais ou o resultado acidental ou deliberado da ação humana. (...) desastres sempre ocasionam surpresa e choque; eles são não desejados por aqueles afetados por eles, embora nem sempre imprevisíveis. Desastres, portanto, geram narrativas e representações da mídia do heroísmo, falhas, e perdas daqueles que são afetados e respondem. (2009, ZACK, p. 7) (minha tradução)

 

Se aplicamos essa definição ao evento que estamos vivenciando hoje, será possível perceber que se trata de um desastre. A pandemia atual mata muitas pessoas, prejudica ou interrompe a vida diária na sociedade civil. É um evento provavelmente causado pela ação humana, provavelmente o avanço da ação humana no desmatamento e na destruição da vida selvagem cria um contato mais frequente entre seres humanos e animais silvestres. Esses animais muitas vezes carregam cepas novas de algum vírus e ao ter contato com algum ser humano ocorre a contaminação e o resultado todos sabemos. Digo provavelmente porque ainda será feito um estudo científico a fim de tentar localizar o paciente número zero e como ele teria sido contaminado e talvez seja necessário esperar um bom tempo para ter uma resposta definitiva, se de fato for possível alcançar alguma resposta definitiva a respeito das circunstâncias que desencadearam a pandemia do COVID 19. Além disso, embora a todos não seja nenhum segredo que essa relação próxima com animais silvestres tem o risco de contágio de doenças ou cepas novas de doenças, não se pode prever com absoluta certeza quando isso vai acontecer. Por isso a pandemia que vivemos também pode ser considerada um evento imprevisível. Nossos heróis atuais são os agentes de saúde em geral que travam uma batalha a cada dia, colocando até mesmo suas vidas em risco, para salvar pessoas nas unidades de atendimento intensivo dos hospitais. Menos visíveis são outros heróis buscando encontrar uma vacina para a doença em questão. Também existem os pequenos heróis, que apesar do risco de contágio, precisam continuar trabalhando para manter o fornecimento de bens básicos de sobrevivência. Somente o tempo vai mostrar os heróis e talvez até mesmo os vilões nas narrativas a respeito do evento. O ponto aqui é que definir um evento como um desastre parece trazer uma conotação moral forte e exigir algum tipo de ação humana. A ideia de fundo parece ser que quando pessoas são colocadas em situações desfavorecidas em função de fatores adversos a suas ações e as suas vontades isso acarreta obrigações de algum tipo de assistência por parte das pessoas que se encontram em melhores posições no mesmo momento histórico. Em outras palavras, esse tipo de situação costuma levantar grande comoção e grandes esforços no sentido de minimizar os infortúnios. Não por acaso vários países do mundo adotaram medidas no intuito de criar um tipo de auxílio financeiro às pessoas em condição de maior vulnerabilidade social. Eventos de desastres costumam ter efeitos mais acentuados nas camadas sociais menos abastadas, razão pela qual esse tipo de auxílio se tornou tão necessário e uma obrigação moral.

 

UMA DISTINÇÃO MUITAS VEZES IGNORADA NO DEBATE SOBRE DESASTRES

 

Quando se discute questões éticas relacionadas com desastres é muito comum focar em dilemas morais semelhantes ao caso do trem desgovernado, ou como às vezes são chamados em inglês The Trolley Problem, que consiste num experimento de pensamento que procura identificar aspectos éticos relevantes. Nesse cenário, a impressão geral é que as duas únicas alternativas disponíveis são deixar o trem seguir o seu curso e colocar em risco a vida de cinco pessoas ou mudar o trem de curso e colocar em risco a vida de uma pessoa. A regra básica nos casos de desastres seria salvar o maior número de pessoas que podem ser salvas. Razão pela qual se costuma pensar que a única coisa que se pode realizar é um cálculo utilitarista de redução de danos. O problema de abordar as questões éticas relacionadas com desastres dessa maneira é que parece supor que existe uma visão moral para a vida cotidiana e uma visão moral, se ainda se pode chamar assim, para eventos de desastres. Regras como aquela apontada na entrevista de Habermas que a vida humana possui um valor inviolável parecem perder em importância. A dignidade humana parece ser colocada em segundo plano, ou ao menos é isso que alguns afirmam que ocorre nesse tipo de evento e por isso há até mesmo quem fale que a ética entra em férias durante eventos de desastres. Eventos de desastres são assimilados a casos de necessidade e necessidade não tem lei. Aqui é importante lembrar o debate clássico da filosofia entre a liberdade da vontade e a necessidade natural. Se não existe liberdade de agir de outra maneira, então seria possível questionar a autoria da ação e consequentemente a atribuição de responsabilidade. Tanto é assim que em alguns desastres históricas em que houve a violação de preceitos morais como o da dignidade da vida humana, mas foi possível mostrar que se trata de caso de extrema necessidade de sobrevivência, tribunais penais reconheceram a violação da regra jurídica de proteção da vida humana, mas permutaram a pena. Claro que uma melhor preparação para esse tipo de eventos poderia evitar a necessidade de violar as regras morais normais durante a vigência de eventos de desastres. Agora se prestarmos atenção a uma distinção traçada por Naomi Zack (2009, p. 18) entre resposta a desastres e preparação a desastres, acredito que seria possível pensar os eventos de desastres como se encontrando sob a mesma moralidade que a vida cotidiana exige. A resposta a desastres ocorre depois que um tal evento aconteceu ou até mesmo está na iminência de acontecer. A preparação para os desastres acontece antes de um desastre acontecer. Zack (2009, p. 19) ressalta que “a preparação para desastres é uma questão ética, e é obrigatória”. É obrigatória porque caso contrário estaríamos dispostos a aceitar uma moralidade ruim como consequência disso. Para colocar de maneira bastante direta meu ponto aqui, se houver uma preparação adequada tenderá a ser menos necessário flexibilizar as regras morais durante desastres e não parece moralmente adequado aceitar uma preparação que não seja orientada pela perspectiva de que devemos salvar não o maior número de pessoas que podem ser salvas, mas uma preparação que se orienta pela perspectiva de salvar todas as pessoas que precisam ser salvas. Qualquer posição diferente dessa está assumindo que algumas vidas humanas não têm valor intrínseco igual as outras. Somente sob tal suposição poderíamos aceitar que uma preparação que se sabe de antemão que é inadequada seja suficiente. Além disso, o objetivo aqui é apontar que o modelo discursivo de ética habermasiano teria um papel importante a ocupar no processo de preparação para desastres. No momento de preparação algumas decisões precisam ser tomadas e a deliberação na esfera pública a respeito de aspectos importantes da preparação para desastres é uma alternativa normativa bastante plausível. Para compreender melhor esse ponto vamos tratar de algumas circunstâncias em que mesmo após a melhor preparação para desastre possível, ainda seria necessário na resposta para desastre optar pela alternativa que apenas seria possível salvar todas as pessoas que podem ser salvas (dada a preparação insuficiente) e não todas as pessoas que tiveram suas vidas colocadas em risco pelo evento em questão.

 

APESAR DA PREPARAÇÃO ADEQUADA, AS COISAS PODEM NÃO CORRER BEM!

 

