JOSÉ ANTONIO CALLEGARI
COLETÂNEA COLÓQUIOS HABERMAS
VOLUME 5 – JOSÉ ANTONIO CALLEGARI
Rio de Janeiro
2023
© 2023 - Editora Salute.
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Autor: José Antonio Callegari.
Organização: Clóvis Ricardo Montenegro de Lima.
Editoração: Andreza dos Santos.
Capa: Andreza dos Santos.
Publicado no Brasil – 2023.
Ficha catalográfica elaborada na fonte por Andreza dos Santos – CRB 14/866.
APRESENTAÇÃO
Neste ano de 2023 em que o Colóquio Habermas chega a sua 19ª edição, os seus organizadores estão iniciando a publicação de uma coleção de coletâneas de artigos por autores individuais e temas específicos. Cabe recordar que o Colóquio Habermas é sempre organizado em torno de tema central genérico.
O Colóquio Habermas é um evento que foi idealizado e criado pelos professores da Universidade Federal de Santa Catarina Alessandro Pinzani e Delamar Dutra em 2005. Os Colóquios funcionam como espaço de divulgação e discussão do pensamento do filósofo alemão Jurgen Habermas.
A coleção de Coletâneas de artigos apresentados no Colóquio Habermas inicia com a publicação dos trabalhos de professor Jovino Pizzi, da Universidade Federal de Pelotas. Outras coletâneas serão publicadas, no sentido de ampliar a divulgação dos artigos, no espírito livre da licença Creative Commons.
Esperamos com esta coleção contribuir para a maior difusão e a melhor recepção da obra de Habermas, segmentada entre autores com diferentes leituras e experiências. A diversidade temática aponta para as múltiplas possibilidades de fundamentação e de aplicação com a obra de filósofo, particularmente dedicado a guinada epistemológica com a teoria de agir comunicativo e a razão prática da ética e da política.
A discussão ética e política é extremamente relevante e pertinente neste contexto em que o Brasil vive a sua reconstrução racional após seis anos de obscurantismo de um golpe parlamentar e um governo de extrema-direita. Precisamos de amplo entendimento democrático para orientar e sustentar a construção de uma sociedade justa, livre, igualitária e sustentável.
Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2023.
Clóvis Ricardo Montenegro de Lima
Organizador
PREFÁCIO
No ano de 2012, apresentei meu primeiro trabalho no VIII Colóquio Habermas.
Na ocasião, elaborava os primeiros artigos sobre o Sistema de Ouvidorias Judiciais, tema de minha dissertação de mestrado.
Minha participação inicial no Colóquio Habermas contou com o apoio fundamental dos Professores Doutores Gilvan Luiz Hansen e do Marcelo Pereira de Mello, meu orientador.
Com o Professor Gilvan, tive os primeiros contatos com a “Consciência moral e agir comunicativo” e a “Mudança estrutural da esfera pública”, obras fundamentais de Habermas.
O diálogo com Habermas, permeado pelas lições preciosas do Professor Gilvan, bem como pelas orientações do Professor Marcelo Mello, fomentou vários dos artigos que estão presentes na coletânea que vem a público.
Analisar práticas do judiciário e a estrutura processual brasileira, com apoio em Habermas, tem sido o mote da produção acadêmica que elaboramos ao longo dos anos, pautando o tema da ética discursiva nesse subsistema social.
Destacando a contribuição inestimável dos meus professores, cabe dizer algumas palavras a respeito do Colóquio Habermas.
Dizem que a primeira impressão é a que fica.
Não poderia ser diferente.
A forma como fui recebido e presenciei como os alunos de pós-graduação são recebidos no Colóquio Habermas, sempre com a presença anfitriã cordial do Professor Clóvis Ricardo Montenegro de Lima, deixou em mim a primeira e melhor impressão.
Trata-se de um ambiente onde autores e professores renomados, com simplicidade e acolhimento, recebem os pares e os alunos de forma toda especial.
Nessa esfera pública acadêmica, nos sentimos bem acolhidos e seguros para seguir com nossas pesquisas.
Hoje, como professor adjunto no Departamento de Direito de Macaé, Universidade Federal Fluminense, digo com segurança que o Colóquio Habermas abriu as portas para um pesquisador iniciante, assim como consolidou muitas reflexões que me permitiram obter sucesso no mestrado, no doutorado e no concurso para o magistério superior.
Por fim, agradeço a todos aqueles que desde o primeiro evento, no qual participei, apoiaram e contribuíram com essa caminhada, que hoje se materializa nessa coletânea oferecida ao leitor.
José Antonio Callegari.
Outubro de 2023.
SUMÁRIO
Capítulo I
SISTEMA DE OUVIDORIAS JUDICIAIS: ESFERA PÚBLICA E DEFESA DA CIDADANIA
José Antonio Callegari.
Capítulo II
OUVIDORIA: GESTÃO PÚBLICA DIALÓGICA
José Antonio Callegari.
Capítulo III
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: GESTÃO PARTICIPATIVA E CONTROLE SOCIAL
José Antonio Callegari.
Capítulo IV
NARRATIVA PROCESSUAL: ÉTICA NO DISCURSO JURÍDICO
José Antonio Callegari; Marcelo Pereira de Mello.
Capítulo V
PROCESSO E LINGUAGEM: A INSTRUMENTALIDADE DO TEXTO PROCESSUAL
José Antonio Callegari; Marcelo Pereira de Mello.
Capítulo VI
ANÁLISE PROCESSUAL: O PROCESSO COMO OBJETO DE ESTUDO
José Antonio Callegari; Marcelo Pereira de Mello.
Capítulo VII
PANDEMIA: A PROTEÇÃO SOCIAL DO TRABALHADOR
José Antonio Callegari.
Capítulo VIII
ÉTICA A NICOMANO: ASSUNTOS DE CONDUTA PROCESSUAL
José Antonio Callegari.
CAPÍTULO I
José Antonio Callegari [i]
INTRODUÇÃO
A Emenda Constitucional nº 45/2004 modifi cou de forma signifi cativa a estrutura do sistema judiciário brasileiro. Neste contexto, a criação do Conselho Nacional de Justiça contribuiu para a modernização do Poder Judiciário.
Porém, não bastava a modernização técnica e estrutural dos Tribunais e nem mesmo as reformas sucessivas da Constituição e das leis que regem o direito material e processual brasileiro para consolidar a democratização do acesso à Justiça. A efetiva garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana necessitava de algo mais. Havia uma lacuna a ser preenchida. O sistema judiciário ainda estava distante do cidadão. Era preciso ouvi-lo fora do contexto das pretensões deduzidas através de um processo formal e tecnocrático.
Percebendo esta lacuna no sistema jurídico, o Conselho Nacional de Justiça, inspirado na fi gura do OMBUDSMAN e na criação voluntária de ouvidorias em diversos órgãos estatais, resolveu normatizar a criação de um Sistema Nacional de Ouvidorias através da Resolução nº 103, de 24 de fevereiro de 2010.
O sistema nacional de ouvidorias abre um canal de comunicação direta entre o cidadão e os órgãos do Poder Judiciário. O exercício da cidadania participativa através deste canal de comunicação contribui decisivamente para o aperfeiçoamento institucional do Estado Democrático de Direito. A ação comunicativa é fator de estabilização da ordem social. Sem comunicação, o sistema social corre o risco de cristalizar-se em instituições desprovidas de legitimidade.
Neste contexto, as ouvidorias têm a missão de defender os interesses dos cidadãos perante os Tribunais, que passam a atuar também como prestadores de serviços. O súdito do Estado adquire dupla qualidade jurídica: cidadão e usuário. Como cidadão é detentor do poder, na forma da Constituição Federal do Brasil. Como usuário é credor de prestação de contas dos atos praticados pelos agentes públicos. A comunicação entre a esfera privada e a esfera pública, através da Ouvidoria, gera mais comunicação, aperfeiçoando o sistema judiciário em estudo.
Percebendo as falhas no sistema judiciário, o cidadão age comunicando estas percepções ao sistema de Ouvidorias. Este canal de comunicação está aberto para receber críticas, sugestões, denúncias, reclamações e outros tipos de manifestação dos usuários do sistema. Nota-se, assim, uma aproximação entre o sistema judiciário e o cidadão através da ação comunicativa voltada para o bem comum.
A leitura de Jürgen Habermas (Mudança Estrutural da ESFERA PÚBLICA e Consciência Moral e Agir Comunicativo) provoca refl exões sobre este novo perfi l do Poder Judiciário brasileiro mais aberto à participação do usuário do sistema. Esta participação (ação comunicativa) representa uma das formas mais legítimas de exercício da cidadania participativa, o que será objeto de exame no tópico seguinte.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃO DO USUÁRIO
O preâmbulo da Constituição brasileira sinaliza que o Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Esta sociedade estaria fundamentada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífi ca das controvérsias. Estes pontos iniciais marcam a nova esfera pública brasileira com a redemocratização do país. Os compromissos assumidos pelos constituintes, em nome do povo, indicam que as conquistas somente serão consolidadas através do amadurecimento da sociedade brasileira. Este amadurecimento democrático não dispensa a participação ativa dos cidadãos. O exercício de direitos e a defesa de garantias requerem um agir comunicativo ativo, participativo e deliberativo dos cidadãos concernidos na ordem jurídica nacional. A cidadania erige-se em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, II) e todo poder emana do povo que o exerce direta e indiretamente (parágrafo único). Se todo poder emana do povo e a cidadania requer participação e deliberação ativas, não resta outro caminho à Administração Pública do que reformular-se segundo os paradigmas desta nova ordem social democrática.
A nova esfera pública brasileira tem como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Os princípios que informam a República Federativa do Brasil valorizam a independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífi ca dos confl itos; repúdio do terrorismo e do racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão do asilo político. Note-se que a esfera pública brasileira sofre profunda mudança ideológica, através da adoção e constitucionalização de princípios voltados para a defesa dos direitos humanos. O Estado brasileiro passa a adotar um modelo discursivo em busca da superação de dissensos através do diálogo harmonioso das forças sociais em busca de soluções consensuais que estabilizem a vida em comunidade.
O modelo de gestão participativa no Estado Democrático de Direito produz efeitos diretos e imediatos na esfera pública de todos os Poderes da União: Executivo, Legislativo e Judiciário.
O artigo 5º da Constituição garante ao cidadão a livre manifestação do pensamento, o direito de resposta, o acesso à informação, a defesa do consumidor, o direito de receber informações dos órgãos públicos e o direito de petição. Estas garantias constitucionais sinalizam para um novo modelo de esfera pública: o Estado prestador de serviços.
Este novo perfi l do Estado brasileiro consolida-se com a edição da Emenda Constitucional nº 19 que tratou da reforma da Administração Pública como visto no artigo 37 da CRFB. Logo no caput do artigo 37 foi inserido o princípio da efi ciência como requisito para implantação de melhorias na gestão pública. Com este propósito, o § 3º insere no texto constitucional o seguinte dispositivo: “A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta...”. Esta participação do usuário nada mais é do que uma forma de exercício da cidadania diante da abertura sistêmica garantida pela nova estrutura da esfera pública brasileira.
Uma das formas de participação do usuário ocorre com a apresentação de reclamações relativas à prestação de serviços públicos em geral, onde podemos incluir os serviços judiciários. Fica assegurada ao usuário a manutenção de serviços de atendimento e avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços. Neste ponto, encontramos o embrião do Sistema de Ouvidorias Judiciárias.
Outra forma de participação dá-se com a garantia de acesso a registros administrativos e informações sobre atos de governo, observando-se questões de sigilo de Estado. Aqui, a Administração Pública passa a prestar contas dos seus atos adotando o sistema de transparência pública com fundamento nos princípios da legalidade, impessoalidade e publicidade.
O usuário também pode representar contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública. Ele, como cidadão, tem legitimidade para atuar ao lado dos órgãos institucionais de controle de administração pública, ampliando deste modo o seu poder de participação no controle da gestão efi ciente dos órgãos integram o Poder Judiciário.
MUDANÇA ESTRUTURAL NO PODER JUDICIÁRIO
O sistema judiciário brasileiro é composto por órgãos do Poder Judiciário, bem como do Ministério Público, Advocacia Pública, e Advocacia Privada. Este sistema é composto por órgãos judiciários em sentido estrito e órgãos que exercem funções essenciais à administração da justiça. Deve-se destacar a importância da Ordem dos Advogados do Brasil como disciplinadora do exercício da advocacia privada brasileira.
Com respeito ao Poder Judiciário, o legislador constituinte originário estabeleceu o sistema de jurisdição federal e estadual, vez que inexiste jurisdição municipal no Brasil.
Os órgãos que compõem o Poder Judiciário são: Supremo Tribunal Federal, Conselho Nacional de Justiça, Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais, Tribunais e Juízes do Trabalho, Tribunais e Juízes Eleitorais, Tribunais e Juízes Militares e os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.
Importante notar que o sistema judiciário brasileiro é complexo, podendo ser dividido conforme o tipo de atuação de cada um de seus órgãos integrantes. Quanto à defesa dos direitos subjetivos, incumbe aos Juízes e Tribunais julgar as pretensões deduzidas em Juízo conforme regras de competência originária e recursal estabelecidas nas Constituições Federal e Estaduais. Quanto à defesa da ordem jurídica, cabe aos Tribunais Superiores a defesa da ordem jurídica federal e ao Supremo Tribunal Federal a defesa da Constituição Federal. Existe também a divisão dos tribunais segundo a matéria geral ou especial. Então, temos a jurisdição comum exercida pelos tribunais e juízes federais, bem como tribunais e juízes estaduais; e a jurisdição especial exercida pelos tribunais e juízes do trabalho, pelos tribunais e juízes eleitorais e pelos tribunais e juízes militares.
Quanto aos Estados-Membros da Federação brasileira, a Constituição Federal garante a eles a prerrogativa de organizar sua Justiça, observados os princípios nela estabelecidos.
O Poder Judiciário nacional está inserido no atual modelo de Estado gestor ou prestador de serviços. Por conta disto, As palavras correntes no serviço público brasileiro são planejamento estratégico, metas e resultados.
O foco da atuação judiciária deslocou-se signifi cativamente. Fala-se em controle quantitativo e qualitativo do trabalho exercido pelos agentes e órgãos deste Poder. Quanto se fala em controle de produção objetiva-se atender os interesses do usuário segundo as várias dimensões da cidadania: política, econômica e social. Politicamente, o cidadão é considerado como participante da esfera pública, vez que detém parcela do poder materializado na confi guração institucional do Estado. Sob o aspecto econômico, o cidadão é considerado como usuário e consumidor do serviço judiciário. Na dimensão social, ele participa de um jogo dialético entre expectativas de interesses, devendo prevalecer atitudes de entendimento em função do bem comum.
Este modelo de gestão permite ao cidadão participar ativamente do controle das atividades do Estado. Para tanto são organizados serviços de atendimento do usuário e de fi scalização dos atos dos gestores públicos. Duas obrigações principais são cobradas dos agentes públicos: executar serviços de qualidade e prestar contas de seus atos.
O cidadão, como usuário do sistema, participa ativamente no funcionamento desta nova esfera pública. Uma atitude objetivante em relação ao cidadão não condiz com o modelo democrático, participativo e deliberativo em construção. A participação dele no processo eleitoral, objetivamente considerado com um número em seu título de eleitor e estatística no sufrágio universal, não condiz mais com o seu novo status de cidadania. Considerado efetivamente como sujeito de direito e participante do processo democrático, sua autoestima e sentido de pertencimento gera um ciclo constante de comunicação e participação, estabilizando o sistema social como um todo.
Neste contexto de ampliação do conceito de cidadania, transcorreu no Brasil um forte processo de reformas estruturais, normativas e culturais do Estado (1990-2004). Duas Emendas Constitucionais são importantes neste processo de reformas. Em um primeiro momento, a Emenda 19 que tratou da reforma do Estado – Administração. Em um segundo momento, a Emenda 45 que regulamentou a reforma do Poder Judiciário. Em ambas as emendas constitucionais, o que chama a atenção são: compromisso com a efi ciência do serviço público; abertura sistêmica para a participação do cidadão na qualidade de usuário e consumidor dos serviços públicos prestados.
No Poder Judiciário, foi criado o Conselho Nacional de Justiça dotado de competência para implantar uma nova cultura jurídica focada na efi ciência e na razoável duração dos processos.
Paradoxalmente, o Conselho Nacional de Justiça é concebido como órgão de controle externo do Poder Judiciário. No entanto, recebe status constitucional de Órgão do Poder a quem deve controlar. Pode-se indagar sobre a imparcialidade e efi ciência deste sistema de controle institucional. O que se percebe é que a externalidade do Conselho Nacional de Justiça é determinada por sua composição. Os membros do Conselho Nacional de Justiça são nomeados para exercício temporário dos seus mandatos. Os Conselheiros têm as mais variadas origens na seguinte proporção: magistrados de carreira (09), membro do Ministério Público (02), membros da Ordem dos Advogados do Brasil (02) e cidadãos (02). Percebe-se que, majoritariamente, o CNJ é composto por membros do Poder Judiciário na proporção de 60%, o que demonstra força interna da magistratura e fragilidade externa da sociedade diante do modelo institucional deliberativo deste Conselho de Justiça. Considerando a comunicação estratégica exercida pelas Associações de Magistrados e o número majoritário de membros do Poder Judiciário na composição do CNJ é possível inferir se realmente estamos diante de um órgão de controle externo e o quanto este órgão está disposto a dialogar com a sociedade segundo o modelo de ação comunicativa voltado para entendimento e consenso. A dúvida que se coloca é saber se o CNJ não funcionaria como um órgão de seletividade das irritações do meio ambiente, fechando-se operacionalmente para adequar-se às suas próprias necessidades e próprios interesses corporativos. Esta dúvida torna-se mais contundente ao vermos que o CNJ adotou o programa Justiça em Números, focado no controle quantitativo do trabalho judiciário, com base em dados estatísticos fornecidos pelas unidades que integram o sistema. O CNJ possui um canal de comunicação midiático através da Imprensa privada e estatal onde veicula programas e projetos nos quais dá visibilidade de sua compreensão do que seja inclusão social e acesso à Justiça. Daí surge mais uma questão: saber o quanto a participação do cidadão infl uiu nas políticas públicas adotadas pelo Poder Judiciário e se estas políticas realmente são o resultado de um processo de comunicação sincero.
Feitas estas ressalvas, é importante considerar que o Conselho Nacional de Justiça vem colaborando, de alguma forma, com a modifi cação do modelo jurídico brasileiro, através de planejamento estratégico nacional e alinhamento dos procedimentos de atuação das unidades judiciárias.
Através de uma interpretação teleológica e sistemática dos artigos 37 e 103-B, notase que foram criados vários canais de comunicação direta com o usuário, dentre eles as Corregedorias e as Ouvidorias. A diferença fundamental entre elas é que a Corregedoria possui função fi scalizadora e sancionadora. A Ouvidoria, por sua vez, tem como função atuar na defesa do cidadão, sem caráter decisório. Trata-se de verdadeiro canal de comunicação participativa, onde a opinião do cidadão é, em tese, considerada para melhoria e aperfeiçoamento do serviço judiciário.
O Conselho Nacional de Justiça detém competência para controlar a gestão administrativa e fi nanceira do Poder Judiciário, bem como controlar o desempenho funcional dos juízes. Esta mudança estrutural no sistema judiciário vem produzindo importantes modifi cações na sua cultura organizacional. Nota-se uma gradual aproximação entre este Poder e os cidadãos. Percebe-se também que a modernização da linguagem jurídica despida de termos técnicos de difícil compreensão, até mesmo para os profi ssionais do Direito, facilita este processo de comunicação. Se o princípio básico da comunicação é a compreensão do argumento dos interlocutores, a comunicação gerada por esta abertura institucional, através das Ouvidorias, facilita o processo de inclusão social, acesso ao Poder Judiciário, bem como o exercício da cidadania participativa.
Note-se que uma das atribuições do Conselho Nacional de Justiça é zelar pela observância dos princípios e regras contidas no artigo 37 da Constituição Federal, apreciando de ofício ou mediante provocação a legalidade dos atos administrativos praticados por agentes do Poder Judiciário. Além disto, este Conselho recebe e conhece de reclamações contra integrantes deste Poder estatal, inclusive contra os serviços auxiliares que exercem atividades próprias e outras por delegação.
Ana Paula Paes de Paula (2009) apresenta-nos o conceito de “Administração Pública Societal”. O novo perfi l do gestor público está inserido no modelo de desenvolvimento fundamentado na democracia participativa e deliberativa como proposta por Habermas em várias de suas obras.
Para ela, vem ocorrendo a “reinvenção político-institucional e a renovação do perfi l dos Administradores Públicos” (2009, pg. 153).
Para a autora, “Consolida-se assim a visão que orienta o discurso da vertente societal: a reforma do Estado não é somente uma questão administrativa e gerencial, mas sim um projeto político” (2009, pg. 155).
Ana Paula salienta que a vertente societal no Brasil ganhou espaço com os movimentos sociais para a redemocratização ocorridos nos anos 80. “Naquela época começavam a surgir as primeiras experiências que tentaram romper com a forma centralizada e autoritária de exercício do poder público” (2009, pg. 154). Percebe-se que a vertente societal tem como eixo temático a participação social no funcionamento da esfera pública.
As novas demandas sociais partiam de atores sociais que se organizavam na busca de maior participação e fortalecimento da cidadania. Participaram deste processo de mudança estrutural da esfera pública brasileira atores sociais como: movimentos populares, sindicatos, pastorais, partidos políticos, organizações não governamentais, setores acadêmicos, entidades profi ssionais e representativas como a Ordem dos Advogados do Brasil, Associação Brasileira de Imprensa e a Sociologia Brasileira para o Progresso da Ciência. Apesar de heterogêneo, ou graças à esta heterogeneidade, os movimentos sociais reivindicavam o fortalecimento do papel da sociedade civil na condução da vida política no país.
A autora recupera o pensamento de Tarso Genro, então Ministro da Justiça do Governo Lula:
A partir de uma nova relação Estado - Sociedade, que o abra a estas organizações sociais (à participação do cidadão isolado), particularmente àquelas que são autoorganizadas pelos excluídos de todos os matizes, admitindo a tensão política como método decisório e dissolvendo o autoritarismo do Estado tradicional, sob pressão da sociedade organizada (2009, pg. 156).
Para Ana Paula ocorreu uma pressão social na defesa de uma “esfera pública não-estatal’ na qual se inserem “espaços públicos deliberativos”. Novamente ela recorre ao pensamento de Tarso Genro a respeito desta nova esfera pública como um espaço:
No qual é possível organizar uma esfera pública para disputas e consensos – uma esfera pública organizada por lei, ou por contrato, ou por ambos – para articular a representação política tradicional com a presença direta e voluntária da cidadania. Um espaço que propicie a politização da cidadania, à medida que reduza sua fragmentação, integrando demandas setoriais da cena pública (2009, pg. 156).
Eis como Ana Paula desenvolve sua percepção sobre a esfera pública não-estatal:
O conceito de esfera pública não-estatal aqui representado envolve a elaboração de novos formatos institucionais que possibilitem a co-gestão e a participação dos cidadãos nas decisões públicas. Nesse processo, as políticas e ações governamentais conferem identidade aos envolvidos, alteram o quotidiano da cidade e interferem na compreensão de sua cidadania. Aqui se destacam a ação dos governos locais e a construção de novos canais de participação[...] (2009, pg. 156).
Em sua análise societal, Ana Paula diz que, com uma concepção participativa e deliberativa de democracia e gestão social, “busca-se criar organizações administrativas efetivas, permeáveis à participação popular e com autonomia para operar em favor do interesse público” (2009, pg.159). Este modelo de gestão social procura alimentar-se de diferentes canais de participação, como destacado por Tenório (1998):
Contrapõe-se à gestão estratégica na medida em que tenta substituir a gestão tecnoburocrática, monológica, por um gerenciamento mais participativo, dialógico, no qual o processo decisório é exercido por meio de diferentes sujeitos sociais (2009, pg. 159).
O que se nota é a emergência de uma concepção de democracia que transcende a instrumentalidade, abrangendo a dimensão sociopolítica da gestão pública.
Os argumentos até aqui apresentados por Ana Paula e autores por ela citados, remetem à construção teórica de Habermas sobre esfera pública e agir comunicativo. Para demonstrar esta convergência teórica, a autora apresenta um relato sobre o desenvolvimento da visão participativa da democracia desde os anos 60 época em que imperava a polarização política mundial:
A visão participativa da democracia, que emergiu nos anos 1960, vem sendo atualizada pela concepção de democracia deliberativa, que se fundamenta principalmente nas contribuições mais recentes de Habermas à teoria política, com destaque para a teoria da ação comunicativa e o conceito de esfera pública. Baseando-se nas idéias de Habermas e outros autores, Lüchmann conclui que a democracia deliberativa é um modelo ou processo que incorpora a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva por meio da deliberação política (2009, pg. 160).
O estudo apresentado evidencia que a Reforma do Estado brasileiro vem ocorrendo de forma progressiva fundamentada em vários referenciais teóricos, com destaque para A Mudança Estrutural da ESFERA PÚBLICA e Consciência Moral e Agir Comunicativo de Jürgen Habermas.
SISTEMA NACIONAL DE OUVIDORIAS
Antes de analisarmos o sistema nacional de ouvidorias, devemos abordar alguns aspectos sobre o que é uma ouvidoria e quem é o seu principal agente: o ouvidor.
A ouvidoria tem a função de defender os interesses do cidadão em face da instituição à qual está vinculada, porém com atuação funcional autônoma.
Trata-se de um canal de comunicação do cidadão com instituições, fortalecendo o sentido de participação dos concernidos. Esta comunicação direta com o usuário (consumidor e cidadão) é importante para melhorar a imagem institucional e dar visibilidade quanto ao processo de aprimoramento dos serviços prestados. Através da ouvidoria, a instituição tem a oportunidade de transformar reclamações em oportunidades de melhoria. A ouvidoria não se confunde com a Corregedoria, Call Center e SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor).
Os objetivos de uma ouvidoria são: atender melhor os usuários; preservar e melhorar a imagem pública da instituição; reduzir a exposição a litígios com os consumidores e usuários; promover a defesa da cidadania; assimilar críticas e sugestões (aprimorar processos, produtos e serviços; melhorar a comunicação interna e externa e manter o foco da instituição.
Considerando que a ouvidoria lida diretamente com o processo de comunicação interna e externa, pode-se intuir sobre a responsabilidade ética e moral de seus integrantes. Uma ouvidoria bem estruturada funciona de forma efi ciente quando existe um grau de comprometimento sincero na defesa da cidadania, no atendimento das expectativas dos usuários e no aprimoramento dos serviços judiciários.
Feita esta abordagem inicial, passemos à análise do sistema nacional de ouvidorias estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça.
Diante do novo modelo estrutural da esfera pública, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 103, de 24 de fevereiro de 2010, dispondo sobre as atribuições da Ouvidoria do CNJ e determinando a criação de ouvidorias no âmbito dos Tribunais.
Alguns pontos foram considerados para fundamentar a criação deste sistema de ouvidorias judiciárias. Em primeiro lugar, a necessidade de regulamentar as atribuições da Ouvidoria do CNJ, instituída pelo artigo 41 do seu Regimento Interno.
Em segundo lugar, foram consideradas as informações levantadas sobre a inexistência de ouvidorias nos Tribunais. Diante deste cenário, mostrava-se necessário criar um mecanismo de comunicação entre os cidadãos e os órgãos do Poder Judiciário.
Considerou-se também a necessidade de integração das Ouvidorias Judiciais, permitindo a permuta de informações necessárias ao atendimento das demandas dos usuários como fator de aperfeiçoamento dos serviços judiciais prestados.
A missão institucional da Ouvidoria do CNJ é servir como canal de comunicação direta entre o cidadão e o CNJ com o propósito de orientar, transmitir informações e colaborar no aprimoramento das atividades desenvolvidas pelos órgãos do Poder Judiciário.
Função importante para o funcionamento do sistema é exercida pelo Ouvidor, Conselheiro eleito pela maioria do Plenário, juntamente com os seus substitutos. O Ouvidor pode baixar regras complementares de procedimentos internos respeitando os limites normativos de sua função.
Cabe à Ouvidoria do Conselho Nacional de Justiça receber consultas, diligenciar junto aos setores administrativos competentes e prestar informações e esclarecimentos sobre atos, programas e projetos do Conselho Nacional de Justiça. Além disto, ela recebe informações, sugestões, reclamações, denúncias, críticas e elogios sobre as atividades do Conselho. Depois encaminha tais manifestações aos setores administrativos competentes, mantendo o interessado sempre informado sobre as providências adotadas.
É importante considerar que a Ouvidoria promove a interação com os órgãos que integram o Conselho e com os demais órgãos do Poder Judiciário visando o atendimento das demandas recebidas e o aperfeiçoamento dos serviços prestados.
A Ouvidoria do CNJ também sugere medidas administrativas com o propósito de desenvolver o aperfeiçoamento na prestação de serviços com base nas informações, reclamações, denúncias, críticas e elogios recebidos dos usuários. Além disto, promove a integração entre as Ouvidorias Judiciais com o propósito de implementar um sistema nacional que permita a troca de informações necessárias para melhorar o atendimento das demandas sobre os serviços prestados.
Possuindo estrutura permanente e autonomia funcional, a Ouvidoria organiza o atendimento aos usuários, acompanhando e orientando o atendimento das demandas recebidas. Colaborando com a função de controle das atividades judiciárias, elabora estatística e relatórios para monitoramento das disfunções sistêmicas percebidas pelos usuários.
A Ouvidoria é um canal de acesso do cidadão que pode ser utilizado pessoalmente ou por carta, ligação telefônica ou por meio de formulário eletrônico. Considerando a noção ética e moral da comunicação sincera com o cidadão e as repercussões internas nos sistema judiciário, não são aceitas manifestações anônimas, conforme disposto no artigo 5º da CRFB.
Quando o cidadão acessa este canal de comunicação, a Ouvidoria solicita informações às unidades judiciárias envolvidas na questão estabelecendo um prazo para a resposta. Todo o procedimento é monitorado pela Ouvidoria que mantém o usuário ciente do andamento de sua solicitação.
O que se percebe é que através da ouvidoria o cidadão se aproxima do sistema judiciário exercendo o que se denomina cidadania ativa. O sistema nacional de ouvidoria judiciária facilita a comunicação do usuário com a instituição e, com isto, permite a ampliação das formas de exercício da cidadania ativa e participativa.
CONCLUSÃO
Os princípios e os fundamentos do Estado Democrático de Direito estabelecidos na Constituição Federal de 1988 orientam a atuação das instituições estatais segundo noções de moralidade, legalidade, efi ciência e impessoalidade. Diante do leque de direitos fundamentais inseridos na Constituição, o Estado viu-se diante da necessidade de constante aprimoramento dos serviços prestados a um consumidor – cidadão cada vez mais exigente e participativo. Logo, mudanças estruturais na esfera pública deviam ser implementadas, como é o caso da criação do Conselho Nacional de Justiça.
A proposta do Conselho Nacional de Justiça é ampliar o controle administrativo e fi nanceiro do Poder Judiciário, bem como dos atos praticados pelos juízes no exercício da jurisdição. Esta mudança estrutural vem ocorrendo de forma ampla desde o estabelecimento de metas e resultados até o estabelecimento de um sistema de controle e ensino continuado que modifi quem a cultura organizacional, preparando os integrantes do Poder Judiciário para o exercício de uma racionalidade argumentativa disposta a ouvir a opinião sincera dos cidadãos. Para isto, foi criado o sistema nacional de ouvidorias judiciais, tendo como ponto central a ouvidoria do Conselho Nacional de Justiça.
As ouvidorias funcionam como canal de comunicação recebendo as impressões dos cidadãos e, com isto, promovendo modifi cações internas para melhoria da prestação de serviços e da imagem institucional. O tratamento objetivante do cidadão, antes catalogado através de um código numérico no seu título de eleitor, cede vez para um tratamento conforme o princípio da dignidade da pessoa humana. Esta relação comunicativa onde deve prevalecer. O diálogo de entendimento em busca de consensos amplifi ca o potencial transformador da democracia participativa.
Foi destacada a percepção de que o Estado brasileiro, na pessoa de autoridades governamentais, vem adotando um modelo de gestão participativa inspirado em conceitos e categorias idealizados e desenvolvidos por Jürgen Habermas em Mudança Estrutural da ESFERA PÚBLICA e Consciência Moral e Agir Comunicativo. A importância da obra de Habermas na mudança estrutural do Estado Brasileiro transcende os limites do debate acadêmico para se materializar em políticas públicas de inclusão social e transformação das instituições em sua estrutura, funcionamento e cultura organizacional. Este processo de transformação somente é possível porque há nítido comprometimento de parte signifi cativa dos gestores públicos com este projeto de comunicação e argumentação em busca do entendimento. Sem dúvida, as pressões exercidas por entidades civis como sindicatos, universidades, artistas, OAB, ABI, SBPC, organizações não governamentais, igrejas e cidadãos compeliram o Estado e seus agentes a adotarem uma postura mais aberta e permeável, na qual a função de ouvir as demandas do cidadão passa a fazer parte do catálogo dos seus deveres funcionais.
Ganham todos com este modelo de gestão participativa, porque a Ordem Social e Democrática requer a participação ativa de todos os concernidos em condições de igualdade de comunicação. O acesso à comunicação direta com o Poder Judiciário torna mais transparente o exercício das funções judiciárias na direção de um ideal maior da democracia: igualdade, fraternidade, liberdade e solidariedade. A conjunção de todos os esforços na busca da comunicação efi ciente e sincera talvez nos conduza a um caminho que nos leve ao verdadeiro ideal de Justiça.
