A inclusão digital requer novo pacto social entre governos e sociedade
Rogério Santanna dos Santos
Secretário de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão e secretário executivo do Comitê Executivo do Governo Eletrônico no governo federal brasileiro. Comitê Gestor da Internet no Brasil.
Para ampliar o acesso às tecnologias da informação, o governo brasileiro desenvolve o Programa Brasileiro de Inclusão Digital e também está estabelecendo parcerias com governos estaduais, municipais, organizações não-governamentais e outras entidades da sociedade civil. Não podemos fazer uma política de inclusão digital apenas do ponto de vista do Estado. Precisamos criar um ambiente institucional que promova a inclusão na sociedade em rede. Somente com um novo pacto social conseguiremos aproveitar o potencial transformador das novas tecnologias da informação e comunicação para construirmos uma sociedade mais inclusiva e democrática.
Vivemos uma nova etapa na história da humanidade. Entramos na era da sociedade da informação, que transformou radicalmente a forma como o conhecimento é adquirido, armazenado, processado, transmitido e disseminado. As novas tecnologias de informação e comunicação dissolveram as fronteiras nacionais e propiciaram o surgimento de uma nova configuração social e econômica que colocou o conhecimento no cerne dos processos vividos em sociedade. Presenciamos a disseminação da rede mundial de computadores, que é o maior exemplo de compartilhamento do conhecimento e é um tributo ao pensamento científico, porque partiu da necessidade de os cientistas compartilharem informações sobre o andamento dos projetos.
Na década de 30, um artesão provavelmente até os 30 anos de idade aprendia com seus mestres e após passava a ensinar seus conhecimentos. Hoje, um engenheiro, ao sair da universidade, já tem boa parte do seu conhecimento desatualizado. Há a necessidade de aprendermos, permanentemente, nesta sociedade completamente diferente e interativa e repensarmos a forma com que os professores tratarão as questões daqui para adiante. Porém, mais importante ainda que saber é saber onde encontrar as informações e saber continuar aprendendo.
Outro aspecto importante desse processo é que o exercício da democracia plena pode ser muito potencializado com a Internet. Se ela estiver bem distribuída nas diversas camadas sociais, as pessoas poderão, por exemplo, votar sobre mudanças na sua rua, sobre o orçamento da sua cidade, sobre quais obras devem ser feitas ou não. No Brasil temos grandes exemplos disso com a aplicação do Orçamento Participativo, que possibilitou diversas contribuições ao exercício da democracia. Esse é um instrumento que pode ser ainda mais potencializado com a transparência do Estado e a prestação de contas à sociedade de tudo o que o governo faz. É importante que o Estado sempre esteja auscultando a sociedade em todos os momentos da vida pública e, nesse sentido, a Internet nos permitirá radicalizar a democracia.
São mudanças de capacidade fundamentais que exigem dos países desenvolvidos e em desenvolvimento a definição de novos rumos na política, economia, gestão pública, educação, cultura, entre outras. A questão não é se caminhamos ou não para a sociedade da informação, mas qual sociedade da informação queremos. Qualquer que seja a sociedade da informação para a qual vamos caminhar, da mais democrática a mais autoritária, ambas podem ser construídas e, certamente, usarão recursos da tecnologia da informação para serem implantadas. Desde o porteiro até o mais alto qualificado engenheiro de software, todos precisarão usar esses recursos.
Mas é possível que estejamos correndo o risco de ter dois tipos de cidadãos: de um lado, os que estão incluídos no mundo desenvolvido e participam dele, têm conta no banco, automóvel, cartão de crédito e pertencem à sociedade ocidental e supostamente desenvolvida; do outro lado, estará o conjunto daqueles que estão absolutamente marginalizados, que não têm a menor possibilidade de sobreviver em um mundo globalizado, que foram esquecidos pelo mundo e que morrerão das doenças mais antigas e pouco tratáveis. Por sua vez, as pequenas e médias empresas, que no Brasil oferecem quase a metade dos empregos formais, são a contrapartida empresarial da exclusão digital. É preciso simplificar os processos de acesso a serviços públicos, reduzindo seus custos, o tempo e o númer o de documentos exigidos. É fundamental reduzir o custo burocrático de funcionamento das empresas, diminuir o número daquelas que operam precária ou informalmente. Garantir seu acesso a crédito facilitado para financiar essa mudança e a sua constante atualização tecnológica e gerencial.