Porém, mesmo que a preparação se oriente pela perspectiva que devem ser salvas todas as pessoas e não apenas o maior número que pode ser salvo, desastres muitas vezes trazem fatores inesperados e podemos sim precisar se orientar pela regra consequencialista que devemos salvar o maior número de pessoas que podem ser salvas. Precisamos em muitos casos selecionar entre todas as pessoas que podem ser salvas apenas um número limitado delas. Daí surge a questão: como realizar esse tipo de triagem entre as pessoas que devem ser salvas? Bom, é aqui que acredito que a ética do discurso pode trazer alguma contribuição interessante. Aqui é onde se pode dizer que a ética do discurso pode mostrar que não deixa “sem resposta às questões de aplicação” (HABERMAS, 1999, p. 26). Uma vez que não parece a melhor alternativa deixar o processo de tomada de decisão a respeito de quem deve receber atendimento primeiro num desastre, caso a triagem seja necessária, apenas na mão dos especialistas e das autoridades políticas. É sempre possível que interesses pessoais e as pressões do momento levem a decisões distorcidas ou até mesmo inadequadas. Além disso, o critério de triagem deve ser discutido amplamente antes da ocorrência do evento, ou seja, ainda durante o processo de preparação a desastres. A esfera pública como critério normativo da ética discursiva habermasiana poderia ocupar um papel importante aqui. Em Notas programáticas para fundamentação de uma ética do discurso, Habermas (1989, p. 86) enuncia o princípio básico da ética do discurso da seguinte maneira: “uma norma sódeve pretender validez quando todos os que possam ser concernidos por ela cheguem (ou possam chegar), enquanto participantes de um discurso prático, a um acordo quanto à validez dessa norma.”. O discurso prático, ao qual Habermas se refere aqui, poderia ser compreendido como a esfera pública ou um espaço amplo de discussão de temas. O que é importante reafirmar é que deve acontecer ainda antes da ocorrência do desastre. Naomi Zack (2009, p. 24) sugere algo semelhante ao experimento de pensamento da posição original de Uma teoria da Justiça de John Rawls para lidar com as questões pertinentes à triagem de desastres. Não deixo de reconhecer que tal experimento pode ter alguma pertinência, uma vez que leva a se considerar a questão de um ponto de vista imparcial, buscando evitar a todo custo o emprego de variáveis individuais que pudessem favorecer qualquer grupo específico de maneira não justificada. A crítica de Habermas a esse mecanismo de representação está na maneira como ele operacionaliza “o ponto de vista da imparcialidade” (HABERMAS, 1989, p. 87). A imparcialidade termina consistindo num processo monológico e individual realizado privadamente por cada um dos concernidos e não um debate real baseado na força dos melhores argumentos na esfera pública da sociedade. Alguns aspectos da teoria da justiça rawlsiana poderiam sim ser empregados no decorrer de um debate racional a respeito do melhor procedimento de triagem, porém quem apresentasse tal perspectiva precisaria fazer apenas na condição de um teórico que contribui ao debate e não como um especialista no assunto. A razão para evitar isso é que “só uma efetiva participação de cada pessoa concernida pode prevenir a deformação na perspectiva de interpretação dos respectivos interesses próprios pelos demais” (HABERMAS, 1989, p. 88). Evitar que preferências e interesses apenas pessoais prejudique a determinação de um critério de triagem de pessoas no atendimento médico de pessoas afetadas por um desastre, na hipótese de, mesmo após uma preparação o mais adequada possível para salvar todas as pessoas, alguma circunstância inesperada fez com que precisássemos adotar a regra que se deve salvar apenas o maior número de pessoas que podem ser salvas precisasse ser aplicada ao evento de desastre em questão. No modelo discursivo, cada concernido é intérprete de seus próprios interesses, embora essa interpretação também seja avaliada pelos demais numa discussão prática em que vale apenas a força do melhor argumento. Todos têm o interesse em ser atendidos, todos têm um interesse em ter o valor intrínseco de sua vida humana respeitado e de receber um tratamento igualitário. Porém, é preciso acrescentar ainda, que isso não significa que nenhum tipo de prioridade no atendimento das pessoas não possa ser acordada nos discursos práticos, na deliberação na esfera pública, mas essa prioridade deve ser baseada em argumentos que poderiam ser aceitos por todos como participantes desse discurso prático e não baseado apenas em critérios técnicos elaborados por especialistas da área de saúde ou gestão pública. Esses especialistas também possuem uma voz relevante no debate, mas não a única. O ponto da questão é que mesmo aqueles que não se encontram entre os que vão receber atendimento prioritário deveriam concordar que os argumentos apresentados são suficientes para justificar a prioridade dada a um certo grupo de pessoas no atendimento, se, por causa de uma preparação inadequada, ela tiver que existir. Além disso, sem que aconteça uma deliberação prévia apropriada ainda no momento da preparação a desastres, se a triagem for necessária no momento da resposta para desastre, o risco de arbitrariedade no estabelecimento de critérios pode ser alto numa discussão afetada fortemente pela pressão das circunstâncias do desastre e por causa disso nessas circunstâncias o melhor critério provavelmente seria recorrer a algum critério como a sorte ou simplesmente seguir a ordem de chegada das pessoas que precisam de atendimento.

Mas no que diz respeito a grupos prioritários, geralmente se aplica em desastres alguma regra similar àquela aplicada ao tratamento médico em conflitos militares. Não vou entrar no mérito das similaridades e da falta de similaridades entre as duas práticas aqui. Mas o fato é que num conflito militar soldados que podem entrar rapidamente em combate muitas vezes são atendidos primeiro exatamente porque isso maximiza o bem-estar do curso de ação escolhido ou é vantajoso para todos para aplicar uma das primeiras versões do princípio da diferença de Rawls, que ainda não inclui uma posição social relevante. No caso de desastres, o atendimento a profissionais da área de saúde de modo prioritário poderia ser justificado por raciocínio semelhante. Quanto mais profissionais da área de saúde saudáveis tivermos, mais pessoas atendendo pessoas doentes teremos num curto espaço de tempo. A desigualdade de tratamento na triagem de doentes se justifica com base no seu caráter vantajoso a todos ou se poderia dizer do menos favorecido na distribuição de saúde, que são as pessoas com saúde prejudicada pelo desastre. Na verdade, a regra da prioridade a grupos seria justificada nesse caso através de uma deliberação prática 59 transparente a todos na esfera pública e não através do acesso cognitivo privilegiado de um teórico da justiça. Também não seria justificado pela privação de informações numa escolha meramente hipotética, mas por uma apresentação plena das informações que tornaria claro a todos que conceder esse tipo de prioridade é vantajoso para todos. Na verdade, a própria regra de que devemos dar prioridade quando isso traz vantagens a todos, ou a algum grupo menos favorecido, seria ela mesma alvo de escrutínio na esfera pública da sociedade, não uma mera descoberta de um teórico através de um procedimento hipotético de escolha. A regra entra como uma contribuição de intelectuais no grupo que delibera sobre como lidar com a triagem em casos de desastres e não como uma premissa já fundamentada.

Naomi Zack (2009, p. 25) sustenta que:

 

Uma maneira de assegurar equidade a respeito de quem deve decidir o que o plano de resposta deveria ser dados os recursos escassos, seria permitir a discussão pública ampla de como recursos escassos devem ser alocados. Tal discussão pública é de fato uma exigência estabelecida do modelo de plano de resposta agora aceito amplamente (...) numa sociedade democrática (...) pareceria ser imperativo eticamente perguntar ao público, como uma questão de política pública orientada por princípios.” (minha tradução)

Claro, que deixar essa decisão completamente à esfera pública de uma sociedade democrática tem seus riscos, uma vez que se as pessoas optassem por não conceder nenhum tipo de prioridade no atendimento das vítimas de um desastres diferente da ordem de chegada, por exemplo, essa questão já estaria resolvida durante o processo de preparação de uma resposta a desastres. Embora aqui se deveria perguntar se o modelo de democracia discursivo habermasiano se reduz simplesmente à decisão da maioria ou da maior parte das pessoas na esfera pública. A resposta claramente parece ser não. Primeiro, porque o modelo de esfera pública das eclusas ou comportas supõe que o poder administrativo do Estado deveria estar disposto a levar em consideração as deliberações que acontecem no espaço público; em segundo lugar, a democracia discursiva supõe o respeito aos direitos humanos ou aos direitos fundamentais como restrição ao próprio processo de tomada decisão. Além disso, o conteúdo dos direitos fundamentais é em grande medida também resultado do próprio processo de tomada de decisão no espaço público, uma vez que as categorias de direitos fundamentais são insaturadas. Garantem apenas o procedimento de tomada de decisão e estão abertos a receber conteúdo do próprio 60 processo de tomada de decisão. A soberania popular e os direitos humanos são elementos co originários no modelo de democracia discursiva habermasiano.

 

E NUMA PANDEMIA, O QUE O DEBATE PÚBLICO PODERIA FAZER?