A doutrina nacional referenciada indica não somente o acolhimento teórico das categorias e conceitos apresentados por Jürgen Habermas como a utilização práticas destes elementos na efetivação de políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro como dito por Tarso Genro, então ministro da Justiça do Governo Lula.
A análise de conceitos e categorias apresentados por Jürgen Habermas em Mudança Estrutural da ESFERA PÚBLICA vem servindo de suporte teórico para o desenvolvimento de nossa dissertação de mestrado, na qual procuramos investigar a estrutura e o funcionamento da Ouvidoria Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.
Adotamos Jürgen Habermas como referencial teórico por considerarmos a importância social da construção de espaços públicos participativos e deliberativos, ampliando a noção de pertinência social do cidadão.
A Ouvidoria do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região vem colaborando de forma imparcial para que a pesquisa seja desenvolvida no ambiente interno e externo da instituição. A impressão até agora registrada é de que um sistema como este apresenta fortes elementos que comprovam a aplicação prática da Teoria habermasiana.
A construção deste espaço público de acesso do cidadão ao Tribunal Regional do Trabalho vem permitindo que os gestores identifi quem falhas no sistema, sugerindo soluções às unidades judiciárias que são objeto de intervenção da Ouvidoria. Tem-se notado que a Ouvidoria mantém uma comunicação com o usuário do sistema, atualizando informações sobre o andamento de suas reclamações e sugestões. Outra característica notada é que as pessoas que integram a Ouvidoria e o Ouvidor demonstram comprometimento com a sinceridade da comunicação nos atos de fala. Este comprometimento é percebido também na conduta das pessoas que até o momento não apresentaram contradições performáticas. Com estas observações, nota-se que há um ambiente propício para fortalecer o princípio da confi ança necessário para que a comunicação atinja o seu objetivo no sentido habermasiano: construção de uma esfera pública inclusiva, participativa e deliberativa, onde prevaleça atos de entendimento e fortalecimento da coesão social.
REFERÊNCIAS
CENTURIÃO, Alberto. Ombudsman: a face da empresa cidadã: como e porque instalar uma Ouvidoria. São Paulo: Educator, 2003.
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
PAULA, Ana Paula Paes de. Por uma nova gestão pública: limites e potencialidades da experiência contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
VISMONA, Edison Luiz. A ouvidoria brasileira: dez anos da Associação Brasileira de Ouvidores/ Ombudsman / Edson Luiz Vismona (org.). São Paulo: Imprensa Ofi cial do Estado de São Paulo: Associação Brasileira de Ouvidores Ombudsman, 2005.
CAPÍTULO II
José Antonio Callegari
INTRODUÇÃO
Nosso trabalho tem como propósito investigar as Ouvidorias como canal de comunicação e controle social das instituições. Tomamos como referência a progressiva consolidação do Estado Republicano brasileiro a partir dos anos 1990. Neste período, assistimos várias reformas constitucionais com o propósito de tornar a Administração Pública transparente, acessível e responsável pelos seus atos. Neste contexto, vários mecanismos de controle social e accountability foram sendo criados, democratizando a relação entre Estado e Cidadão. Intuímos, com isto, que as Ouvidorias poderiam integrar este sistema de controle social potencializando a voz do cidadão nas instituições. Como pontes comunicativas, elas cumpririam o papel de mediar solução de conflitos pela via comunicativa (Habermas, 2003).
Para alcançar nosso objetivo, procuramos analisar documentos e sites de organizações públicas e privadas. Realizamos algumas visitas à Ouvidoria do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, na cidade do Rio de Janeiro, e participamos da 1ª Jornada - Ouvidores e Ouvidorias Públicas do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre. Apesar destas investidas no campo, focamos nosso trabalho nos canais de acesso disponíveis ao cidadão na internet. Com isto, pensamos observar as Ouvidorias com a mesma expectativa dos usuários do sistema coletando informações mais próximas da realidade.
DESENVOLVIMENTO
A comunicação que apresentamos é um pequeno relatório de nossa tese de mestrado defendida no Programa de Pós – Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. Nosso esforço de pesquisa concentrou-se em torno do binômio: comunicação e controle social das instituições.
Assim, mergulhamos em um ambiente dinâmico e mutante. As Ouvidorias estão no olho do furacão. Integram as organizações públicas e privadas em um momento histórico único. Vivemos a era da comunicação e da interatividade; época em que a informação é produto, meio, fim e também um direito de cidadania participativa. A tecnologia informacional impõe mudanças constantes não somente no procedimento das pessoas e organizações como também nos códigos linguísticos que se misturam e se confundem muitas das vezes. Não mais sabemos os limites das línguas culta e coloquial. Expressões criadas em redes sociais passam a integrar o léxico de autoridades e instituições oficiais. Neste caldeirão cultural efervescente, as Ouvidorias surgem como pontes comunicativas com a missão de facilitar diálogos e restaurar vínculos sociais.
Em tal contexto, lidam com problemas tradicionais e recorrentes que se perpetuam em organizações públicas operacionalmente fechadas. O choque de gerações, por exemplo, chegou ao ambiente corporativo. Encontramos pessoas acostumadas a lidar com o papel, arquivamento de documentos em pastas físicas, carimbos. Enfim trabalho manufaturado. Outros tiveram contato com as tecnologias ao longo de sua existência pessoal. Com esforço, fazem cursos de atualização, lutando contra as dificuldades para conciliar a cultura manufatureira e a cultura informacional. A geração high tech, por sua vez, nasceu neste ambiente virtual, transitando nele com enorme desenvoltura.
A transição entre o tradicional e o moderno pode ser comparada a um parto de antigamente com todo o seu ritual. No quarto, ficava a mãe com uma legião de mulheres sob a direção da parteira, num entra e sai com bacia e panos, transpiração, suspiros e ansiedade, até o momento em que se ouvia o choro agudo de um bebê ou o silêncio cruel de um natimorto. A geração atual, todavia, nasce em quarto de hospital. O parto é monitorado por computadores. O pai assiste ao evento com máquina fotográfica, filmadora e celular. A criança nasce despida de tudo, pois a intimidade do parto logo está nas redes sociais circulando o universo comunicativo que inclui parentes, amigos e uma legião de seguidores desconhecidos. O parto de uma criança nos dias de hoje é algo público, transparente, compartilhado. O trabalho do médico e de seus assistentes é monitorado on time. Não existe mais aquele entra e sai das parteiras e o parto em si não é mais assunto de adultos, reservado, tratado com poucas e inaudíveis palavras em cômodos recolhidos da casa. Mas, qual a relação entre este evento social e o nosso trabalho?
Bem, podemos dizer que a Ouvidoria e os demais canais de comunicação e controle social das instituições ingressam na vida das organizações com a promessa de satisfazer o anseio popular de participação nos eventos políticos dos quais nascem políticas públicas que afetam suas vidas. Os legisladores e os gestores estatais não são mais “parteiros” que tratam da coisa pública com a reserva própria dos “partos sociais” de antigamente. O “parto social” é cada vez mais público, transparente, compartilhado. Não se justifica mais o sigilo e a confidencialidade que marcam a história administrativa brasileira. A esfera pública estatal é uma “sala de parto” publicizada, monitorada eletronicamente, e os eventos que nela ocorrem logo estão nas redes sociais compartilhadas. Neste contexto, as Ouvidorias atuam como pontes comunicativas, ligando o mundo exterior e o mundo interior dos subsistemas sociais como canal que potencializa a participação do cidadão na formulação, acompanhamento e execução de políticas públicas.
Estabelecidas estas premissas, procuramos desenvolver nossos argumentos, partindo de uma base teórica para chegarmos à descrição final do funcionamento de algumas Ouvidorias de Justiça. Desta forma, estabelecemos as bases de nossa investigação. Durante as leituras preliminares, percebemos um esforço de modernização do Estado brasileiro cujas estruturas guardavam traços patrimonialistas herdados do período colonial. Para interpretar algumas estruturas do Estado, julgamos conveniente dialogar com Max Weber, pioneiro que analisou a burocracia e as formas tradicionais de dominação social.
Com Weber, notamos que a gestão patrimonialista apresenta alto grau de corrupção e nepotismo. Para combater estas disfunções sociais, vão surgindo entidades públicas e privadas que monitoram as condutas dos gestores públicos. A demanda social por transparência e moralidade pública impõe mudanças de conduta, de procedimentos, de estruturas e de bases normativas. Cada vez mais, fecha-se o cerco em torno daqueles que gerenciam a máquina pública. Somando-se a isto, a tecnologia de informação facilita o acesso das pessoas aos bancos de dados e às práticas administrativas que não conseguem mais ocultar-se por trás de procedimentos e rituais administrativos opacos.
A irracionalidade administrativa é combatida com requintes de sofisticação. Há um movimento de introdução de bases científicas na gestão pública. As universidades passam a desenvolver linhas de pesquisa com foco na transparência e eficiência do serviço público. Existe uma rede social que se fortalece progressivamente. Quanto mais transparência, mais participação social. Assim vamos chegando a um ponto em que as relações entre Estado X Cidadão podem se tornar mais democráticas. A organização burocrática tende, com isto, a ganhar um novo sentido, desde que se tomem alguns cuidados. Em se falando de controle da Administração Pública, é preciso dosar bem a pílula para que não fiquemos aprisionados em jaulas de ferro weberianas, onde se perdem as noções de meio e fim. O excesso de controle pode prejudicar a eficiência do serviço público, pois o temor da censura e o incômodo do monitoramento invasivo tende a levar o indivíduo para a inação. Se todo erro for punido objetivamente, é melhor não errar. Diante do risco da sanção, é possível que se desenvolva uma lógica de defesa perversa: erra menos quem trabalha menos, quem se expõe menos ao risco. Onde ficaria a criatividade e a espontaneidade na prestação de serviço, quando qualquer desvio procedimental pode implicar sanção e expiação pública? Tudo parece estar interligado em uma rede sistêmica de grandes proporções.
Desta forma, em nossas observações, identificamos a recorrência de termos como: sistema, gestão e controle. Nos dias de hoje, sistema é um termo utilizado com vários significados: sistema social, sistema de informática, sistema de ouvidorias, sistema judiciário, etc. Assim, consideramos pertinente dialogar com Niklas Luhmann em razão de seus profundos estudos sobre o funcionamento do sistema social. Em sua Teoria Social, interessam-nos elementos como abertura cognitiva, comunicação e linguagem.
Luhmann concebe os sistemas como um tipo de organização diferenciada do seu meio ambiente. Isto não implica isolamento. Ao contrário, os sistemas se comunicam com o meio através de canais de abertura cognitiva. Recebem as manifestações externas graças aos sucessivos acoplamentos estruturais que se estabelecem por meio da comunicação, funcionando com códigos linguísticos próprios do tipo binomial.
Neste aspecto, as Ouvidorias podem atuar como estruturas comunicativas. Através delas, ocorreriam acoplamentos estruturais; e por elas ingressariam manifestações do meio ambiente que seriam processadas internamente conforme o funcionamento de cada sistema. O material de trabalho das Ouvidorias é a comunicação veiculada através da linguagem. O propósito delas, no entanto, não é
somente receber inputs do meio ambiente. Elas também recebem manifestações do público interno.
Notamos também que a doutrina especializada em Ouvidorias frequentemente cita Habermas para caracteriza-las como mecanismo de ativação da cidadania participativa. Também os teóricos que tratam da Nova Administração Pública fazem referência explícita a ele. Sustentam que os mecanismos de controle social integram a pauta de democratização das relações entre Estado X Cidadão. Neste sentido, procuramos analisá-las sob a ótica da ação comunicativa e mudança estrutural da esfera pública, integradas em um sistema social democrático onde o Direito exerce função mediadora entre os demais subsistemas sociais. Exercendo a crítica interna das organizações e facilitando o diálogo social, os especialistas no tema consideram-nas como instâncias de mediação e resolução consensual de conflitos.
Estabelecidas tais premissas teóricas, traçamos uma linha do tempo analisando o papel da Ouvidoria colonial e da Ouvidoria republicana. Há uma razão para isto. Atualmente, fala-se muito em ombudsman e defensor del pueblo como paradigmas da Ouvidoria brasileira. Diante disto, não podemos avançar a pesquisa sem considerar a importância da Ouvidoria no Brasil colônia expondo pontos de contato e afastamento em relação ao seu paradigma republicano. Para marcar bem que são coisas distintas, identificamos cada uma com um adjetivo cuja função é situá-las no tempo conforme a estrutura política de suas épocas, desta forma: Ouvidoria colonial e Ouvidoria republicana.
A Ouvidoria colonial atuou em um ambiente tipicamente patrimonialista. Um tipo de sociedade arcaica em transição. Os arranjos políticos que se estabeleciam entre Ouvidores e as elites locais, desviando a finalidade de sua atividade de controle em nome do Rei, bem demonstram o tipo de dominação e os vícios que imperavam na época. Na sociedade colonial não havia uma nítida separação entre o público e o privado. Neste ponto, julgamos apropriada a leitura de Habermas. A sociedade colonial, pois, representava o estágio inicial do desenvolvimento da sociedade brasileira e da progressiva consolidação do Estado republicano.
Da Ouvidoria colonial, regida pelas Ordenações portuguesas, passamos a analisar outros canais de comunicação e controle administrativo nas Constituições brasileiras. Ao examinarmos os textos constitucionais do Império à República, percebemos a progressiva consolidação do Estado republicano e o incremento de canais de controle social ao longo do tempo, como suposto em nossa hipótese de trabalho. No texto da Constituição de 1988, vamos encontrar uma linguagem jurídica focada na valorização da pessoa humana e nos valores do Estado Democrático de Direito. Ela marca um território de cidadania participativa, no qual as instituições vão se abrindo progressivamente às demandas sociais. Não basta ser uma democracia representativa. Deveríamos ir mais além, formatando um modelo participativo de organização política. Desta forma, o anseio por informação e transparência pública pressionaram as instituições neste movimento de abertura cognitiva e aperfeiçoamento dos serviços públicos prestados ao cidadão.
Se as técnicas administrativa e jurídica contribuem para o funcionamento científico dos subsistemas sociais, objetivamente considerados; não podemos negar que a participação social e a construção de espaços públicos democráticos e aces síveis devem considerar as subjetividades com todas as suas diferenças, naquilo que Marcelo Mello (2012) em outro contexto denominou transações de intersubjetividades. A esta altura, parece-nos justificável supor pontos de contato entre algumas categorias utilizadas por Habermas e Luhmann, até porque ambos partem da escola teórica de Talcott Parsons que baseia suas investigações na ação social, que por sua vez nos remete a Max Weber e seu esforço pioneiro de compreensão da ação social e das formas tradicionais de dominação.
No bojo da Constituição de 1988, tivemos contato com as bases normativas da Reforma Administrativa que instalou o modelo de gestão gerencial; modelo este que vem se multiplicando na Administração Pública em todas as esferas de Poder. Além do modelo gerencial defendido por Bresser Pereira, observamos outra forma de gestão pública: modelo societal. Através de um estudo crítico minucioso, De Paula (2005) nos apresentou cada um deles como paradigmas empregados respectivamente nos Governos Cardoso e Lula.
Ao modificar os paradigmas da Administração Pública brasileira, procurou-se implementar vários canais de participação e controle social. Foram criadas agências reguladoras e outros mecanismos de controle e accountability. Bresser Pereira (2006) faz referência expressa ao ombudsman. Em várias ocasiões, ombudsman e Ouvidorias são empregados como sinônimos, apesar das diferenças marcantes entre eles.
Verificamos também que as Ouvidorias republicanas começam a ser integradas nas organizações privadas e públicas, antes mesmo da Reforma Administrativa ou do Poder Judiciário que lhe sucedeu. Este movimento de criação de espaços públicos de cidadania ocorreu da periferia para o centro, de baixo para cima; ou seja, partiu de fora das estruturas tradicionais de controle do serviço público. Em face de sua crescente popularidade, tais canais de comunicação social foram sendo integrados às estruturas oficiais do Estado. A consolidação do Estado republicano ocorria em paralelo com a crescente conscientização dos cidadãos quanto aos seus deveres e direitos. A participação popular na esfera pública ganhava contornos de direito cívico e dever de cidadania.
Neste ritmo, pela primeira vez a Constituição vai tratar do tema ao prescrever a criação de Ouvidorias de Justiça (EC 45/04). Neste ponto, podemos descrever o processo de criação das Ouvidorias, comparando-as com institutos afins. Considerando que elas podem integrar um leque de canais de comunicação e controle social que atuam como mecanismos de ativação da cidadania, julgamos pertinente abrir espaço para descrever alguns destes canais que surgiram entre nós no período de abertura institucional e consolidação do Estado Democrático de Direito.
Ao tratarmos dos trajetos e das percepções sobre Ouvidorias, fizemos uma descrição cronológica de alguns eventos que marcaram o seu processo de consolidação como instrumento de cidadania participativa e democratização das relações entre cidadãos e instituições. Analisando a opinião de especialistas, procuramos descrever as percepções de cada um deles destacando algumas características mais recorrentes.
Em seguida, procuramos descrever cada instituto afim ou assemelhado às Ouvidorias, sem deixar de inserir no texto alguma reflexão e crítica pontual. Observamos que se fala muito em Corregedoria e seu papel na correção de conduta dos Magistrados. A crônica diária dá conta de inúmeros embates travados no âmbito da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça. Considerando sua importância no subsistema judiciário nacional, iniciamos nossa análise por ela como órgão controlador, censor e decisório.
Resistências ao controle social demonstram que modernização do Estado é muito complexa. Na maioria dos casos, impera entre nós administrações centralizadas e centralizadoras, bem como gestores patrimonialistas que resistem a todo tipo de controle externo. Desta forma, corrupção e nepotismo são males que se perpetuam em que pese haver uma sofisticada rede de controle em construção. Neste aspecto, a Controladoria – Geral da União foi criada para aperfeiçoar o funcionamento da Administração Pública, melhorando sua estrutura e procedimentos. Aliado a este esforço de aperfeiçoamento, investe pesado na formação e qualificação dos servidores públicos. Apesar de garantir acesso ao cidadão e com ele se comunicar não se confunde com a Ouvidoria, tanto que possui sua própria Ouvidoria e um sistema interno de Ouvidorias do Poder Executivo Federal.
O Ministério Público é outro instituto que não se confunde com a Ouvidoria. Ao contrário dela, possui competências constitucionais figurando como instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado, cabendo a ele a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Possui legitimidade para agir em juízo, capacidade processual que não cabe à Ouvidoria.
O Serviço de Atendimento ao Consumidor tem um viés mercadológico acentuado. Atua na ponta do consumo e tem como objetivo monitorar as diversas fases da relação consumerista, procurando com isto identificar o perfil do consumidor, seu grau de satisfação, nichos de consumo, além de procurar fidelizar o cliente diante de um mercado altamente competitivo. Apesar da comunicação estabelecida com o cliente, não se confunde com a Ouvidoria porque ela tem atuação mais ampla atuando como crítico interno das instituições.
Dentre todos, o Defensor del Pueblo é o que mais se aproxima das Ouvidorias. No entanto, com elas não se confunde. Trata-se de instituto estrangeiro que atua na defesa dos cidadãos sem vincular-se a determinada organização pública ou privada. Ele normalmente está vinculado ao Parlamento, agindo fora das estruturas hierarquizadas onde normalmente atuam as Ouvidorias. Seu grau de autonomia não se reproduziu entre nós. Somente o Ministério Público goza de tamanha autonomia, mesmo que desvinculado do parlamento. Ainda assim, MP e Defensor del Pueblo igualmente não se confundem entre si, como será visto ao longo do capítulo terceiro.
Por fim, o Ombudsman é o instituto mais próximo das Ouvidorias brasileiras, atuando como crítico interno das Organizações. Por esta razão, alguns tratam deles como sinônimos. No entanto, sua descrição permitirá concluir que apesar de muito próximos também não se confundem.
Com a descrição de cada instituto, mais do que apresentar uma análise crítica de cada um deles, pretendemos demostrar que eles integram o processo de consolidação do Estado republicano brasileiro, à exceção do Defensor del Pueblo. Juntamente com as Ouvidorias, podem contribuir para democratizar as relações entre organizações e seu público, ativando a cidadania participativa e fortalecendo as bases do Estado Democrático de Direito.
No plano empírico, observamos o trabalho de algumas Ouvidorias de Justiça. A princípio, iríamos analisar a Ouvidoria do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro. Ao notarmos o grau de sofisticação da Ouvidoria – Geral da União, servindo de paradigma para a gestão publica nacional, procuramos estender nosso campo de observação. Haveria um salto injustificável se não considerássemos também a Ouvidoria do Conselho Nacional de Justiça. Isto porque ela funciona como o centro de um sistema nacional de Ouvidorias Judiciárias, no qual a Ouvidoria do TRT está interligada. Notamos também que o subsistema judiciário está organizado hierarquicamente em forma de pirâmide. Assim, mostrou-se conveniente e necessário descrever as Ouvidorias do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior do Trabalho, completando a linha ascendente que liga a Ouvidoria do TRT e todas as demais instâncias judiciárias superiores a ela.
Na ocasião, analisamos indicadores de desempenho da Ouvidoria do CNJ e da Ouvidoria do TRT do Rio de Janeiro. A leitura deles teve um propósito: confirmar que as Ouvidorias podem atuar como mecanismo de controle interno do subsistema administrativo.
Chegado a este ponto, supomos estabelecer uma linha progressiva de argumentação. Através dela, verificamos o funcionamento das Ouvidorias como canais de comunicação e controle social das instituições, facilitando o acesso do cidadão às informações de seu interesse. Integradas ao Estado, elas atuariam como mecanismos de ativação da cidadania e democratização das relações entre Estado e Cidadão. Tudo isto vem ocorrendo em um cenário de progressiva consolidação do Estado republicano, numa palavra: Estado Democrático de Direito.
CONCLUSÃO
Como procuramos demonstrar, existe um movimento de progressiva consolidação do Estado republicano no Brasil, no qual se institucionalizam mecanismos descentralizados de controle da Administração Pública.
A respeito da consolidação do Estado republicano, o estudo da Ouvidoria colonial contribuiu imensamente para desenvolvermos nosso trabalho. A descrição histórica apresentada por Mello (2009) permitiu-nos observar o surgimento de arranjos locais como forma embrionária dos movimentos de emancipação que viriam a seguir: proclamação da independência e proclamação da república. Mas, sejamos francos, nem uma e nem a outra provocaram considerável ruptura com o modelo de dominação patriarcal que herdamos do período colonial. No entanto, representaram os primeiros passos de um lento e progressivo movimento de transformação da sociedade brasileira, ainda em fase de consolidação.
Diante do que foi exposto, podemos intuir que a ruptura de paradigmas sociais não ocorre da noite para o dia. Em muitos casos, rupturas lentas e quase imperceptíveis produzem mais efeito do que transformações bruscas de grande impacto imediato. Até mesmo as revoluções, com todo o impacto destruidor (racional e irracional) que as acompanha, não ocorrem de imediato como pode supor a intensidade da força lançada contra o inimigo. A ruptura de um paradigma assemelha-se ao rompimento de um dique. Neste momento, percebemos a força da água furiosa demolindo estruturas com sua infantaria composta por uma turba de ondas gigantes que tudo leva e tudo destrói. Barulho e confusão que amedrontam diante do futuro incerto por vir.
A consolidação do Estado republicano brasileiro parece seguir a toada de uma revolução silenciosa de longa duração. Com o movimento brusco das águas, existem transformações sociais em forma de avulsão[1]. O caso brasileiro nos remete a outra imagem, se a metáfora permitir. A transformação da esfera pública em nosso país parece seguir o movimento lento, gradual e progressivo da aluvião[2]. Recordemos o mote da abertura política na década de 80: distensão lenta, gradual e progressiva. Alguma coisa em comum?
A leitura das Constituições brasileiras parece confirmar a hipótese. Em que pese os momentos de instabilidade política, o Brasil avançou no processo de consolidação de suas instituições democráticas. A luta contra o patrimonialismo está presente em cada reforma levada a cabo com o propósito de tornar a Administração Pública mais transparente, ofertando serviços mais eficientes ao cidadão. Neste sentido, devemos destacar as EC nº 19/98 e 45/04.
A EC 19/98 foi inspirada no modelo de gestão gerencial preconizado pelos teóricos da Nova Administração Pública. Mesmo aqueles que pretendiam implantar um modelo de gestão societal, como diagnosticado por De Paula (2009), não abandonaram os fundamentos da gestão empresarial do Estado.
As Constituições republicanas contêm de alguma forma mecanismos de controle da Administração Pública. Na década de 60, vamos encontrar um projeto de reforma administrativa do tipo gerencial, consolidada no Decreto-Lei 200/67. No entanto, o modelo gerencial será constitucionalizado através da EC 19/98. Bresser Pereira será o grande teórico e construtor dos argumentos para implantação do modelo gerencial na Administração Pública. Expressamente defenderá o modelo gerencial, a criação de mecanismos de controle social, accountability, e profissionalização dos servidores públicos. Havia nítido projeto de construção de um Estado republicano.
Até aqui consideramos verificada parte da hipótese sugerida. Resta saber se a consolidação do Estado republicano facilita o desenvolvimento de mecanismos de controle social das instituições. Ora, a criação de mecanismos de controle soa como consequência natural de um Estado desta natureza. Alguém poderia objetar dizendo que nos períodos colonial e imperial abundavam mecanismos de controle. A própria Inquisição não passava de um tipo de controle violento e supostamente eficiente. A objeção faz sentido. Onde há poder, há controle. Mas, o controle a que nos referimos é do tipo social e participativo. Talvez seja por esta natureza que Bresser Pereira vai recorrer a Weber e a Habermas para criticar os paradigmas a serem superados, enaltecendo os que estavam por vir.
Diga-se de passagem, que o controle social participativo, baseado no diálogo e na ocupação de espaços públicos de cidadania, necessita de um ambiente no qual estejam bem definidos os interesses públicos e privados, e o papel do Estado e da iniciativa privada restem bem delimitadas. Assim sendo, o Estado Democrático de Direito emerge como ambiente adequado para o desenvolvimento de mecanismos de controle social. Com exceção das Constituições de 1824, 1937 e 1969, as demais estabeleciam uma atmosfera democrática para o desenvolvimento destes mecanismos de controle. A Constituição de 1988 avançou mais ainda ao estabelecer tais mecanismos em seu texto: tribunais de contas, agências reguladoras, ouvidorias de justiça etc.
Se o Estado republicano contribuiu para o desenvolvimento do controle, podemos avançar e confirmar a hipótese de que as Ouvidorias integram estes mecanismos de participação social. O próprio Bresser Pereira afirma categoricamente que o ombudsman integra a estratégia de controle social. De Paula sinaliza na mesma direção. Pó e Abrucio (2006), expressamente fazem referência à Ouvidoria quando analisam a função das agências reguladoras. Nos sites consultados ela se apresenta ora como mecanismo de transparência e acesso à informação, ora como instrumento de controle e participação social.
Os mapas estatísticos consultados permitem ver claramente que as Ouvidorias recebem significativo número de manifestações de pessoas físicas e jurídicas, profissionais do direito e leigos. Os indicadores sugerem que elas podem atuar como instrumentos de ativação da cidadania participativa. Estaríamos diante de um ativismo cidadão, muitas vezes confundido como ativismo judicial. Isto porque, quando a cidadão dirige-se ao Estado, apresentando demanda que requer solução prática, nada mais faz do que ativar seu direito de participação na ordem social constituída. O Estado não pode negar a prestação prometida. No caso do Poder Judiciário, impera o princípio do non liquet[3]. Segundo ele, uma vez deduzida à pretensão o juiz tem o dever de pronunciar-se sobre ela. Neste caso, não teríamos um ativismo judicial como forma ilícita de usurpação da competência de outro Poder; estaríamos diante, isto sim, de um tipo específico de ativação da cidadania (ativismo cidadão).
Diante do exposto, a Ouvidoria estaria realmente contribuindo para democratizar a relação entre Estado e Cidadão, ativando a cidadania participativa? Para indicar que estamos diante de uma sentença verdadeira, basta consultar a página eletrônica da Ouvidoria do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Nela, encontramos a seguinte expressão: “Aqui trabalham pessoas que acreditam na democracia, na liberdade de expressão e no exercício da cidadania!”. (http://www.trt1.jus.br/web/guest/ouvidoria). O diálogo social que se estabelece entre instituições e cidadãos é naturalmente assimétrico. De um lado, temos grandes corporações organizadas em forma de complexas redes hierarquizadas e uma infinidade de procedimentos internos de difícil manejo e compreensão. A proposta da Ouvidoria é justamente facilitar o diálogo das partes envolvidas em algum tipo de disfunção comunicativa. Como verificado ao longo das abordagens empíricas, ela atua como facilitador do diálogo, restaurando vínculos e relações estremecidas. Costuma atuar de forma imediata com linguagem clara, desimpedindo o diálogo e fortalecendo a crença na solução pacífica das controvérsias. Mediando conflitos, leva à alta administração das organizações opiniões, críticas, sugestões e denúncias de qualquer pessoa por mais simples que seja sem discriminação de qualquer tipo. Logicamente, estamos falando de uma Ouvidoria realmente comprometida com sua função social, capacitada para agir com autonomia e realizar a crítica interna das instituições sem receio de represálias. Neste contexto, mesmo com todas as dificuldades pontuadas, podemos dizer que elas desempenham importante papel para democratizar o acesso às instituições.
O desempenho da Ouvidoria pode multiplicar os acessos dos cidadãos, ativando cada vez mais a cidadania e a crítica social. Neste sentido, entendemos como crítica social não somente aquela destinada a indicar falhas sistêmicas. Faz parte da crítica social os elogios, as manifestações de agradecimentos e as sugestões ofertadas. Não podemos desconsiderar que as reclamações e as denúncias funcionam como críticas positivas também, pois permitem ao gestor identificar procedimentos e condutas desviantes que comprometem a eficiência dos serviços públicos e a imagem das instituições.
Enfim, o nosso trabalho baseou-se em pesquisa documental e observação empírica junto à Ouvidoria do TRT da 1ª Região. Recorremos também a autores especializados no tema, frequentando o Encontro Nacional de Ouvidores Públicos realizado no TRF da 4ª Região. Além disto, participamos de inúmeros congressos e seminários testando a hipótese apresentada e o recorte teórico utilizado. Concentramos nossa atenção nas Ouvidorias de Justiça porque inseridas diretamente no texto constitucional. Além disto, consideramos a centralidade do Poder Judiciário na crônica diária. Ele tem sido objeto de investigação quanto à sua capacidade de prestar um serviço público acessível, transparente e eficiente. Tais razões justificaram o delineamento do trabalho que se encerrou com a análise parcial do sistema de Ouvidoria de Justiça.
Considerando a existência de outras tantas Ouvidorias públicas e privadas, distribuídas nas mais diversas esferas dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, bem como por todas as unidades da Federação (Estados e Municípios), há uma riqueza de detalhes a serem explorados, aguardando a iniciativa de outros pesquisadores que poderão ofertar ao público trabalhos mais profundos do que este que ora entrego aos leitores. Sintam-se, pois, convidados a explorar este universo comunicativo, democrático e participativo.
REFERÊNCIAS
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CAPÍTULO III
José Antonio Callegari
INTRODUÇÃO
Com base nas reformas administrativas ocorridas no Brasil, na década de 1990, propomos algumas reflexões sobre formas de gestão, controle e participação na Administração Pública. Utilizamos dois modelos de gestão aplicados nos Governos Cardoso e Lula como parâmetro de análise da participação popular na gestão estatal. Ao final, convidamos o leitor a uma reflexão: a crise institucional deslegitima o modelo democrático então vigente ou fortalece a crença nas instituições democráticas como canais por onde se depuram os dissensos, ressentimentos e conflitos de interesses sem a ruptura traumática que muitas vezes conduz a coletividade a regimes totalitários e ditatoriais?
DESENVOLVIMENTO
Apresentamos algumas reflexões sobre formas de gestão participativa e controle social da Administração Pública. Nosso estudo tem como base a Constituição Federal brasileira e duas propostas de gestão pública (gerencial e societal), inseridas no contexto nacional pelos Governos Cardoso e Lula. Diante da ineficiência administrativa e do crescente déficit democrático das instituições, assistimos várias reformas constitucionais de impacto, destacando-se a Emenda Constitucional 19/98 promovida pelo Governo Cardoso. Neste sentido, pontuava o então Presidente:
Não é nenhuma novidade dizer que estamos numa fase de reorganização tanto do sistema econômico, como também do próprio sistema político mundial. Como consequência desse fenômeno, impõe-se a reorganização dos Estados nacionais, para que eles possam fazer frente a esses desafios que estão presentes na conjuntura atual. (CARDOSO, in BRESSER PEREIRA E SPINK: 2006,15).
Dizia que a reforma do Estado não significava desmantelamento da máquina administrativa, desorganizando o sistema administrativo e político vigente. Para ele:
Mudar o Estado significa, antes de tudo, abandonar visões do passado de um Estado assistencialista e paternalista, de um Estado que, por força de circunstâncias, concentrava-se em larga medida na ação direta para a produção de bens e serviços. (CARDOSO, in BRESSER PEREIRA E SPINK: 2006,15).