Se não tivermos uma política que force a democratização, se não tratarmos dessas questões e da diminuição do analfabetismo funcional e digital e da pobreza e da miséria também no mundo eletrônico, corremos o risco de aumentar ainda mais a diferença entre o mundo dos incluídos e excluídos. Isso não se aplica apenas para os países em desenvolvimento, mas vale para o mundo inteiro. Senão, aumentarão as diferenças entre pobres e ricos mesmo nos países desenvolvidos. A sociedade da informação pode ser mais excludente e aumentar o déficit econômico e social, mas podemos aproveitar suas potencialidades para diminuir a miséria e consolidar os direitos dos cidadãos. Nesse sentido, a inclusão digital deve ser tratada como um elemento constituinte da política de governo eletrônico para que essa possa configurar-se como política universal. No Programa Brasileiro de Governo Eletrônico, estamos tratando de aumentar, de forma qualificada, não somente a oferta de mais e melhores serviços por vias eletrônicas, mas também sua demanda.
No Brasil, a Internet é concentrada nas classes A e B. Os números da classe A, que corresponde a menos de 4% da população brasileira, são de Primeiro Mundo. Agora, quando vamos para a classe E, que reúne quase 32% da população brasileira, apenas 0,5% tem acesso à Internet. De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD 2003), desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do Ministério do Planejamento, há uma queda acentuada quando saímos da classe A para a classe B. A classe C agrupa uma população maior que as classes A e B reunidas, e a classe B possui mais que o dobro de acesso a computadores que a classe C.
Por essa pesquisa, cerca de 68% da população brasileira estão nas classes D e E e praticamente não têm acesso à Internet. Na Europa e nos Estados Unidos, 75% das casas têm computador e 67% têm acesso à internet. Não é por acaso que as escolas conectadas no Brasil estão fortemente concentradas em São Paulo. E mesmo na cidade de São Paulo, a banda larga está nos Jardins, e não está na zona leste. Portanto, mesmo em uma região rica, há também uma concentração na distribuição desses recursos em função da renda.
A fim de ampliar esse acesso, o governo brasileiro está desenvolvendo o Programa Brasileiro de Inclusão Digital para estimular uma política pública de inclusão digital. A idéia é induzir e fomentar a implementação de espaços públicos de acesso comunitário por governos municipais, estaduais, iniciativa privada e sociedade civil, priorizando o uso de software livre para ampliar a proporção de cidadãos, sobretudo os de classe C, D e E, com acesso às tecnologias da informação e comunicação. São diferentes iniciativas que vão desde o oferecimento de linhas de financiamento específicas para subsidiar a venda de computadores, a reciclagem de computadores descartados para serem destinados a telecentros e escolas, entre outros, a instalação de telecentros voltados para diferentes segmentos da sociedade zonas rurais, grandes centros urbanos, micro e pequenos empresários , passando pelo levantamento das iniciativas de inclusão digital em curso no país.
Uma dessas ações é o Computador para Todos (PC Conectado), que já começa a apresentar resultados concretos. Levantamento recente feito pela Consultoria IDC mostrou que o programa, viabilizado com isenção de impostos por meio da MP n° 252 de junho deste ano, está impulsionando a venda de computadores no país. Estimativas apontam um incremento da ordem de 30% no mercado formal e a maior redução do consumo do número de computadores pirateados nos últimos 10 anos. O Computador para Todos tem caráter interministerial e é coordenado pela Presidência da República.
O seu objetivo é possibilitar a oferta de computador e acesso à Internet a preços subsidiados e com linha de financiamento específica. Computadores de até R$ 1.400 que obedeçam à configuração mínima podem ser parcelados em até 24 prestações de R$ 70,00. Outra ação, o Projeto Casa Brasil, pretende atuar junto às classe D e E, que não têm renda suficiente para comprar um PC, mas para as quais se pode garantir o acesso em centros comunitários, como telecentros, em grandes cidades, favelas ou regiões remotas do Brasil. O projeto também envolve diversos ministérios e é coordenado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, estando a Secretaria Executiva a cargo do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação.
Países em desenvolvimento que têm grande massa da sua população em situação de pobreza precisam de abordagens diferentes, novas, mais adequadas à sua situação econômica. Então, não se pode desperdiçar nenhum processador, nenhum equipamento. É preciso criar soluções em informática que sejam melhores que as existentes, mais baratas e eficazes. É necessário o desenvolvimento de computadores baseados em hardware comoditizados, em software aberto baseado em grids* e clusters**, que permitem reaproveitar muitas de nossas máquinas com outra abordagem. É preciso investir na reciclagem de computadores, fazendo com que esses processadores voltem e contribuam para diminuir a chamada brecha digital.