 

Hoje vivemos numa situação de desastre, uma vez que uma pandemia é em qualquer definição aceitável do termo, um tipo de desastre. Quando Naomi Zack escreveu seu livro era recente a pandemia de gripe aviária. Por causa disso ela tece algumas considerações a respeito das implicações éticas de uma pandemia de gripe e o caso da COVID 19 se enquadra nesse tipo de caso. Mesmo que aceitamos a distinção entre preparação a desastres e respostas a desastres e reconheçamos que uma resposta mais adequada é um imperativo ético, uma pandemia é um evento bastante complexo de prever. Zack (2009, p. 19) afirma que existem três obstáculos a uma preparação adequada a uma pandemia. Primeiramente, um problema relacionado com a produção da vacina, a saber, mesmo que fosse possível produzir vacina para metade ou mais da população, existe uma grande dificuldade em prever a cepa específica de uma gripe que vai aparecer e ainda poderia surgir uma nova cepa por mutação, em outras palavras, estaríamos lidando com uma meta que muda continuamente (em inglês, se trata de uma changing target); em segundo lugar, mesmo que sejamos capazes de identificar essa nova cepa de vírus rapidamente, leva meses, senão anos, para desenvolver uma nova vacina que seja eficiente, uma vez que uma cepa nova foi identificada (novamente em inglês, existe um relativamente grande time frame); é importante lembrar que, quando apresentei essa conferência no Colóquio de 2020 ainda, apesar de alguns progressos surpreendentes no desenvolvimento de vacina para COVI 19, ainda estávamos aguardando ansiosos por teste mais abrangente da eficiência das vacinas; hoje há existem algumas vacinas disponíveis no mercado e alguns países já têm aplicado a vacina a uma parcela de sua população; outros países tem encomendado aos grandes laboratórios doses da vacina, enquanto outros países se demonstram mais relutantes na aquisição da vacina. Um tipo de disputa ideológica tem se mostrado um fator adicional no aumento da complexidade de oferecer uma resposta adequada ao desastre pandêmico que estamos enfrentando. A polarização política de algumas sociedades em tese democráticas contemporâneas afeta negativamente a uma resposta mais eficiente ao 61 desastre. Esse fator precisa ser mais bem considerado em discussões futuras a respeito da ética em desastres. Por fim, é preciso lembrar que existem recursos limitados em termos de camas de hospital, ventiladores, medicamentos antivirais atualmente existentes e dificilmente solucionável numa dimensão global a curto prazo em países que muitas vezes têm dificuldade em fornecer tratamentos médicos básicos a grande parte da população.

 

CONCLUSÃO

 

Como foi possível observar, eventos de desastres trazem grandes complexidades às teorias morais e não por acaso são frequentemente aproximados de casos de necessidade. Nesse tipo de cenário a resposta mais adequada costuma ser considerada um cálculo utilitarista de redução de danos, além disso, é muito comum se pensar que os valores morais que são válidos em circunstâncias de normalidade não se aplicam em situações de desastres. Mas como foi mostrado isso não precisa ser assim. A distinção entre resposta para desastres que ocorre na iminência ou depois que um evento assim ocorreu e preparação para desastres que ocorre antes da iminência ou antes que um evento assim ocorreu e a obrigação moral de empreender uma preparação adequada podem fazer com que a violação das regras morais ordinárias não sejam consideradas necessárias e por conseguinte as mesmas regras morais que valem em tempos de normalidade seriam válidas em tempos de desastres. Não obstante, apesar da melhor preparação, desastres costumam trazer como traços constitutivos serem eventos com algum tipo de imprevisibilidade e por isso é possível que mesmo após uma preparação adequada não seja possível salvar todas as pessoas e isso exige fazer um tipo de escolha sobre quem deve ser atendido primeiro, o que costuma ser denominado de triagem no atendimento das vítimas de um desastre. Foi defendido que o critério de triagem de vítimas deve ocorrer ainda durante o período de preparação (mesmo que aplicado apenas na resposta para desastres), a fim de evitar que a pressão do evento ofusque a tomada de decisão. Além disso, foi defendido que uma concepção de tomada de decisão orientada pela ética do discurso e pela concepção de democracia deliberativa habermasiana poderia ser uma concepção normativa frutífera para esse tipo de situação, uma vez que promove um debate amplo e abrangente a respeito de como 62 alocar os recursos escassos de atendimento de vítimas no caso de uma preparação insuficiente, dado alguma circunstância imprevista do evento de desastre. Até mesmo os critérios de prioridade, se alguma precisar existir, devem ser decididos através de procedimentos discursivos durante o período de preparação para desastres.

 

REFERÊNCIAS

 

HABERMAS, Jurgen. Comentários à ética do discurso. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

 

HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1989. HABERMAS, Jurgen. A Inclusão do outro. Estudos de teoria política. Trad. George Sperber & Paulo Astor Soethe. São Paulo: Editora Loyola, 2002.

 

HABERMAS, Jurgen. A solidariedade é a única cura. Entrevista com Juergen Habermas. Revista IHU On Line. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78- noticias/597983-a-solidariedade-e-a-unica-cura-entrevista-com-juergen-habermas. Acesso: 18 set. 2020.

 

RAWLS, J. A Theory of justice. Revised Edition. Cambridge: Harvard University Press, 1999.

 

RAWLS, J. Political liberalism. New York: Columbia University Press, 1993.

 

RAWLS, J. A Theory of justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971.

 

RAWLS, J. Justiça como equidade: uma reformulação. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

RALWS, J. Justice as fairness: a restatement. Cambridge: Harvard University Press, 2003.

 

RAWLS, J. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Editora Ática, 2000.

 

RAWLS, J. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

RUSH, F. The Cambridge companion to critical theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

 

ZACK, Naomi. Ethics for disaster. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, 2009.

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO XIV

 

 

 

 

 

 

 

 

 


CRISE DE LEGITIMIDADE E PANDEMIA EM HABERMAS

 

Charles Feldhaus

 

All societies are full of emotions.

Liberal democracies are no exception.

Martha Nussbaum

 

INTRODUÇÃO

 

Em sua obra A crise de legitimação no capitalismo tardio, Jurgen Habermas trata das tendências de crise que surgem em sociedades capitalistas avançadas principalmente pelo beco sem saída que se encontram os Estados democráticos de direito contemporâneos diante da incapacidade de controlar completamente os fatores que influenciam a dinâmica econômica e política numa sociedade globalizada e plural. Esse tipo de problema vai levar com que Habermas defenda a internacionalização dos procedimentos de tomada de decisão democrática em obras publicadas depois de Facticidade e Validade. Isso porque o Estado perdeu, se algum dia teve completamente sob seu controle, o poder de controlar fatores que influenciam significativamente a lealdade das massas. Crises econômicas costumam gerar déficit de legitimação e redução da lealdade das massas. O mundo vive desde ao menos 2008 uma das maiores crises econômicas e a mesma tem influenciado a legitimidade dos governos, reduzido lealdade das massas e até mesmo trazido de volta posições políticas conservadoras e extremistas em respostas aos problemas da crise econômica, política e sociocultural. Em alguns casos, governos extremistas têm conseguido retornar ao poder e minar significativamente as condições do bom funcionamento de sociedades democráticas menos consolidadas, mas em outros, até mesmo em democracias que se acreditava mais consolidadas como a norte-americana extremistas chegaram ao poder. Não obstante, a pandemia do COVID 19 parece ter ajudado a restabelecer as bases democráticas em países em que os extremistas tinham obtido êxito e trazido à tona um outro fator geralmente desconsiderado na política e ressaltado por Habermas em sua entrevista sobre a pandemia, a saber, a solidariedade. Um tipo de sentimento que parece ocupar um papel importantíssimo na abertura de perspectivas mais igualitárias e inclusivas no debate político público. O que chama a atenção para as bases não apenas racionais do Estado de direito democrático, mas também das bases emocionais. Aqui parece importante trazer ao debate a posição de pensadoras como Martha Nussbaum em obras como Emoções políticas. Por que o amor importa para a justiça? em que ela chama a atenção para necessidade de fomentar sentimentos inclusivos favoráveis a uma debate mais amplo para garantir o bom funcionamento da democracia. Obviamente que produzir esses sentimentos não é simples, mas a condição de exceção de uma pandemia promove a empatia entre os seres humanos dos mais diversos lugares do mundo e amplia a solidariedade. Este estudo pretende discorrer sobre a relação entre tendências de crise e os efeitos da pandemia na legitimidade democrática.

Como já dito, a sociedade mundial contemporânea tem experienciado um crescimento do pensamento político conservador, o que inclusive tem levado à eleição de políticos extremamente contrários a certos direitos fundamentais pertencentes aos cidadãos das sociedades democráticas, como o devido processo legal, à igualdade de tratamento legal, entre outros. Explicar como esse tipo de pensamento ganhou força não é tarefa fácil, mas esse tipo de situação tem criados uma bipolarização social acentuada em alguns países como Brasil e Estados Unidos da América, em que alguns grupos apoiam aberta e fortemente certos políticos conservadores, ao passo que outros apoiam grupos políticos que defendem abertamente a igualdade social em seus diferentes níveis. Esse tipo de polarização e principalmente o crescimento de segmentos políticos conservadores, que não raramente questionam abertamente as próprias regras do sistema político democrático, é evidência de uma crise de legitimidade da sociedade contemporânea. Se bem que as tendências de crise não sejam, conforme o diagnóstico de pensadores como Habermas em A crise de legitimação no capitalismo tardio, algo historicamente situado apenas em momento em que certos grupos políticos questionam a legitimidade das regras do sistema político democrático, porém, algo que se tornou permanente, uma tendência, a partir do momento que os sistemas políticos acabam assumindo funções que pertencem a outros sistemas como a economia e a cultura. O que não deixa de apontar para o caráter paradoxal do que se propõe aqui, uma vez que adentrar no âmbito do cultivo de sentimentos favoráveis à democracia é adentrar no âmbito da cultura e, por conseguinte, uma ingerência do sistema político na esfera da cultura.