Indicando certa abertura cognitiva e participação social no contexto das reformas, sustentava que o Estado deveria se abrir a certas pressões da sociedade, mas a sociedade também teria que aprender a dialogar com o Estado, de um modo que fosse adequado aos objetivos da população. Neste esforço de reconstrução do Estado, buscava-se criar novos canais que permitissem o diálogo entre sociedade e burocracia Reivindicando a legitimidade do processo democrático, sustentava que:
Porque numa democracia, em última análise, o poder legítimo é o poder legitimado pelo voto, pela cidadania. Assim, nem a burocracia em si mesma, nem os grupos da sociedade civil que não passaram pelo teste das urnas têm legitimidade para liderar a mudança. Eles têm, isso sim, o dever de preparar a discussão, de pressionar os governantes. Mas a legitimidade da decisão tem que caber àqueles que são detentores da vontade popular. Esta é a essência da democracia; esta é a essência do republicanismo (CARDOSO in BRESSER PEREIRA E SPINK, 2009. P. 17).
O discurso democrático aparentemente sustentou a ideologia das reformas, uma vez que o ativismo cidadão é um importante fator de participação social no processo de deliberação política e controle social da Administração Pública.
Juridicamente, a vontade popular se manifesta de forma ativa no processo eleitoral e por meio de alguns procedimentos consultivos, tais como: plebiscito e referendo. A Constituição Federal de 1988 pretende sedimentar uma cultura democrática que segue em processo de consolidação, rompendo paradigmas e ampliando as esferas de participação cidadã. Assim sendo, a abertura do sistema político, jurídico e administrativo à participação popular contextualiza, em tese, uma dinâmica social discursiva, deliberativa e inclusiva em nítido processo evolutivo.
Justificando a proposta reformista, Fernando Henrique sustentava que se vivia um momento de transição. Passava-se de um modelo administrativo assistencialista e patrimonialista, burocratizado no sentido weberiano da palavra, para um novo modelo, no qual não bastava mais a existência de uma burocracia competente na definição dos meios para se atingir fins. Propunha-se um modelo eficiente, orientado por valores gerados pela sociedade. Um aparelho estatal capaz de se comunicar com o público de forma desimpedida.
Destacava a importância dos funcionários públicos neste processo de transição e transformação, reconhecendo na burocracia estatal núcleos de competência e excelência que deviam ser prestigiados como paradigma da nova cultura administrativista em formação. Em poucas palavras, seria preciso desenvolver uma nova cultura organizacional que rompesse com o patrimonialismo, a política de troca de favores, das vantagens corporativas, abrindo-se as mentes para uma nova gestão pública focada no serviço ao cidadão, na missão institucional e no espírito republicano.
Diagnosticado o problema e proposta a solução, coube ao então ministro Bresser Pereira arquitetar as bases da reforma administrativa. Sua proposta era estabelecer diretrizes para a estruturação de um novo Estado Republicano. O ajuste estrutural dos Estados nacionais era a pauta dos anos 80, marcados pela crise de endividamento internacional. Aliada à crise internacional, tivemos a abertura política em vários continentes, particularmente na América Latina. O fim da Guerra Fria e a distensão política brasileira encaminhavam as coisas para uma nova realidade institucional: ouvia-se a voz do cidadão. Mudanças estruturais de tamanha envergadura supõem um ambiente democrático e participação ativa dos concernidos.
É neste ambiente de transformação que começam a ganhar espaço canais de comunicação e crítica social como é o caso do ombudsman. Mas, a ativação da cidadania não resolvia o problema da governança e da governabilidade no contexto da crise fiscal do Estado. Era preciso pensar uma nova racionalidade no serviço público comprometido com o cidadão e mais responsável pelos seus atos. Pretendia-se um Estado republicano livre dos vícios da gestão burocrática patrimonialista. Para isto, levou-se a cabo uma extensa reforma administrativa. A reforma deveria reduzir a lacuna que separa demanda social e a satisfação das pretensões sociais reprimidas. Não se tratava apenas de promover uma reforma estrutural. A proposta era romper com o paradigma da gestão patrimonialista que secularmente sitiava o meio ambiente social. Opunham-se, pois, a racionalidade patrimonialista e a burocracia socialmente comprometida. O novo modelo de gestão deveria estar em condições de combater dois graves problemas nacionais: nepotismo e corrupção. No entanto, deveria ir mais além demonstrando eficiência na gestão da coisa pública. Não bastava ser honesto, probo; fazia-se necessário ser eficiente, gestor de resultados.
Transferir poderes de controle ao cidadão e ao servidor público, como sentinelas da moralidade e eficiência pública, mostrava-se medida adequada para combater a apropriação privada da Administração Pública. Assim, espaços dialógicos foram se replicando através de arenas públicas ocupadas por movimentos sociais e outras formas coletivas de participação cidadã.
Controle significa acompanhamento das etapas do trabalho desenvolvido; responsabilização significa estabelecer o dever de prestar contas dos atos praticados. Ambos se interpenetram estabelecendo condições para que o cidadão exerça o seu poder fiscalizador. Neste contexto, vejamos o que diz Bresser Pereira:
A reforma da gestão pública utiliza mecanismos hierárquicos e políticos para controlar os burocratas, mas os mecanismos políticos têm precedência nas democracias. Não se pode legitimar as políticas públicas com base apenas no argumento da competência técnica. Compete à sociedade, diretamente ou através de seus representantes políticos, definir objetivos e então tornar responsáveis os funcionários governamentais. Para controlar os políticos, a sociedade civil conta com uma forma específica de controle, a saber, o voto; para controlar os burocratas, ela dispõe também de uma instituição identificável – o controle social – além do controle indireto que exerce através de políticos e de outros burocratas. (BRESSER PEREIRA E SPINK: 2009, 273).
Para ele, os proponentes da responsabilização participativa destacavam o aspecto procedimental do processo decisório, enfatizando o papel ativo do cidadão. Outros defendem o controle através das relações com os clientes, interessando-se na avaliação dos resultados e se eles atendem aos interesses dos usuários. Com esta segunda perspectiva, prossegue o autor:
Os proponentes do controle através da responsabilização dão prioridade aos controles procedimentais que envolvem métodos de auditoria, ombudsman, conselhos de administração e transparência. Finalmente, no caso do autocontrole, seus defensores contam com o padrão profissional dos administradores públicos. (BRESSER PEREIRA E SPINK: 2009, 274).
Nota-se então que a mudança estrutural promovida com as reformas não se mostrava suficiente. Era preciso abrir as estruturas da Administração Pública à participação popular individual e coletiva. Controle externo e controle interno, como já estabelecido na Constituição Federal, atuariam de forma complementar sem que um concorresse com o outro. Encerrando o seu pensamento, arremata:
A reforma da gestão pública envolve todos esses controles, mas exige uma perspectiva pragmática, que conte com a iniciativa e o espírito público dos burocratas e com a eficiência dos resultados formalmente contratados, da competição administrada pela excelência e da participação do cidadão, mas sem eliminar a supervisão direta e a auditoria. (BRESSER PEREIRA E SPINK: 2009, 274).
Assim, percebemos que a mudança estrutural na esfera pública brasileira envolve questões complementares: ativação da cidadania, produção de resultados socialmente relevantes e comprometimento dos burocratas com a administração no sentido republicano.
Neste contexto, De Paula (2005) desenvolveu um estudo sobre a Nova Administração Pública, propondo ao final reflexão crítica sobre o caso brasileiro. Seu ponto de partida são os modelos de reestruturação inglês e norte-americano, respectivamente thactherismo e reaganismo, que impulsionaram análises sobre a dimensão do estado e sua eficiência operacional.
Para ela, o gerencialismo é um dos fundamentos da nova administração pública. Este modelo de gestão baseava-se na crítica das organizações burocráticas e flexibilização operacional do Estado (normas, estrutura, pessoal, etc.). Desenvolvendo sua análise, apresenta dois modelos de gestão que tencionam entre si: vertente gerencial e vertente societal. A este respeito, vejamos como ela contextualiza a questão:
As propostas da vertente gerencial foram concebidas e implementadas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, com a participação ativa do ex-ministro da Administração e Reforma do Estado Bresser-Pereira. A vertente se tornou hegemônica quando a aliança social-liberal alcançou o poder e implementou a administração pública gerencial. A vertente societal se inspira nas experiências alternativas de gestão pública realizadas no âmbito do poder local no Brasil, como os conselhos gestores e o orçamento participativo. Esta vertente tem suas raízes nas formulações do campo movimentalista dos anos 1970 e 1980 e nas políticas públicas implementadas pelas frentes populares nos anos 1990. Seu projeto de construir uma administração pública societal ganhou nova dimensão com a vitória da aliança popular-nacional nas eleições presidências de 2002. No entanto, a experiência vem demonstrando que a emergência e consolidação deste novo modelo de gestão é um fenômeno independente deste resultado eleitoral e do desempenho do governo Lula, pois deriva de uma evolução sociopolítica que vem se desenrolando desde o final da década de 1960 no âmbito da sociedade. (DE PAULA: 2005, 18).
Sugere que a modernização de práticas administrativas é um processo em construção, requerendo novas abordagens que permitam incluir no discurso técnico elementos sociais relevantes. Neste sentido, indica novas dimensões de gestão pública democrática.
Considerando a importância da dimensão sociopolítica, ela adverte sobre o risco da valorização excessiva das dimensões econômica, financeira e administrativa, subordinando princípios de gestão pública ao modelo gerencial praticado no mercado. Adverte que a gestão no setor privado se volta para o lucro. Desta forma, quando os paradigmas de gestão empresarial são transpostos de forma acrítica para o setor público, estão em risco princípios democráticos voltados para o bem comum. Por conseguinte, a eficiência técnica desejada pode resultar em perda de consistência política, comprometendo seriamente a função do Estado como meio de realização da pessoa humana; além disto, corre-se o risco de se importar valores que acentuam mais ainda o caráter patrimonialista da gestão centralizada nas mãos das elites estatais.
Para ela, a Nova Administração Pública mantém a dicotomia entre política e administração, aderindo uma dinâmica administrativa que reproduz a lógica centralizadora das relações de poder e restringe o acesso dos cidadãos ao processo decisório. É neste contexto que irá desenvolver seus argumentos, demonstrando a tensão entre as vertentes gerencial e societal. A primeira foi inspirada no movimento internacional pela reforma do Estado com base nas teorias administrativas do setor privado; a segunda buscava formas de organização e administração estatal mais aberta à participação da sociedade, através de um tipo de gestão pública social. Considerando, pois, o caso brasileiro, De Paula chega à estas conclusões:
A vertente gerencial não foi bem-sucedida na abordagem da dimensão sociopolítica, pois ao focalizar a nova administração pública como modelo de gestão, deixou a desejar no que se refere à redemocratização do Estado brasileiro. Questões que envolvem as relações entre o Estado e a sociedade não foram suficientemente tratadas, permanecendo as características centralizadoras e autoritárias que marcaram a história político-administrativa do país;
- a vertente societal busca construir e implementar um projeto político capaz de subverter o padrão autoritário das relações entre o Estado e a sociedade no Brasil. Guardados alguns limites, a tentativa de inserir a dimensão política em suas experiências de gestão está abrindo possibilidades para a renovação do modelo de gestão pública à medida que traz novas propostas para se repensar as instituições políticas e a dinâmica administrativa. (DE PAULA: 2005, 75)
A tensão que se mostra entre público X privado, Estado X Mercado, escolha racional X escolha social vão delineando o caminho para consolidação de um modelo administrativo aberto cognitivamente à participação social. Se a reforma do Estado teve como base o processo de reestruturação produtiva das empresas privadas, sua abertura à participação social igualmente teve como influência o diálogo que se estabeleceu entre as empresas e seus clientes. Este canal de comunicação, orientado pelo êxito organizacional, recebe do meio ambiente a impressão sobre os serviços e produtos oferecidos. A impressão do cliente oferece indicadores de desempenho que são processados internamente e retornam para o mercado na forma de produtos e serviços reelaborados. O propósito é manter ou melhorar a imagem institucional fidelizando clientes e aumentando os níveis de produção e vendas.
No entanto, o diálogo que se estabelece entre Estado e cidadão não têm igual natureza e finalidade. Nele, devem estar presentes argumentos políticos e morais centralizados na dignidade da pessoa humana e na melhoria constante de sua potencialidade existencial. Assim, quando o Estado resolve adotar a racionalidade empresarial, focada na redução de custos e aumento da eficiência operacional (fazer mais com menos), desconsiderando as dimensões políticas e morais da relação democrática, corre o risco de provocar ressentimentos por frustração de expectativas sociais. Políticas de gerenciamento, que não distinguem a função social do Estado e a necessidade de promoção social como fator de estabilidade política, têm levado a Administração Pública a um paradoxo indefensável: ampliação de sua tecnologia de controle fiscal e redução de sua capacidade de intervenção social.
O risco de dominação patrimonial por uma nova elite burocrática, no caso brasileiro, deve ser considerado. Cada vez mais surgem no Brasil associações profissionais reivindicando espaço de poder, status e remuneração em benefício de seus integrantes, sob o argumento de que seus associados atuam como agentes políticos na defesa dos interesses estratégicos do Estado. Julgando-se legítimos detentores da governança pública, atuam intensamente para manter o controle orçamentário e político de “suas” instituições. O modelo de gestão gerencial, dirigido por estas elites burocráticas, reluta em abrir-se cognitivamente ao controle social, exercido através de canais como: corregedoria, auditoria, controladoria, ouvidoria e conselhos nacionais de justiça, por exemplo.
A tensão entre o interesse individual privado X interesse coletivo público é deslocada para um novo cenário de conflito que se estabelece entre o interesse coletivo privado X interesse coletivo público. O movimento associacionista da nova elite burocrática transforma o interesse individual em coletivo e produz um embate de forças menos assimétrico. Com este deslocamento de interesses, organizam-se poderosos lobbies que transitam com desenvoltura no parlamento. Em razão de sua influência na Administração Pública, poderiam as elites burocráticas gerenciar os canais de controle segundo os seus interesses corporativos? Haveria relação entre a ineficiência de mecanismos de controle e a gestão confiada aos integrantes destas associações corporativas? Estaríamos diante de um modelo de gestão neopatrimonialista?
No caso das democracias participativas, o domínio político das elites burocráticas, fundamentado na expertise dos seus agentes, poderia justificar o controle corporativo do diálogo social? A existência de um corpo técnico, “controlando” as incertezas e os riscos sistêmicos, supriria a vontade popular e sua legítima participação política? O sistema perito poderia usurpar o direito de participação popular? O conhecimento perito, monopolizado pelas elites burocráticas, esvaziaria o espaço social democrático? São questões como estas que devem animar o debate sobre a esfera pública participativa. Debates neste sentido devem privilegiar a participação do cidadão leigo na construção de consensos ou superação de dissensos sociais.
Em sua análise, considera também a emergência do desenvolvimento dependente e associado, com base em estudos de Cardoso e Falleto. Depois de discorrer sobre a disseminação de teses desenvolvimentistas na Cepal, a autora relata que, para os autores, a intervenção estatal deveria adquirir outra natureza, assumindo o Estado o papel de empresário. Assim, destaca a palavra deles nestes termos:
Mas não deixa de ser significativo que, mesmo nesse caso, aqueles que controlam o setor estatal da economia atuem mais em termos de “empresários públicos”, do que de acordo com uma política tipo populista, que estimula a redistribuição da renda pelos aumentos contínuos de salários. Em outros termos, o Estado deixa de ser um Estado-populista, para transformar-se em um Estado-empresarial. (DE PAULA: 2005, 110).
Segundo De Paula, o projeto nacional-desenvolvimentista continuou sendo referência no Brasil e na América Latina mesmo após a abertura político institucional. Fracassado o “milagre econômico” , recrudesceria o movimento crítico sobre a eficiência administrativa do Estado, servindo como variável do processo de abertura democrática que veio a seguir.
O modelo de administração pública proposto pela reforma administrativa separava as atividades do Estado em duas categorias: atividades exclusivas e atividades não exclusivas. Com isto, era possível legitimar processos de transferência de atividades da iniciativa pública para a iniciativa privada, como ocorreu com as privatizações levadas a cabo na década de 1990/2000.
Observe-se que não bastava patrocinar a reforma estrutural do Estado. Para tornar a reforma bem sucedida, seria preciso fazer incursões sobre a cultura organizacional e modelo de gestão burocrático. Assim, procurava-se transformar a cultura burocrática em uma cultura gerencial com discursos, metas e treinamentos motivacionais típicos das organizações privadas. Certamente, as reformas produziriam efeitos na cultura burocrática das organizações públicas. Em razão disto, aos programas das escolas no serviço público foram acrescentadas disciplinas com o propósito de internalizar nos servidores públicos parâmetros de atuação inspirados nas escolas administrativas do setor privado.
Analisando as propostas reformistas, destaca que Bresser Pereira elaborou uma série de argumentos justificando o caráter democrático da administração pública gerencial. Dentre os seus argumentos, a diversificação dos controles sociais teria a função de preservar o interesse público, mantendo os burocratas em contato com a sociedade, equilibrando técnica e política. Assim concebido, o modelo de gestão pós-burocrático teria flexibilizado o aparelho de Estado, tornando a prestação de serviços eficiente e o sistema administrativo mais aberto à participação popular.
Segundo a autora, Bresser Pereira enfatizou a importância do controle social, apostando na coexistência de diversos tipos de controles democráticos para garantir uma cooperação desinteressada dos burocratas públicos. Neste sentido, cita alguns deles:
- controle do processo (participação dos cidadãos na tomada de decisões);
- controle de resultados;
- controle dos políticos sobre os burocratas;
- controle procedimental (auditorias e conselhos de administração);
- autocontrole (valores profissionais do administrador público).
Em que pese os argumentos a favor da reforma, ela conclui que a administração pública gerencial continua sustentando a centralização do poder e o idealismo tecnocrático, nestes termos:
A implementação do modelo gerencialista de gestão pública não resultou em uma ruptura com a linha tecnocrática, além de continuar reproduzindo o autoritarismo e o patrimonialismo, pois o processo decisório continuou como um monopólio do núcleo estratégico do Estado e das instâncias executivas, e o ideal tecnocrático foi reconstituído pela nova política de recursos humanos. Por outro lado, a despeito do discurso participativo da nova administração pública, a estrutura e a dinâmica do Estado pós-reforma não garantiram uma inserção da sociedade civil nas decisões estratégicas e na formulação de políticas públicas. (DE PAULA: 2005, 141).
O modelo gerencial idealizado produziu uma elite burocrática como representante do núcleo estratégico responsável pelas atividades essenciais não delegáveis. Mas, o que se mostrou evidente é que ela reivindica cada vez mais espaços de dominação, status e privilégios, fechando-se operacionalmente em códigos linguísticos tecnocráticos que tornam seus mecanismos de gestão cada vez mais opacos, em que pese o discurso em favor da transparência e acesso participativo do cidadão.
A governança das instituições públicas nas mãos de uma elite burocrática que, sentindose legitimada pelo acesso na carreira através de concursos de provas e títulos, ou nomeação política direta, pode se transformar em sério risco para a democracia representativa. Historicamente, como já tivermos ocasião de ver no caso dos Ouvidores do Brasil Colônia, as elites políticas estreitam relações com as elites burocráticas visando a satisfação dos interesses particulares de cada uma delas. Corre-se o risco de se repetir o modelo no qual a vontade popular funciona como fator de legitimação destes arranjos elitistas, sem participar efetivamente das deliberações que autorizam a prática de atos concretos de gestão.
De Paula (2005) percebeu que o projeto de valorização da burocracia vinculada ao núcleo estratégico do Estado não rompeu com o ideal burocrático teoricamente combatido pela reforma. Segundo ela, a nova política do Mare foi direcionada para a profissionalização do núcleo estratégico e tentou expulsar os escalões inferiores do domínio público, geralmente aqueles que lidam diretamente com os cidadãos. Utilizando uma estratégia de mal dizer a Administração Pública, Bresser Pereira teria influenciado a opinião pública contra este funcionalismo, dividindo os servidores públicos em duas categorias: a elite gerencial e os demais servidores não graduados. Ana Paula destaca a fala de Bresser Pereira, desta forma:
Minha estratégia principal era a de atacar a administração pública burocrática, ao mesmo tempo em que defendia as carreiras de Estado e o fortalecimento da capacidade gerencial do Estado. Dessa forma, confundia meus críticos, que afirmavam que agia contra os administradores públicos e burocratas, quando eu procurava fortalecê-los, torná-los mais autônomos e responsáveis. (DE PAULA: 2005, 145).
Em sua análise crítica, afirma que o baixo escalão não foi ouvido pelo governo quanto às suas pretensões profissionais, fragilizando o nível de comprometimento dos servidores na ponta do serviço p público, onde justamente ocorre o contato direto com o cidadão; e neste sentido remata:
Em síntese, apesar das intenções de profissionalização dos burocratas de carreira e melhoria na prestação de serviços públicos, os resultados têm sido limitados. Por outro lado, com a administração pública gerencial prevalece o ideal tecnocrático, que favorece a reprodução do autoritarismo e do neopatrimonialismo. A formulação das políticas públicas continua como monopólio de uma elite burocrática que centraliza o poder, se apropriando da essência do Estado, e os serviços públicos são relegados para executores cujo comprometimento com a qualidade e o interesse público varia de acordo com uma série de fatores. (DE PAULA; 2005, 147).
A respeito da ação participativa da sociedade, nossa autora interpreta Bresser Pereira dizendo que:
A inserção da sociedade civil no processo de mudança social é um fenômeno recente. Para o ex-ministro é uma instituição que reorganiza a alocação de recursos, poder e riqueza. Na nossa interpretação, este tratamento da sociedade civil como instituição e não como agente já sinaliza o caráter limitado da participação social na estrutura e dinâmica governamental da vertente gerencial. Nesse contexto, há um discurso participativo, mas na prática se enfatiza o engajamento da própria burocracia pública ou dos quadros das organizações sociais no processo de gestão. A estrutura e a dinâmica do aparelho do Estado pós-reforma não apontam os canais que permitiria a infiltração das demandas populares. (DE PAULA: 2005,147).
Agudizando ainda mais o tom crítico, adverte que existem novos mecanismos de controle dos funcionários públicos e que a participação social é controlada pelas elites burocráticas. Sustenta que democratizar uma administração pública e viabilizar a participação popular são tarefas completamente distintas. Mesmo que se estabeleça uma suposta democracia interna nas organizações públicas, isto não garante permeabilidade à participação social. Neste caso, o formato institucional das organizações e a estrutura do aparelho estatal podem inviabilizar uma inserção popular efetiva no processo decisório e na formulação de políticas públicas. Para rematar, ela afirma:
Assim, inexiste um canal de mediação entre as entidades e a cúpula governamental, demonstrando que ainda está colocado o desafio de se elaborar arranjos institucionais que viabilizem uma maior representatividade e a participação dos cidadãos na gestão pública. Em síntese, a vertente gerencial pactua de uma abordagem autoritária de gestão, pois os burocratas públicos continuam centralizando as decisões e a inserção social é limitada. Além disto, o viés gerencialista que estimula o patrimonialismo burocrático e político dos gestores, dificultou a criação de alternativas institucionais para a participação social. (DE PAULA: 2005, 149).
Diante das críticas apresentadas ao modelo gerencial, De Paula (2005) sugere outra opção: a vertente societal ou administração pública societal. Nesta vertente, atuariam três elementos principais:
- a busca de um novo modelo de desenvolvimento;
- a concepção participativa e deliberativa de democracia;
- a reinvenção político-institucional e a renovação do perfil dos administradores públicos
Antes mesmo da implantação do paradigma gerencial no Governo Cardoso , o modelo societal já era praticado na década de 80. Podemos citar como exemplos os fóruns temáticos, os conselhos gestores de políticas públicas e o orçamento participativo. Naquela época, começavam a surgir as primeiras experiências de descentralização do poder político. O idealismo da vertente societal teria chegado à Constituinte, sugerindo novos mecanismos de gestão comprometidos com a democracia representativa. Segundo ela, apesar da heterogeneidade dos atores envolvidos, os movimentos sociais reivindicavam o fortalecimento da sociedade civil na condução da vida política nacional.
Ela nos comunica que foram se multiplicando no país governos com novas propostas de gestão, abrigando experiências de participação social, tais como: conselhos de gestão tripartite, comissões de planejamento e outras formas específicas de representação. Prosseguindo com a visão societal, destaca a seguinte reflexão de Marco Aurélio Nogueira:
Só pode nascer de um projeto firmemente concentrado na substância do fenômeno estatal, não nas suas formas ou nas quantidades nele agregadas. Um projeto político, bem mais do que técnico-gerencial. Para dizer de outro modo: mais importante do que difundir no setor público uma parafernália de “novas tecnologias gerenciais”, muitas vezes tomadas de empréstimo do mundo dos negócios e levemente adaptadas, é fazer com que se consolide uma nova perspectiva, quer dizer, uma nova maneira de compreender o Estado e de atuar com o Estado no momento da história e em um país como o nosso. (DE PAULA: 2005, 155/156).
Opondo-se ao modelo técnico-gerencial, propõe novos formatos institucionais que permitam a co-gestão e a participação dos cidadãos nas decisões políticas. Em sua opinião, formas alternativas de gestão participativa tornariam a Administração Pública mais eficiente conjugando técnica administrativa e compromisso social.
Considerando o perfil do gestor público, informa que os cientistas sociais resistem a se dedicar às tarefas práticas ou aplicadas, destacando a falta de oportunidades para que eles atuem em outras áreas disciplinares. Assim, percebe que há uma carência de profissionais que entendam as dimensões sociais, políticas e éticas da administração socialmente comprometida. Tal carência sugere que técnicas de ensino-aprendizagem e pesquisa devem ser repensadas. Para ela, há necessidade de um programa de valorização, formação e treinamento de administradores públicos que crie especialistas tecnopolíticos capazes de pesquisar, negociar, aproximar pessoas e interesses, planejar, executar e avaliar projetos. Necessitaríamos de gestores com competência para avaliar situações complexas de forma cooperativa, solidária e participativa.
O que se extrai de sua análise crítica é que a vertente gerencial não conseguiu transcender a dicotomia entre política e administração, dificultando a abertura cognitiva para as demandas populares. Ao contrário, incidiu em práticas autoritárias e centralizadoras, reproduzindo características recorrentes das elites burocráticas ao longo da história políticaadministrativa do país.
A vertente societal, por sua vez, direciona a gestão para um agir político-institucional que integre política e administração, ampliando o diálogo social e a participação comunitária. Enquanto a vertente gerencial apresenta dimensões econômico-financeira e institucionaladministrativa; a vertente societal volta-se para a dimensão sócio-política. Se a primeira procura imunizar-se do populismo, recorrente ao longo da história republicana, a segunda corre o risco de errar a mão e cair em um populismo grave e antidemocrático. Ao que parece o grande desafio reside na busca do equilíbrio entre gestão técnica e compromisso social.
Posta a questão da gestão pública participativa, podemos analisar o controle social e accountability no Brasil, refletindo a crítica interna da democracia representativa. Para Lavalle e Vera (2011), a principal função da participação na teoria democrática é educativa. Seus efeitos pedagógicos remeteriam à socialização e à formação do homem público. Ele é um agente que deve gerenciar rotinas e procedimentos conforme o modelo institucional vigente. Analisando vários estágios de desenvolvimento da administração pública, eles identificam ciclos de transição nas últimas décadas do século XX. No plano teórico, argumentos em favor da participação do cidadão na esfera pública ganharam força. No plano prático, a reorganização das instituições sinaliza o fortalecimento do diálogo social através de canais extraparlamentares de representação.
Pó e Abrucio (2006) assinalam que a maior complexidade do Estado moderno traz novos desafios, criando muitas das vezes domínios controlados por burocracias técnicas com pouca ou nenhuma responsabilização pública. Neste sentido, entendem que a discussão sobre accountability vem dar novas dimensões à democracia.
Se nos anos 90 assistimos as reformas administrativas que, em tese, abriram as estruturas do Estado à participação social, nas últimas décadas presenciamos o esgotamento do discurso oficial democrático. Alianças políticas e institucionais, visando preservar interesses olirgárquicos e partidários, tem gerado um ambiente de cinismo antidemocrático.
Os movimentos sociais e a ocupação das avenidas brasileiras sinalizam que o modelo de gestão estatal esgotou-se, geranto ressentimentos por causa de pactos sociais não cumpridos. O cenário que se apresenta pode inspirar um movimento de renovação política através da elaboração de um pacto nacional que preserve a ética discursiva em todas as esferas da Administração Pública.
CONCLUSÃO
O controle social da Administração Pública remete-nos à difícil tarefa de informar/educar as pessoas para transformar a realidade social através de ações esclarecidas, consequentes e persistentes. A crise de representação política talvez seja sintoma de um modelo cuja dominação patrimonial prende-nos em uma jaula de ferro weberiana. Quando pensamos agir, somos reprimidos pela coerção estatal, fundamentada em uma ordem jurídica elitista. Neste contexto, canais de abertura cogntiva das instituições atuam seletivamente segundo o interesse da Máquina Administrativa, deslegitimando suas políticas pública e as intervenções do Estado na ordem social e econômica. O funcionamento formal das instituições democráticas, adstrito ao cumprimento das normas jurídicas elaboradas conforme uma racionalidade de meios e fins, revela a distância entre interesse público oficial e interesse público social. As contradições entre atos de fala e atos praticados gera a suspeita de quem está no controle da situação, e se existe mesmo algum tipo de controle em uma sociedade complexa, descentrada e de risco.
Vivemos uma turbulência normal em uma ordem democrática que, por sua natureza deliberativa, vive ciclos de alternância de poder e superação de paradigmas? Nesta turbulência, devemos nos amarrar ao mastro central da embarcação e suportar as tentações das ninfas marinhas? Ou devemos colocar cera em nossos ouvidos, atravessando a tormenta “seguros”? Seria o caso de pagar o preço e enfrentar os riscos da travessia, sob o risco de adormecer com o canto das sereias e despertar nos braços de tenebrosas ditaduras?
Se os gestores públicos não nos ouvem, façamo-nos ouvir. Como? O desafio é instrumentalizar as pessoas com mecanismos cognitivos que lhes assegurem ações consequentes e um ativismo permanente, necessários para se viver em um regime democrático por excelência. Este desafio leva-nos a um espaço público dialógico como este, pois estamos convictos de arenas como esta consolidam o modelo de sociedade comunicativa como ideal realizável.
REFERÊNCIAS
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CAPÍTULO IV
José Antonio Callegari
Marcelo Pereira de Mello[ii]
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, apresentamos um recorte de nossa pesquisa de doutorado. Nela, investigamos a narrativa processual, procurando identificar a interação comunicativa que se desenvolve no processo até a decisão judicial. Partindo da narrativa estruturada pelo legislador, observamos as estratégias argumentativas das partes e do juiz. Notamos, com isto, que existem na relação processual dois argumentos com pretensão de verdade em contraditório.
O discurso desenvolvido no processo segue uma estrutura lógica com duplo objetivo: expor os fatos em juízo e formar o convencimento judicial. Neste sentido, estamos diante de uma narrativa não ficcional, uma vez que fundada em fatos ocorridos no mundo real.
No caso brasileiro, via de regra, o narrador é um advogado que representa a parte, vez que vigora no Brasil o princípio do jus postulandi. Em outras palavras, somente o advogado, em certos casos, pode ingressar com ações judiciais representando seu cliente. Por esta razão, predomina a narrativa em terceira pessoa. Assim sendo, o advogado como narrador detém uma autoridade epistêmica que lhe confere legitimidade para atuar em juízo na defesa do seu cliente. Mas, o domínio epistêmico de natureza jurídica não é suficiente para uma performance comunicativa eficiente. É na situação de contexto que ele desenvolve um segundo elemento fundamental para narrar os fatos em juízo. Trata-se da fluência cultural (MELLO, 2014), cuja aquisição depende do uso adequado de certos dispositivos cognitivos. Certamente, o ambiente institucional e as regras processuais diferenciadas impactam o tipo de narrativa desenvolvida e a fluência cultural adquirida.
Por outro lado, a narrativa além de expor os fatos visa também formar a convicção do juiz quanto à veracidade dos argumentos apresentados. Assim, a narrativa das partes é recebida pelo juiz como um emaranhado de argumentos cuja complexidade será reduzida progressivamente até que esteja em condições de proferir sua decisão. Este processo de redução de complexidade acentua-se na fase da instrução processual, onde o juiz fixa os pontos controvertidos, determina a produção de provas e confere aos litigantes a oportunidade para expor suas razões oralmente. Diante desta complexa interação discursiva, supomos ainda que o magistrado investe-se de uma dúvida radical do tipo cartesiana, uma vez que ele está diante de argumentos contraditórios com pretensão de verdade. A dúvida radical não é de natureza subjetiva. Pelo contrário, sua natureza é objetiva, uma vez que ele deve instruir o processo e julgar a demanda com imparcialidade. Além desta redução cartesiana, supomos também que o juiz opera com um tipo de redução luhmaniana. Isto porque, a redução sistêmica da complexidade apresentada pelas partes é requisito necessário para esclarecimento dos fatos deduzidos e formação de seu livre convencimento motivado. No entanto, faltaria ao percurso narrativo e ao procedimento reducionista do juiz algo fundamental: a ética discursiva habermasiana. Por esta razão, o direito processual brasileiro estabelece para as partes o dever de argumentar em juízo conforme a verdade, em atitude colaborativa e de boa-fé; impondo igualmente ao juiz o dever de imparcialidade, de fundamentar suas decisões, de conceder às partes igualdade de tratamento em contraditório, de assegurar ampla defesa, e de se afastar do caso em situações de impedimento ou suspeição. Ao produzir sua decisão em forma de sentença, o juiz adota outro papel: narrador oficial. Seu discurso tem dupla natureza. Uma expositiva das razões que lhe formaram o convencimento e outra decisória, amparada na fundamentação argumentativa que seu pronunciamento.