É central que as nações se organizem para pensar de outra maneira essas questões. Telecomunicações e informática significam antes de tudo inteligência e depois dinheiro e recursos. Se desenvolvermos inteligência e compartilharmos os nossos saberes, podemos alavancar uma outra abordagem que seja capaz de minimizar a miséria e a pobreza do nosso país. É exatamente esse o espírito do projeto Computadores para a Inclusão, que consiste na implantação de centrais de recondicionamento de computadores usados para serem destinados a telecentros, escolas e bibliotecas. O projeto também integra o Programa Brasileiro de Inclusão Digital e é coordenado pela Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento. A ação busca dar um destino socialmente justo e ambientalmente correto para milhares de microprocessadores, teclados, monitores, mouses e impressoras descartados anualmente por órgãos da administração pública federal. São cerca de 4 milhões de equipamentos descartados anualmente no Brasil.
Arquitetura de computação distribuída para o compartilhamento de recursos que possibilita aproveitar capacidades ociosas.
Sistema que compreende dois ou mais computadores ou sistemas que trabalham em conjunto para executar aplicações ou realizar outras tarefas.
A iniciativa brasileira é inspirada no projeto desenvolvido desde 1993 pelo Canadá e mantido pelo governo com apoio de organizações não-governamentais. Foram entregues mais de 400 mil computadores em 10 anos de experiência, e estima-se que um quarto das necessidades de equipamentos das escolas públicas canadenses é provido pelo programa. Também são beneficiados centros de alfabetização, centros comunitários, entre outros. Outra experiência relevante é desenvolvida desde 2000 pelo governo colombiano com o apoio de diversos parceiros privados. Desde a sua criação, foram distribuídos mais de 26 mil computadores recondicionados, beneficiando mais de 2.500 escolas.
Para viabilizar diversas iniciativas de inclusão digital em todo o país, o governo federal está estabelecendo inúmeras parcerias com governos estaduais, municipais, organizações não-governamentais e outras entidades. O governo está possibilitando a conectividade para milhares de localidades por intermédio do Gesac, coordenado pelo Ministério das Comunicações. O programa conta hoje com 3.200 pontos de presença, e a meta é chegar a 4.400 pontos até o final do ano. O Gesac garante conexão via satélite à Internet para escolas, telecentros e bases militares, além de oferecer serviços como conta de e-mail, hospedagem de páginas e capacitação de agentes multiplicadores locais. Para mapear essas diferentes iniciativas, estamos estruturando o Observatório Nacional de Inclusão Digital para cadastrar telecentros e outros espaços não-comerciais de acesso coletivo e livre às tecnologias para a mensuração e acompanhamento da inclusão digital pelo governo e pelo público em geral.
Se cada uma das ações para a inclusão digital em andamento tiver 50% de êxito, vamos ter um grande impacto na questão da infra-estrutura. Mas para isso precisamos criar um ambiente institucional que promova a inclusão na sociedade em rede. Sabemos que não podemos fazer uma política de inclusão digital sem a participação dos estados, municípios e das organizações sociais: das ONGs, das associações de moradores, das igrejas, das empresas e de todos aqueles que trabalham nesse processo.
Unindo esforços e aproveitando o conhecimento de quem está perto das necessidades locais, podemos desenvolver projetos que valorizem e respeitem as potencialidades de cada região, de cada município.
É preciso acordarmos que não há futuro para o mundo dos incluídos, se não tratarmos do outro lado da rua, onde está o mundo dos excluídos. Não há como os mais ricos usufruírem sua riqueza sem que as pessoas tenham acesso aos bens mínimos, sob pena de haver uma horda de miseráveis que os roubará. Há muitas pessoas que têm acesso a bens muito caros e que não podem usá-los. Mesmos os filhos da classe média já não conseguem sair com aquele tênis de grife porque vão ser roubados no colégio. É necessário que repensemos socialmente essa distribuição da riqueza. E como podemos fazer isso? Uma das maneiras é propiciando o acesso ao conhecimento, à educação, levando o Estado para lugares onde não está.
A exclusão digital significa a exclusão do conhecimento, que é a pior das exclusões porque de fato retira das pessoas a possibilidade de mudar sua vida e de repensar seu entorno, inclusive a possibilidade de participar democraticamente. Normalmente, as pessoas têm muita dificuldade de participar da democracia, e com menos informação isso fica ainda mais difícil. Ter informação é votar melhor, é fazer melhores negócios, é ter acesso a melhores oportunidades de emprego e oportunidades econômicas, é ter condições de participar politicamente. Somente com um novo pacto social conseguiremos aproveitar o potencial transformador das novas tecnologias da comunicação e informação para construirmos uma sociedade mais inclusiva e democrática.