Mas retornemos à questão da crise de legitimidade. Esse tipo de situação é bastante evidente naquilo que Habermas chama de sociedades capitalistas avançadas ou que possuem algum tipo de “capitalismo regulado pelo Estado”, em que o aparato administrativo do Estado assume funções que em etapas anteriores das formações sociais eram tidas como naturais, como a própria dinâmica econômica. Habermas entende que essas crises têm a ver com uma falta de similaridade estrutural entre o sistema administrativo do Estado e áreas da cultura, o que inibe a capacidade do sistema administrativo do Estado gerar legitimidade. Todavia, o problema central relacionado com as tendências de crise não se restringe aos déficits de legitimidade persistentes nesse tipo de sociedade, o problema central é a incapacidade principalmente do sistema administrativo do Estado democrático de direito conseguir responder às crises de racionalidade, legitimidade entre outras e possibilitar que o Estado de direito consiga lidar de maneira mais apropriada com essas tendências de crise. Habermas em obras posteriores como Teoria da ação comunicativa e Facticidade e Validade oferece uma explicação mais sofisticada para a questão da racionalidade em seu conceito dual de sociedade como sistema e como mundo vivido e que com certeza pode oferecer um diagnóstico mais apropriado com base no que vai chamar de colonização do mundo vivido pelo sistema em Teoria da ação comunicativa e déficit de legitimidade resultante de um tratamento inadequado da cooriginariedade da autonomia privada e pública, dos direitos humanos e da soberania popular em Facticidade e Validade. Mas esse modelo dual de sociedade está apenas ganhando corpo quando ele escreve a obra A crise de legitimação no capitalismo tardio, todavia, mesmo o modelo mais desenvolvido à partir da publicação da obra magna Teoria do agir comunicativo e da obra Facticidade e validade será alvo de críticas de pensadores como Axel Honneth que chama a atenção para a gramática dos conflitos sociais, o déficit sociológico da teoria crítica habermasiana, e que prestar atenção ao processo de gestação dos conflitos e as suas motivações morais e bases emocionais seria também parte importante da teoria crítica da sociedade. Confesso que também não considero ainda completamente nítido quando é relevante a inclusão da dimensão emocional em teorias da justiça, não obstante, acredito que o que Nussbaum diz poderia começar a lançar mais alguma luz na questão a respeito das possíveis contribuições de um papel mais amplo das considerações das emoções numa teoria crítica da sociedade e com isso a teoria crítica parece se aproximar com autores da primeira geração como Adorno que parecem atribuir um papel mais substantivo à estética na reflexão sobre justiça do que Habermas teria feito.

No que segue pretende reconstruir, primeiramente, os aspectos centrais da obra Crise de legitimação no capitalismo tardio (i); em segundo lugar, ressaltar alguns aspectoscentrais da entrevista A solidariedade é a única cura (ii); em terceiro lugar, chamarei atenção para alguns aspectos da obra de Martha Nussbaum Emoções políticas. Por que o amor importa para a justiça? (iii); por fim, meu objetivo aqui é apenas suscitar a reflexão, sem pretender esgotar o tema ou oferecer uma resposta definitiva, se seria necessário complementar a abordagem das tendências de crise de legitimidade habermasiano através das considerações levantadas por Nussbaum na obra supracitada, a saber, seria necessário pensar uma dimensão emocional como complemento para explicar a teoria da crise e responder às tendências de crise.

 

O PROBLEMA DA CRISE DE LEGITIMIDADE NO CAPITALISMO TARDIO

 

A obra de 1973 A crise de legitimação do capitalismotardio de Habermas poderia ser incluída entre outras obras como Trabalho e interação em que ele procura empreender algum tipo de atualização da teoria crítica da sociedade, em particular ele procura examinar em que medida se poderia pensar uma teoria da crise inspirada na teoria marxista sem, contudo, cair em alguns reducionismos e também trava um debate com algumas teorias da crise funcionalista baseada na teoria dos sistemas. Como Habermas está preocupado com a questão do interesse emancipatório e esse foi um dos pontos fortes de Conhecimento e Interesse, ele procura desenvolver a partir de uma análise do conceito de verdade entendido de maneira discursiva uma saída aos problemas dessas abordagens. Habermas ao tratar do problema da crise busca mostrar como certos tipos de organização social possuem uma dinâmica interna própria e pelo surgimento de crises precisam ser substituídas por outros tipos de organização social. O primeiro tipo de sociedade é a primitiva (que é baseada no sistema de parentesco e émarcado por uma indistinção entre normas e visões de mundo); o segundo tipo de sociedade é a tradicional (que é baseada no princípio de organização como dominação de classe); o terceiro tipo de sociedade é a capitalista liberal clássica (cujo princípio de organização é o relacionamento de trabalho assalariado e capital); e finalmente, a sociedade pós-capitalista ou capitalismo avançado  ou tardio (cujo princípio de organização é uma economia mais planificada em que o Estado assume a função de evitar as crises). De alguma forma, a análise da mudança entre esses tipos de formações sociais serve como laboratório da nova concepção de evolução social que vai surgir poucos anos depois com Teoria da agir comunicativo, baseada na relação entre sistema e mundo vivido e particularmente como o sistema vai gradativamente assumindo funções que em formações sociais anteriores era preenchida pelos valores compartilhados, pelo mundo vivido e como isso será uma das fontes principais do déficit de legitimidade em Facticidade e validade, uma vez que a erosão do mundo vivido de alguma forma torna mais difícil lidar com a tensão entre valores e fatos. A reconstrução do sistema de direitos em sua obra madura vai tentar operacionalizar um modo de lidar com essa tensão aplicando o modelo discursivo à forma jurídica e mostrando como a legitimidade pode de alguma forma resultar da legalidade jurídica de um procedimento discursivo e inclusivo de formação da vontade. O respeito aos procedimentos de tomada de decisão orientados pelo ideal da situação ideal de fala fornece uma maneira de lidar com o déficit de legitimidade do direito. Habermas, obviamente, em 1973 ainda não tem desenvolvido todo esse arcabouço teórico que vai lhe permitir desenvolver a solução ao problema da crise de legitimidade, mas ao menos sinaliza o caminho discursivo através de uma análise da questão da verdade.