Diante destas evidências, tratamos neste artigo dos marcadores deônticos[4] e da ética discursiva, propondo um estudo menos dogmático do direito.
DESENVOLVIMENTO
Como destacado, adotamos o Código de Processo Civil vigente[5] como referencial normativo de nossa pesquisa, uma vez que contém minuciosa sistematização da ética discursiva desenvolvida na relação processual. O percurso discursivo das partes começa através de uma petição inicial[6] desenvolve-se através da reposta do réu, encerrando-se com a sentença como último ato discursivo no processo. Através da petição inicial, o autor deve demonstrar interesse e legitimidade para ingressar com sua pretensão em juízo. A legislação processual estabelece que qualquer pessoa no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo, salvo os incapazes que serão representados ou assistidos por seus pais, tutores ou curadores. Trata-se de um marcador deôntico quanto à capacidade e responsabilidade enunciativa das partes.
Em seguida, o Código de Processo estabelece os deveres das partes e dos seus procuradores[7]. Elas deverão expor os fatos em juízo conforme a verdade, procedendo com lealdade e boa-fé. Desta forma, não devem formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento e nem produzir provas ou praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração e/ou defesa de direitos. Pretende o legislador que elas não criem embaraços ao andamento processual, agindo em colaboração para uma duração razoável do processo. Assim sendo, o enunciado elaborado em suas petições não deve conter expressões injuriosas, cabendo ao juiz mandar riscá-las ou, quando proferidas em defesa oral, advertir o enunciador que não as use, sob pena de cassação da palavra.
Os marcadores deônticos estabelecem ainda a responsabilidade das partes por dano processual quanto houver pleito de má-fé[8]. A má-fé processual decorre de pretensão ou defesa contra texto expresso em lei ou fato incontroverso; alteração da verdade dos fatos; uso do processo para conseguir objetivo ilegal; proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; provocar incidentes manifestamente infundados ou interposição de recurso com manifesto intuito protelatório.
Incidindo em litigância de má-fé, o juiz deve condenar o litigante a pagar multa, além de indenizar a parte contrária dos prejuízos sofridos, mais honorários advocatícios e despesas efetuadas. Podemos acrescentar que se a parte retardar o andamento do processo como estratégia processual também viola a ética processual. Assim, o CPC impõe o dever de o réu alegar em sua resposta fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor na primeira oportunidade que lhe for concedida para falar nos autos.
Considerando que o discurso jurídico segue marcadores normativos redigidos em linguagem técnica, estabelece o CPC que a parte será representada em juízo por advogado legalmente habilitado. Desta forma, o legislador considera a autoridade epistêmica do advogado como enunciador habilitado na técnica do discurso jurídico, em sintonia com o preceito constitucional segundo o qual o advogado é indispensável à administração da justiça. Contando com a assistência do advogado, fica assegurada à parte, em tese, um equilíbrio discursivo, uma vez que o juiz é dotado também de autoridade epistêmica, pois igualmente habilitado nas letras jurídicas. Situações existem nas quais a parte pode deduzir sua pretensão em juízo independente de assistência advocatícia, como na audiência de conciliação nos Juizados Especiais e na Justiça do Trabalho. Na prática, no entanto, é muito arriscado ingressar em juízo ou deduzir defesa sem assistência de um advogado. O sistema judicial trabalha com um código linguístico próprio do qual, via de regra, não abre mão para melhor entendimento das partes. Até porque a linguagem jurídica rotineiramente funciona como marcador da autoridade epistêmica do juiz, delimitando espaços de ação e de poder na relação judicializada.
Além da autoridade epistêmica, juiz exerce também sua autoridade deôntica, para a qual goza de poderes e deveres processuais[9]. Assim sendo, o juiz não pode conhecer de questões não suscitadas pelas partes, assim como nos casos em que a lei exige sua iniciativa. Nos casos em que as partes se sirvam do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, ele poderá sentenciar impedindo que elas alcancem o seu objetivo.
Estabelece o CPC os limites da decisão judicial[10], nos termos como foi proposta pela parte autora. Assim sendo, o juiz não pode conhecer de questões não suscitada por ela, assim como nos casos em que a lei exija sua inciativa.
Proferindo a decisão, amparada em sua autoridade epistêmica e deôntica, o juiz aprecia livremente a prova, observando os fatos e as circunstâncias constantes nos autos, indicando os motivos de seu convencimento[11]. Observe-se que o legislador vai delimitando objetivamente o percurso discursivo das partes e do juiz, naquilo que podemos chamar de narrativa processual estruturada.
Prossegue o CPC fixando marcadores deônticos para a atuação do juiz. Assim, estabelece sua responsabilidade por perdas e danos em casos de dolo, fraude e retardo injustificado de providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte. Visando manter a integridade ética no processo, prescreve o afastamento do juiz em casos de impedimento e / ou suspeição[12].
Até aqui, procuramos demonstrar a existência de uma narrativa estruturada no CPC seguindo marcadores deônticos cujos principais destinatários são as partes e o juiz. Por esta razão, o código estabelece os atos destes sujeitos processuais, delimitando sua liberdade de ação no processo. As partes podem declarar sua vontade, produzindo imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos no processo, enquanto o juiz profere despachos, decisões interlocutórias e sentenças. São atos que impulsionam o procedimento até seu momento final, quando ele resolve o litígio, substituindo a vontade dos litigantes, discursivamente expostas em contraditório, por sua vontade como agente político investido de jurisdição. Ao proferir a sentença[13], como ato final do processo, o juiz encerra o seu ofício jurisdicional e o percurso discursivo estabelecido em forma de silogismo jurídico. Em outras palavras, a sentença é o último ato discursivo no processo.
A ética discursiva que supomos existir na relação processual leva em consideração a igualdade de tratamento das partes para que defendam seus pontos de vista ou suas pretensões de verdade sem surpresas. Assim, após a citação, por exemplo, o autor não poderá modificar o pedido ou a causa de pedir sem o consentimento do réu.
Percebe-se que os marcadores deônticos do processo produzem efeitos desde o início da relação processual até o seu final, quando proferida a sentença. Uma argumentação jurídica ética tende a fortalecer os argumentos do enunciador induzindo o convencimento judicial a seu favor, como se dá nos casos de antecipação da tutela pretendida no pedido inicial[14]. Com base em prova inequívoca do fato alegado, o juiz, convencido da verossimilhança da alegação, pode antecipar efeitos práticos da sentença, atendendo com isto total ou parcialmente a pretensão deduzida pelo autor. Neste caso, ele deverá demonstrar a existência de risco de dano irreparável ou de difícil reparação ou caracterização do abuso do direito de defesa do réu ou manifesto propósito protelatório. Ao proferir sua decisão antecipatória, o juiz deverá expor as razões de seu convencimento. Note-se que os marcadores deônticos impõe às partes e ao magistrado um dever ser performativo. Elas devem fundamentar os seus argumentos e o juiz deve demonstrar as razões de seu convencimento, afastando as hipóteses de decisões arbitrárias que muitas vezes são travestidas de discricionariedade judicial. Com isso, o legislador confere transparência ao procedimento, viabilizando o controle social dos atos do juiz. Claramente, o direito processual estabelece referenciais éticos para a performance discursiva dos sujeitos processuais.
Chegado a este ponto, observemos a estrutura da narrativa processual através das três peças mais importantes: petição inicial, contestação e sentença. A petição inicial é a primeira manifestação de vontade praticada no processo. Através dela, o autor narra fatos, expõe seus argumentos e deduz sua pretensão de verdade. No plano formal, o CPC estabelece alguns requisitos estruturantes da petição inicial, na qual a parte deve indicar:
I - o juiz ou tribunal, a que é dirigida;
II - os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu;
III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido;
IV - o pedido, com as suas especificações;
V - o valor da causa;
VI - as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados;
VII - o requerimento para a citação do réu.
Além disto, a parte deve instruí-la com os documentos indispensáveis à propositura da ação. Importante destacar o inciso III, no qual devem constar o fato e os fundamentos jurídicos do pedido. Verificando o juiz que a petição atende aos requisitos processuais, determinará a citação do réu. Caso não conteste a ação, os fatos alegados pelo autor podem ser reputados verdadeiros. Na linguagem jurídica, ocorrerá à confissão ficta, um tipo específico de presunção legal.
Existem situações que provocam o indeferimento da petição inicial, nestes termos: inépcia; parte manifestamente ilegítima; falta de interesse processual; decadência ou prescrição e procedimento incompatível. Interessa neste momento discorrer sobre a inépcia desta petição. Ocorre quando nela faltar pedido ou causa de pedir; da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão; o pedido for juridicamente impossível e contiver pedidos incompatíveis entre si. Nestes casos, o juiz extingue o processo sem resolução do mérito. Podemos observar, com isto, que a petição inicial funciona como estrutura da narrativa dos argumentos da parte autora, onde deve narrar os fatos e construir argumentos lógicos na produção de um discurso coerente e coeso. Com apoio em Voese (2011), pensamos que não se trata de uma lógica rigorosamente formal. Trata-se de uma lógica que permita a conclusão de seus argumentos em situação de contexto e interação social, permeados por todas as possibilidades e falhas da linguagem humana.
Citado, o réu pode apresentar resposta em contraditório. Três são as repostas previstas no CPC: contestação, exceção e reconvenção. Neste trabalho, interessa-nos somente a contestação[15]. Nela, o réu deverá alegar toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito que julgue necessárias para impugnar o pedido do autor, especificando as provas que pretende produzir. O réu contesta os fatos narrados na petição inicial, sob pena de incidir em preclusão[16]. Notamos aqui uma estrutura narrativa mais simples em relação à petição inicial, no entanto com efeitos processuais graves. Isto porque pesa sobre o réu o ônus da impugnação especificada. Deixando o réu de impugnar os fatos deduzidos pelo autor corre o risco de perder a demanda por causa dos efeitos da confissão presumida.
Havendo questões de fato que mereçam mais esclarecimentos, o juiz pode determinar o comparecimento pessoal das partes, a fim de interroga-las em audiência de instrução e julgamento. Neste caso, ele fixará os pontos controvertidos. Assim, o juiz vai reduzindo complexidades (LUHMANN, 2009) e depurando as fases processuais de atividades superadas ou inúteis à formação de seu convencimento, como típico observador sistêmico. Quando intimadas para a audiência, as partes são advertidas de que o não comparecimento ou a recusa a depor tem severa consequência processual: os fatos contra ela alegados se presumirão confessados. Note-se aqui um importante marcador deôntico que prevê a ação esperada (dever-ser) e a consequência imposta (sanção).
Outro marcador deôntico digno de nota impõe o dever de colaboração à parte interrogada. Deixando injustificadamente de responder ao que lhe for preguntado, ou empregar evasivas, o juiz declarará por sentença se houve recusa de depor, aplicando-lhe os efeitos da confissão presumida. Antes de aplicar a sanção processual, deverá analisar o fato juntamente com as demais circunstâncias e elementos de prova existente nos autos, o que a doutrina especializada chama de conjunto probatório.
Através do depoimento oral das partes, o juiz procura reconstituir aspectos importantes e circunstanciais dos fatos articulados por elas. Neste sentido, o código de processo utiliza o seguinte marcador deôntico: não poder servir-se de escritos adrede preparados, permitida tão somente a consulta a notas breves, visando complementar os esclarecimentos. Resguardando a intimidade das partes e o princípio de que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, estão elas desobrigadas de depor sobre fatos criminosos ou torpes que lhes forem imputados ou a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar sigilo. Considerando a especificidade das relações familiares, esta isenção não se aplica em casos de ações de filiação, desquite e anulação de casamento.
A respeito dos fatos alegados em juízo, prescreve o legislador a confissão real ou ficta. Ocorre confissão quanto a parte admite a verdade de um fato, contrário ao seu interesse e favorável ao adversário, podendo ser judicial ou extrajudicial. A confissão judicial pode ser espontânea ou provocada. No primeiro caso, lavra-se termo nos autos; e no segundo caso, o depoimento pessoal será transcrito em termo circunstanciado, lido e assinado pelo depoente. Quando a confissão espontânea for realizada por mandatário, exige-se dele poderes especiais para confessar. A confissão judicial provoca efeitos somente contra o confitente. Direitos há que não podem ser objeto de confissão, em razão de sua indisponibilidade jurídica. A confissão extrajudicial tem a mesma eficácia probatória da judicial, desde que feita por escrito à parte ou a quem a represente. Na maioria das vezes, a confissão é indivisível, não podendo a parte aceitar tópico que a beneficie e rejeitar no que lhe for desfavorável. Havendo fatos novos alegados, poderá ser cindida, desde que tais fatos sejam suscetíveis de constituir fundamento de defesa. A confissão, como se percebe, encurta o percurso discursivo, uma vez que encerra a dúvida sobre os fatos alegados na ação.
Na trajetória discursiva existente no processo, podem ocorrer alegações fundamentadas em documentos falsos. Neste caso, existe a possibilidade de arguição de falsidade, instaurando-se um procedimento para sua apuração. A parte contra quem foi produzido o documento tem o ônus de instaura-lo. Para esclarecer os fatos, o juiz poderá ordenar o exame pericial. Concordando a parte em retirar o documento impugnado por falsidade, o juiz poderá dispensar a perícia, desde que com isto concorde a parte contrária. O incidente de falsidade provoca a suspensão do procedimento até que a questão incidental seja resolvida. Através de sentença, o juiz declarará a falsidade ou não do documento impugnado.
A estrutura narrativa no processo prevê ainda a produção da prova testemunhal[17] como meio de se chegar ao esclarecimento dos fatos articulados em juízo. Para a coleta do depoimento das testemunhas, o legislador estabelece outro marcador deôntico, elencando aqueles que podem depor, excepcionando os incapazes, as pessoas impedidas ou suspeitas. Considerações psicológicas e morais fundamentam as restrições de impedimento e suspeição das testemunhas. Aquelas que podem depor são desobrigadas em casos de fatos que lhes acarretem grave dano, ao seu cônjuge e aos seus parentes, ou a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar sigilo.
As interações discursivas que estamos observando ocorrem em várias dinâmicas que se sucedem no tempo: petição inicial, contestação e sentença. Na audiência, por exemplo, o juiz exerce o poder de polícia, mantendo a ordem e o decoro, ordenando a retirada daqueles que se comportarem de modo inconveniente, até mesmo com força policial se necessário for. Como autoridade deôntica, ele dirige os trabalhos, coletando as provas pessoalmente, exortando os advogados e o órgão do Ministério Público para que discutam as causa com elevação e urbanidade. Durante os depoimentos das partes, não se pode intervir ou apartear, salvo mediante licença judicial. Exercendo seu poder de direção no processo, ele fixa os pontos controvertidos sobre os quais incidirá a instrução probatória, delimitando objetivamente o percurso discursivo a seguir. Primeiro, ele colhe o depoimento do autor e do réu, ficando por último o depoimento das testemunhas e os esclarecimentos do perito. Ao final da audiência, o juiz concede a palavra aos advogados das partes, bem como ao órgão do Ministério Público, para suas razões orais. Se a causa envolver questões complexas de fato ou de direito, as razões orais podem ser substituídas por memoriais escritos. Ao final do prazo concedido, o juiz proferirá a sentença.
A sentença é o último ato discursivo no processo, uma vez que não estamos considerando o desenvolvimento da relação processual nos casos em são interpostos recursos para a instância superior. Como estrutura narrativa, ela apresenta requisitos essenciais: relatório, fundamentação e dispositivo. Em cada um deles o juiz vai descrevendo sua percepção sobre as questões apresentadas pelos litigantes, analisando primeiro as questões processuais e depois as questões de mérito. Descreve as principais ocorrências no decorrer do procedimento, expõe as razões de seu convencimento juridicamente fundamentado e decide a causa, quando acolhe ou rejeita, no todo em ou parte, o pedido formulado pelo autor.
Sentença é um ato de autoridade que se legitima desde que observados os marcadores deônticos estabelecidos pelo legislador. Zelando pela ética do discurso judicial contido na sentença, o código proíbe que o juiz emita julgamento a favor do autor de natureza diversa da pedida; ou condene o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado. Em caso de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz pode conceder tutela específica da obrigação ou determinar providências que assegurem o resultado prático equivalente ao seu adimplemento. Havendo fundamento relevante da demanda e justificado receio de ineficácia do provimento final, ele poderá conceder liminar visando alcançar a finalidade pretendida pela parte requerente. Assim, fixará prazo razoável para cumprimento de suar ordem, impondo multa diária para constranger a parte intimada ao cumprimento.
Reforçando a observação de que o percurso discursivo encerra-se com a sentença, o juiz não pode alterar o seu teor, salvo para corrigir inexatidões materiais ou retificar erros de cálculo. Poderá ainda alterar o texto quando a parte opuser embargos de declaração. Trata-se de um recurso destinado ao próprio juiz em casos de contradição, obscuridade ou omissão na decisão proferida. Tais esclarecimentos e complementações são necessários em face das repercussões que a sentença provoca na vida das pessoas envolvidas na lide. Assim sendo, mais do que um ato de inteligência ela deve ser inteligível e justificável.
A Sentença como ato discursivo produz coisa julgada material. Neste caso, ela adquire força de lei nos limites da lide e das questões decididas. A coisa julgada impede que o juiz decida novamente as questões já apreciadas, relativas à mesma lide. No entanto, não é absoluta, podendo ser questionada quando os marcadores deônticos do processo não forem obedecidos pelo juiz, seja em caso de erro de procedimento, seja em caso de erro de julgamento. Havendo erros desta espécie e/ou nulidades absolutas no procedimento os inconformados e/ou prejudicados podem ingressar com recurso ou ação rescisória[18].
Até aqui, expomos o percurso narrativo no direito processual, observando marcadores deônticos que estabelecem os limites dos atos de fala das partes, advogados e juiz. A lógica discursiva prescrita pelo legislador tem como propósito estabelecer relações transparentes e colaborativas entre os sujeitos processuais. Desta forma, o dissenso existente entre elas é narrado conforme cálculos estratégicos que, por si só, não inquinam a premissa ética informadora do discurso processual. O processo, como método estatal de solução de controvérsias, resulta de um consenso social como marco civilizatório: as divergências devem ser resolvidas pela via dialógica, superando a vindita privada. Através dele, as partes podem solucionar suas divergências diretamente, mediação e conciliação, ou indiretamente através da intermediação judicial. Em todos os casos, a lógica sistêmica muito a gosto dos tribunais brasileiros tende a ser mitigada pela participação ética das partes e juízes no desenvolvimento da relação processual, emancipando a pessoa humana em sua dignidade existencial.
CONCLUSÃO
Analisando a estrutura discursiva no Código de Processo Civil, procuramos identificar marcadores deônticos que orientam a conduta ética dos sujeitos processuais. As partes apresentam suas pretensões em contraditório, produzindo discursos estratégicos, visando o êxito na demanda. Em que pese a racionalidade estratégica desenvolvida pelos litigantes, é possível defender a tese em favor da ética do discurso no desenvolvimento de uma relação processual emancipadora.
Em razão disto, fizemos uma detalhada busca destes marcadores deônticos. Eles revelaram que por trás do sistema processual operacionalmente fechado, no qual o juiz reduz complexidades como observador sistêmico, existe uma pauta ética a exigir dos sujeitos processuais condutas sinceras e colaborativas.
As pretensões de verdade do autor e do réu geram versões dos fatos (VOESE, 2011), exigindo do juiz capacidade discursiva e dupla autoridade: epistêmica e deôntica. O conhecimento jurídico do magistrado, aliado à sua conduta imparcial, tende a legitimar sua decisão fundamentada no convencimento motivado, construído através de procedimento em contraditório.
Uma visão mais humana da relação processual leva-nos a considerar a interação discursiva no processo como elemento fundamental para uma guinada linguística no estudo e na prática do direito. Por esta razão, o Código de Processo Civil que entrará em vigor em 2016, como novo paradigma atitudinal, valoriza a linguagem processual simplificada e a ética discursiva como ferramenta essencial para a solução justa das demandas. A formalidade processual cede espaço para o exame do mérito, razão última das expectativas cognitivas das dos cidadãos em geral. Um Código de Processo Civil mais discursivo parece confirmar a hipótese aqui sustentada: menos formalidade e mais interação discursiva.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rosangela. A modalização nos discursos de uma autoridade política e de uma autoridade religiosa. Revista de C. Humanas, v. 7, nº 1, p. 57-67, jan./jun. 2007.
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HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução: Ana Cristina Arantes Nasser. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
MELLO, Marcelo Pereira de. Imigração e fluência cultural: dispositivos cognitivos da comunicação entre culturas legais. Curitiba: Juruá, 2012.
THEODORO Júnior, Humberto. A preclusão no processo civil. Publicado na Revista Jurídica nº 273, p. 5.
VOESE, Ingo. Argumentação jurídica. Curitiba: Juruá, 2011.
CAPÍTULO V
José Antonio Callegari
Marcelo Pereira de Mello
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como tema o direito e a linguagem. Nele, investigamos o processo como texto, supondo uma unidade discursiva que se forma em situação real de fala. Em contato com linguistas, sociólogos, antropólogos, juristas e filósofos, observamos o crescente interesse pela análise do discurso, pela análise textual e pela pragmática em situações reais de fala. Através da análise processual, portanto, tentaremos revelar o processo como texto, considerando as interações sintáticas, semânticas e pragmáticas em seu percurso discursivo.
Desenvolvemos a pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Neste ambiente interdisciplinar propusemos uma leitura menos dogmática do processo, percebendo os atos de fala na jurisdição e seu encadeamento discursivo. Entretanto, nossa leitura não descartou a importante função da hermenêutica e dogmática jurídica. Ao contrário, supôs uma articulação complementar entre elas. Como veremos, a estrutura discursiva do processo (sintaxe e semântica) soma-se à dinâmica dos atos de fala na jurisdição (pragmática), formando a unidade textual hipotetizada.
Registre-se que uma pesquisa interdisciplinar requer um esforço e tanto. A interface com outras disciplinas demanda certa abertura cognitiva, além de humildade intelectual do observador. A pesquisa interdisciplinar é desafiadora. Coloca-nos em contradição com paradigmas que se camuflam em feudos epistemológicos, funcionando como obstáculos da ciência (BACHELARD, 1996). A superação de paradigmas revelada por Kuhn (2013) encontra terreno fértil nesta área de pesquisa, não por acaso uma das que mais cresce na CAPES:
Os desafios da ciência e da tecnologia contemporâneas exigem, cada dia mais, um diálogo constante e profundo com os campos do saber. A hiper-especialização, que tanto mistério desvendou ao longo do século que termina, precisará, no século que se inicia, ser compensada por esforços de integrar os conhecimentos conquistados. O nosso mundo complexo e interligado apresenta inúmeros problemas também complexos e interligados. Tanto a Ciência quanto a Sociedade reclamam uma compreensão e intervenção integradas. A perspectiva e prática interdisciplinares já se tornaram uma condição sine qua non do avanço da Ciência nacional, sendo necessária não só para otimizar recursos, mas, especialmente, para potencializar a capacidade explicativa dessa Ciência, hoje compartimentada. É urgente encontrar estratégias que permitam a colaboração em áreas afins. (PHILIPPI, Jr. Arlindo; SILVA Neto, Antonio J. 2010, pg. XI).
Por vezes, superar paradigmas obsoletos, camuflados em setores disciplinares ou feudos epistemológicos, incomoda. Retira-nos da zona de conforto. Lança-nos no terreno da dúvida, da incerteza e do medo. Um paradoxo. Aquele que se lança para fora de seus domínios dogmáticos já sentiu na pele o desconforto que a um tempo angustia e a outro instiga.
No PPGSD[19], somos desafiados constantemente a enfrentar nosso senso comum profissional (BECKER, 2007). Isto porque ele nos aprisiona com força gravitacional. Dificulta a emancipação epistemológica do pesquisador. Ao longo do curso, temos contato com diversas abordagens metodológicas e uma profusão de teorias críticas. Desenvolve-se um comovente e intenso trabalho coletivo, colaborativo, participativo e solidário. Muitas das vezes ultrapassamos o limite das horas aulas, permanecemos na faculdade discutindo os temas ainda não esgotados. A interdisciplinaridade vai sendo construída com atos de fala e intersubjetividade, calor humano.
Nesse ambiente interdisciplinar, percebemos lacunas no estudo dogmático do processo. Notamos a insuficiência de uma abordagem estritamente processual para compreender a cadeia discursiva que se apresenta viva diante dos olhos. A vida pulsa nos autos do processo. No entanto, resta capturada por um tipo de redução semântica dos atos de fala, quando os fatos narrados pelas partes, testemunhas e informantes, por exemplo, são reduzidos à escrita. A burocratização tecnológica do processo reduz a vida a um mero jogo de linguagem (WITTGENSTEIN, 2000) em jaulas de ferro weberianas. O processo torna-se um fim em si mesmo; e o acesso à justiça, como direito, trasmuda-se internamente em problema sistêmico. Neste dilema, o sistema de justiça adota uma racionalidade de meios e fins, em face das contingências orçamentárias. Vai produzindo estatísticas e cálculos ascéticos cujo propósito é salvar o sistema, fazendo mais com menos.
Num cenário kafkiano, renovamos o interesse na capacidade discursiva das pessoas. Revelar o processo como uma unidade comunicativa, integrando aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos. Compreender o processo como espaço discursivo, eis a relevância da pesquisa.
Para desenvolver o estudo, partimos de algumas observações críticas. O processo burocrático tende a gerar desencanto e ressentimentos. Em razão disto, ouvimos com frequência que o trabalho judiciário é como enxugar gelo, uma vez que os esforços despendidos nem sempre alcançam os resultados esperados pelas partes e demais actantes processuais. A demanda crescente suplanta a capacidade de atendimento. O processo-garantia transforma-se em problema sistêmico. A compressão do tempo, a redução de fases procedimentais, novos institutos, nada parece frear a litigiosidade crescente e o desencanto provocado nas partes, advogados, juízes, servidores, defensores, promotores, enfim em todos que atuam nos ambientes judiciários. O desânimo toma conta. Já na época das minirreformas do Código de Processo Civil, Humberto Theodoro Jr. (2006) questionava a estratégia do legislador que desfigurava a lógica sistematizada do Código, sem alcançar a simplificação e a celeridade prometidas.
No momento em que se altera o Código de Processo Civil, estudos sobre a performance comunicativa dos sujeitos processuais mostram-se oportunos e relevantes. O novo CPC, aparentemente, coloca em primeiro plano a capacidade discursiva das partes[20]. No plano normativo, constrói-se uma nova ética do discurso, através de marcadores deônticos inovadores. No plano discursivo, abre-se a oportunidade para novos significados da atividade jurisdicional, informada por normas fundamentais de matriz constitucional. O momento exige, pois, novas abordagens sobre as interações sociais em juízo, diante da crescente litigiosidade individual e coletiva, do estado de anomia denunciado diariamente na imprensa, doutrina e jurisprudência.
A crise judiciária reflete e produz perplexidades, injustiças e agravamento da conflitualidade. Diante do novo paradigma processual, mostra-se viável o exame da estrutura discursiva do processo, propondo-se um estudo menos dogmático, que se não abandona sua dimensão instrumental a ela acrescenta a dimensão discursiva, no que podemos chamar de instrumentalidade discursiva do processo.
O TEXTO PROCESSUAL
Propomos analisar o processo como texto[21], questionando a relação do jurista com a realidade social que o cerca. A ineficiência do sistema processual sugere que algo não vai bem. O processo, como instrumento técnico, esfria e objetiva a relação entre pessoas envolvidas no seu drama particular. Neste sentido:
O direito, como tudo quanto existe, pode ser pensado. É perfeitamente possível e válido pensar o direito e pensar sobre o direito. Diria mesmo que é fundamental essa postura, antes de qualquer outra. E, enquanto nos situamos nesse espaço, o nosso puro pensar nada determina, concretamente no plano da faticidade, em termos de vida humana. O pensar reclama, entretanto, sua objetivação. E o que é pensado como direito deve ser objetivado, o que se dá mediante a produção de textos que denominamos de ciência, doutrina ou dogmática jurídica. Conhecimento que, no plano da regulação social da convivência humana, nenhuma consequência também determina, porquanto expresso por juízos descritivos, meras proposições, organizadas como saber especializado. (CALMON DE PASSOS, 2001, p. 2).
O direito brasileiro, como razão normatizada, estrutura-se em códigos e leis esparsas. Ele é pensado num contexto de disputas de poder, uma resultante possível de dissensos políticos e ideológicos. Racionalmente, o direito não deveria ser imposto. A força é o seu último recurso. Em uma sociedade emancipada pelo diálogo, pelo uso discursivo da razão, deveríamos agir por dever e não somente conforme o dever (KANT, 2007). Fosse desse modo, suas prescrições não levariam a uma obediência cega, a condutas cínicas e a um disciplinamento discursivo panóptico[22]. Uma razão jurídica comunicativa, de inspiração habermasiana, portanto, nos levaria a performances críticas diante de sua aplicação em vários contextos sociais: justiça com adequação. A lei pode ser rígida em sua estrutura sintática; não deve ser em seu uso semântico e pragmático. Para descobrir o sentido e o alcance da norma é preciso ir além, buscar algo que à hermenêutica normativa escapa. Precisamos entender o texto em situação comunicativa, onde se praticam os atos de fala na jurisdição. Algo como uma hermenêutica do fato, ou hermenêutica da facticidade segundo Heidegger (2013). Neste sentido:
5. Essa nova concreção do jurídico, entretanto, ainda se constitui mero texto, impotente, por conseguinte, como os que precederam, para gerar consequências materiais que traduzam efetiva interferência ou determinação no comportamento dos que são destinatários das prescrições contextualizadas. E isso se dá tanto a nível macro quanto a nível micro. Passa a dispor o jurista, nesse momento, de um sem número de textos, a Constituição, os códigos, as leis, os decretos, os contratos e tudo mais que nem por terem sido editados, promulgados, publicados ou formalizados implicam necessariamente em mudanças de nível de realidade material, no espaço da regulação da conduta humana. Dessa contingência nem mesmo escapam as sentenças transitadas em julgado. Tudo isso apenas em textos, nada mais que textos.
6. Por fim, a fase última do processo, aquela que realmente tem relevância em termos de facticidade, isto é, a execução, o conjunto dos atos materiais praticados sob o pálio daquelas decisões e dos quais decorrerão efetiva interferência na liberdade do patrimônio das pessoas. A esta altura, aterrissamos no mundo dos homens em sua mais completa concreção, deslocamo-nos do plano da validade para o da facticidade. As coisas acontecem e se diz que elas acontecem e se legitimam por força de sua adequação à legalidade. Já não lidamos com textos, sim com vidas, criaturas humanas, nossos semelhantes, sempre perplexos a se indagaram por que alguns homens podem tanto em relação a outros homens, a ponto de lhes determinarem o que devem e o que não devem fazer, necessariamente. (CALMON DE PASSOS. 2001, pg. 2-3).
O autor critica profundamente a dominação ideológica através do direito. Combatendo a visão instrumentalista do processo e a impotência do texto jurídico, enquanto texto somente, sugere uma guinada linguística. Em sua análise, separa os dois momentos do processo. Primeiro, como texto, no plano da validade; depois, como ato de execução, no plano da facticidade, onde as coisas acontecem.
Em nossa pesquisa, unificamos esses momentos. Pensamos que o mundo dos homens não ocorre fora do processo. Ele se manifesta comunicativamente na relação processual. Por esta razão, trazemos a pragmática para o centro do debate. No processo de conhecimento[23], por exemplo, atuam validade e facticidade, como se dá na fase probatória onde se praticam diligências de instrução. Desta forma, validade e facticidade formariam um binômio de dupla implicação atual e não sucessiva no tempo. Não haveria uma validade prévia e uma facticidade posterior na execução das decisões judiciais, sob pena de se objetivar as relações humanas no processo de conhecimento. Para nós, o reconhecimento do processo como texto coloca em destaque o papel dos actantes como produtores de atos de fala, humanizando a relação processual. A redução semântica que se dá quando da retextualização da fala para a escrita (MARCUSHI, 2010), por exemplo, não invalida a articulação necessária entre sintaxe, semântica e pragmática no discurso processual. Em razão disto, supomos o processo como unidade discursiva. Um texto como algo vivo (presencial) e vivido (registro histórico da vida de relação).
Verdade se diga que Calmon de Passos (2001) analisa o texto processual sob a ótica dos juristas. Investiga-o como produto e não como processo de produção textual, como supomos. Neste sentido, diz:
7. Se quisermos ser fieis e coerentes com quanto afirmado precedentemente, seremos obrigados a concluir que o direito, enquanto produto de pensamento e decisão (julgamento) é sempre linguagem, texto, proposição descritiva ou proposição prescritiva, extremamente vulnerável e impotente. Este, entretanto, é o material com que trabalhamos, nós, os juristas, e representa tudo quanto se coloca no espaço de nossa percepção e se faz operável por nós. Mas percebemos, por igual, que esses textos, proposições e prescrições são o resultado de todo um processo que os precedeu e foi determinante para a definição de seu conteúdo, o qual, em si mesmo e enquanto texto, de nenhum poder de determinação se revestiu, antes foram decisivamente determinados pelo processo de sua produção que, este, sim, foi preeminente e determinante. Discipliná-lo é o que se faz imperioso para se lograr o produto desejado. (CALMON DE PASSOS, 2001, pg. 3).
O excerto nos leva a considerar os aspectos sintáticos e semânticos do processo. O processo como ramificação do direito seria um produto de pensamento e decisão, linguagem. A dimensão textual do processo torna-se mais evidente em face do novo Código de Processo Civil. O novo Código sugere uma guinada linguística de natureza pragmática, quando valoriza a negociação no processo, a mediação, a conciliação e a arbitragem[24]. Cria um ambiente de colaboração intersubjetiva entre os concernidos na relação processual[25], inserindo nele uma ética do discurso habermasiana. Ao que parece o novo Código, em sua justificação, representa um disciplinamento do processo como proposto por Calmon de Passos. No entanto, a prática judiciária deve adequar-se aos novos tempos, pois:
Não há como dissociar o direito obtido como produto da organização política da sociedade que o produz e do processo político mediante o qual as reduções de complexidade se efetivam nesse primeiro momento, macro político e econômico. Nem para aí o processo de produção do direito, pois ele prossegue numa segunda etapa, aquela que, a nível micro, deve editar a norma reguladora de um conflito precisamente delimitado em termos de pessoas, de tempo, de lugar e de circunstâncias. Também aqui, como ali, antes de o produto condicionar o processo, é o processo que condiciona o produto. E também aqui não podemos dissociar o produto do processo de sua produção, que reclama como antes, rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos – agentes, organização e procedimentos – sob pena de se privilegiar os arbítrios dos decisores. (CALMON DE PASSOS. 2001, p. 3).
De fato, o processo é fruto de uma ideologia dominante em certa época. O novo CPC, se não supera a ideologia presente no Código de 1973, ao menos apresenta uma sincronização com as normas constitucionais[26]. Por isso, reclama uma nova interpretação e a construção de novos paradigmas epistemológicos que atualizem a dogmática e a prática jurídica nas universidades, nas escolas judiciais e nas instituições públicas e privadas. A mudança[27] em curso para se tornar efetiva, requer muito dos juristas e dos cidadãos.
O novo paradigma processual requer um manejo esclarecido, comprometido e ético das partes e dos profissionais do direito. Em razão disto, abordagens jurídicas que integrem a sintaxe, a semântica e a pragmática processual podem transformar práticas e culturas institucionais. A tradicional instrumentalidade técnica do processo pode ser lida como instrumentalidade discursiva. Com isto, reforçamos nossa hipótese de que o processo é um texto, uma unidade discursiva complexa. O processo vivo é um texto produzido intersubjetivamente, uma construção polifônica não reduzível à razão burocrática. Pelo contrário, é vida em movimento, clamando por celeridade, transparência, participação e segurança das decisões judiciais. Segurança traduzida em linguagem simples e acessível que se utilize dos termos técnicos quando necessário e sem prejuízo de sua função comunicativa: transmitir mensagens com clareza. O processo é coisa pública, retorna ao povo como soberano em uma ordem jurídica democrática. A respeito da instrumentalidade processual, diga-se que:
É essa evidência que o modismo da “instrumentalidade do processo” camufla, ou conscientemente – perversidade ideológica, a ser combatida, ou por descuido epistemológico, o equívoco a ser corrigido. Ele parece ignorar ou finge ignorar o conjunto de fatores que determinaram uma nova postura para o pensar e aplicar o direito em nossos dias, como sejam a crise da razão instrumental, severamente posta a nu neste século, os avanços originados pelos estudos semiológicos, a revalorização do político, a partir dos desencantos existenciais recolhidos pela experiência do capitalismo tardio e da derrocada do socialismo real, a crise do Estado do Bem Estar Social e, principalmente, as revoluções que têm sua raiz no progresso técnicocientífico, acelerado depois da Segunda Guerra Mundial. São elas a revolução eletrônica, seguida pelas revoluções das comunicações, dos novos materiais, da biotecnologia, todas incorporando lógicas próprias que determinaram a hibridização das várias lógicas organizativas as quais, por sua vez, influenciaram a mudança radical operada na ciência organizacional, com inevitável repercussão sobre o Estado e o direito. Tudo isso denuncia a existência de um novo paradigma, a pedir seja repensado o que ontem tínhamos como certeza. (CALMON DE PASSOS. 2010, p. 4-5).
A instrumentalidade técnica, pois, transmuda-se em instrumentalidade discursiva, projetando uma nova consciência operacional do processo. Assim:
10. Foi a consciência dessa mudança que motivou a reflexão jurídica de pessoas que estão se tornando referências em nosso tempo. Poderíamos agrupá-las sob a denominação de “procedimentalistas”, à falta de um nome melhor, ou de adeptos de processualização do direito. Tentaremos sintetizá-la. Se o direito é uma das formas de emprestar sentido e significação ao agir do homem, ele reclama, para sua compreensão, ser analisado do ponto de vista da comunicação humana, donde a ineliminável dimensão intersubjetiva e linguística de sua produção. Torna-se, pois, fundamental institucionalizar-se o que provisoriamente pode ser denominado de status activus processualis, concebido como o reconhecimento do direito fundamental de se participar, ativa e responsavelmente, nos procedimentos que objetivam produzir normas jurídicas, em todos os seus níveis, bem como na institucionalização das respectivas estruturas organizativas. (CALMON DE PASSOS, 2001, p. 4).
Pelo que já foi dito, interessa-nos analisar o agir humano em contextos judiciários, na relação processual. Para melhor compreendê-lo no processo, necessitamos conjugar a sintaxe processual como organização do percurso discursivo, a semântica processual como produtora de sentido, e a pragmática como atos de fala na jurisdição. Quando Calmon de Passos sugere institucionalizar o status activus processualis, ele antecipa a sincronização do processo com as normas fundamentais de matriz constitucional, assegurando um papel ativo àqueles que escrevem o processo como texto vivo. Este novo paradigma discursivo, tomado como unidade textual, requer profundas mudanças dogmáticas, atitudinais e institucionais. Repensar os currículos das universidades, das escolas judiciais e as políticas públicas judiciárias.
Neste contexto, observamos o processo não mais como instrumento de dominação e sim como mecanismo de emancipação da pessoa humana. Um instrumento informado pela ética do discurso, não desconsiderando o legítimo exercício de estratégias argumentativas e procedimentais, limitadas pela boa-fé processual. O processo como sintaxe, semântica e pragmática não seria um mero jogo de linguagem (WITTGENSTEIN, 2000). Emerge como relação humana em sua plenitude discursiva e interacional, mesmo que enfrente obstáculos epistemológicos, resistências institucionais, cinismos corporativos e comodismos que impedem sua emancipação discursiva. Um processo dessa natureza requer uma postura madura dos juristas, humildade intelectual e abertura cognitiva para o mundo da vida. O paradigma discursivo talvez seja a redenção de um instrumento ainda mal compreendido.
CONCLUSÃO
Apresentamos algumas considerações sobre a produção textual do processo. Citando extratos do Código de Processo Civil, procuramos demonstrar a guinada linguística em andamento. O processo como instrumento técnico vai se moldando como um instrumento discursivo: processo dialógico.
Com isso, percebemos uma nova dinâmica na relação processual. Interpretar o processo como um texto redigido em coautoria (autor, réu e juiz) amplia a noção de responsabilidade enunciativa dos sujeitos processuais como produtores de sentido. A razão discursiva pode transformar a dinâmica processual, trazendo elementos sociais e linguísticos para a prática jurídica. No texto processual convergem expectativas de pessoas reais, seus conflitos e as possíveis soluções através da linguagem. Na composição textual do processo, podemos exercitar a emancipação discursiva da pessoa humana.
Se estamos preparados para agir comunicativamente na relação processual, não o sabemos. Mas, temos o dever moral de agir neste sentido.
REFERÊNCIAS
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WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000.
José Antonio Callegari
Marcelo Pereira de Mello
INTRODUÇÃO
Investigamos o processo judicial como ato de linguagem tridimensional, partindo da teoria realeana[28], para qual o Direito é fato, valor e norma. Os dados colhidos indicam haver estruturas tridimensionais que se complementam: autor, réu e juiz; petição inicial, contestação e sentença; postulação, instrução e julgamento, etc. O processo, desse modo, vai se constituindo por atos de fala na jurisdição praticados por atores sociais, tais como: autor, réu, juiz, advogados, testemunhas, servidores, peritos, etc. Cada qual segue a ordem do discurso estabelecida previamente pelo código de processo, funcionando como gramática jurídica.
Com essa perspectiva, apresentamos algumas reflexões sobre a estrutura discursiva do processo. Sua estrutura Tridimensional, organizada por uma gramática igualmente tridimensional (sintaxe, semântica e pragmática), sugere haver um campo de conhecimento a ser explorado. Talvez a hermenêutica tradicional e normativa, que nos afasta do mundo da vida, não elucide o real sentido do processo como instrumento discursivo. Em complementação, sugerimos uma análise processual específica, talvez uma hermenêutica do processo. Assim, pensamos contribuir para uma análise processual complementar, onde o jurista, tão afogado em leis, reencontre o sentido jurídico através da observação do processo real feito por gente de verdade. O encontro da abstração e a generalidade normativa com a realidade pragmática é um desafio que se faz urgente no Direito, assim como o enfrentou a filosofia ao questionar a razão pura e a razão prática, bem como a tensão entre validade e facticidade. Chegou a hora de analisarmos o direito em sua construção cotidiana, nos autos do processo, onde a vida é como ela é, ou deveria ser.
PROCESSO JUDICIAL
Para os juristas, o processo é um método de resolução de conflitos. Através dele rompese a inércia do Poder Judiciário[29], avocando para si a resolução do conflito de interesses. Tem início quando uma petição inicial é protocolada[30].
A petição inicial provoca a jurisdição estatal. Por ela, a parte autora narra os fatos, argumenta e apresenta o seu pedido. Nela, indica as provas visando demonstrar os fatos alegados. Trata-se de uma peça importante, pois delimita os rumos do processo, estabelece os limites objetivos e subjetivos do texto processual, delimita a extensão semântica do processo. Com base nela, o réu e o juiz examinam os fatos, construindo suas narrativas. A propósito, cabe ao réu alegar em sua contestação toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor[31]. O juiz, por sua vez, deve julgar a causa nos limites da ação proposta. O julgamento está adstrito[32] ao que foi pedido na ação, sob pena de nulidade. Percebe-se, com isto, um encadeamento discursivo que se desenvolve segundo a ordem do discurso estabelecida na gramática processual.
Petição inicial, contestação e sentença formam o eixo discursivo principal do processo[33]. Documentam atos de fala na jurisdição, através das quais flui a trama processual. Os atos de fala, assim documentados vão compondo o texto processual em co-autoria. O texto processual, assim constituído, contém formas jurídicas de proteção da pessoa humana, tais como:
Como garantia discursiva[34], o processo é mais do que um aglomerado de peças jurídicas. O texto processual rompe os limites sistêmicos[35], encerrado em operações lógicas autorreferentes. Nele, pulsa a vida de pessoas reais, individualizadas em sua dignidade humana. Cada processo é uma história de vida, cuja dramaticidade depende do tipo de fato levado ao juiz. Assim, o drama narrado em um processo penal é muito diferente daquele descrito em um processo trabalhista. As histórias contadas em processos de família revelam dramas existenciais que não se apresentam em causas empresariais, por exemplo.
Em seu percurso discursivo, conjugam-se duas gramáticas jurídicas. Aquela que estabelece o dever ser no mundo da vida e aquela que estabelece o dever ser em juízo. Ambas ordenam as performances discursivas dos sujeitos de direito. No primeiro caso, temos a Constituição, o Código Civil, o Código Penal, a Consolidação das Leis do Trabalho, etc. Todos regulando a vida de relação, prevendo a conduta e as sanções correspondentes. Quando surge um conflito, não superado por meios alternativos (mediação, conciliação e arbitragem) os envolvidos levam suas diferenças ao Poder Judiciário. Nesse momento, o Código de Processo é acionado, ordenando os atos de fala na jurisdição. No processo, as partes e o juiz elaboram textos jurídicos com base na gramática processual, sintonizada com a gramática jurídica correspondente[36]. Havendo um crime, por exemplo, os sujeitos utilizam a Constituição, o Código Penal e outras normas jurídicas como referência discursiva, ordenando os atos de fala segundo as regras procedimentais do Código de Processo Penal[37].
Note-se, pois, que o processo é um texto formado em um contexto social e institucional. Assim, cada ambiente vivido pelas pessoas compõe o cenário das narrativas processuais. E cada narrativa é levada ao Poder Judiciário segundo as regras de competência que organizam a divisão social do trabalho dos juízes. No processo civil, por exemplo, quando o juiz necessita conhecer melhor o contexto da causa, ele realiza a inspeção judicial[38], comparecendo ao local onde se encontra a pessoa ou a coisa objeto do litígio. Com isto, ele pode verificar e interpretar melhor os fatos narrados, determinando até mesmo a reconstituição deles quando necessário.
Assim, cada juiz age nos limites de sua competência funcional, fixada na Constituição Federal, nas Constituições estaduais, nos Códigos de Processo, e em determinado contexto social e institucional previamente estabelecido. Um juiz criminal atua no tribunal do júri, enquanto um juiz trabalhista não tem contato direto com os crimes dolosos contra a vida, pois lhe falta competência para julgar delitos desta natureza. Aquele que atua em vara de família não tem contato direto com questões falimentares, e assim por diante. Em cada ambiente há uma complexa rede comunicacional, na qual os profissionais ambientados atuam com desenvoltura. A interação de fatores sociais, jurídicos e linguísticos repercute no texto processual, tais como: tipo de conflito, regras jurídicas aplicáveis, competência funcional do juiz, pessoas envolvidas, estrutura discursiva, turnos de fala, etc.
GRAMÁTICA JURÍDICA
A produção do texto processual em contextos institucionais suscita algumas considerações. Mello (2012) utilizou uma estratégia interessante para analisar a fluência cultural de imigrantes na Itália. Partindo da imagem do estrangeiro de Schutz, ele identificou um processo de aquisição de fluência cultural de imigrantes. A necessidade de comunicação leva o imigrante, na qualidade de estrangeiro, a adotar estratégias comunicativas eficientes. Podemos transpor a imagem para o caso do litigante que não conhece o ambiente judiciário. Ele comunica-se com o réu e o juiz, narrando os fatos, argumentando e deduzindo o seu pedido.
No momento em que se dirige ao juiz, ele se depara com um ambiente estranho, ritualístico, com uma linguagem difícil, prazos, procedimentos, burocracia, etc. Ao contrário do imigrante, que dispõe de algum tempo de aprendizado por tentativas de erros e acertos, a pessoa que se dirige ao Poder Judiciário[39] não dispõe, na maioria das vezes, de uma segunda chance[40]. Uma ação mal encaminhada pode significar prejuízo irreparável. Daí a necessidade da interposição de um profissional habilitado nas letras jurídicas: o advogado[41]. Trata-se de um profissional com um acervo cognitivo suficiente para entender a estrutura sintática do discurso jurídico e sua extensão semântica e pragmática. O recurso a um advogado garante certa fluência discursiva no processo.
O advogado simplifica a situação para o seu cliente. Atua como um intérprete das regras jurídicas, ao mesmo tempo que facilita o trabalho do juiz, pois transcreve a pretensão das partes para o discurso técnico-jurídico. Conhecedor do direito, ele estabelece situações ideais de fala[42] para uma comunicação eficiente entre os atores processuais. Existem situações nas quais a pessoa dirige-se ao juiz sem a presença de um advogado[43]. São questões de menor complexidade jurídica. Não afasta, contudo, os riscos de falhas comunicativas no plano sintático e semântico. Façamos um parêntesis. Ocorreu-nos certa ocasião ingressar com uma ação em face de uma empresa de telefonia. Apesar de nossa formação jurídica, fomos até um juizado especial e apresentamos a reclamação no balcão de atendimento. Atendeu-nos um grupo de estagiários de direito. Todos interessados no caso. Um deles ficou encarregado de redigir a narrativa em forma de petição inicial. Depois de concluída a redação, recebemos a peça para dar entrada no protocolo. Ao ler a petição, notamos erros técnicos, redação precária e narrativa incompleta. Informações importantes narradas ao estagiária não foram lançadas na petição inicial. Enfim, caso desse andamento ao processo seguramente perderia a ação. Elaboramos outra peça e demos entrada no protocolo. Tivemos êxito na ação.
Em razão de nossa formação jurídica, visualizamos o curso do processo antes de ingressar com a ação. Conhecendo a gramática jurídica, detectamos as falhas discursivas que afetariam o sucesso da ação. Corrigimos os erros, escolhendo a melhor estratégia argumentativa, aprimorando a narrativa dos fatos. Situação bem diferente daquele que se dirige ao Poder Judiciário sem uma assessoria jurídica. Os estagiários não erraram por falha acadêmica. Faltou-lhes a noção textual do processo, coisa que se adquire com a prática jurídica ao longo dos anos. Em termos de texto, faltou-lhe apreender com precisão os fatos narrados para depois transcrever o discurso leigo em discurso técnico. Isso é bem compreensível, em se tratando de pessoas em processo de aprendizagem. Esta é uma das finalidades do estágio: caráter pedagógico e profissional.
O fato em si evidencia a importância de um estudo sociolinguístico do processo. Ao jurista, não basta conhecer a gramática de sua profissão. Um ensino interdisciplinar, apurado pela visão social e linguística, pode ampliar sua eficiência discursiva, repercutindo na segurança jurídica das partes. O fato leva-nos a pensar no advogado não como um profissional jurídico somente, mas como um agente discursivo fundamental na construção textual do processo.
HERMENÊUTICA PROCESSUAL
Como vimos, o processo como texto supõe um eixo discursivo principal, no qual articulam-se as falas do autor, do réu e do juiz. Para os juristas, forma-se uma relação jurídica triangular.
Mas, a relação discursiva não é tão simples assim, linear e bem definida. Entre as falas principais, articulam-se outras coadjuvantes. Ao eixo discursivo principal, somam-se outros com objetivos e funções gramaticais variadas. São discursos produzidos pelos procuradores das partes, representantes, litisconsortes[44], terceiros intervenientes, amicus curiae[45], escrivãs, chefes de secretarias, peritos, conciliadores, mediadores, testemunhas, etc. Formam uma trama polifônica, previamente ordenada pela gramática processual. O juiz atua como o maestro da polifonia discursiva. Ele ordena os trabalhos, dirigindo o processo com os poderes investidos por lei[46].
Em sua função gramatical, o Código de Processo orienta os atos de fala na jurisdição. Estabelece formalidades, delimitando o tempo e o local onde eles são praticados. A gramática processual divide-os em frames. Assim, podemos identificar três frames bem definidos: postulatório, instrutório e decisório. No primeiro, autor e réu narram os fatos, argumentam e deduzem suas pretensões (acusação e defesa). No segundo, eles produzem as provas sob a direção do juiz. Visam esclarecer os fatos narrados, formando a convicção do magistrado. No terceiro, o juiz narra as ocorrências do processo e decide com base no material probatório[47] existente nos autos. Assim, cada frame conecta-se ao seguinte, formando uma unidade discursiva maior: o processo como texto. De tal modo, o processo se apresenta como unidade comunicativa em três dimensões: sintaxe, semântica e pragmática.
Como gramática, o Código de Processo estabelece a ordem do discurso jurídico. Observando a sintaxe processual, os sujeitos praticam atos de fala, conferindo sentido aos seus textos jurídicos (semântica). Entre a norma gramatical e o texto produzido há um espaço discursivo real, onde se intercalam atos de fala e interações face a face. As interações em audiências são um exemplo clássico. Nelas, revela-se a dimensão pragmática do discurso processual. Assim, sintaxe, semântica e pragmática integram a unidade discursiva aqui observada: o texto processual. Desta forma, ele permite abordagens distintas, seja observando os discursos como gêneros (petição, contestação, sentença, acórdão, depoimentos), seja analisando o texto propriamente dito.
Quando imaginamos o processo como texto, destacamos o papel daqueles que integram a relação processual. Partes, advogados, juízes, auxiliares da justiça, atuam ora como intérpretes ora como produtores textuais. Realizam operações dedutivas e indutivas constantemente. Partem dos fatos às normas e das normas aos fatos, construindo uma complexa rede comunicativa.
A análise processual “imerge na textualidade do processo, descolando sentidos presentes e expressos no texto, ou, mais ainda, sentidos não expressos, assim como não previstos pelo autor” (BITTAR, 2015. Pg. 68). O processo como texto produz uma significação própria, uma resultante semântica dos sentidos produzidos por discursos das partes e do juiz. Como estamos sugerindo uma análise tridimensional da linguagem processual (sintaxe, semântica e pragmática), podemos dizer:
No contexto das reflexões empreendidas por meio deste texto, há que se dizer, ademais, que se estará a considerar a triangularidade das relações semióticas (semântica/ pragmática/ sintática) como pressuposto de conhecimento e de referência de central importância. A recorrência a esse espectro do problema, portanto, far-se-á constante durante todo o percurso do texto. Se a Semiótica Jurídica cabe estudar a significação, então, é claro, desse seu espectro de investigação não cabe alhear o triângulo semiótico (modelo formal de Morris e Carnap, inspirado em Peirce, reafirmado, posteriormente, por Ogden & Richards), pois o triângulo semiótico representa a totalidade do fenômeno do sentido, seja com relação ao sujeito (conceito, interpretante), seja como relação ao referente (psicológico, lógico, físico, metafísico), seja com relação ao significante (simbologia, linguagem, sistema de representação). Semântica jurídica, sintática jurídica e pragmática jurídica são os três grandes ramos da Semiótica Jurídica, nesse sentido. (BITTAR, 2015. Pg. 70)
No processo, as falas são encadeadas por uma sintaxe normativa. Como diz Bittar (2015), a prática jurídica é um movimento contínuo e quase sempre crescente de textos jurídicos. Os atos processuais discursivos sucedem uns aos outros, numa relação causal e finalista. Este movimento progressivo compõe a realidade textual da juridicidade[48] (BITTAR, 2015). Para ele, os discursos jurídicos decorrem de práticas sociais de sentido em universos discursivos próprios. Haveria uma relação imprescindível entre práticas sociais de sentido e discursos jurídicos. Assim, textos e práticas discursivas atuariam em permanente tensão. Na produção textual do processo, entram em jogo as habilidades discursivas dos falantes, potencializadas pelo uso de dispositivos cognitivos e fluência cultural adquirida (MELLO, 2012).
No processo, podemos aplicar a “ideia de discurso situacional, entendido este como uma malha de significações (locucionarias e perlocucionárias” envolvida que está por uma circunstancialidade que a condiciona em seu entendimento e interpretação (BITTAR, 2015.pg. 92). Para aplicarmos a ideia sugerida, pensemos no seguinte. Num processo trabalhista o tema é relação de trabalho, regido por normas da CLT, Constituição Federal, convenções coletivas, acordos coletivos, etc. A semântica produzida é informada por princípios e interpretações dadas pela dogmática jurisprudência trabalhistas. A audiência ocorre em sala onde fica disposta a mesa, na qual sentam-se o juiz em sua cabeceira, e as partes uma de cada lado. O empregado e seu advogado ao lado esquerdo do juiz, e o réu e seu advogado ao lado direito. No processo penal do Júri, a coisa muda bastante. A sintaxe vem do Código de Processo Penal, a semântica do Código Penal, da dogmática penal e da jurisprudência criminal. A pragmática ocorre em uma sala de audiência muito peculiar. O Tribunal do Júri é composto de um juiz que o preside, um promotor que postula aplicação da lei, a defesa, um auditório amplo, e um conselho de sentença formado por 07 jurados leigos. Num caso de família, o processo se desenvolve pelas regras do Código Civil e Constituição Federal, a semântica chega-lhe da doutrina e jurisprudência cível e a pragmática ocorre em salas de audiências mais reservadas em razão do sigilo da causa[49]. Em cada situação comunicativa podemos dizer, com Bittar (2015), que ocorre um discurso situacional.
Arrematando:
A noção de circunstancialidade é fundamental para compreensão do fenômeno histórico que subjaz à existência do discurso, pois o discurso sempre ocorre no tempo e na história; tal apontamento de desprende como consequência relevante para uma semiótica discursiva, que não se quer neutra, mas sim crítica das produções fenomênicas de discurso. O discurso, portanto, é sempre um discurso situacional, vivendo em constante dialética com as condições de sua produção, com os valores e os demais importes fáticos que relevam de uma fenomênica discursiva, de um contexto de produção em que se acentua o estar em discurso. (BITTAR, 2015. Pg. 92).
As interações discursivas formam o texto processual. São registradas naquilo que se chama autos do processo. Trata-se do registro histórico das ocorrências processuais: petições, documentos, certidões, ofícios, sentença, etc. Nos autos do processo, temos a documentação dos atos de fala na jurisdição. Ele revela a parte física e visível do processo[50].
O percurso gerativo do discurso, como sugerido por BITTAR (2015), leva-nos ao texto em sua totalidade e lógica orgânica. Ele é formado por um conjunto de elementos reciprocamente considerados. A trama textual é plena de significados contextualizados. Lembremos da relação causal entre os atos processuais, já dito anteriormente. Mais do que relação procedimental, trata-se de relação linguística, pois formadora da unidade discursiva que se constrói dialógica e dialeticamente. A geração do texto processual combina, pois, ordem normativa (sintaxe), intencionalidades (semântica) e performance discursiva (pragmática). Neste percurso, destaca-se o papel ativo do produtor textual:
Como se pode perceber no desenvolvimento da discussão empreendida, a percepção biológica (estágio pré-código) é o primeiro passo para o percurso gerativo de qualquer discurso, e já nessa fase se manifesta a criatividade humana na formação do sentido, pois, antes de ser agente passivo, o ser racional é agente ativo do processo de formação da significação. Toda semiótica se articula sobre um universo de experiência que se pode chamar de “referente” (designatum), este que é fruto de uma interação do homem com os ambientes natural, social, cultural, físico, político, econômico...que o rodeiam. (BITTAR, 2015. Pg. 96).
O percurso gerativo assim imaginado opera segundo um “esquema de funcionamento”, o que para nós seria a sintaxe processual. A textualização para Bittar (2015) opera em quatro grandes níveis: nível referencial, nível conceptual, nível da língua natural, nível dos textos. Em nosso caso, acrescentaríamos o nível da linguagem processual. Façamos um esclarecimento. Quando utilizamos linguagem processual, especializamos o termo, pois se trata de uma forma peculiar de manifestação da linguagem jurídica.
No entanto, nem toda linguagem jurídica é processual, ao passo que a linguagem processual é jurídica. Neste caso, estamos falando do processo judicial. Assim, uma convenção de condomínio, um contrato de aluguel, um termo de entrega de chaves, uma certidão de imóveis são textos jurídicos. Não são textos processuais. Uma petição inicial, a contestação e a sentença são textos processuais, espécies de textos jurídicos. Por esta razão particular, acrescentamos o nível da linguagem processual, que pode ser dividida em tantas outras. Lembremos o que nos disse Bonfim (2013) quando falou sobre a linguagem e léxico próprio no tribunal do Júri. Cada rito processual, contém regras e atos de fala próprios que diferenciam os textos processuais em razão de sua instrumentalidade discursiva: Código de Processo Penal como instrumento do Código Penal, Código de Processo Civil como instrumento do Código Civil, etc.
A unidade textual que supomos decorre muito de perto do seguinte fenômeno:
A textualização, de fato, como manifestação do discurso, pressupõe a profundidade das relações sensoriais, perceptivas, semiológicas, lógicas... e sua ocorrência nada mais representa que a atualização de esquemas narrativos. Todo texto se produz valendo-se dessas categorias comungadas, e manifesta representações, percepções, leituras, interesses, vontades, intenções, pertinentes a situações determinadas, universos de discurso determinados, a contextos culturais próprios, a sujeitos históricos. (BITTAR, 2015. Pg. 98-99).
O percurso gerativo do discurso processual permite observar sua elaboração textual e a unidade significativa decorrente. Perceber as etapas de textualização do processo, amplia a percepção dos níveis linguísticos deste instrumento jurídico, seja na superfície sintática, na profundidade semântico e nos arranjos pragmáticos. O processo vai se formando como instrumento discursivo, uma realidade linguística e não um depósito burocrático de discursos desconexos com a realidade circundante, em que pese certa crença forense no encerramento operacional do sistema, cada dia mais questionado em face da complexa rede semântica e pragmática que é o mundo da vida, em seu modo analógico e digital de viver.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos que o processo tem início com a petição inicial, provocando as falas do réu (contestação) e do juiz (sentença). De tal modo, os atos de fala sucedem-se no tempo em uma relação causal. Via de regra, um ato é causa do que lhe segue. Por esta razão, rupturas discursivas[51] podem gerar nulidades processuais, uma vez que perturbam a coerência sintática, semântica e pragmática do texto produzido.
Se a um tempo a ordem do discurso processual é um símbolo de dominação simbólica, para trabalharmos com categorias de Foucault e Bourdieu, ela representa uma garantia discursiva das partes e do juiz. As regras jurídicas do discurso processual conferem estabilidade e previsibilidade ao texto processual, permitindo o controle social dos atos judiciais.
Em seu percurso discursivo, o processo segue uma dinâmica relacional e referencial. A petição inicial provoca a jurisdição, trazendo o réu para o processo, inaugurando a relação processual. Com peça inicial do processo, é a primeira referência discursiva do réu (contestação). Ambas atuam como referências discursivas do juiz (sentença).
Assim, o processo se desenvolve progressivamente, rumo ao provimento final. Termina por manifestação judicial, através de uma sentença, acórdão ou homologação de um acordo entre as partes. Entre a petição inicial e a manifestação final do juiz, sucedem-se inúmeros atos discursivos: a resposta do réu, os depoimentos, os atos dos auxiliares da justiça, etc. Todos formam uma trama textual. Deste modo, compõem uma unidade discursiva.
Ao percebermos a unidade discursiva do processo, podemos despertar interesses no estudo menos dogmático e burocrático dessa realidade social. Nossas observações, até aqui realizadas, levam-nos à duas constatações. A primeira delas indica haver duas gramáticas jurídicas: a gramática jurídica do mundo da vida (Código Civil, Código Penal, etc.) e a gramática jurídica processual, fortemente institucionalizada. A segunda delas indica haver dois modelos hermenêuticos em questão. A hermenêutica processual, essencialmente dogmática e normativa, e a hermenêutica do processo, focada na realidade dos atos de fala na jurisdição.
A tensão entre norma e prática social lança um desafio epistemológico: a construção de um saber jurídico a partir da realidade vivida no processo. A construção de uma epistemologia do processo talvez seja o grande desafio atual. Numa cultura afogada em leis, percebemos a realidade social enviesada, neutralizando, quando não anulando, as falas e as expectativas das pessoas. Consciente ou não, livre ou dominado por suas ideologias, o mundo jurídico oprime e suprime a cidadania quando não leva a sério os atos de fala na jurisdição como manifestação tridimensional do direito (REALE, 1994): fato, valor e norma ou pragmática, semântica e sintaxe.
REFERÊNCIAS
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito. 6. ed. Rev, atual. e mod. São Paulo: Saraiva, 2015.
BONFIM, Edilson Mougenot. No tribunal do júri: crimes emblemáticos, grandes julgamentos. 5. ed. rev. e amp. São Paulo: Saraiva, 2013.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collége de France, pronunciada no dia 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 23. ed. São Paulo: Loyola, 2013.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução: Ana Cristina Arantes Nasser. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organização e tradução Cristina Magro, Victor Paredes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
MELLO, Marcelo Pereira de. Imigração e fluência cultural: dispositivos cognitivos da comunicação entre culturas legais. Curitiba: Juruá, 2012.
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva. 1994.
CAPÍTULO VII
José Antonio Callegari
INTRODUÇÃO
A crise sanitária, decorrente da pandemia do COVID-19, trouxe ao debate uma questão urgente: a efetividade do sistema jurídico de proteção social.
Em particular, tratemos da proteção do social do trabalhador. Nosso recorte leva em consideração o retrocesso social dos trabalhadores, a partir da Reforma Trabalhista e agudizado no contexto da pandemia do COVID-19.
Utilizamos uma análise normativa, a partir da Constituição Federal. Nela identificamos um complexo sistema de proteção social destinado também aos trabalhadores.
A partir dela, intuímos um conflito de interesses entre subsistemas que, no plano normativo, complementam-se harmoniosamente. Entretanto, no plano fático, travam disputas por hegemonia, culminando com a prevalência da racionalidade político-econômico-financeira em detrimento de uma racionalidade existencial e solidária.
Ao final, convidamos o leitor a refletir sobre “as consequências socioculturais do progresso técnico”, com apoio em Habermas (2014).
SISTEMA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO DO TRABALHADOR.
Em 05 de outubro de 1988, promulgou-se a Constituição da República Federativa do Brasil. Inaugurando uma nova ordem jurídica, ela concebeu um amplo sistema normativo de proteção social, trazendo os direitos fundamentais e sociais dos trabalhadores ao primeiro plano do cenário constitucional. Desse modo, constituiu-se um Estado Democrático de Direito.
Como texto básico da ordem jurídica, a Constituição adotou princípios fundamentais, tais como: dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Ao delinear a estrutura normativa da República Federativa do Brasil, a Constituição definiu certos objetivos, visando construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, bem como reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
No auge da pandemia, quando se discute a relação entre prevenção, promoção e recuperação da saúde, com impactos na economia, importa registrar o tratamento constitucional da questão, a partir dos objetivos, valores e princípios constitucionais.