Não obstante, é preciso tecer algumas considerações, a fim de entender o título da obra e do que exatamente Habermas está falando. A fim de elucidar o que entende por 'crise', Habermas faz referências aos conceitos médico, dramático e sociológico da crise, uma vez que a problemática que ele pretende enfrentar está relacionada com a dimensão social da crise e não com a dimensão individual da crise, o que, por sua vez, chama a atenção para a guinada linguística no pensamento humano. A crise não é entendida como propriedade de um sujeito isolado, mas como parte de um processo interativo entre sujeitos ou entre entidades sociais como o Estado nesse caso.  Na área médica, um paciente se encontra em crise quando está numa fase da doença em que se considera que a situação do paciente é tal que não tem mais “os poderes de autocura do organismo (...) suficientes para recobrar a saúde” (HABERMAS, 2002, p. 11). No caso do conceito dramático de ‘crise’, existe uma contradição entre um ou mais personagens e o contexto dramático em que está inserido, entre a ‘combinação catastrófica do conflito’ e as ‘personalidades dos principais caracteres’ (HABERMAS, 2002, p. 12). Acredito que o que Habermas pensa como crise aqui se assemelha ao momento na tragédia, por exemplo, para ficar com o caso de Aristóteles, na Poética, em que o ator trágico percebe o drama trágico e é como que a uma tomada de consciência da realidade e isso leva ao desfecho da trama numa outra direção. A narrativa que o ator trágico tinha de sua própria trajetória deixa de sustentar-se com base na percepção da contradição entre ela e a nova informação. O ‘reconhecimento’ ou a anagnórisis “é a passagem do ignorar ao conhecer (...) das personagens” (ARISTÒTELES, 1993, p. 61) e essa passagem faz com que a narrativa exatamente como era pensada pelo ator trágico não se sustente porque baseada na ignorância de fatos importantes da situação e para superar essa crise é preciso a “formação de novas identidades” (HABERMAS, 2002, p. 12) considerando agora o que se ignorava e isso naturalmente tem consequências para o desfecho da trama dramática. Embora Habermas faça referência aos conceitos médico e dramático de crise, em última análise seu interesse é “introduzir sistematicamente um conceito científico social útil sobre crises” (HABERMAS, 2002, p. 13). O conceito social de crise compreende que as crises “surgem quando a estrutura de um sistema social permite menores possibilidades para resolver o problema do que são necessários para a contínua existência do sistema” (HABERMAS, 2002, p. 13). No caso específico da legitimidade política, Habermas vai chamar a atenção para o fato que a expansão da legitimidade pode ter o efeito colateral não desejado de permitir à população cada vez mais fazer um escrutínio crítico do sistema político e aumentar ainda mais a pressão sobre o Estado por parte dos cidadãos. Mas no que diz respeito ao problema da crise, o fato é que ela “priva o sujeito de alguma parte de sua soberania normal” (HABERMAS, 2002, p. 12). Ao aplicar a noção de crise de legitimidade à noção de crise no capitalismo tardio, Habermas se devota a três subsistemas: o sistema econômico, o sistema político administrativo e o sistema sociocultural. Contudo, para esclarecer o problema de legitimação que surge em sociedades capitalistas avançadas, Habermas precisa mostrar qual é traço característico do capitalismo tardio ou das sociedades capitalistas avançadas em relação a outras formas de organização social e por isso ele distingue entre diferentes tipos de formações sociais, tal como foram apresentadas acima e mostra que no caso específico das sociedades capitalistas avançadas ou tardias, o Estado, contrariamente àquilo que era ideia básica da concepção liberal de Estado das sociedades capitalistas clássicas, começa a assumir a função de tentar controlar a economia exatamente porque a sociedade liberal clássica entra em contradições e em crise e leva ao surgimento do Estado de bem-estar social e quando tenta assumir esse tipo de funções o Estado assume “imperativos mutuamente contraditórios” (HABERMAS, 2002, p. 83), que levam a tendências de crise econômicas, políticas e socioculturais. As crises econômicas geralmente levam a crises de racionalidade, as crises políticas levam a crises de legitimidade e a perda da lealdade das massas, e a crises socioculturais levam a crises de motivação e ao surgimento de alguns tipos de privatismo, em que os cidadãos perdem a motivação de participar da vida pública e se concentram apenas na busca de seu próprio interesse na esfera privada. Não por acaso ao falar da distinção entre moral e direito em Facticidade e Validade Habermas vai defender que o direito precisa suprir alguns déficits da moralidade moderna numa sociedade marcada pelo que John Rawls vai chamar em Liberalismo político de pluralismo razoável de cosmovisões. Habermas fala em déficits organizacionais e motivacionais, por exemplo. A perda do pano de fundo da justificação cultural do ordenamento jurídico acarreta a necessidade de o Estado empregar a coerção para fazer valer o que antes era baseado em acordos morais de pano de fundo do mundo vivido.

Nas sociedades capitalistas avançadas, o Estado assume a responsabilidade de impulsionar a economia e quando ele não consegue alcançar isso, o que é muito comum de acontecer, surgem crises de racionalidade. Mesmo assumindo para si esse tipo de função é interessante como, a fim de evitar precisar assumir a responsabilidade por possíveis danos ou perdas econômicas dos seus cidadãos durante a sua gestão da economia, o Estado vincula à dimensão econômica um caráter anárquico e que por causa disso os efeitos negativos à propriedade privada e aos bens dos seus cidadãos não podem ser considerados efeitos direto de uma má gestão da crise econômica, que tem uma dinâmica anárquica por natureza. Além das funções de gerir a economia, os aparatos estatais também assumem a função de gerar valores socioculturais. Com isso, “o sistema político assume tarefas de planejamento ideológico (...) [contudo,] o sistema cultural é especialmente resistente ao controle administrativo” (HABERMAS, 2002, p. 92) Isso é o que Habermas chama de dissimilaridade estrutural entre a ação administrativa do Estado e as áreas de tradição cultural e ao buscar resolver o déficit de legitimidade através da manipulação consciente dos elementos culturais através de recursos da racionalidade instrumental se obtém o efeito colateral da necessidade legitimação do poder político, uma vez que cada vez mais entra em xeque a lealdade das massas. (HABERMAS, 2002, p. 93) A tentativa de solução de Habermas para essas aporias passa por uma discussão do conceito de ética e verdade. Habermas busca mostrar que enunciados avaliativos morais podem ser portadores de verdade e com isso empreende um tratamento da ética de maneira ainda bastante breve na linha do que vai fazer de maneira mais sistemática e abrangente em Consciência moral e agir comunicativo. Diz ele (HABERMAS, 2002, p. 141): “nossa excursão no discurso da ética contemporânea foi ensejada para apoiar a afirmação que as questões práticas admitem a verdade. (...) as normas justificáveis podem ser distinguidas das normas que meramente estabilizam relações de força.” É como se quisesse ecoar Liberalismo político de Rawls e se referir a estabilidade pelas razões corretas, a legitimidade de uma ordem social não uma questão apenas de força e imperativos da razão instrumental. O que também parece abrir campo semântico para a concepção normativa que vai desenvolver depois em Facticidade e Validade, uma vez que emprega a discussão sobre a possibilidade da verdade nos enunciados morais para defender a possibilidade de basear uma ordem social em interesses generalizáveis e num consenso racional. Diz ele (HABERMAS, 2002, p. 141): “um acordo, se ocorrer sob condições de equilíbrio de poder entre as partes envolvidas”.

 

HABERMAS E A PANDEMIA

 

Em abril de 2020 Habermas publicou uma entrevista a respeito da pandemia de COVID 19 com o título A solidariedade é a única cura. A primeira coisa que Habermas enfatiza é que a pandemia aproxima o raciocínio das pessoas leigas ao dos especialistas. Antes da pandemia atual, o raciocínio a respeito de certas questões como triagem, decisão sobre quando encerrar, aumentar ou retomar o distanciamento social em condições de incerteza, que era restrito apenas aos especialistas da área de saúde e algumas autoridades políticas, em nosso cenário se tornou algo corriqueiro e debatido até mesmo entre os leigos. Essa decisão é muito importante porque está intimamente relacionada com o perigo de sobrecarga das unidades de terapia intensiva dos hospitais e que se não for bem gerenciada se pode chegar a cenários de medicina da catástrofe, em que os médicos precisam tomar uma decisão trágica a respeito de quem deve viver e quem deve morrer. De alguma forma aqui Habermas está supondo uma distinção entre uma pandemia que se torna um desastre e uma pandemia que é adequadamente gerenciada e por isso não alcança esse cenário ou talvez apenas esteja preocupado com o fato que “os direitos fundamentais proíbem os órgãos estatais de tomar qualquer decisão que aceite a possibilidade da morte de indivíduos” e se as unidades de terapia intensiva ficassem lotadas os agentes de saúde à serviço do Estado não poderiam isentar-se da decisão que implicaria na morte de indivíduos. A fim de tentar evitar que os agentes estatais precisem tomar esse tipo de decisão, se tornam necessárias limitações das liberdades básicas mais importantes, como a liberdade de ir e vir, mas Habermas chama a atenção que essa exceção à proteção das liberdades básicas, que também é uma competência do Estado, é justificada com base no direito à proteção da vida e da integridade física das pessoas. Esse cenário também traz o risco de se abdicar do princípio da igualdade de tratamento de todos perante à lei, principalmente os setores mais conservadores da sociedade e mais preocupados com a dinâmica econômica da sociedade, que em muitos casos se posicionam abertamente contra o distanciamento social e defendem um tipo de tratamento diferenciado entre as pessoas na sociedade, mesmo que nem sempre digam isso de forma explícita, seu raciocínio supõe que a vida dos idosos ou das pessoas com comorbidades, que são os mais afetados pelos casos mais graves do vírus e com isso estariam pesando o valor da vida humana de alguns seres humanos em relação ao valor da vida de outros e a liberdade econômica estaria acima da vida dessas pessoas e, por conseguinte, estariam adotando uma qualificação objetivamente do ser humano à luz de considerações econômicas. Por fim, Habermas é questionado sobre o crescimento dos grupos extremistas de direita na Alemanha e ele ressalta que o passado histórico alemão de alguma forma preparou a Alemanha contra o reaparecimento forte do extremismo de direita e que num cenário como o da atual pandemia “apenas o Estado pode nos ajudar”, o que de alguma forma trabalha contra uma certa tendência neoliberal na política mundial. Acredito que Habermas aqui está pensando que cenários como de uma pandemia evidenciam como somos dependentes de todo um aparato estatal, muitas vezes questionado pela vertente neoliberal da política, para enfrentar cenários de desastres ou catástrofes, como uma pandemia costuma ser. Como iria se proteger a grande maioria da população pobre de um país como o Brasil, por exemplo, sem o sistema público de saúde e as estruturas estatais que agilizam a assistência saúde? Se pode dizer que, a despeito do posicionamento adverso a certas restrições sanitárias de certas lideranças políticas locais ou nacionais, uma resposta adequada à pandemia atual, tem sido parcialmente realizada pelos funcionários públicos da área de saúde do Brasil, caso contrário, o cenário poderia ser ainda pior. Além disso, acredito que a pandemia tem produzido um sentimento de solidariedade entre as pessoas, uma vez que uma pandemia é um evento de desastre e um desastre costuma causar comoção e solidariedade nas pessoas e esse sentimento tem aberto perspectivas mais positivas a um debate mais democrático e inclusivo.