Assim sendo, percebe-se que, em momento algum, o legislador constituinte originário fez prevalecer o interesse da economia sobre outros interesses socialmente relevantes. Ao contrário, estabeleceu um sistema harmonioso de ações e políticas públicas focado na liberdade, justiça e na solidariedade.
Tais ações relacionam-se diretamente com o desenvolvimento nacional. Portanto, como será destacado mais adiante, é supostamente inconstitucional as teses governistas que relativizam as medidas sanitárias e de proteção social, utilizando argumentos como “o Brasil não pode parar” e a política do “fica em casa e a economia a gente vê depois”.
Desse modo, qualquer ação ou omissão dos agentes públicos, a negar o tratamento sistemático e coordenado das questões sanitárias e de seguridade social, sem descuidar de medidas de proteção da economia nacional, durante a pandemia do COVID-19, incorre em inconstitucionalidade flagrante.
Em sentido prático, não basta programar um sistema de proteção social, há que se garantir o exercício dos direitos socais e individuais, visando o bem-estar da pessoa humana, vinculados certamente com os fundamentos da economia. Solidariedade é propósito que existe realização concreta e sistêmica.
Por conseguinte, a Constituição foi concebida para se realizar no mundo da vida. No entanto, sua “força normativa” depende da “vontade de Constituição” (HESSE, 1991). Em outras palavras, para realizar os programas sociais da Constituição devemos agir com essa vontade de Constituição, orientando nossas condutas segundo uma racionalidade solidária e existencial, programada normativamente e exequível na prática.
Vencer a inércia normativa, numa sociedade tão desigual, com ranços do patrimonialismo e do patriarcalismo[52], subjugada por uma racionalidade burocrática e autopoiética[53], é o grande desafio das pessoas com vontade de Constituição.
Esses fatores, que disputam prevalência no contexto da pandemia do COVID-19, evidenciam as disputas entre os subsistemas sociais, suas lutas por hegemonia, e a prevalência até aqui da racionalidade econômico-financeira sobre a racionalidade solidária e existencial.
A tensão entre facticidade e validade, muito acentuada nesse momento, reforça ainda mais o conceito de força normativa da Constituição (HESSE, 1991), pois ela atua sobre o ordenamento jurídico, sistematizando a atuação harmoniosa dos Poderes da União.
No entanto, a força normativa não basta por si mesma, muito embora contenha valores, princípios e regras jurídicas que organizam os Poderes da União, segundo regras jurídicas de competências exclusivas, comuns e concorrentes.
Como toda norma jurídica, a Constituição é concebida a partir da vontade política das pessoas, integradas em determinado território soberano: povo. Essa vontade política contém expectativas normativas, tal como disposto no preâmbulo da Constituição brasileira.
Essa vontade política, como fonte originária da Constituição, atua no sistema político, produzindo o texto constitucional. Como resultante da expectativa normativa do povo, a Constituição retorna ao mundo da vida como determinante das ações sociais e políticas, necessárias à realização práticas das expectativas sociais normatizadas. Numa palavra, a Constituição estabelece diretrizes fundamentais para a elaboração de políticas públicas, retornando à sociedade como imperativo de ações práticas.
Portanto, o texto constitucional atua no sistema político-jurídico como ordem de ação, um imperativo categórico do ordenamento jurídico. A Constituição não é uma carta de intenções; é, antes de tudo, uma carta de ações, de onde partem as diretivas para as ações públicas que organizam a vida política e social da nação, dentre as quais podemos indicar as ações de proteção social do trabalhador e de promoção da economia nacional.
Retornando a Hesse (1991), a força normativa da Constituição necessita de uma forte, contundente e sincera vontade de Constituição. Se adotarmos um ponto de vista kantiano, ela contém um imperativo para ações por dever e não somente conforme o dever, pois a efetivação dos valores e princípios constitucionais impera sobre a vontade solipsista dos governantes e das estruturas autopoiéticas da burocracia estatal.
No contexto atual da pandemia (COVID-19), assistimos a tensão real entre a força normativa da Constituição e os seguimentos políticos e sociais que negam essa vontade de Constituição, obstando a realização existencial da pessoa humana. Nesse embate, submetem a racionalidade solidária ao imperativo de uma racionalidade econômico-financeira, como se a promoção da saúde e da vida comprometesse a ordem econômica.
Como resultado, assistimos a precificação da vida, mediante estratégias políticas, personalíssimas e autoritárias, fundamentadas no dilema entre vida X economia. No entanto, a Constituição, em sua vertente normativa, coloca a dignidade da pessoa humana, a valorização social do trabalho e a livre iniciativa como princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, unindo na mesma equação jurídica os fatores de promoção do bem-estar social e da produção, como elementos essenciais ao progresso econômico da nação.
Logo, a Constituição estrutura um sistema de promoção da riqueza nacional em compasso com a proteção da pessoa humana. Por conseguinte, a produção, o emprego, a saúde, a seguridade e a assistência social integram um sistema normativo, cujo funcionamento depende de uma visão de Estado, muito mais ampla e perene do que a visão dos governantes, nos limites temporais dos seus mandatos.
Em razão disso, a promoção da dignidade da pessoa humana encontra-se ligada diretamente com a valorização social do trabalho e da livre iniciativa. Podem, contudo, integrar subsistemas normativos específicos, sem, por isso, inviabilizar o funcionamento harmonioso do sistema constitucional.
Portanto, o acoplamento desses subsistemas decorre de uma vontade constitucional. Essa vontade contém um imperativo categórico de promoção das condições de vida e da produção econômica, mediante atuação harmônica entre os Poderes da República. Ao falarmos em vontade constitucional, destaquemos o papel do indivíduo que atua nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, pois o acoplamento normativo desses subsistemas constitucionais é o meio de realização das ações práticas que dependem do compromisso social dos agentes investidos nas respectivas funções públicas.
Importa registrar que a força normativa, como acentuado por Hesse (1991) não elimina as disputas hegemônicas entre subsistema constitucionais. A pandemia (COVID-19), por exemplo, realçou a tensão entre subsistemas constitucionais, colocando em choque o pragmatismo econômico financeiro e a proteção social dos trabalhadores.
Analisando o mercado de trabalho na pandemia, Paula Montagner (2021) deixou claro “a necessidade de políticas ativas de inclusão para geração de trabalho e renda”.
Em seu artigo, relata:
Quando a pandemia de Covid-19 alcançou o Brasil no primeiro trimestre de 2020, a economia não mostrava crescimento sustentável e o mercado de trabalho não estava conseguindo gerar empregos, como havia prometido a reforma trabalhista. De fato, já acumulava taxas de desemprego muito elevadas e crescimento da subutilização da mão-de-obra e da informalidade. (MONTAGNER, 2021).
Seu estudo indica que há um falso dilema entre proteção da vida X produção econômica, tal como sustentado por certos agentes públicos. Os dados, por ela analisados, revelam que o mercado de trabalho e a economia não viam bem, mesmo com a reforma trabalhista de 2017[54], cujo propósito de flexibilização e desregulamentação promoveu graves retrocessos na proteção social do trabalhador.
O cenário, antes da Pandemia, era de precarização do trabalho e de subutilização da mão-de-obra com aumento da informalidade e da pejotização[55].
Segundo Montagner (2021), os dados observados revelaram a subutilização da força de trabalho no período 2012-2020, sendo agravada no contexto da pandemia.
Seu estudo demonstra que a taxa de desocupação alcançava 12% entre 2016 e 2019, atingindo 12,6 milhões de pessoas.
Para Montanger (2021), o ano de 2020 intensificou a crise laboral, com redução de ocupações, refletindo sobre a taxa de desocupação. A falta de possibilidade de procurar trabalho, ou de ir à escola, em especial para as mulheres e aposentados, agravou o cenário.
Conforme relatado, o Mercado Formal de Trabalho foi atingido em cheio. Para contornar a situação, o Ministério da Economia elaborou o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda, definindo um benefício emergencial.
O programa estabeleceu medidas, tais como a redução da jornada de trabalho e de salários e a suspensão do contrato de trabalho, prevendo a complementação de renda para os empregados formais com redução de jornada e de salário. A suspensão do contrato garantiu a permanência no emprego, como forma de estabilidade provisória.
Para os trabalhadores informais e desempregados, o estudo de Montagner (2021) indicou que houve acesso à renda emergencial. Registre-se que o benefício originariamente oferecido pelo Governo Federal foi de R$300,00, ampliado pelo Congresso Nacional para 05 parcelas de R$600,00 e 03 parcelas de R$300,00, até dezembro de 2020, quando o programa foi interrompido.
Montagner (2021) demonstra que houve um intenso controle da primeira onda da pandemia, resultando em tentativa de retorno da atividade econômica e ao trabalho presencial.
No entanto, como demonstrou, “o atraso da vacinação decorrente das escolhas do governo federal, rapidamente mostrou o amento de casos graves e custou a vida de centenas de milhares de brasileiros no primeiro trimestre de 2021”.
A pesquisa sinaliza que a interrupção do programa emergencial e do acesso aos programas de renda mínima impactou na deterioração das condições de vida da população, trazendo a fome para o contexto das famílias.
Montagner (2021) noticia que houve retomada tardia do benefício emergencial, sendo que “um dos motivos para adiar a tomada de ações mais direta para transferir recursos para famílias sem renda, esteve marcado pela aposta na retomada das atividades econômicas”.
O estudo serve de argumento para a tese de que a proteção social do trabalhador integra um sistema, centrado na dignidade existencial da pessoa humana, na valorização do trabalho e da livre iniciativa, tal como inscrito na Constituição Federal, sem descuidar dos fundamentos da economia.
Para corroborar a tese, Montagner (2021) sugere uma relação direta entre proteção social do trabalhador e promoção da atividade produtiva. Segundo a economista, “fica mais claro a necessidade de políticas ativas de geração de trabalho e renda”. A geração de trabalho e renda decorre de políticas públicas, adotadas pelo Estado, e de ações dos empreendedores.
Para tanto, destaca a necessidade de acesso consciente ao crédito:
A ampliação do crédito e microcrédito precisa incluir uma assessoria financeira para que o uso dos recursos ocorra como planejado pelo micro e pequeno empreendedor.
É necessário combinar o investimento público em diferentes setores e estágios tecnológicos, de modo a incentivar o investimento do setor privado. Vender patrimônio público não altera esse processo. (MONTAGNER, 2021).
A análise socioeconômica de Montagner (2021) permite discorrer com mais propriedade sobre o sistema de proteção social do trabalhador, no plano constitucional, integrando os interesses dos trabalhadores e da livre iniciativa empresarial.
Por certo, a pandemia (COVID-19), impactou o setor produtivo cujos indicadores antes da pandemia não eram bons. Desativação de empresas, endividamento, redução da capacidade produtiva e concorrencial, dentre outros, agravaram a capacidade operacional deste setor da economia.
Por outro lado, a pandemia provocou aumento da precarização, formalizada com a reforma trabalhista em 2017; ampliou o desemprego estrutural e o adoecimento de parte significativa do contingente laboral.
Para agravar o cenário, o Governo Federal adotou pautas “negacionistas” em relação às medidas de enfretamento da pandemia, tais como isolamento social, vacinação e uso de máscaras, quando não adotou estratégias erráticas que atrasaram gravemente medidas efic6azes de combate ao COVID-19, dentre elas a vacinação.
As externalidades negativas da pandemia projetam efeitos sobre o trabalho e a livre iniciativa (empreendedorismo). Elas não se limitam à crise do emprego, desemprego, informalidade ou precarização. Provocam efeitos sobre a saúde do ser humano, seja ele empregado ou empregador. O adoecimento, em razão do COVID-19, provoca a morte e sequelas que podem ser permanentes, agravando ainda mais a capacidade do Sistema de Saúde e de Seguridade Social.
Percebe-se, com isto, que a proteção social do trabalhador é sistêmica, tal como observamos no texto constitucional. Por conseguinte, a simplificação da questão, ao criar um falso dilema entre ficar em casa e voltar ao trabalho, dificulta a recuperação da economia brasileira e da saúde da população.
A leitura da Constituição Federal e as observações de Montagner (2021) permitem concluir que a força produtiva e laboral concentra-se nas pequenas empresas, microempresas e nos seus empregados. Este segmento produtivo tem grande capilaridade no território nacional. Na grande maioria dos municípios brasileiros, é o que mais emprega e fomenta as economias locais e regionais. No entanto, junto com os trabalhadores, apresenta uma característica em comum: alto grau de hipossuficiência financeira. Em razão disto, sofrem intensamente os efeitos negativos da pandemia do COVID-19.
Configurada a relação sistêmica entre a valorização do trabalho e da livre iniciativa, podemos identificar os subsistemas que, atuando harmonicamente, podem contribuir para a proteção do trabalhador e recuperação da economia.
DIREITOS SOCIAIS
Voltado para a proteção social do trabalhador, esse capítulo da Constituição Federal estabelece vários direitos, segundo o princípio do não retrocesso social.
Trata-se de proteção constitucional diretamente voltada para a pessoa do trabalhador urbano e rural, incluindo o trabalhador doméstico.
Dentre os direitos consagrados aos trabalhadores, destacam-se a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, bem como assistência aos desamparados.
Bastaria este parágrafo para demonstrar o falso dilema entre ficar em casa e voltar ao trabalho, sem as condições sanitárias suficientes para preservar a saúde e a vida do trabalhador.
Desde 1988, a Constituição brasileira concebeu um sistema integrado de políticas públicas, tratando holisticamente a condição social do trabalhador.
Em tempos de pandemia do COVID-19, não resta dúvida, sob o prisma constitucional, de que saúde, trabalho, segurança, previdência social, maternidade, infância e assistência aos desamparados demandam ações públicas coordenadas entre os segmentos do Estado brasileiro.
Por estas e outras razões, a Constituição Federal estabelece as competências exclusivas, comuns e concorrentes dos Entes públicos.
Uma passagem breve, pelo texto constitucional, esclarece de imediato as competências da União, dos Estados e dos Municípios e as atribuições do Presidente da República, dos Govenadores e dos Prefeitos.
Em sentido jurídico, o Presidente da República exerce o Poder Executivo. Em outras palavras, ele executa as medidas de natureza administrativa, segundo um elenco de atribuições previamente definidas pela Constituição.
Separando objetivamente a esfera de atuação dos Entes públicos (União, Estados e Municípios) da esfera de atuação dos Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), a Constituição delimita as questões afeitas às políticas públicas de Estado e aquelas destinadas às ações governamentais, legislativas e judiciárias. Seguindo literalmente o texto constitucional, o “Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado”. A ele, cabe exercer privativamente a direção superior da administração federal.
Ao definir competências, a Constituição reservou para a União as medidas de organização, manutenção e execução da inspeção do trabalho, e, privativamente, as medidas de interesse das populações indígenas, de organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões, além da seguridade social.
Definiu competências concorrentes entre a União, os Estados e os Munícipios, para, dentre outras, cuidar da saúde e assistência pública, de proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência, meios de acesso à tecnologia, à pesquisa e à inovação (vacinas, por exemplo), moradia e melhoramento das condições habitacionais e de saneamento básico, combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.
Por fim, a Constituição elencou competências comuns sobre produção e consumo, orçamento, direito previdenciário, econômico e urbanístico, previdência social, proteção e defesa da saúde, dentre outras. Logo, medidas adotadas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, no contexto da pandemia do COVID-19, amparadas por decisões do Supremo Tribunal Federal, não implicam usurpação de competência da União, e muito menos cerceamento das funções executivas do Presidente da República.
O elenco de medidas demonstra que os chefes de Poderes podem e devem atuar para concretizar medidas relacionadas à direção superior das respectivas administrações, típicas medidas de Governo. Mas, eles atuam também visando concretizar as medidas típicas de Estado, segundo as regras de competência fixadas no texto constucional.
Se as medidas típicas de Governo podem sofrer avaliações discricionárias do gestor público, as medidas típicas de Estado, por sua vez, não integram sua esfera única de atuação e discricionariedade.
Medidas de interesse da União demandam uma relação política e jurídico-constitucional, integrando no debate a esfera pública e os Poderes da República. Por esta razão, audiências públicas e o devido processo legislativo constitucional, além do controle judicial de constitucionalidade das leis e atos administrativos, consolidam o sistema de freios e contrapesos[56], formatado nas primeiras linhas da Constituição Federal.
Como vimos anteriormente, no texto constitucional, o Brasil adotou o Estado Democrático de Direito destinado a assegurar, dentre outros, o exercício dos direitos sociais e individuais, o bem-estar e o desenvolvimento como valores supremos de uma sociedade fraterna e pluralista, sem preconceitos.
O Estado, assim concebido, está fundado na harmonia social e comprometido com a solução pacífica das controvérsias, na ordem interna e na internacional. Para tanto, os Poderes da União devem atuar com independência e harmonia entre si, afastando, dentre outros, temores de ruptura institucional ou solução violenta das questões nacionais.
Necessário esclarecer que a independência orgânica dos poderes não significa desacoplamento sistêmico. Cada poder está conectado com os outros, em razão do acoplamento normativo e constitucional, segundo as regras de competência e o primado dos freios e contrapesos. Numa palavra, a Constituição é o elo fundamental da unidade nacional e da integridade do sistema jurídico brasileiro.
ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA
A percepção de que há uma luta por hegemonia dentro das estruturas do Estado, sobretudo nos Ministérios que integram o Poder Executivo, disputando nacos do orçamento público, muitas das vezes com objetivos eleitorais, reforça a necessidade de encontrar na Constituição Federal os fundamentos da harmonia entre os Poderes da República, como princípio fundamental do Estado de Direito.
A partir dessa harmonia sistêmica, a Constituição estabeleceu a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. Visando assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, ela adotou o princípio da propriedade privada, a função social da propriedade, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte.
Muito embora pareça repetitivo, a Constituição reafirma a cada momento o acoplamento sistêmico, conferindo integridade e coesão orgânica aos preceitos nela instituídos.
Com isto, demonstra a necessidade de uma interpretação sistemática e teleológica dos valores, princípios e regras que institui, visando em última instância o bem-estar social da pessoa humana e o progresso financeiro e econômico dos empreendedores e da nação como um todo.
A busca do pleno emprego impõe a formulação e a execução de políticas públicas que permitam aos empresários investir em tecnologia, capacidade produtiva e ampliação dos postos de trabalho.
Em tempos de pandemia, impõe-se a adoção de medidas emergenciais voltadas para os trabalhadores, empregados e desempregados, e para as empresas que se encontrem, juntamente com os trabalhadores, em situação de hipossuficiência financeira. Tais medidas atendem ao fundamento da ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano, na livre iniciativa e no tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte como proposto pela Constituição.
DA ORDEM SOCIAL
A estrutura normativa da ordem social, por seu turno, tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça social. Divide-se em seguridade social, saúde, previdência e assistência social.
Considerando o elo entre valorização do trabalho e a livre iniciativa, percebe-se que o funcionamento saudável da econômica depende de medidas de proteção social, pois o trabalho e a livre iniciativa integram o complexo de atividades do setor produtivo.
A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da Sociedade. Nesse ponto, refletimos sobre a ideia habermasiana de cidadania participativa e racionalidade comunicativa, como elementos essenciais para a formação de uma comunidade aberta de intérpretes da Constituição (HESSE, 1991). Através do subsistema constitucional de seguridade social, a Constituição prescreve ações integradas destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Dentre os objetivos da seguridade social, podemos destacar: universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços e caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
A pandemia do COVID-19 acentua a necessidade de fortalecer a rede de proteção social, otimizando a universalidade da cobertura e do atendimento. Atingindo as populações urbanas e rurais, nelas incluídas as comunidades quilombolas e indígenas, a pandemia requer um enfrentamento que assegure a uniformidade e a equivalência dos benefícios e serviços às essas populações.
Importante destacar a gestão compartilhada da seguridade social, mediante participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
Mais uma vez, a Constituição ratifica o propósito inicial de alocar a valorização do trabalho e da livre iniciativa como fatores indissociáveis do bem-estar social e do funcionamento saudável da economia nacional.
Trabalhadores e empregadores atuam como sujeitos legítimos no debate, na formulação, na execução e na gestão dessas políticas públicas, por vários fundamentos já expendidos.
Logo, o tratamento das necessidades dos trabalhadores em situação de pandemia não é um ato discricionário dos governos. Trata-se, antes de tudo, de um direito de participação, pois integram a base social que fundamenta o Estado de Direito e integram a base contributiva que financia a seguridade, através de contribuições sociais, incidentes sobre a folha de salários, a receita bruta ou faturamento e o lucro das empresas, bem como sobre a remuneração do trabalhador.
Segundo a Constituição Federal, a Saúde figura como um direito universal e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Mais uma vez, o texto constitucional comprova que políticas sociais e econômicas devem ser pensadas, executadas e gerenciadas em conjunto, sem a falsa dicotomia do “fica em casa e a economia a gente vê depois”.
Ao atribuir as políticas sociais e econômicas como direito universal e dever do Estado, a Constituição atribui status de questão de Estado e não de questão de Governo, atraindo a atuação independente e harmoniosa dos Poderes da União, segundo o mecanismo constitucional de freios e contrapesos. Por conseguinte, políticas sociais e econômicas dessa natureza são vinculantes, determinando o agir não discricionário dos agentes públicos.
Registre-se que a Saúde é organizada como sistema único. Ela obedece às diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade. Note-se que os trabalhadores e os empregadores integram a comunidade, sendo, portanto, atores legítimos para participar do Sistema Único de Saúde (SUS). Importante destacar que a saúde deve ser implementada com base no atendimento integral e com prioridade para as atividades preventivas, que não se confundem com tratamentos precoces sem validade científica. Dentre as medidas preventivas, podemos destacar, com o aval científico já consolidado: a higiene das mãos, o uso de máscaras, o isolamento social e a vacinação.
Destaquemos a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) que atua controlando e fiscalizando procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde; participando da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos. Além disso, executa ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador. Participa também da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico.
Por fim, destaquemos sua colaboração na proteção do meio ambiente, nele incluindo o meio ambiente do trabalho. Nesse caso, destacam-se as medidas sanitárias de prevenção do COVID-19 como o teletrabalho, a redução da jornada de trabalho, o fornecimento de insumos de higienização, como álcool gel, e o uso de equipamentos de proteção individual (EPI), tais como: máscaras, óculos, luvas, botas, roupas de proteção em ambientes insalubres, etc.
Por fim, o subsistema da Assistência Social destina-se a quem dela necessitar, independente de contribuição. Tem como objetivos: proteger a família, a maternidade, a infância, a adolescência e a velhice; amparar as crianças e os adolescentes carentes; promover a integração ao mercado de trabalho; a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária. Por tais objetivos, percebemos, mais uma vez, a integração entre trabalho, economia e proteção social.
Numa palavra, a Constituição, em seu tratamento sistemático, protege as pessoas em situação de vulnerabilidade existencial, amparando e promovendo a integração plena na vida comunitária.
Para exemplificar, quando a Constituição prevê a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência, promovendo sua integração comunitária e no mercado de trabalho, estabelece as condições fundamentais para o enfrentamento da crise social que está por vir: o tratamento das pessoas com sequelas do COVID-19.
Ao descrevermos resumidamente o sistema constitucional de proteção do trabalhador, destacamos a vinculação direta entre trabalho e livre iniciativa, proteção do trabalho e proteção da economia, realçando sua importância no contexto atual da pandemia do COVID-19.
Nossa abordagem sistêmica objetivou descrever imperativos normativos que condicionam as ações de Estado e as ações de Governo. São imperativos, cogentes por sua natureza, escapando ao solipsismo[57] e à discricionariedade de gestores públicos, cuja atuação está vinculada à realização dos valores, princípios e regras que integram o sistema constitucional de proteção da pessoa humana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em linhas gerais, discorremos sobre a estrutura constitucional de valorização do trabalho e da livre iniciativa. Identificamos valores, princípios e regras constitucionais que sistematizam o tratamento harmonioso das questões afetas aos trabalhadores e à economia.
As externalidades decorrentes da precarização do trabalho e do trabalhador, positivadas através da Reforma Trabalhista, foram agravadas na pandemia do COVID-19, com efeitos devastadores no setor produtivo (desativação de empresas e aumento do desemprego). Elas evidenciaram um problema que não afeta somente os trabalhadores, atinge um contingente considerável de pequenas e médias empresas: a hipossuficiência financeira.
Vimos que, ao retardar o tratamento adequado da pandemia do COVID-19, o Estado brasileiro compromete a proteção social dos trabalhadores e das empresas. Além disso, compromete ainda mais o orçamento público em função das externalidades negativas que ainda estão por vir, tais como o tratamento das pessoas com sequelas do COVID-19, indenizações e pensões previdenciárias.
Registramos que a tensão entre os subsistemas constitucionais decorre, na maioria das vezes, das visões solipsistas e discricionárias de agentes públicos, desafiando o sistema de freios e contrapesos.
A descrição dos subsistemas de seguridade social demonstrou a força normativa da Constituição, atuando como imperativo normativo para o planejamento, a execução e o gerenciamento de políticas públicas de Estado, dentre elas a proteção do mercado de trabalho e da economia, como elementos da mesma equação jurídica.
Notamos que o sistema de seguridade social refuta a dicotomia entre proteção da pessoa humana e fomento da economia, servindo de argumento normativo para a adoção de políticas públicas que minimizem ou neutralizem o protagonismo de uma racionalidade econômico e financeira sem compromisso com a dignidade existencial da pessoa humana.
No momento em que prevalecem os discursos autoritários, devemos realçar a comunicação sistêmica entre a Ordem Econômica e Financeira, os Direitos Sociais dos Trabalhadores e a Seguridade Social como fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Os dados e argumentos apresentados indicam que a proteção social dos trabalhadores depende de uma vontade de constituição amparada no conhecimento interdisciplinar, numa articulação sistêmica entre norma instituída e norma concretizada.
Com Habermas, podemos concluir:
“Perante as consequências socioculturais não planejadas do progresso técnico, a espécie humana se vê desafiada não apenas a produzir seu destino social, como também aprender a dominá-lo. Mas esse desafio da técnica não pode ser encarado fazendo uso unicamente da técnica. Importa antes pôr em marcha uma discussão politicamente eficaz que consiga estabelecer uma relação, de modo racionalmente vinculante, entre o potencial social do saber e poder técnicos com o nosso saber e querer práticos”. (HABERMAS, 2014. Pg. 148).
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Disponível em: https://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/ l13467.
FEBBRAJO, Alberto, LIMA, Fernando Rister de Sousa. Autopoiese. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/152/edicao-1/autopoiese.
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2003.
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Sergio Antônio Fabris Editor: Porto Alegre, 1991.
MONTAGNER, Paula. O mercado de trabalho na pandemia: pouco a comemorar. [on line] Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-mercado-de-trabalho-na-pandemia-pouco-a-comemorar/. Acesso em 12 de outubro de 2021.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Do espírito das leis. Imprenta: São Paulo, Martin Claret, 2007.
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica da hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento. Casa do Direito, 2017.
TRT da 2ª Região. Recurso ordinário. Relator: Wildner Izzi Pancheri. DJ, 22/09/2021. JusBrasil, 2021. Disponível em: https://trt2.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/ 1286215106/10006061820205020264-sp/inteiro-teor-1286215126. Acesso em 17 de outubro de 2021.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974.
CAPÍTULO VIII
José Antonio Callegari
INTRODUÇÃO
Com apoio em Levitsky e Ziblatt (2018), imagina-se a Democracia como um jogo de futebol. Tanto nas Democracias quanto na partida de futebol, o jogo ocorre segundo regras previamente constituídas. No estádio lotado, entram em campo os jogadores, precedidos pelo juiz da partida. Dizem que o jogo é bem disputado quando o juiz se faz ‘inotável’, nesses casos a bola corre solta pelo gramado e a torcida vibra. Porém, ativando-se, em demasia, o juiz irrita os jogadores, a torcida e trava o jogo; e consequentemente procede mal.
Em muitos casos, o juiz pode estragar o jogo por falha de caráter, de formação profissional ou por cooptação política.
No jogo democrático, atuam forças inversamente democráticas, corroendo silenciosamente suas estruturas e o espetáculo em campo, pois “a erosão da democracia acontece de maneira gradativa, muitas vezes em pequeninos passos”, muitas vezes com “verniz de legalidade” (LEVITSKY, ZIBLATT, 2018, pg. 81).
Levitsky e Ziblatt (2018, pg. 81) advertem que autocratas tiram da partida algumas estrelas do time adversário, reescrevem as regras, invertem o mando de campo, cooptam o árbitro da partida e viram o jogo a seu favor.
Analisando democracias moribundas, os autores em foco destacam que “é sempre bom ter os árbitros do seu lado”; que a captura dos árbitros cria um escudo jurídico, que serve como arma de opressão para os adversários e como mecanismo de impunidade para o autocrata.
Ao dominar a independência e a imparcialidade do juiz, os autocratas podem controlá-los a seu bel prazer, como cota do seu poder político nos tribunais.
Mudar a composição das cortes é outra estratégia de colonização e de dominação do sistema de justiça e de todas as partidas jogadas no campo democrático.
Trazendo os árbitros para o lado do governo e anulando ou neutralizando os demais não cooptados, o autocrata amplia sua blindagem jurídica e prossegue subvertendo as regras do jogo, ferindo de morte a Constituição e o Estado Democrático de Direito.
Concluída a cooptação dos árbitros, resta atuar sobre o time adversário e seus jogadores, seja por suborno e por corrupção, ou por oferta de cargos no executivo, nos órgãos de controles e de gestão e no Poder Judiciário. Aos que não forem “comprados”, resta a perseguição direta ou indireta, o aniquilamento físico e/ou moral diante da opinião pública, cuja sociedade de massa consome avidamente desinformações em redes sociais.
Nesse contexto degradante, pensa-se na conduta processual do juiz.
A partir da Ética a Nicômaco, delinea-se algumas reflexões sobre conduta e ética processual, dialogando com Habermas e Dworkin.
E ao final, discorre-se sobre algumas considerações sobre as interações éticas que se desenvolvem no processo judicial.
A VIRTUDE JUDICIAL
Disse Aristóteles (1968, pg. 17) que “toda arte e investigação, e igualmente toda ação e todo propósito, parecem ter em mira um bem qualquer”.
Em termos processuais, a ação do juiz tem um propósito bem definido: garantir o acesso à justiça, através do devido processo legal com ampla defesa e contraditório.
Sem dúvida, no processo afigura-se uma relação entre meios e fins, como vetores a orientar a conduta processual do juiz.
No processo, imperam regras jurídicas previamente estabelecidas, segundo o princípio da legalidade e da anterioridade da lei, restringindo a subjetividade do juiz.
Mais do que instrumentos normativos, as leis atuam como gramáticas jurídicas que orientam a ordem do discurso (FOUCAULT, 1987), a participação legítima do juiz e das partes, o sentido dos termos jurídicos e as práticas discursivas que se alternam na dinâmica processual.
Segundo Aristóteles (1968, pg. 20), “O estudo do bem pertence à política, que é a primeira das ciências práticas”. Não menos certo, pode-se dizer que o Direito é uma ciência prática, cujo bem último é organizar a vida de relação, bem como resolver, pela régua da justiça, os dissensos práticos da vida cotidiana das pessoas.
Quanto mais complexa a vida de relação, mais o Direito se estrutura em subsistemas que programam a conduta humana. Assim são: o Direito Constitucional, o Direito Civil, o Direito Processual Civil, o Direito Penal, o Direito Processual Penal, etc.
Em termos de condutas práticas, cada ramo jurídico ancora-se em estruturas normativas que se comunicam numa relação instrumental.
A título de exemplo, a Constituição emerge como grande estrutura normativa, a partir da qual operam-se relações instrumentais entre o Direito Civil e o Processo Civil, o Direito Penal e o Processo Penal, etc.
Essa relação instrumental tem um aspecto objetivo e sistêmico, pois cada ramo jurídico comunica-se com outro por meio de canais normativos. Dessa forma, cada estrutura normativa atrai a aplicação de outra que com ela guarde aderência temática, como o Código Civil e o Processo Civil, etc.
Para além da objetividade sistêmica, pode-se extrair em Luhmann (2009) que a comunicação normativa depende da ação humana, daquelas pessoas que atuam dentro do sistema jurídico. Em termos processuais, são as partes, os advogados, os auxiliares da Justiça e o Juiz que atuam o subsistema processual.
Assim sendo, importa destacar o papel do juiz em assuntos de conduta processual, considerando a relação entre meios e fins para a tutela de bens jurídicos no exercício da jurisdição.
Antes de exercer o papel decisório, o juiz deve se apresentar como observador, leitor e bom ouvinte, para bem delimitar os fatos da causa e fazer juízo adequado das pretensões deduzidas no processo.
Agirá bem, na conduta processual, aquele que, sendo bem instruído quantos aos fatos da causa e as particularidades do processo, compreenda o drama judicial como um todo.
A esse respeito, os Códigos, como gramáticas jurídicas, estruturam as partes e o todo processual, organizando os atos de fala com coesão, coerência e progressão enunciativa. A partir dessa estrutura, cada ato processual pode ser manifestado em fase distintas: fase postulatória, fase instrutória e fase decisória.
Na fase postulatória, autor e réu apresentam suas pretensões com base em narrativas de fatos e argumentações; na fase instrutória, o juiz, em colaboração com as partes, testemunhas, peritos, etc., procura esclarecer os fatos controvertidos e na fase decisória o juiz analisa e condensa em um único texto todas as parcialidades do processo, definindo a situação jurídica das partes, com base no seu convencimento motivado.
Considerando o Direito como ciência prática, o magistrado atua a partir de fatos da vida. Nesse aspecto, segundo Aristóteles (1968, 25), o juiz, como ouvinte, não se pode guiar por paixões, pois assim agindo ouvirá as partes com leviandade e sem proveito, pois o juiz que se guie por paixões, afasta-se da virtude judicial: aplicar o Direito com imparcialidade.
O mais grave se dá quando o juiz, agindo por paixões políticas, utiliza os instrumentos jurídicos e sua autoridade processual como meios de conseguir um bem egoísta: ascensão funcional ou política.
Nesse momento, o juiz ético cede espaço ao juiz cínico, a serviço de projetos pessoais ou grupais que, instrumentalizando o processo com viés político, objetiva a pessoa humana como joguete em suas mãos despudoradas.
Se na Política o fim último é o bem comum, no Direito processual o fim último é uma sentença, precedida pela ampla defesa e pelo contraditório e proferida por um julgador competente e imparcial.
Não sendo um político, o juiz age visando um fim prático não generalizável, pois limita-se a dizer o Direito nos limites das pretensões do autor e do réu.
A partir de Castro Farias (2004, pg. 1), pode-se dizer que, através da sentença, o juiz exerce a mediação entre a norma geral e abstrata (universalização) e a singularidade concreta da ação.
A norma geral e abstrata, integrando o ordenamento jurídico, atua sobre o magistrado como um constrangimento externo, limitando a discricionariedade subjetiva na aplicação do Direito.
Desse modo, intui-se que no sistema jurídico atuam freios e contrapesos que previnem e reprimem condutas solipsistas do juiz, submetido a um constrangimento normativo fundador e constituidor da ordem jurídica democrática.
Essas considerações, colhidas em leituras de Streck (2017, pg. 42), coloca em questão as práticas jurídicas internas ao processo judicial, sob a direção e instrução do juiz.
Estabelecendo a ordem do discurso e a legitimação das partes e do juiz, as regras processuais, a partir da Constituição, direcionam as condutas processuais e o resultado útil do processo.
Seguindo com Streck (2017, pg. 42), “o constrangimento epistêmico ou epistemológico se coloca, assim, como mecanismo de controle das manifestações arbitrárias”.
Em face da complexidade do mundo da vida, o ordenamento jurídico, como estrutura normativa geral e abstrata, permite a aplicação flexível do Direito, diante das situações concretas na vida social em constante mutação.
O constrangimento normativo que incide sobre o juiz, dele não retira certa discricionaridade e poder decisório, ainda mais quando há nítida abertura normativa ao intérprete, como nos casos de aplicação de princípios jurídicos.
Como observa Streck (2017, pg. 42-43), “as decisões judiciais solipsistas devem ser constrangidas”, pois “O Direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja, e, portanto, não é aquilo que o tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, diz que é”.
Vivendo em Estado Democrático de Direito, não se pode conceber decisões judiciais livres de controle e sem accountabillity (Streck, 2017, pg. 44).
Em termos de conduta processual, como já dito, não se nega ao magistrado o poder de dizer o Direito no caso concreto, o que é da essência da jurisdição como atividade soberana do Estado Democrático de Direito.
Se, por um lado, no momento da decisão dá-se um espaço não racional (emotivo ou ideológico que seja), no sistema jurídico democrático impera uma racionalidade normativa. Através dela, acautela-se contra o excesso de discricionariedade do julgador na interpretação e na aplicação do Direito.
Ainda que seja a autoridade plenamente investida, o juiz não se torna autoridade absoluta.
O espaço de manobra hermenêutica, necessário à condução do processo e à aplicação do Direito, não pode desviar o juiz das balizas democráticas do processo, uma vez que estas deslocam a relação do juiz com as partes, anacronicamente tomada como relação sujeito-objeto, para uma relação intersubjetiva, compartilhada e participativa.
À guisa de exemplo, o Código de Processo Civil estabelece constrangimentos que orientam o que se pode chamar de ética processual.
Segundo o CPC[58], “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil”.
No topo da pirâmide normativa, como fundamento de validade de todo ordenamento jurídico, a Constituição orienta a conduta processual do juiz, a partir de princípios fundamentais: dignidade da pessoa humana, ampla defesa e contraditório, presunção de inocência, devido processo legal, investidura judicial, etc.
Iniciando o processo por iniciativa da parte, ele se desenvolve por impulso oficial.
Aqui, o Direito emancipa a parte quanto à iniciativa do processo, a quem cabe o cálculo instrumental quanto aos riscos da demanda e ao resultado útil do processo.
Em razão de sua lógica progressiva no tempo, o processo estrutura-se a partir de atos processuais previamente ordenados em fases distintas: postulatória, instrutória, decisória, recursal e executória.
Os atos processuais são atos práticos, atuando como meios na busca de um fim processual específico.
Como diretor do processo, o juiz impulsiona os atos processuais, garantido o contraditório e a ampla defesa; a ele sendo vedado proferir decisão que surpreenda as partes, amparadas pelo Direito fundamental de participação e capacidade de influência no convencimento judicial.
Vê-se, com isto, que sobre a conduta do juiz atuam constrangimentos normativos e controle participativo das partes, dos tribunais[59] e, em certos casos, de outros interessados, como no caso dos Amicus Curiae[60].
Interessante notar que o CPC destaca a promoção das soluções consensuais do conflito, abrindo cada vez mais as portas do sistema judiciário para as relações intersubjetivas, confirmando a virada linguística do processo, em tese, da relação sujeito-objeto para a relação sujeito-sujeito, materializada da capacidade dialógica e discursiva das partes.
Em outras palavras, em casos de ameaça ou lesão a Direito, os meios consensuais para a resolução de conflitos atuam previamente à solução judicial do caso concreto.
Em razão disto, dá-se um deslocamento importante na conduta processual do juiz, que deve se abrir cada vez mais à compreensão dos fatos da causa no contexto da vida real das pessoas, e não somente a partir de um modelo normativo de conduta jurídica.
Nesse momento, importa destacar, com Streck (2017, pg. 54), que as “opções” escolhidas pelo juiz podem deixar de lado as “opções” de outros interessados, em razão do que o estímulo às soluções consensuais, mediadas ou conciliadas, atende melhor ao escopo de aplicação dialogada do Direito, pois as partes tendem a ser os melhores intérpretes para a solução adequada dos seus conflitos.
O paradigma intersubjetivo, alocado no Código de Processo Civil, reduz ou controla o privilégio cognitivo do juiz (PCJ), tal como observado em Streck (2017, pg. 63), sem, com isso, neutralizá-lo.
Por outro lado, a limitação do protagonismo judicial amplia o poder e a responsabilidade ética das partes, pois, a partir dele, todos os sujeitos processuais devem atuar colaborando para o desenvolvimento válido e regular do processo. A intersubjetividade, como paradigma ético, implica compartilhar responsabilidades processuais, quando, em outros tempos, o insucesso processual era atribuído unicamente ao juiz e/ou ao sistema judiciário, ao passo que, em certos casos, decorria da imprudência, negligência, imperícia e/ou malícia de uma ou de ambas as partes.
A intersubjetividade pode confirmar a superação do modelo juiz-boca-da-lei e do juiz-boca-de-si-mesmo. Nesse último caso, dá-se o voluntarismo judicial solipsista e o ativismo que se chocam com os paradigmas do Estado Democrático de Direito e com o sistema de freios e contrapesos entre os poderes instituídos.
Ratifica-se, pois, o paradigma intersubjetivo quanto estimuladas a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos, impondo tal ação ao juiz, partes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público.
Reduzindo a esfera discricionária do juiz, o CPC estabelece um Direito fundamental das partes: obter em prazo razoável a solução integral do mérito. Por solução integral do mérito, entenda-se aquela decorrente da análise das argumentações das partes, pois, segundo Streck (2017, pg. 67), “não há mais sujeito isolado, contemplando o mundo e definindo-o segundo cogito”. Por conseguinte, deve-se reler o livre convencimento motivado, que pode ensejar um convencimento a partir do mundo particular do juiz solipsista.
A partir do paradigma da intersubjetividade, o livre convencimento motivado decorre da narrativa dos fatos e da ampla argumentação das partes, bem como da consideração atenta que o juiz faça dessas narrativas e dessas argumentações, materializando o contraditório dinâmico e participativo.
Com esse paradigma intersubjetivo, numa comunidade processual, “a linguagem adquire uma condição de possibilidade” (STRECK, 2017, pg. 67), superando o paradigma judicial autoritário, uma vez que:
A subjetividade originária do esquema sujeito-objeto coloca os limites e as condições em que alguma coisa pode “vir a objetividade”, enfim, em que algo possa vir a ser compreendido. No esquema sujeito-objeto, o real, enfim, aquilo que é possível definir como real, é concebido à medida do sujeito-intérprete. Ele – o sujeito – é o centro decisório. Diz o mundo a partir de sua linguagem privada. Sujeito moderno e o esquema sujeito-objeto no qual está assentado são o cerne do autoritarismo.
Como lições de conduta processual integradas no paradigma intersubjetivo, dialógico e discurso do processo, veja-se as considerações de Streck (2017, pg. 67): Constituições e leis aprovadas democraticamente podem, simplesmente, ruir a partir do PCJ[61].
Logo, não basta somente garantir a vigência de constrangimentos normativos para a conduta processual do juiz; recomenda-se refletir sobre a formação jurídica desse juiz, consolidando nele os paradigmas democráticos do Direito constitucional e do devido processo legal.
Retornando ao Código de Processo Civil, podemos identificar paradigmas éticos e participativos, pois “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.”
Como programação ética, o Código de Processo Civil assegura às partes “paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.”
Em termo de conduta processual, cabe ao juiz aplicar os princípios e as regras jurídicas, adotando como balizas os fins sociais e as exigências do bem comum, a dignidade da pessoa humana, assegurando as trocas intersubjetivas, em turnos alternados de falas, com proporcionalidade, razoabilidade e publicidade.
Com este paradigma ético-discursivo, cabe ao juiz perceber que a eficiência processual não se reduz a uma eficiência técnica, desprovida de sentido social, para o qual as ações humanas são juridicamente ordenadas.
O paradigma em questão impõe ao juiz uma oitiva atenta das partes, quanto à narrativa dos fatos e quanto aos argumentos por elas articulados, antes de proferir qualquer decisão que afete o rumo e a sorte delas no processo, assegurando-lhes a oportunidade de manifestação.
Percebe-se com isso que a legitimidade do processo não é apenas normativa, que se assim o fosse não passaria de mera fabulação jurídica (Warat; Rocha, 2015). Legitima-se o processo por uma condução compartilhada com os sujeitos nele concernidos.
Numa palavra, a legitimidade do processo é intersubjetiva e participativa.
Uma outra consideração importante a acrescentar em termos de conduta processual, o juiz precisa estar atento aos critérios modernos de aplicação das normas processuais.
Considerando nosso país como integrante de uma comunidade internacional de nações, vinculado a Organismos Internacionais, cabe ao magistrado observar as normas processuais brasileiras e no que for aplicável, os tratados, convenções ou acordos internacionais ratificados pelo Brasil, sobretudo em questão de Direitos Humanos.
Nesse sentido, a ampla defesa, o contraditório, a presunção de inocência e o julgamento imparcial são paradigmas ético-jurídicos firmados em Organismos Internacionais dos quais o Brasil faz parte.
No entanto, os constrangimentos normativos, balizando condutas éticas, não se dirigem ao juiz somente.
Na comunidade intersubjetiva, que se forma e se desenvolve no processo, as partes e os seus procuradores devem participar expondo fatos conforme a verdade, ou sua versão dos fatos, sem má-fé; deduzir pretensões fundamentadas; praticar atos e produzir provas úteis no processo; não criar embaraços à efetivação das decisões judiciais, salvo em caso de oposição legítima, como se dá com a interposição de recursos e outros meios de impugnação processual, etc.
Ofende a dignidade da justiça o agir contra os paradigmas éticos do processo, fato que pode gerar sanções criminais, civis e processuais, além da aplicação de multa em razão do ato praticado.
No plano dessa ética processual intersubjetiva, aos concernidos veda-se o uso de expressões ofensivas, pois a luta pelo Direito em juízo não implica perder a cordialidade imanente ao estágio civilizatório, como intui-se na ética discursiva de Habermas (2014).
Estabelecidos os parâmetros da conduta processual ou da ética processual, importa considerar a responsabilidade das partes por dano processual. Assim, os atos praticados com má-fé ensejam responsabilidades, pois violam os paradigmas éticos do devido processo legal.
Em razão disso, o juiz não está livre de suas responsabilidades, pois sobre ele pesam os encargos da conduta processual ética, seja como observador da conduta das partes, seja como diretor do processo que, investido de jurisdição estatal, submete-se a um particular accountability processual.
Em termos de conduta processual, o magistrado tem o dever de assegurar a igualdade de tratamento, a razoável duração do processo, zelar pela dignidade da justiça, determinar medidas necessárias ao cumprimento das ordens judiciais, promover a autocomposição, etc., não se eximindo de decidir o caso, alegando deficiências no ordenamento jurídico ou sua obscuridade.
Nesse ponto, recorda-se Streck (2017), pois certas aberturas hermenêuticas, a conferir discricionaridade ao juiz, não permitem que se substitua a objetividade da causa pela visão de mundo desse juiz, solipsista e por vezes autoritárias.
Pode-se acrescentar ainda que o juiz decide o mérito nos limites propostos pelas partes, adstrito aos fatos narrados e ao Direito postulado no processo; não sendo a ele permitido conhecer de questões não suscitadas e para as quais as partes não tomaram iniciativa.
Assim constrangido, o juiz que atuar com dolo ou fraude e/ou desempenhar o seu ofício com desídia, pode responder por perdas e danos processuais.
Os constrangimentos éticos, retirados à guisa de exemplos do Código de Processo Civil, impõem uma reflexão sobre duas situações particulares, para as quais o juiz deve atentar bem: impedimento e suspeição.
Ocorrendo alguma delas, cabe ao juiz afastar-se ou ser afastado do processo, pois sua conduta processual restará comprometida, e, por conseguinte, o desenvolvimento válido e regular do processo.
Nos casos de impedimento, ao juiz é vedado exercer funções no processo; ao passo que na suspeição, o juiz pode afastar-se do processo por motivo de foro íntimo. Reconhecido o impedimento ou a suspeição, o tribunal que assim decidir fixará o momento a partir do qual o juiz não poderia ter atuado, restando nulos os atos praticados pelo juiz que violou tais preceitos éticos.
Vê-se, com isto, que os casos de impedimento e de suspeição balizam a conduta processual do juiz, pois, como terceiro investido da jurisdição, deve zelar pelo tratamento isonômico das partes, com imparcialidade e isenção.
Fere a dignidade da justiça, a segurança jurídica e os princípios do Estado Democrático de Direito, aquele que, investido de jurisdição, assume no processo uma posição absolutista, conduzindo o processo como coisa particular.
Assim agindo, o juiz confunde a objetividade jurídica do processo com a subjetividade de como vê o mundo, encravando no sistema de justiça as cunhas pontiagudas e mortais do autoritarismo jurídico, passo a passo com a escalada de outras formas de autoritarismo que vão matando as democracias por dentro.
O quanto exposto sugere que a conduta processual solipsista e sem parâmetros éticos produz externalidades negativas, esvaziando o sentido das normas jurídicas, tratadas como óbices aos arroubos autoritários do juiz solipsista e abrindo espaço para ações destruidoras da democracia.
Com isto, o sistema de freios e contrapesos perde sua funcionalidade; e a ordem democrática, como bólido desgovernado e sem frenagem eficiente, segue em velocidade acelerada para o seu ocaso final: desconstrução do Estado Democrático de Direito.
Quando o juiz solipsista agiganta-se em seu feudo judicante, tende a elaborar projetos cada vez mais ousados, tal como usar o processo e o sistema de justiça como instrumentos de promoção pessoal.
Pode ele ter para si os mais variados sonhos e ambições, próprios da natureza humana; mas, cada qual deles deve ser idealizado ou materializado na esfera social adequada: o privado no privado, e o público no público.
Imaginemos que um juiz, insatisfeito com a ordem jurídica, à qual jurou servir, intente supliciar o réu como objeto exemplar da ineficiência do sistema. No seu feudo jurídico, dotado de ampla autoridade ou autoritarismo judicial, conduz a seu bel prazer um processo viciado a partir de sua pré-compreensão de mundo (STRECK, 2017). Já seria de todo grave, caso sua conduta suspeita ou impedida projetasse efeitos na vida particular do réu. Considere que a expiação do réu, como exemplar dessa terapia sistêmica, projete efeitos em conformidade com uma ordem política em ebulição, ansiosa por um totem justificador da avulsão social em curso.
Dá-se, no caso, o que em Direito Penal se diz: prevenção especial e prevenção geral. Com base em Foucault (1987), pode-se dizer que sobre o corpo dócil do réu incide a prevenção especial, a expiação, o sofrimento, projetando sobre o corpo social dócil o medo e a insegurança como prevenção geral.
E se tal juiz, num arroubo de grandeza, natural de sua existência narcisista, ultrapasse todas as barreiras jurídicas, violando em série as regras de conduta processual, utilizasse do processo como instrumento de ascensão política, pois o seu feudo judicante não comporta mais o ideal “restaurador” que nele pulsa.
Erodindo o processo, tende a erodir, por simpatia, e falta de controle institucional, toda a estrutura garantista do devido processo legal e da democracia.
Se a violação de normas desintegra e faz morrer as democracias (LEVITSKY, ZIBLATT, 2018), o desregramento ético do juiz desintegra e mata, aos poucos, o sistema de justiça, que tende a se tornar um sistema de ratificação e legitimação do autoritarismo “restaurador”, cujo propósito atende ao juiz solipsista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Habermas (2014), colhe-se outras lições pertinentes à formação de Nicômano. Se o processo for considerado como instrumento de aplicação do Direito ao caso concreto, não seria desarrazoado perceber que se está diante de uma técnica jurídica idealizada como o devido processo legal, assegurando às partes o acesso a um juiz natural e imparcial, no exercício da ampla defesa e sob o contraditório.
No entanto, o uso prático dessa técnica jurídica não escapa à concepção ideológica do agente condutor da trama processual: o juiz.
Em termos de conduta processual, importa dizer que o uso dessa técnica jurídica pode implicar instrumentalização do ser humano, quando o juiz, guiado por sua visão de mundo, interpreta e aplica um Direito “seu”.
Isto posto, percebe-se o processo e a atuação do juiz dentro de um “sistema de eticidade” (HEGEL, in HABERMAS, 2014. pg. 35), no qual a imparcialidade, o tratamento isonômico, a ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência atuam como imperativos de ética processual.
Tal sistema ético nos leva a pensar na posição do juiz, dentro de uma comunidade jurídica particular: a relação processual entre as partes.
Por mais particular que seja, essa comunidade não se exclui da comunidade geral, do mundo da vida. Numa relação de conjuntos, a comunidade processual pertence à comunidade geral. Logo, os valores éticos da comunidade geral projetam constrangimentos normativos para a comunidade processual, delimitando as condutas processuais das partes e do juiz.
Num sistema processual ético, a luta hegeliana por reconhecimento ganha outro significado, pois através dela as partes postulam por reconhecimento jurídico isonômico e imparcial.
Assim entendido, através do processo, as partes e o juiz articulam jogos de linguagem em turnos alternados de fala, regidos por gramáticas jurídicas, tendo como escopo a aplicação ética do Direito.
Nesse aspecto, os sujeitos se encontram entrelaçados no interior de um “contexto de interação” (HABERMAS, 2014, pg. 49). Assim concernidos, interagem discursivamente cada qual deduzindo suas pretensões e expectativas normativas.
Esse contexto de interação implica vários estágios de intersubjetividade, guiados ora por ações estratégicas, ora por ações comunicativas.
Se as estratégias processuais forem entendidas como legítimo direito de defesa quanto ao drama processual (mérito da questão), e que a cooperação e a boa-fé são como elementos de um consenso procedimental, normativamente instituído, é possível inferir o quanto se exige do juiz como autoridade judicante.
Exercendo uma atividade processual complexa, é preciso meditar demoradamente sobre a formação ampla do juiz. Não basta o rigor técnico, dissociado de uma visão de mundo compartilhada e/ou alinhada com a tradição democrática do Direito.
Com Dworkin (2014), pode-se dizer o juiz tem a difícil missão de interpretar o Direito, muitas vezes em conflito com sua visão particular de mundo, ou em casos mais graves com os seus projetos personalistas de poder jurídico e/ou político.
No entanto, por mais difícil que seja a aplicação do Direito no caso concreto, em sociedades complexas e cada vez mais fragmentadas, a conduta processual é objetivamente delimitada por padrões técnicos e éticos dos quais não se deve afastar.
A subjetividade hermenêutica não deve, ou não pode, colocar-se à frente da objetividade processual, sob pena de subversão das coisas, degradação do processo e do sistema de Justiça, e, num grau mais elevado, vaticinar a morte da Democracia.
Inserir conceitos de ética geral e de ética processual na seleção e na formação de juízes atende ao propósito maior de democratização do processo, sensibilizando o juiz quanto aos limites dos seus poderes e à amplitude dos direitos das partes, integrantes de uma ordem social mais ampla: o mundo da vida.
Desse mundo da vida, juridicamente organizado, extrai o magistrado valores e princípios fundamentais à dignidade da pessoa humana, ao devido processo legal, e ao Estado Democrático de Direito.
Uma pré-compreensão desses valores, extraídos do mundo da vida, reflete na separação necessária entre esfera privada e esfera pública, num sistema de freios e contrapesos existenciais.
A autoridade instituída significa muito mais do que a formalização de um processo de seleção e atribuição de parcela do poder estatal. Há que se notar que o instituído, o legitimado, assim o é por concessão de um poder maior que antecede sua instituição como agente público.
Ao povo é dado o poder originário na constituição de uma carta política e dos poderes instituídos.
Logo, a conduta processual do juiz submete-se ao controle social e ao direito de participação efetiva do cidadão na trama processual, pois que, na condição de autor ou de réu, não se despe da parcela de poder originário, já que, numa palavra, o cidadão é parte integrante do povo, em nome de quem os poderes instituídos agem pela ação de seus agentes.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A ética. Tradução Cassio M. Fonseca. Rio de Janeiro: Edições de Ouro. 1968.
BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. CORDEIRO, Túlio; MARQUES Beatriz (Org.). Código de Processo Civil e normas correlatas. 7. ed., Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnica, 2013.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jeferson Luiz Camargo. Revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, política e direito. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Tradução de Felipe Gonçalves da Silva. São Paulo: Edunesp. 2014.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento Casa do Direito. 2017.
SOBRE OS AUTORES
i José Antonio Callegari - Possui graduação em Direito pela Universidade Federal Fluminense (2000), mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2013) e doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2018). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal Fluminense - Departamento de Direito de Macaé e analista judiciário - Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito e Processo do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: ouvidoria, gramática jurídica, cidadania, justiça judiciária, análise processual e processo como romance em cadeia. E-mail: calegantonio@yahoo.com.br.
ii Marcelo Pereira de Mello - Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1984), com mestrado em Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução - SBI/IUPERJ (1988) e doutorado em Ciência Política (Ciências Humanas) pela Sociedade Brasileira de Instrução - SBI/IUPERJ (1996). Tem experiência nas áreas de pesquisa e ensino de Sociologia e Ciência Política, com ênfase em teoria e metodologia. É um dos fundadores do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Fundador da Associação Brasileira de Sociologia do Direito (ABRASD). Professor Titular da Universidade Federal Fluminense. Tem realizado pesquisas e escrito sobre os seguintes temas: história e sociologia dos jogos de azar, cultura legal, direito, justiça, teoria sociológica, meio ambiente e políticas públicas,acesso à justiça, imigração e fluência cultural. E-mail: mpmello@unisys.com.br.
[1] Avulsão, segundo o Código Civil brasileiro: Art. 1.251. Quando, por força natural violenta, uma porção de terra se destacar de um prédio e se juntar a outro, o dono deste adquirirá a propriedade do acréscimo, se indenizar o dono do primeiro ou, sem indenização, se, em um ano, ninguém houver reclamado.
[2] Aluvião, segundo o Código Civil brasileiro: Art. 1.250. Os acréscimos formados, sucessiva e imperceptivelmente, por depósitos e aterros naturais ao longo das margens das correntes, ou pelo desvio das águas destas, pertencem aos donos dos terrenos marginais, sem indenização.
[3] Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1973).
[4] “A modalidade epistêmica situa-se no eixo do conhecimento do falante e exprime o grau de certeza em relação àquilo que é dito”. ALVES, Rosangela. A MODALIZAÇÃO NOS DISCURSOS DE UMA AUTORIDADE POLÍTICA E DE UMA AUTORIDADE RELIGIOSA Revista de C. Humanas, Vol. 7, Nº 1, p. 57-67, Jan./Jun. 2007.
[5] Ao tempo de nossa pesquisa, o novo código de processo civil era somente um projeto de lei. Desta forma, os dados utilizados foram recolhidos do código de processo civil ainda vigente.
[6] Art. 282. A petição inicial indicará: I - o juiz ou tribunal, a que é dirigida; II - os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu; III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido; IV - o pedido, com as suas especificações; V - o valor da causa; VI - as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados; VII - o requerimento para a citação do réu. Art. 283. A petição inicial será instruída com os documentos indispensáveis à propositura da ação. Art. 284. Verificando o juiz que a petição inicial não preenche os requisitos exigidos nos arts. 282 e 283, ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor a emende, ou a complete, no prazo de 10 (dez) dias. Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial. Art. 285. Estando em termos a petição inicial, o juiz a despachará, ordenando a citação do réu, para responder; do mandado constará que, não sendo contestada a ação, se presumirão aceitos pelo réu, como verdadeiros, os fatos articulados pelo autor. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) § 1º O valor incontroverso deverá continuar sendo pago no tempo e modo contratados. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 12.873, de 2013) § 2o O devedor ou arrendatário não se exime da obrigação de pagamento dos tributos, multas e taxas incidentes sobre os bens vinculados e de outros encargos previstos em contrato, exceto se a obrigação de pagar não for de sua responsabilidade, conforme contrato, ou for objeto de suspensão em medida liminar, em medida cautelar ou antecipação dos efeitos da tutela. (Incluído pela Lei nº 12.873, de 2013).
[7] Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: (Redação dada pela Lei nº 10.358, de 27.12.2001) I - expor os fatos em juízo conforme a verdade; II - proceder com lealdade e boa-fé; III - não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; IV - não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito. V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.(Incluído pela Lei nº 10.358, de 27.12.2001) Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado. (Incluído pela Lei nº 10.358, de 27.12.2001) (Vide ADIM 2652, de 2002) Art. 15. É defeso às partes e seus advogados empregar expressões injuriosas nos escritos apresentados no processo, cabendo ao juiz, de ofício ou a requerimento do ofendido, mandar riscá-las. Parágrafo único. Quando as expressões injuriosas forem proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado que não as use, sob pena de Ihe ser cassada a palavra.
[8] Art. 16. Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente. Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que: (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980) I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980) II - alterar a verdade dos fatos; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980) III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980) IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980) V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980) Vl - provocar incidentes manifestamente infundados. (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 27.3.1980) VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. (Incluído pela Lei nº 9.668, de 23.6.1998) Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou. >(Redação dada pela Lei nº 9.668, de 23.6.1998) § 1º Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária. § 2º O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não superior a 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, ou liquidado por arbitramento. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).
[9] Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de tratamento; II - velar pela rápida solução do litígio; III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça; IV - tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) Art. 127. O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei. Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.
[10] Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.
[11] Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973).
[12] Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando: I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte. Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no no II só depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não Ihe atender o pedido dentro de 10 (dez) dias. Seção II Dos Impedimentos e da Suspeição Art. 134. É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário: I - de que for parte; II - em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento como testemunha; III - que conheceu em primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe proferido sentença ou decisão; IV - quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha reta; ou na linha colateral até o segundo grau; V - quando cônjuge, parente, consangüíneo ou afim, de alguma das partes, em linha reta ou, na colateral, até o terceiro grau; VI - quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa. Parágrafo único. No caso do no IV, o impedimento só se verifica quando o advogado já estava exercendo o patrocínio da causa; é, porém, vedado ao advogado pleitear no processo, a fim de criar o impedimento do juiz. Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando: I - amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes; II - alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau; III - herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes; IV - receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio; V - interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes. Parágrafo único. Poderá ainda o juiz declarar-se suspeito por motivo íntimo. Art. 136. Quando dois ou mais juízes forem parentes, consangüíneos ou afins, em linha reta e no segundo grau na linha colateral, o primeiro, que conhecer da causa no tribunal, impede que o outro participe do julgamento; caso em que o segundo se escusará, remetendo o processo ao seu substituto legal. Art. 137. Aplicam-se os motivos de impedimento e suspeição aos juízes de todos os tribunais. O juiz que violar o dever de abstenção, ou não se declarar suspeito, poderá ser recusado por qualquer das partes (art. 304). Art. 138. Aplicam-se também os motivos de impedimento e de suspeição: I - ao órgão do Ministério Público, quando não for parte, e, sendo parte, nos casos previstos nos ns. I a IV do art. 135; II - ao serventuário de justiça; III - ao perito; (Redação dada pela Lei nº 8.455, de 24.8.1992) IV - ao intérprete. § 1o A parte interessada deverá argüir o impedimento ou a suspeição, em petição fundamentada e devidamente instruída, na primeira oportunidade em que Ihe couber falar nos autos; o juiz mandará processar o incidente em separado e sem suspensão da causa, ouvindo o argüido no prazo de 5 (cinco) dias, facultando a prova quando necessária e julgando o pedido. § 2o Nos tribunais caberá ao relator processar e julgar o incidente.
[13] Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos. § 1º Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei. (Redação dada pelo Lei nº 11.232, de 2005) § 2o Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente. § 3o São despachos todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma. § 4o Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessários. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).
[14] Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) § 1o Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) § 2o Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) § 3o A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4o e 5o, e 461-A. (Redação dada pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002) § 4o A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão fundamentada. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) § 5o Concedida ou não a antecipação da tutela, prosseguirá o processo até final julgamento. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) § 6o A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. (Incluído pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002) § 7o Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado. (Incluído pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002).
[15] Art. 300. Compete ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir.
[16] 3 - As modalidades de preclusão de faculdades das partes Depois de destacar os dois aspectos da preclusão - o objetivo (fato impeditivo que garante o avanço processual e obsta ao recuo para fases anteriores já superadas do procedimento) e o subjetivo (perda de uma faculdade processual já esgotada pelo exercício ou não exercitada na devida oportunidade), FREDERICO MARQUES, fiel ao esquema básico de CHIOVENDA, registra as três modalidades que o fenômeno pode ensejar: a preclusão temporal, a preclusão lógica e a preclusão consumativa. E assim identifica cada uma delas: a) "Preclusão temporal é a perda de uma faculdade processual oriunda de seu não-exercício no prazo ou termo fixados pela lei processual". Os exemplos típicos dessa modalidade são os que se passam quando o réu não apresenta a contestação no prazo previsto em lei, e quando a parte vencida não recorre em tempo hábil da decisão que lhe é adversa. Conclui FREDERICO MARQUES: "Não exercida a faculdade ou direito processual subjetivo in opportuno tempore, ocorre a preclusão" (sob a modalidade "temporal"). Com isso, "a fase anterior do procedimento fica superada e o movimento processual se encaminha, através de outros atos, em direção ao instante final do processo"14. b) "Preclusão lógica é a que decorre da incompatibilidade da prática de um ato processual com outro já praticado". São exemplos dessa modalidade preclusiva: a purga da mora que preclui o direito processual do réu de contestar a ação de despejo por falta de pagamento; o manejo da declinatoria fori, perante o juiz da causa, que preclui o direito de excepcioná-lo por suspeição15. c) Preclusão consumativa ocorre "quando a faculdade processual já foi exercida validamente". Funda-se ela, segundo FREDERICO MARQUES, "na regra do non bis in idem"16. No direito positivo brasileiro atual, essa modalidade preclusiva encontra exemplos no art. 471, in verbis: "Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, a cujo respeito se operou a preclusão", bem como no art. 117, que prevê a extinção do direito de suscitar conflito de competência para a parte que antes tiver oferecido exceção de incompetência. Observa, outrossim, o grande processualista que "a preclusão temporal e a preclusão lógica são preclusões impeditivas. Já a terceira forma de preclusão, que é a consumativa, tem o caráter e a natureza de fato extintivo"17. THEODORO Júnior, Humberto. A preclusão no processo civil. Publicado na Revista Jurídica nº 273, p. 5.