 

MARTHA NUSSBAUM E UM CONCEITO AMPLIADO DE LIBERALISMO

 

Martha Nussbaum em Emoções políticas. Por que o amor importa para a justiça?busca recontar uma certa estória, a fim de evidenciar que as emoções, ao contrário do que advoga uma certa visão predominante do liberalismo, não são avessas ou ausentes na política e o que é mais relevante à questão da legitimidade democrática, a estabilidade pelas razões corretas (para empregar um termo tão importante à obra Liberalismo político de John Rawls) exige o cultivo de emoções adequadas. É preciso emoções que reforcem o compromisso com a inclusão, com a igualdade, com o alívio da miséria e com o fim do trabalho escravo (NUSSBAUM, 2013, p. 1-2). Conforme Nussbaum, se faz necessário se afastar de uma pressuposição corrente de que “apenas sociedades fascistas ou agressivas são intensamente emocionais e que apenas tais sociedades precisam focar no cultivo das emoções [mas] (...) todas as sociedades precisam pensar sobre a estabilidade da cultura política” (NUSSBAUM, 2013, p. 2). Ela entende que a manutenção da cultura política exige promover sentimentos ou emoções como a compaixão pela perda, a raiva pela injustiça, a remoção da inveja e do desgosto em prol de um tipo de simpatia inclusiva. A ideia básica é salvaguardar-se contra a divisão e a hierarquia na sociedade, algo que é possível perceber como marca constitutiva de muitas sociedades contemporâneas, em especial a brasileira, em que a divisão política está fortemente relacionada com a manutenção de distinções sociais, que obviamente sabíamos existir, mas que parecia haver um acordo difundido que seria preciso eliminar e se pode perceber que a existência desse acordo nesse momento é tudo menos evidente. O desacordo é que parece mais evidente. A fim de promover a estabilidade da cultura política, Nussbaum pensa em duas tarefas distintas: 1. Engendrar e sustentar um comprometimento forte a projetos dignos que exerçam esforço e sacrifício como a redistribuição social, inclusão plena, proteção do meio ambiente, ajuda ao estrangeiro, e defesa nacional; 2.   Manter distante da sociedade alguns tipos de forças ou emoções que levam algumas pessoas a denegrir ou subordinar outras pessoas, o que ela numa interpretação modificada do sentido originário retoma de A religião dentro dos limites da simples razão de Immanuel Kant, a noção de mal radical. Em Kant tal conceito tem a ver com um tipo de propensão à maldade presente na natureza humana e que está relacionada com a disposição de violar os preceitosmorais, em Nussbaum se tratam de emoções que desmerecem a dignidade humana das outras pessoas e dificultam uma cultura política saudável, a saber, inveja e o desejo de infligir inveja nos outros, ou seja, sentimentos que procuram colocar a si mesmo sempre acima dos outros e os outros numa posição de inferioridade tal que seriam considerados indignos de apreço e consideração (NUSSBAUM, 2013, p. 3-4).

            A fim de enfatizar que o que ela pretende não é avesso ao ideal de sociedade livre e democrática liberal, Nussbaum lembra que outros pensadores da tradição filosófica democrática como John Stuart Mill, Jean Jacques Rousseau e August Comte pensaram em algo semelhante a uma religião da humanidade como um tipo de estratégia de manter saudável a cultura política de uma sociedade. Não obstante, ela não deixa de reconhecer também que “prescrever qualquer tipo de cultivação emocional pode facilmente envolver limites à liberdade de expressão (...) [e à] liberdade e autonomia” (NUSSBAUM, 2013, p. 4).    Uma maneira de operacionalizar de alguma forma as emoções em prol do desenvolvimento de uma cultura política consiste no Estado dar amplo espaço aos artistas desenvolverem obras de arte que estão relacionadas com diferentes visões dos valores políticos mais importantes (NUSSBAUM, 2013, p. 7). Dessa maneira, a proposta de Nussbaum também é de alguma forma reminiscente da concepção de Friedrich Schiller em Cartas para a educação estética da humanidade em que o filósofo e dramaturgo alemão se preocupa com a dimensão estética da política e propõe uma concepção estética que integra a dimensão racional e a dimensão afetiva do ser humano. A sociedade contemporânea, embora ainda empregue termos como motivação racional e motivação emocional, tem uma visão mais neutra das emoções e por isso distingue entre emoções adequadas e inadequadas e por causa disso o papel aqui também não é conciliar razão e emoção, mas promover os tipos adequados de emoções em prol do desenvolvimento de uma cultura política adequada. É importante observar que Aristóteles e os defensores da ética de virtudes também já consideram a existência de emoções que precisam ser promovidas e emoções que precisam ser evitadas ou eliminadas em obras como a Ética a Nicômacos. As virtudes morais se baseiam de alguma forma na razão, mas precisam ser cumpridas com a emoção adequada. Uma pessoa que sofre para realizar um ato virtuoso ainda carece da virtude da coragem, por exemplo. O ato de coragem deve produzir prazer naquele que o executa para ser virtuoso. Nussbaum (2013, p. 9) também procura mostrar que John Rawls, ao menos em Uma teoria da justiça considerou o papel dos sentimentos e das emoções na questão da estabilidade dos princípios escolhidos na posição original, mas que o próprio Rawls teria abandonado de alguma forma essa visão na obra Liberalismo político, uma vez que trata a questão da estabilidade não mais com base numa doutrina abrangente de bem, mas com base num consenso sobreposto de cosmovisões. De alguma forma, mesmo em liberalismo político ainda existe a necessidade que uma concepção de justiça liberal desenvolva nos cidadãos sentimentos adequados para garantir a estabilidade pelas razões corretas.  

Por fim, embora Habermas recusa em Facticidade e Validade a saída de Rousseau para o problema da compatibilização entre autonomia política e autonomia privada com base no compartilhamento de uma cosmovisão, o que seria vetado pelo contexto do pluralismo de cosmovisões, a questão é que uma sociedade marcada pelo ódio, pelo discurso do ódio como é o caso de muitas sociedades atuais parece envolver algum tipo de crise de legitimidade e de motivação em cumprir os direitos fundamentais de todos os cidadãos e pensar em estratégias de abertura de perspectiva para aqueles que parecem fechados aos discursos inclusivos pode consistir em algo digno de preocupação por parte das instituições públicas, mas também por parte dos grupos que compõem os movimentos sociais em prol dessa inclusão. Nussbaum como Schiller já havia pensado acredita que as obras de arte poderiam ter um papel importante de abertura de horizontes; o próprio Habermas quando pensa a democracia para além da esfera nacional, com base tanto no pensamento de Kant sobre direito internacional quanto o debate a respeito da consolidação da União europeia chama a atenção para a necessidade de criar solidariedade para além das fronteiras e no intuito de criar uma esfera pública global. Com isso ele estaria reconhecendo alguma relevância para base afetiva às questões de justiça social e seria importante mesmo que através do exercício do discurso pensar um papel importante para arte, como já havia feito pensadores da primeira geração da Escola de Frankfurt, poderia ser uma estratégia frutífera para enfrentar uma crise de legitimidade e motivacional oriunda não apenas da incapacidade dos Estados nacionais cumprir suas funções de gerir a economia doméstica, mas também de uma cultura política marcada pela divisão radical entre grupos antagônicos e aparentemente inconciliáveis.  

 

OBSERVAÇÕES FINAIS

 

Como foi possível observar, na obra sobre a crise de legitimidade no capitalismo tardio, Habermas aponta como um problema desse tipo de formação social consistiu exatamente em tentar resolver as crises de legitimidade recorrendo a meios instrumentais e buscando criar significados, o que parece ter se tornado parte do problema incrementando as tendências de crise. A solução proposta antecipa aspectos da ética do discurso através da abertura de possibilidade de interesses generalizáveis mediante discursos racionais orientados ao consenso. O que a sociedade contemporânea tem experienciado é um crescimento de visões políticas extremistas principalmente à direita do espectro político. A reflexão que eu procurei trazer à discussão é que a pandemia, para o bem ou para o mal, parece ter enfraquecido um pouco, embora ainda tais discursos ainda tenham ainda grande difusão nas sociedades políticas ao redor do globo, essa tendência de fortalecimento dos discursos extremistas à direita. Em parte, esse efeito poderia ser interpretado como resultado do incremento do sentimento de solidariedade que se tornam particularmente mais acentuados diante de desvantagens que pessoas recebem em função de eventos que são passivos e não ativos e uma pandemia é uma evento de desastre e tais eventos são por definição imprevisíveis, indesejados, e em geral não resultados de escolha deliberada dos afetados, mesmo que alguns atos humanos possam aumentar sua incidência. A entrevista que Habermas concedeu logo após o início da Pandemia do COVID 19 tem o título A solidariedade é a única cura. No texto ele faz referência novamente aos imperativos sistêmicos do mercado e de como eles entram em conflito com o valor da vida humana em cenários como o atual em que muitas pessoas às vezes, mas não apenas os extremistas de direita, costumam preferir a ausência de isolamento social, a fim de causar menos efeitos negativos na economia. Também aponta que o Estado de direito pelo comprometimento com o princípio da dignidade humana não pode oficialmente tomar decisões que acarretem a morte deliberada ou deixar morrer deliberadamente outros seres humanos, o que seria o caso na ausência de uma preocupação sanitária forte, como foi possível presenciar em países como o Brasil em certos momentos. O meu ponto aqui é que um sentimento como a solidariedade incrementado por um evento catastrófico parece tornar as pessoas mais suscetíveis ao dialógico racional, o que obviamente ainda encontra casos em contrário de convictos defensores de posições políticas extremistas, mas também é notório que pessoas antes da pandemia mais propensas aos discursos extremos à direita, parecem atualmente menos propensos a compartilhar tais posições ou até mesmo mudaram sua posição durante o processo. Empregar a arte ou alguma outra estratégia com o intuito de produzir algum tipo de abertura ao diálogo racional poderia ser um esforço complementar ao mero enfrentamento direto através do discurso e das manifestações na esfera pública da sociedade.

 

REFERÊNCIAS

 

ARISTÒTELES. Ética a Nicômacos. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Unb, 1992.

 

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1993.

 

EDGAR, Andrew. The Philosophy of Habermas. Ithaca: McGill-Queen’s University Press, 2005.

 

HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1989.

 

HABERMAS, Jurgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Tradução de Vamireh Chacon. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 2002.

 

HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de Denilson Luís Werle. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

 

HABERMAS, Jurgen. Facticidade e Validade. Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia. Tradução de Felipe Gonçalves e Rúrion Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2020.

 

KANT, Immanuel. A religião dentro dos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70.

 

NUSSBAUM, Martha. C. Political emotions. Why love matters for justice. Cambridge: Harvard University Press, 2013.

 

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

RAWLS, John. Liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

 

SCHILLER, Friedrich. Über die ästhetische Erziehung des Menschen. InEiner Reihe von Briefen: mit den Augustenburger Briefen. Stuttgart: Reclam, 2000.

 

 

 

 


SOBRE OS AUTORES

 

 

 

i Charles Feldhaus - Graduado em Filosofia - Bacharel (2002) - Licenciatura Plena (2003) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - na Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Especialista em Biossegurança (2004) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Posdoutorado em filosofia pela Martin Luther Universität Halle Wittenberg (2015) com apoio financeiro da CAPES. Professor Associado C da Universidade Estadual de Londrina. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em filosofia - Mestrado - da Universidade Estadual de Londrina. Publicou artigos em revistas especializadas e é autor de dois livros (um sobre a filosofia prática de Immanuel Kant e outro sobre o pensamento bioético de Jürgen Habermas) e organizador de uma coletânea a respeito do pensamento de Jürgen Habermas e outras cinco sobre temas relacionados com as teorias da justiça. Coordena o diretório de grupo de pesquisa Teorias da Justiça do CNPQ e GT Teorias da Justiça da ANPOF e um projeto institucional sobre a recepção de à paz perpétua de Immanuel Kant até 1800. Atualmente mantém grupos de pesquisa sobre filosofia do direito com ênfase nas questões de direito internacional com orientações de mestrado e iniciação científica no pensamento de Habermas, Honneth, Nussbaum, Fraser. Leciona disciplinas nas áreas de ética e filosofia política e jurídica na Universidade Estadual de Londrina. Membro da Academia de Ciências, Letras e Artes de Londrina, cadeira Mario de Andrade. E-mail: scharlesfeldhaus@yahoo.com.br.

 

ii Juliana Marques Saraiva - É mestra em Filosofia Contemporânesa, no GT de Ética e Política Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atualmente é doutoranda em ética e política pela UFPR (Universidade Federal do Paraná). E-mail: a juliana_marques_saraiva@hotmail.com.

iiiAna Flávia Rossi -Discente do curso de Direito pela Universidade Estadual de Londrina/PR (UEL). Estagiária de graduação no escritório M. Ticianelli Advogados Associados. Cumpriu estágio de graduação perante o Ministério Público do Paraná, com lotação na 17ª Promotoria de Justiça da Comarca de Londrina/PR. Realiza pesquisas nas áreas de Filosofia Política e Direito Internacional Público, com ênfase nos seguintes temas: Doutrina da Guerra Justa em John Rawls, Direitos Humanos e Convenções de Genebra de 1949. Graduanda do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina/PR. E-mail: anaflaviarossi2@gmail.com.



[1] Não explorarei esta hipótese em maior detalhe no presente estudo.

[2] Abordei as contribuições dessa noção moralmente neutra de liberdade à atribuição de responsabilidade moral em minha dissertação de mestrado.

[3] A favor disso, conta o próprio testemunho de Habermas no Prefácio: “parto da distinção entre a teoria kantiana da justiça e a ética do ser si mesmo”. HABERMAS, J. ZMN, 2001, 9.

[4] Embora o ato seja de natureza não transcendental, é preciso ressaltar que o argumento habermasiano assume um estatuto transcendental, pois atenta para as condições de possibilidade da moralidade convencional ou da concepção moderna da mesma.

[5] Este naturalismo fraco ou mitigado já foi primeiramente desenvolvido por Habermas em VWahrheit und Rechtfertigung.

[6] A tese da incorporação foi formulada por Henry Allison, como chave interpretativa para a concepção de liberdade exposta por Kant na Religião dentro dos limites da simples razão.

[7] Kant distingue entre ‘pensar’ e ‘conhecer’.

[8] Entendo que o termo plano racional de vida é utilizado por Habermas de maneira similar a Rawls em A Theory of Justice e em Political Liberalism. Rawls supõe que os cidadãos de uma sociedade democrática contemporânea possuem um plano racional de vida, ou seja, algo “à luz do qual eles planejam seus esforços mais importantes e alocam seus vários recursos (inclusive os mentais e corporais, tempo e energia) a fim de perseguir sua concepção do bem durante uma vida inteira, se não do modo mais racional, então ao menos de um modo sensato (ou satisfatório)”. RAWLS, J. Political Liberalism, 177 (minha tradução). Em Theory, Rawls sustenta o seguinte: “primeiro, o plano de vida de uma pessoa é racional se, e apenas se, (1) é um dos planos que é consistente com os princípios da escolha racional quando esses são aplicados a todos os aspectos relevantes de sua situação, e (2) é aquele plano entre aqueles que se encontram nessa condição que seria escolhido por ele com racionalidade deliberativa plena, isto é, com consciência plena dos fatos relevantes e depois de uma consideração cuidadosa das consequências. (...) Segundo, os interesses e os objetivos de uma pessoa são racionais se, e apenas se, eles devam ser encorajados e munidos pelo plano que é racional para ela.” RAWLS, J. A Theory of Justice, 408-409 (minha tradução).

[9] WHITE, K. An Introduction to the Sociology of Health and Illness.

[10] WHITE, K. An Introduction to the Sociology of Health and Illness, 3.

[11] WHITE, K. An Introduction to the Sociology of Health and Illness, 3.

[12] SCAMBLER, G. Habermas, Critical Theory and Health, 50.

[13] HABERMAS, J. ZMN, FNH, 64.

[14] Segundo Foucault, História da sexualidade I.

[15] HABERMAS, J. FHN, 65;

[16] HABERMAS, J. TAC2, 154.

[17] Cf. CHRISTIANSEN, K. ROSEN, N. The Politics of Life, 2007.

[18] HABERMAS, J. FHN, 72; ZMN, 91.

[19] HABERMAS, J. KPN, 249 (minha tradução).