[17] Art. 400. A prova testemunhal é sempre admissível, não dispondo a lei de modo diverso. O juiz indeferirá a inquirição de testemunhas sobre fatos: I - já provados por documento ou confissão da parte; II - que só por documento ou por exame pericial puderem ser provados. Art. 401. A prova exclusivamente testemunhal só se admite nos contratos cujo valor não exceda o décuplo do maior salário mínimo vigente no país, ao tempo em que foram celebrados. Art. 402. Qualquer que seja o valor do contrato, é admissível a prova testemunhal, quando: I - houver começo de prova por escrito, reputando-se tal o documento emanado da parte contra quem se pretende utilizar o documento como prova; II - o credor não pode ou não podia, moral ou materialmente, obter a prova escrita da obrigação, em casos como o de parentesco, depósito necessário ou hospedagem em hotel. Art. 403. As normas estabelecidas nos dois artigos antecedentes aplicam-se ao pagamento e à remissão da dívida. Art. 404. É lícito à parte inocente provar com testemunhas: I - nos contratos simulados, a divergência entre a vontade real e a vontade declarada; II - nos contratos em geral, os vícios do consentimento. Art. 405. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) § 1o São incapazes: (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) I - o interdito por demência; (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) II - o que, acometido por enfermidade, ou debilidade mental, ao tempo em que ocorreram os fatos, não podia discerni-los; ou, ao tempo em que deve depor, não está habilitado a transmitir as percepções; (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) III - o menor de 16 (dezesseis) anos; (Incluído pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) IV - o cego e o surdo, quando a ciência do fato depender dos sentidos que Ihes faltam. (Incluído pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) § 2o São impedidos: (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) I - o cônjuge, bem como o ascendente e o descendente em qualquer grau, ou colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes, por consangüinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público, ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova, que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito; (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) II - o que é parte na causa; (Incluído pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) III - o que intervém em nome de uma parte, como o tutor na causa do menor, o representante legal da pessoa jurídica, o juiz, o advogado e outros, que assistam ou tenham assistido as partes. (Incluído pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) § 3o São suspeitos: (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) I - o condenado por crime de falso testemunho, havendo transitado em julgado a sentença; (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) II - o que, por seus costumes, não for digno de fé; (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) III - o inimigo capital da parte, ou o seu amigo íntimo; (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) IV - o que tiver interesse no litígio. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973). § 4o Sendo estritamente necessário, o juiz ouvirá testemunhas impedidas ou suspeitas; mas os seus depoimentos serão prestados independentemente de compromisso (art. 415) e o juiz Ihes atribuirá o valor que possam merecer. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) Art. 406. A testemunha não é obrigada a depor de fatos: I - que Ihe acarretem grave dano, bem como ao seu cônjuge e aos seus parentes consangüíneos ou afins, em linha reta, ou na colateral em segundo grau; II - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo.
[18] Art. 496. São cabíveis os seguintes recursos: (Redação dada pela Lei nº 8.038, de 25.5.1990) I - apelação; II - agravo; (Redação dada pela Lei nº 8.950, de 13.12.1994) III - embargos infringentes; IV - embargos de declaração; V - recurso ordinário; Vl - recurso especial; (Incluído pela Lei nº 8.038, de 25.5.1990) Vll - recurso extraordinário; (Incluído pela Lei nº 8.038, de 25.5.1990) VIII - embargos de divergência em recurso especial e em recurso extraordinário. (Incluído pela Lei nº 8.950, de 13.12.1994) Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente; III - resultar de dolo da parte vvencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; IV - ofender a coisa julgada; V - violar literal disposição de lei; Vl - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória; Vll - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de Ihe assegurar pronunciamento favorável; VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença; IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa; § 1o Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido. § 2o É indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato. Art. 486. Os atos judiciais, que não dependem de sentença, ou em que esta for meramente homologatória, podem ser rescindidos, como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil.
[19] Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (Universidade Federal Fluminense).
[20] Nas palavras do Presidente do Senado, José Sarney.
[21] Neste sentido, apresentamos um excerto de nossa tese de doutorado em fase de conclusão: Imaginemos o processo como um macro enunciado. Não se trata de uma unidade monolítica. Ele ganha textualidade à medida que os atos processuais são praticados. Cada ato praticado integra uma unidade discursiva, e cada unidade comunica-se com a seguinte até a extinção do processo. Forma-se progressivamente uma cadeia discursiva, na qual cada ato processual forma um elo da corrente. A junção progressiva de cada ato estrutura a coesão e a coerência do texto processual. A cadeia discursiva vai se formando segundo a ordem estabelecida na gramática processual. Os atos processuais são praticados em momentos distintos, conforme a natureza jurídica de cada um deles, ou conforme o gênero do discurso praticado. A petição inicial e a contestação, por exemplo, compõem a fase postulatória, enquanto as provas estão na fase instrutória e a sentença encerra a fase decisória. Cada uma delas atua como um frame processual bem definido. Desse modo, percebemos o sentido textual do processo quando fazemos a integração sintática, semântica e pragmática dos atos processuais. O texto processual é uma ordenação de gêneros discursivos, cada um deles contendo tópicos narrativos e argumentativos próprios: petição inicial, contestação, sentença e tantos outros atos intermediários. A este respeito, os linguistas dedicam sérios estudos. Analisam os discursos com rigor e profundidade. Separam as peças processuais em gêneros e dissecam os seus elementos sintáticos, semânticos e pragmáticos. Extrapolam os limites normativos das gramáticas. Avançam cada vez mais na compreensão interdisciplinar da linguagem jurídica. Extraem dos discursos processuais a densidade da comunicação humana. Apresentam-nos a vida que pulsa nos processos. Evocam a responsabilidade enunciativa dos juristas, como construtores de uma ordem social democrática, justa, acessível, coerente, mais humana. O assunto requer um parêntesis. Foram os trabalhos dos linguistas, antropólogos, juristas, filósofos e dos sociólogos que nos levaram a compreender a dimensão textual do processo. Perceber que o trabalho do jurista é mais do que interpretar normas. O jurista é um produtor textual. Produz um texto socialmente relevante, pois impacta a vida das pessoas. Enquanto uma lei pode ser revogada, uma sentença transitada em julgado qualifica-se por sua imutabilidade. Algo que merece consideração, ampliando a responsabilidade enunciativa do jurista. Ele não é um agente passivo diante da ordem jurídica estabelecida. Ele é antes de tudo um agente enunciador, um crítico social. Aquele que propõe a tese jurídica, que exercita a defesa técnica do réu, que postula pela defesa da ordem social, que resolve as questões apresentadas no processo. Suas atividades hermenêuticas não esgotam o sentido textual do processo e as possibilidades discursivas nele contida. Ao contrário, vem de encontro ao esforço cognitivo de compreensão social, jurídica e linguística dos fatos sociais, quase todos resultados da natureza linguajante do ser humano (MATURANA, 2001). Neste contexto, estudos sobre análise do discurso e análise textual do processo convidam os juristas (advogados, defensores públicos, promotores, juízes, etc.) a repensar o processo em sua guinada linguística, abrindo horizontes na prática jurídica brasileira. O jurista não trabalha com ficções normativas. Em que pese a referência obrigatória ao texto legal, na fundamentação das pretensões ou decisões judiciais, o drama jurídico é antes de tudo um drama social. Talvez por esta razão, seja o momento de atentarmos seriamente para a guinada linguística no processo. Tradicionalmente, aprendemos o direito segundo um modelo dedutivo. Estudamos as normas jurídicas, suas teorias fundamentais, memorizamos artigos de lei, recitamos jurisprudência, dispendemos anos a fio nas faculdades de direito longe da pragmática jurídica, longe dos fatos sociais. A realidade social reclama um novo olhar sobre o mundo que nos cerca, cada vez mais complexo, plural e contingente. Das nuvens teóricas chegamos ao terreno árido dos dramas sociais, aqueles dramas vividos por pessoas reais, que desejam soluções práticas e não modelos teóricos, cerebrinos. A realidade produz um rico material de análise para compreensão dos fenômenos jurídicos. O direito faz uma leitura da vida social, não cria a vida que nos envolve. Portanto, deve abrir-se cada vez mais à linguagem das pessoas em suas trocas comunicativas. Os conflitos são na grande maioria das vezes um produto linguístico, assim como as soluções aplicáveis. Neste sentido, as universidades e centros de pesquisa investem cada vez mais em estudos empíricos do direito. A realidade concreta e os textos produzidos em conflitos reais compõem o material de análise de sociólogos e linguistas já com alguma tradição. Aos poucos, notamos uma guinada pragmática no estudo jurídico. Nesse ritmo, o jurista sente a necessidade de um estudo indutivo, abrindo-se cada vez mais à realidade que o cerca. Com esta perspectiva, podemos analisar o texto processual em duas dimensões. Primeiro, como um dado, um registro histórico. Segundo, como discurso em construção. Como registro, ele é uma referência que projeta o discurso seguinte. Assim, cada fase processual sucede à outra, recuperando informações no que foi dito para o dizível que lhe sucede. O processo, em tese, se desenvolve através de uma sequência discursiva coerente. Para manter sua coerência, precisamos fazer leituras remissivas dos atos praticados, projetando os discursos que seguem. Visto desse modo, o processo é uma unidade discursiva, um interdiscurso entre gêneros diversos (petição inicial, contestação, sentença, etc.) que preparam a decisão final. Para ilustrar a questão, fiquemos com um exemplo prático. Quando a parte ingressa com um recurso em face de uma sentença judicial, pretende modificar a decisão que lhe foi desfavorável. Ao apresentar suas razões, o recorrente recupera informações já registradas no processo, projetando um novo discurso para o tribunal. O tribunal, por sua vez, passa a examinar a cadeia discursiva, retirando dos atos praticados elementos que permitam julgar a causa novamente. Neste momento, o tribunal realiza uma leitura remissiva do processo. Deste modo, ele verifica a coerência discursiva do processo, identificando erros de procedimento (sintaxe processual) ou erros de julgamento (semântica). A leitura remissiva é uma medida de segurança jurídica também, pois o órgão julgador não pode desviar-se dos limites estabelecidos no processo, sob pena de violar a garantia fundamental da ampla defesa e do contraditório. Através da leitura remissiva, percebemos que: - O processo é um discurso em progressão. O dito prepara o dizível que lhe sucede. - O texto processual é composto de vários gêneros discursivos: petição inicial, contestação, sentença, etc. - Entre os gêneros discursivos há um interdiscurso. Entre os atos processuais há uma relação causal. Para haver contestação, há que se ter uma petição inicial. A sentença pressupõe uma petição inicial e uma contestação, salvo no caso de revelia quando o réu não se defende no processo. - O encadeamento das unidades discursivas compõe o texto processual. - O texto processual estrutura-se em três dimensões: sintaxe processual, semântica jurídica e pragmática jurídica. Cada dimensão representa um momento particular da construção textual do processo. Na sintaxe, temos a ordem do discurso segundo as regras processuais. Na semântica, temos a valoração e a significação dos termos jurídicos, através do uso técnico da cada um deles. Na pragmática, temos as interações face a face como ocorre em audiências onde são realizados os interrogatórios das partes, a oitiva de testemunhas e a sustentação oral perante os tribunais. (CALLEGARI, 2016).
[22] A hierarquia judiciária (Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores, Tribunais, Corregedorias, Conselho Nacional de Justiça, Conselhos de Justiça) aliada à uma tecnologia de observação eletrônica centraliza cada vez mais o controle do trabalho judiciário. A ordem do discurso praticada no processo é cada vez mais disciplinada e vinculante (vejam as súmulas vinculantes e as decisões com repercussão geral que obrigam os juízes a julgar as demandas conforme o entendimento dos tribunais).
[23] O Código de Processo Civil é dividido em duas partes: geral e especial. A parte especial é dividida em vários livros. Dentre eles, temos o processo de conhecimento. É nele que a parte autora provoca a jurisdição através da petição inicial. Instaurado o processo, cita-se a parte ré que tem prazo para defender-se. Segue-se uma fase de instrução onde são apresentados os meios de prova. Ao final, o juiz profere a sentença, extinguindo o processo com ou sem resolução do mérito.
[24] CAPÍTULO V DA AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO OU DE MEDIAÇÃO Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência. § 1o O conciliador ou mediador, onde houver, atuará necessariamente na audiência de conciliação ou de mediação, observando o disposto neste Código, bem como as disposições da lei de organização judiciária. § 2o Poderá haver mais de uma sessão destinada à conciliação e à mediação, não podendo exceder a 2 (dois) meses da data de realização da primeira sessão, desde que necessárias à composição das partes. § 3o A intimação do autor para a audiência será feita na pessoa de seu advogado. § 4o A audiência não será realizada: I - se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual; II - quando não se admitir a autocomposição. § 5o O autor deverá indicar, na petição inicial, seu desinteresse na autocomposição, e o réu deverá fazê-lo, por petição, apresentada com 10 (dez) dias de antecedência, contados da data da audiência. § 6o Havendo litisconsórcio, o desinteresse na realização da audiência deve ser manifestado por todos os litisconsortes. § 7o A audiência de conciliação ou de mediação pode realizar-se por meio eletrônico, nos termos da lei. § 8o O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado. § 9o As partes devem estar acompanhadas por seus advogados ou defensores públicos. § 10. A parte poderá constituir representante, por meio de procuração específica, com poderes para negociar e transigir. § 11. A autocomposição obtida será reduzida a termo e homologada por sentença. § 12. A pauta das audiências de conciliação ou de mediação será organizada de modo a respeitar o intervalo mínimo de 20 (vinte) minutos entre o início de uma e o início da seguinte. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
[25] Do Saneamento e da Organização do Processo Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: I - resolver as questões processuais pendentes, se houver; II - delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos; III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373; IV - delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; V - designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento. § 1o Realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável. § 2o As partes podem apresentar ao juiz, para homologação, delimitação consensual das questões de fato e de direito a que se referem os incisos II e IV, a qual, se homologada, vincula as partes e o juiz. § 3o Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015- 2018/2015/Lei/L13105.htm.
[26] CAPÍTULO I DAS NORMAS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO CIVIL Art. 1o O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código. Art. 2o O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei. Art. 3o Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1o É permitida a arbitragem, na forma da lei. § 2o O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3o A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. Art. 4o As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa Art. 5o Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé. Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. Art. 7o É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório. Art. 8o Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência. Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I - à tutela provisória de urgência; II - às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III - à decisão prevista no art. 701. Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Parágrafo único. Nos casos de segredo de justiça, pode ser autorizada a presença somente das partes, de seus advogados, de defensores públicos ou do Ministério Público. Art. 12. Os juízes e os tribunais deverão obedecer à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão. § 1o A lista de processos aptos a julgamento deverá estar permanentemente à disposição para consulta pública em cartório e na rede mundial de computadores. § 2o Estão excluídos da regra do caput: I - as sentenças proferidas em audiência, homologatórias de acordo ou de improcedência liminar do pedido; II - o julgamento de processos em bloco para aplicação de tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos; III - o julgamento de recursos repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas; IV - as decisões proferidas com base nos arts. 485 e 932; V - o julgamento de embargos de declaração; VI - o julgamento de agravo interno; VII - as preferências legais e as metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça; VIII - os processos criminais, nos órgãos jurisdicionais que tenham competência penal; IX - a causa que exija urgência no julgamento, assim reconhecida por decisão fundamentada. § 3o Após elaboração de lista própria, respeitar-se-á a ordem cronológica das conclusões entre as preferências legais. § 4o Após a inclusão do processo na lista de que trata o § 1o, o requerimento formulado pela parte não altera a ordem cronológica para a decisão, exceto quando implicar a reabertura da instrução ou a conversão do julgamento em diligência. § 5o Decidido o requerimento previsto no § 4o, o processo retornará à mesma posição em que anteriormente se encontrava na lista. § 6o Ocupará o primeiro lugar na lista prevista no § 1o ou, conforme o caso, no § 3o, o processo que: I - tiver sua sentença ou acórdão anulado, salvo quando houver necessidade de realização de diligência ou de complementação da instrução; II - se enquadrar na hipótese do art. 1.040, inciso II. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm
[27] Há mudanças necessárias, porque reclamadas pela comunidade jurídica, e correspondentes a queixas recorrentes dos jurisdicionados e dos operadores do Direito, ouvidas em todo país. Na elaboração deste Anteprojeto de Código de Processo Civil, essa foi uma das linhas principais de trabalho: resolver problemas. Deixar de ver o processo como teoria descomprometida de sua natureza fundamental de método de resolução de conflitos, por meio do qual se realizam valores constitucionais. https://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf.
[28] A Teoria Tridimensional do Direito foi concebida pelo jurista e filósofo brasileiro Miguel Reale (1994).
[29] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm Art. 2o O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei. Art. 3o Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm.
[30] Art. 312. Considera-se proposta a ação quando a petição inicial for protocolada, todavia, a propositura da ação só produz quanto ao réu os efeitos mencionados no art. 240 depois que for validamente citado. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
[31] Art. 336. Incumbe ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
[32] Art. 141. O juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte. Art. 492. É vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Parágrafo único. A decisão deve ser certa, ainda que resolva relação jurídica condicional.
[33] Existem situações nas quais o processo avança sem a contestação do réu. Desde que observados certos requisitos legais, a saber: Art. 249. A citação será feita por meio de oficial de justiça nas hipóteses previstas neste Código ou em lei, ou quando frustrada a citação pelo correio. Art. 250. O mandado que o oficial de justiça tiver de cumprir conterá: I - os nomes do autor e do citando e seus respectivos domicílios ou residências; II - a finalidade da citação, com todas as especificações constantes da petição inicial, bem como a menção do prazo para contestar, sob pena de revelia, ou para embargar a execução; Art. 344. Se o réu não contestar a ação, será considerado Art. 345. A revelia não produz o efeito mencionado no art. 344 se: I - havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; II - o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III - a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considere indispensável à prova do ato; IV - as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos. Art. 348. Se o réu não contestar a ação, o juiz, verificando a inocorrência do efeito da revelia previsto no art. 344, ordenará que o autor especifique as provas que pretenda produzir, se ainda não as tiver indicado. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm.
[34] Quando falamos em garantia discursiva da pessoa humana, pensamos no efetivo e substancial acesso à Justiça: acesso dialógico. O acesso meramente formal, protocolar, burocrático, não cumpre sua função constitucional. A linguagem é um dos maiores atributos do ser humano. Segundo Maturana (2001), o homem é um ser linguajante. Logo, não se admite um processo no qual as pessoas atuem como figurantes em um jogo de linguagem institucional, sistêmico, fechado em si mesmo. A aparente guinada linguística do CPC/2015 talvez permita mudanças culturais importantes, no sentido de valorizar os atos de fala na jurisdição, rompendo a lógica de uma dogmática processual cientifizante. Assim, estaremos presenciando uma guinada, partindo da instrumentalidade técnica do processo para uma instrumentalidade discursiva. Enquanto a instrumentalidade técnica, tende a neutralizar o papel discursivo dos atores processuais; a instrumentalidade discursiva pode emancipar as pessoas que atuam no processo, ampliando sua responsabilidade enunciativa, valorizando condutas éticas, além de permitir discursos em linguagem comum ao nível discursivo dos envolvidos. Um processo dialógico, textual, tende a mitigar estratégias formalistas em favor de práticas discursivas substanciais, voltadas ao mérito da causa, visando uma prestação jurisdicional substantiva. Um processo dialógico e democrático é aquele estabelecido em nível cognitivo e de fluência cultural comum (MELLO, 2012). A simetria discursiva que leva ao entendimento em situação ideal de fala (HABERMAS, 1997) requer esforço semântico e pragmático sincero, máxime das autoridades que julgam. Percebendo o desnível comunicativo, cabe ao juiz estabelecer o nivelamento semântico como medida de acesso à Justiça substancial, dialógica e democrática. O recurso às decisões surpresa, ao domínio de expressões jurídicas formularias, o hermetismo linguístico, ofendem diretamente as garantias constitucionais da pessoa humana. Não existe ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes, sem que se estabeleçam as condições de felicidade nos atos de fala, sem que os interlocutores exercitem uma linguagem comum, utilizando os mesmos dispositivos cognitivos e expressões indexicais comuns (MELLO, 2012).
[35] A teoria sistêmica de Niklas Luhmann (2009) explica o funcionamento do sistema jurídico. Podemos dizer que a petição inicial funciona como um input do meio externo e a sentença do juiz um output do sistema. Entre a petição inicial e a sentença ocorrem inúmeras operações internas sob as regras de regência do sistema jurídico. Internamente, o sistema realiza operações autorreferentes, otimizada por reduções sucessivas de complexidades vindas do meio externo. Um exemplo. O autor narra uma infinidade de situações ao seu advogado. Ele, por sua vez, extrai da narrativa somente aquilo que interessa ao sistema jurídico. Depois, traduz a narrativa do autor em uma narrativa técnica, conforme a gramática jurídica aplicável ao caso. O réu, em contraditório, extrai dela o que interessa para a sua defesa. O juiz, ao seu modo, reduz a narrativa do autor e do réu. Com isto, produz a narrativa final do processo, encerrando o funcionamento sistêmico para aquela relação processual.
[36] Por muito tempo, a relação entre as regras prescritas nos Códigos (Civil e Penal) eram conhecidas como normas substantivas; enquanto aos Códigos de Processo (Civil e Penal) eram tratados como normas adjetivas. Esta visão dogmática está superada. Mas, há um que de verdade. Entre as normas de conduta e as normas processuais existe uma relação de aproximação semântica fundamental. Não se resolve uma questão penal adotando-se o Processo Civil. O Processo Penal cuida dos crimes tipificados no Código Penal e outras normas penais extravagantes (prescritas em leis específicas). Daí decorre também uma visão instrumental do processo.
[37] O Código de Processo Civil permite a aplicação de suas regras gramaticais nos processos eleitoral, trabalhista e administrativo, nestes casos: Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015- 2018/2015/Lei/L13105.htm A Consolidação das leis do Trabalho, igualmente permite a aplicação do CPC como gramática processual supletiva: Art. 769 - Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm.
[38] Seção XI Da Inspeção Judicial Art. 481. O juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode, em qualquer fase do processo, inspecionar pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato que interesse à decisão da causa. Art. 482. Ao realizar a inspeção, o juiz poderá ser assistido por um ou mais peritos. Art. 483. O juiz irá ao local onde se encontre a pessoa ou a coisa quando: I - julgar necessário para a melhor verificação ou interpretação dos fatos que deva observar; II - a coisa não puder ser apresentada em juízo sem consideráveis despesas ou graves dificuldades; III - determinar a reconstituição dos fatos. Parágrafo único. As partes têm sempre direito a assistir à inspeção, prestando esclarecimentos e fazendo observações que considerem de interesse para a causa. Art. 484. Concluída a diligência, o juiz mandará lavrar auto circunstanciado, mencionando nele tudo quanto for útil ao julgamento da causa. Parágrafo único. O auto poderá ser instruído com desenho, gráfico ou fotografia. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm.
[39] Na técnica jurídica, autor e réu são os jurisdicionados, pois submetidos à jurisdição como atividade soberana do Estado. Num sentido amplo, todos somos jurisdicionados, pois estamos sujeitos à autoridade judicial do Estado brasileiro.
[40] Ao propor uma ação judicial, o autor deve atentar para dois feitos do tempo. A prescrição e a preclusão. Quando existe uma violação do direito subjetivo da pessoa, o sistema jurídico prevê determinados prazos para o exercício da ação. Não exercitada naquele prazo, extingue-se a proteção jurídica. Iniciado o processo, existem prazos internos deste subsistema jurídico que devem ser cumpridos. Quando não atendidos, perde-se a oportunidade de praticá-los novamente. Existem exceções legais, que não serão consideradas nesse estudo. Art. 293. O réu poderá impugnar, em preliminar da contestação, o valor atribuído à causa pelo autor, sob pena de preclusão, e o juiz decidirá a respeito, impondo, se for o caso, a complementação das custas. Art. 1.009. Da sentença cabe apelação. § 1o As questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões. Art. 507. É vedado à parte discutir no curso do processo as questões já decididas a cujo respeito se operou a preclusão. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm Art. 206. Prescreve: § 1o Em um ano: I - a pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres destinados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da hospedagem ou dos alimentos; II - a pretensão do segurado contra o segurador, ou a deste contra aquele, contado o prazo: a) para o segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a este indeniza, com a anuência do segurador; b) quanto aos demais seguros, da ciência do fato gerador da pretensão; III - a pretensão dos tabeliães, auxiliares da justiça, serventuários judiciais, árbitros e peritos, pela percepção de emolumentos, custas e honorários; IV - a pretensão contra os peritos, pela avaliação dos bens que entraram para a formação do capital de sociedade anônima, contado da publicação da ata da assembléia que aprovar o laudo; V - a pretensão dos credores não pagos contra os sócios ou acionistas e os liquidantes, contado o prazo da publicação da ata de encerramento da liquidação da sociedade. § 2o Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem. § 3o Em três anos: I - a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos; II - a pretensão para receber prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias; III - a pretensão para haver juros, dividendos ou quaisquer prestações acessórias, pagáveis, em períodos não maiores de um ano, com capitalização ou sem ela; IV - a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa; V - a pretensão de reparação civil; VI - a pretensão de restituição dos lucros ou dividendos recebidos de má-fé, correndo o prazo da data em que foi deliberada a distribuição; VII - a pretensão contra as pessoas em seguida indicadas por violação da lei ou do estatuto, contado o prazo: a) para os fundadores, da publicação dos atos constitutivos da sociedade anônima; b) para os administradores, ou fiscais, da apresentação, aos sócios, do balanço referente ao exercício em que a violação tenha sido praticada, ou da reunião ou assembléia geral que dela deva tomar conhecimento; c) para os liquidantes, da primeira assembléia semestral posterior à violação; VIII - a pretensão para haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial; IX - a pretensão do beneficiário contra o segurador, e a do terceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório. § 4o Em quatro anos, a pretensão relativa à tutela, a contar da data da aprovação das contas. § 5o Em cinco anos: I - a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular; II - a pretensão dos profissionais liberais em geral, procuradores judiciais, curadores e professores pelos seus honorários, contado o prazo da conclusão dos serviços, da cessação dos respectivos contratos ou mandato; III - a pretensão do vencedor para haver do vencido o que despendeu em juízo. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406compilada.htm.
[41] Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
[42] Ao tratar da ação comunicativa, Habermas (1997) trata das situações ideais de fala propondo o direito como meio para resolver questões entre facticidade e validade. Os teóricos dos atos de fala, como Austin (1990), falam das condições de felicidade de um enunciado. Quando se estabelece uma comunicação eficiente entre os falantes, chega-se à essa condição de felicidade discursiva.
[43] Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm.
[44] Art. 113. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando: I - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide; II - entre as causas houver conexão pelo pedido ou pela causa de pedir; III - ocorrer afinidade de questões por ponto comum de fato ou de direito.
[45] Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm.
[46] Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de tratamento; II - velar pela duração razoável do processo; III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias; IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária; V - promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm Art. 765 - Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm.
[47] A respeito do exame das provas, aplica-se o princípio da unidade da prova: TST - AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA AIRR 29633 29633/2002-902-02-00.5 (TST) Data de publicação: 27/11/2009 Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTABILIDADE SINDICAL. LIMITES DA LIDE. NULIDADE DO ACÓRDÃO. INOCORRÊNCIA. NÃO PROVIMENTO. Após a análise do conjunto fático-probatório dos autos (princípio da unidade da prova), ainda que não impugnado determinado fato constitutivo do direito do autor, pode o órgão julgador, com base em seu livre convencimento motivado, concluir pela inviabilidade da pretensão, conforme preceituado no artigo 131 do CPC. Agravo de instrumento a que se nega provimento.
http://www.jusbrasil.com.br/topicos/2167555/principio-da-unidade-da-prova TRT-22 - RECURSO ORDINÁRIO RO 1050200900222003 PI 01050-2009-002-22- 00-3 (TRT-22) Data de publicação: 19/03/2010 Ementa: INOVAÇÃO RECURSAL. VEDAÇÃO. NÃO CONHECIMENTO. Não se conhece de matéria arguida somente nas razões recursais, por se tratar de inovação à lide, prática vedada pelo ordenamento jurídico (art. 460 do CPC ). VALORAÇÃO DA PROVA. NULIDADE DO JULGADO. NÃO CONFIGURAÇÃO. A decisão que analisa o conjunto probatório para, ao final, concluir pela improcedência do pedido objeto da ação, não se atendo a determinada prova não pode, por isso, ser declarada nula, porquanto nenhuma prova serve sozinha para evidenciar a satisfação de um direito ou o cumprimento de uma obrigação, já que a sua valoração deve ser feita em confronto com os demais elementos existentes nos autos (princípio da unidade da prova). PROVA TESTEMUNHAL INCONSISTENTE. SUPERIORIDADE DA PROVA DOCUMENTAL. HORAS EXTRAS INDEVIDAS. Deve prevalecer a prova documental, quando a prova testemunhal é insuficiente para afastá-la. Indevido, portanto, o pedido de condenação em horas extras.
http://www.jusbrasil.com.br/topicos/2167555/principio-da-unidade-da-prova.
[48] Bittar define a juridicidade como conjunto de práticas textuais discursivas (2015. Pg. 81).
[49] Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: I - em que o exija o interesse público ou social; II - que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes; III - em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade; IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2015/lei/l13105.htm.
[50] Em tempos de linguagem digital, temos hoje duas modalidades de processo: em papel e digital. O processo chegou ao mundo digital e o mundo digital chegou ao processo. O processo eletrônico é uma realidade e sua tramitação digital cresce a cada dia. O acervo de novos processos na Justiça do Trabalho, neste ano, alcançou a marca de 84%. Sem contar que os processos físicos estão sendo digitalizados. Na prática, assistimos a uma nova plataforma linguística, uma semiótica digital atuando no texto processual, com novas relações signo-significantesignificado. Novos léxicos, uma nova semântica e uma pragmática discursiva do tipo digital, onde o watzap, email, google tradutor, wilkpedia compõe a situação discursiva.
[51] O Código de Processo Civil admite certas rupturas discursivas, sem prejuízo da progressão textual: revelia do réu e preclusão para se manifestar nos autos, por exemplo. No primeiro caso, o réu não se defende quando citado regularmente. No segundo caso, uma das partes deixa de praticar um ato processual no prazo determinado. Quando previstas, segundo o princípio da legalidade, estas rupturas ou lacunas discursivas fazem parte da ordem do discurso processual. São casos excepcionais cuja aplicação requer cuidado e ponderação. No caso da revelia observe-se que: Art. 344. Se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se-ão verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor. Art. 345. A revelia não produz o efeito mencionado no art. 344 se: I - havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; II - o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III - a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considere indispensável à prova do ato; IV - as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos. Art. 346. Os prazos contra o revel que não tenha patrono nos autos fluirão da data de publicação do ato decisório no órgão oficial. Parágrafo único. O revel poderá intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontrar. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015- 2018/2015/Lei/L13105.htm.
[52] A partir de Max Weber, existem várias intepretações sobre o patrimonialismo. Em linhas gerais, refere-se a um modelo de dominação onde se misturam os interesses público e privado, sendo, pois, fator de desigualdade social. No patriarcalismo, há uma prevalência da atuação e da vontade do homem, com reduzido espaço de atuação das mulheres e outros membros da sociedade, submetidos à autoridade masculina. Pesquisas indicam que traços de ambos estão presentes na sociedade brasileira, como podemos ver na distribuição desigual de cargos e salários, no mercado de trabalho, ou, até mesmo, na representação política no Congresso Nacional.
[53] Autopoiese deriva do grego (autopoiesis). A origem etimológica do vocábulo é autós (por si próprio) e poiesis (criação, produção). Seu significado literal é autoprodução. Os subsistemas produzem, e reproduzem, a sua própria organização circular por meio de seus próprios componentes.
Na comunicação luhmanniana, autopoiesis se refere a um sistema autopoiético, definido como rede de produção de componentes e estruturas. Como emissor da própria comunicação, opera, por isso mesmo, de forma autorreferencial. Implica autorganização: elementos produzidos no mesmo sistema.2 Decorre da auto-organização da natureza e da sua comunicação com o seu ambiente, como se fossem células do corpo autorregenerado. 3 FEBBRAJO, Alberto, LIMA, Fernando Rister de Sousa. Autopoiese. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Álvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coord.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Álvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica. pucsp.br/verbete/152/edicao-1/autopoiese.
[54] Lei nº 13.467/2017.
[55] VÍNCULO EMPREGATÍCIO. PEJOTIZAÇÃO. Não se olvida a prática nociva conhecida como pejotização, na qual ocorre a contratação formal de pessoa jurídica para mascarar vínculo de emprego. No conjunto, as provas existentes no processo confirmam a tese sustentada na defesa, de que não houve relação empregatícia entre o reclamante e a reclamada. Sentença de piso mantida no ponto. (TRT-2 10006061820205020264 SP, Relator: WILDNER IZZI PANCHERI, 3ª Turma - Cadeira 3, Data de Publicação: 22/09/2021).
[56] Freios e contrapesos. Segundo Montesquieu (2007), a teoria da separação dos poderes requer um sistema de controle recíproco, evitando, com isso, a tirania e a arbitrariedade, recebendo o nome de freios e contrapesos.
[57] “O sujeito solipsista no Direito age desse modo autoritário porque está escorado em uma institucionalidade, falando de um determinado lugar (o lugar de fala, em que quem possui o skeptron pode falar, em uma alegoria com o que se passa na Ilíada ou com a posse da concha, no livro The Lord of Flies)...A estrutura, a intersubjetividade, enfim, essa linguagem pública constrange a todos nós cotidianamente para evitar que saiamos por aí fazendo coisas solipsistas.” (STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica da hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento. Casa do Direito, 2017.
[58] Código de Processo Civil.
[59] Os Tribunais podem controlar a conduta processual do juiz através de recursos, mandado de segurança, habeas corpus, reclamação correcional, reclamação na ouvidoria, reclamação nos Conselhos de Justiça, etc.
[60] Aquele que, em razão da relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá manifestar-se no processo, colaborando para a compreensão da causa.
[61] Segundo Streck (2017): privilégio cognitivo do juiz.