[20] HABERMAS, J. KPN, 252.

[21] As abreviações do título das obras de Habermas nas citações seguirão o seguinte padrão: ZMN - Die Zukunft der menschlichen Natur; FNH - O Futuro da Natureza Humana; IO - Inclusão do Outro; EA - Die Einbeziehung des Anderen.

[22] DWORKIN, R. Sovereign Virtue, p. 444; Virtude Soberana, p. 633.

[23] HABERMAS, J. ZMN, p. 55.

[24] HABERMAS, J. ZMN, p. 72.

[25] Cf. HABERMAS, J. ZMN, p. 73.

[26] HABERMAS, J. ZMN, p. 74.

[27] HABERMAS, J. ZMN, p. 76.

[28] Obviamente, aqui se poderia objetar que não é o acaso completo que determina a dotação genética sob a rubrica da loteria natural, uma vez que os progenitores, ao procurar seus parceiros, conscientemente ou não sempre procuram parceiros que correspondem a certos padrões mínimos de normalidade genética e quando possível até mesmo parceiros com fenótipo acima da média da normalidade, não obstante, o ponto é que o tipo de controle prometido pelos futuros avanços no campo da manipulação genética permitem uma precisão e eficência nessa busca pela obtenção de uma prole melhor dotada geneticamente muito mais significativa e com uma probabilidade de êxito gritantemente maior.

[29] DWORKIN, R. Sovereign Virtue, p. 444-45.

[30] BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, 172.

[31]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, 172.

[32]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, 173.

[33]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, 173.

[34]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, 174.

[35] DWORKIN, J. Sovereign Virtue, p. 438-9; Virtude Soberana, p. 624-5.

[36] BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 175.

[37]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 176.

[38]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 176.

[39]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 176.

[40]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 177.

[41]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 177.

[42]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 178.

[43]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 178.

[44]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 178.

[45]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 178.

[46]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 179.

[47]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 179.

[48]BURLEY, J. Morality and the “New Genetics”, In: Dworkin and its Critics, p. 179.

[49] DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 362.

[50]DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 362.

[51]DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 362.

[52]DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 362.

[53]DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 363.

[54]DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 363.

[55]DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 363.

[56]DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 363.

[57]DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 364.

[58]DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 364.

DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 364.

[60]DWORKIN, R. Replies, In: Dworkin and its Critics, 365.

[61] HABERMAS, J. FNH, p. 40; ZMN, 53.

[62] HABERMAS, J. FNH, p. 40; ZMN, 54-5.

[63] HABERMAS, J. FNH, p. 41; ZMN, 54-5.

[64] HABERMAS, J. FNH, p. 44; ZMN, 58-9.

[65] HABERMAS, J. IO, p. 12; EA, 11-12.

[66] DWORKIN, R. Sovereign Virtue, p. 446; Virtude Soberana, p. 635.

[67] DWORKIN, R. Sovereign Virtue, p. 446; Virtude Soberana, p. 636.

[68] Em outra oportunidade busquei mostrar que Habermas pode ter herdado uma pressuposição equivocada de Ronald Dworkin, a qual o teria levado a escolher o caminho de uma ética da espécie em vez de uma avaliação diretamente moral da eugenia liberal. FELDHAUS, C. Teria Habermas recorrido a uma suposição dworkiana equivocada em Die Zukunft der menschlichen Natur? In: Clóvis Ricardo Montenegro de Lima (Org). Mudança Estrutural na Esfera Pública 50 anos depois. João Pessoa: Editora da UFPB, 2012, pp. 301-316.

[69] É importante ressaltar que, embora Moore, em sua obra Principia Ethica, seja um forte crítico da identificação de termos e enunciados avaliativos com propriedades físicas ou metafísicas, no final das contas, ele compromete-se com uma metafísica inflacionada, como Hilary Putman afirma em seu livro Ethics without Ontology (2004, p. 17-8), uma vez que Moore considera ‘bom’ no sentido moral como uma propriedade sui generis que seria apreendida por uma faculdade peculiar, a saber, pela intuição.

[70] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, p. 6.

[71] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, p. 41.

[72] O emotivismo e o descritivismo afirmam que a moralidade diz respeito a estados mentais, a saber, ao enunciar termos morais a pessoa está expressando apenas suas emoções e seus sentimentos em relação aos atos que está observando e, por causa disso, um enunciado avaliativo consiste senão numa descrição dos estados mentais daqueles que proferem esse tipo de proposição. Por conseguinte, aquele que enuncia um juízo avaliativo está apenas comunicando as próprias preferências e sugerindo alternativas de ação. Os juízos normativos conforme esse tipo de compreensão dos enunciados avaliativos perdem a prescritividade, um das características peculiares dos enunciados normativos para um filósofo que defende o prescritivismo moral como é caso de Richard Hare, em sua obra The Language of Moral.

[73] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, pp. 56-61. Kant e Santo Agostinho, por exemplo, acreditavam que a fraqueza da vontade implicava um conflito entre uma norma ou regra moral adotada e inclinações contrárias.

[74] O termo ‘inclinação’ é usado por Kant para referir-se a toda a gama de sentimentos e emoções que podem influenciar o agente a agir diferente do único móbil moral propriamente dito, o respeito pela lei moral.

[75] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, pp. 56.

[76] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, pp. 75.

[77] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 23; “Die schottische Moralphilosophie (...) Der Kontraktualismus (...) Beide Theorie stossen am Ende auf dieselbe Schwierigkeit: sie können die über die Bindungskraft der Klugheit hinausweisend Verbindlichkeitmoralischer Verpflichtungen nicht allein mit rationalen Motiven erklären.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 23-4.

[78] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 22; “Nachdem die religiöse Geltungsgrundlage entwertet ist, kann der kognitive Gehalt des moralischen Sprachspiels nur noch mit Bezugnahmeauf Willen und Vernunft seiner Teilnehmer rekonstruiert werden.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 22-3.

[79] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 24; “Komplexe Gesellschaften können nicht allein durch Gefühle, die wie Sympathie und Vertrauen auf den Nahbereich eingestellt sind, zusammengehalten werden.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, 24.

[80] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 24; “Aber eine normative Theorie bewährt sich nicht an Fragen der Moralpsychologie; sie muss vielmehr den normativen Vorrang von Pflichten erklären.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, 25.

[81] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 13; “Wir verstehen diese Äusserungen eben nicht als : Ausdruck bloss subjektiver Empfindungen und Präferenzen.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 13.

[82] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 25; Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 26.

[83] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 26; “dass eine Vereinbarung zwischen Interessenten nicht per se Verpflichtungen begründen kann.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, 27.

[84] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 27; Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 28.

[85] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 28; “Gibbard den Begriff der Norm für alle Arten von Standards, die sagen, warum es für uns rational ist, eine Meinung zu haben, ein Gefühl zu äussern oder in bestimmer Weise zu handeln”. Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 28

[86] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 28; “Moralisch nennt Gibbard sodann die Normen, die für eine Gemeinschaft festlegen, welche Klassen von Handlungen spontane Missbiligung verdienen. Sie bestimmenm in welchen Fällen es für die Angehörigen rational ist, sich zu schämen oder schuldig zu fühlen oder sich über das Verhalten anderer zu empören”. Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 29.

[87] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 29.

[88] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 30.

[89] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 30.

[90] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 30.

[91] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 30; “Die diskursive Verständigung über moralische Normen kann Gibbard nicht nach dem Muster kooperativer Wahrheitsuche begreifen, sondern als Prozess der gegenseitigen rhetorischen Beeinflussung.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 31.

[92] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 30.

[93] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, p. 195, nota.

[94] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, p. 195, nota.

[95] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 31.

[96] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 31; “Gibbard muss deshalb erklären, warum unter den pragmatisch ausgezeichneiten Kommunikationsbedingungen genau die Normen Zustimmung finden sollten, die sich unter dem funktionalen Gesichspunkt ihres objetiv hohen artspezifischen “Überlebenswerts” als die besten herausstellen”, Die Einbeziehung des Anderen, 1996, 32.

[97] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 31.

[98] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 31, nota.

[99] Ver item 2.2.

[100] É cediço que em uma sociedade democrática também existam diversas doutrinas consideradas irrazoáveis; todavia, no texto A Ideia de Razão Pública Revista o autor adota uma concepção normativa ideal de governo democrático, em que se pressupõe que as condutas adotadas pelos cidadãos razoáveis e os princípios por estes seguidos não só sejam predominantes, como, também, estejam no controle.

[101] O critério de reciprocidade será discutido mais adiante, por ocasião dos cinco aspectos da razão pública listados pelo autor, no item 2.2.



 

 

[ii]

[iii]