Inclusão social e TICs

Tadao Takahashi

Diretor-geral da ISIBrasil. Membro da Força-Tarefa sobre TICs e Desenvolvimento das Nações Unidas. Foi o fundador e primeiro diretor da Rede Nacional de Pesquisa (RNP), de 1988 a 1996, e o coordenador e editor principal do Livro Verde sobre a Sociedade da Informação no Brasil (SocInfo/BR), de 1999 a 2002.

Resumo

A exclusão digital (tanto de indivíduos como de micro/ pequenas empresas) decorre de exclusão social e/ou econômica. Assim, é natural julgar que ações de inclusão digital somente farão sentido após ações concretas de inclusão social ou econômica. Na realidade, tais ações devem ser concomitantes e articuladas, posto que TICs têm hoje papel central em educação e geração de emprego/ trabalho.

O governo federal tem papel fundamental a desempenhar quanto ao tema, principiando com alocação de recursos materiais e humanos; definição de diretrizes e prioridades; operacionalização de mecanismos de execução; e constância de rumo. Mas, sobretudo, é necessário converter o tema da inclusão nacional em prioridade da sociedade brasileira.

Palavras-chave

Inclusão social; Inclusão digital; Inclusão socioeconômica; Tecnologias de informação e comunicação.

Social inclusion and TICs

Abstract

Digital exclusion (both of individuals and of micro/small enterprises) derives from social and/or economic exclusion. So, it is taken for granted that actions of digital inclusion will only make sense after concrete actions of social or economic inclusion. Actually, such actions have to be concomitant and articulated, since TICs have today a central role in education and generation of employment/work. The federal government plays a fundamental role as regards the theme, starting out by allocating material and human resources; by defining the guidelines and priorities; by operating execution mechanisms; and by keeping the same direction. But, above all, it is necessary to turn the theme of national inclusion into a priority for the Brazilian Society.

Keywords

Social inclusion; Digital inclusion; Socioeconomic inclusion; Technologies of information and communication.

EXCLUSÃO DIGITAL E EXCLUSÃO SOCIOECONÔMICA

Há cerca de dez anos, as áreas detelecomunicações , de informática e de conteúdos, no mundo e no Brasil, entraram em um processo de acelerada convergência tecnológica, liderada pela grande difusão da Internet e de suas aplicações. Hoje, em 2005, não importa muito saber o que era o fenômeno subjacente de digitalizaçãoe como esta veio a impactar essas áreas e transformá-las para sempre. O que salta à vista é que, aos olhos do consumidor, hoje “vale tudo”: celulares permitem acesso à Internet, computadores “pegam a novela na TV”, e televisores têm “correio-eletrônico embutido”. Todos têm acesso a serviços que não podiam ser imaginados poucos anos atrás, e tudo indica que a coisa está somente começando...!

“Todos”?

Bem, quase todos! Isto é, a maioria. Ou melhor, certamente muitos... E é aqui que o cenário róseo da convergência tecnológica é confrontado com a realidade abrangente do Brasil. O fato é que:

• Estimativas variam conforme a fonte, mas a mensagem básica é clara: somente algo como 12%, quem sabe 15% da população brasileira têm acesso regular à Internet*, em casa, no trabalho, na escola, ou em outros locais.

• Com parcela tão reduzida da população brasileira na Internet, todas as iniciativas do tipo “democracia eletrônica”, via websites, blogs, etc., que vêm sendo incensadas na mídia, à medida que são ensaiadas por pessoas e entidades pioneiras, já nascem com um “pecado original” no Brasil: são dirigidas para uma minoria muito elitizada, que tem padrões europeus de acesso e uso de serviços e informações via Internet.

• A visibilidade ainda muito “glamourizada” que se tem dos grandes resultados que o Brasil tem efetivamente alcançado na difusão da Internet, na grande mídia, tem obscurecido o fato de que há uma exclusão digital ampla, que é nova na forma, mas muito antiga na causa: é a instância mais recente da velha exclusão econômica e social.

* Ebit (2005), entre vários outros.

EXCLUSÃO DIGITAL EM EMPRESAS: O PÃO COM A MANTEIGA PARA BAIXO

O problema da exclusão digital também aparece do lado de empresas. Segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae)*, há mais de 15 milhões de empreendimentos informais no Brasil, para menos de cinco milhões de empreendimentos formais. Tomemos somente os empreendimentos formais para fins de discussão: aqui, falamos de algo como 4,6 milhões de microempresas e de 274 mil pequenas empresas, no total de 4,9 milhões de empresas de todos os portes no Brasil. Como estão essas empresas em termos de conectividade com a Internet? Novamente os números variam conforme a fonte, mas o retrato geral é claro: quanto menor a empresa, pior a situação. E o retrato não é bom: no estado de São Paulo, segundo levantamento feito pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) e Universidade de São Pauo (Usp)** em 2003, menos de 17% de empresas no setor de distribuição, com 1 a 29 empregados tinham acesso à Internet.

Não há dados confiáveis sobre o lado informal, mas a pesquisa GEM*** dá uma pista: segundo ela, o Brasil tem o maior número relativo (dentre os países pesquisados) de empreendedores por necessidade (em contraposição a empreendedores por vocação ), significando que a razão que os levou a montar o empreendimento foi a falta de emprego; parcela expressiva desses empreendimentos é de caráter informal. Falta tudo nelas.

 

* SEBRAE 2005 com dados do IBGE.

** FIESP/USP: Pesquisa de Inclusão Digital na Empresa em São Paulo, 2005.

*** GEM/BR: Empreendedorismo no Brasil 2004 – Sumário Executivo, 2005.

 

Para agravar a situação, parece haver uma “rejeição” latente a meios eletrônicos em geral no âmbito de pequenos negócios no Brasil (em que, segundo a McKinsey, 85% não pagaram em 2004 algum tipo de imposto, para fugir à carga extremamente alta de tributos), por receio de chamar a atenção do Fisco*.

Mas possivelmente podemos considerar a exclusão digital no âmbito empresarial um problema “menor”, quando comparado ao de pessoas, correto? Dificilmente. Micro, pequenas e médias empresas oferecem a absoluta maior parte dos empregos no país. De sua modernização e expansão dependem a curto prazo o surgimento de mais trabalho e emprego para a população. E a falta de emprego é o principal problema do jovem brasileiro. Segundo estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos (Dieese) realizado em 2004**, jovens entre 16 e 24 anos perfaziam 45% dos desempregados no Distrito Federal e nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. E o futuro é negro. Em São Paulo, segundo o mesmo estudo, 50,4% dos jovens entre 16 e 24 anos só trabalham (ou só procuram trabalho) e não estudam, tendendo assim a permanecer em condições precárias, dentro ou fora do mercado de trabalho.

INCLUSÃO DIGITAL COMO APOIO À INCLUSÃO SOCIOECONÔMICA

Em uma visão abstrata e distanciada, parece óbvio que qualquer ação estratégica de inclusão digital deve dar precedência absoluta a ações em inclusão social (de pessoas) ou econômica (de pessoas e de empresas).

Mas o que é priorizar ações de inclusão socioeconômica? O cenário acima mostra que, a curtíssimo prazo, são prioritárias medidas que permitam atacar o problema da exclusão econômica e gerar renda e trabalho para empresas e pessoas. No médio/longo prazos, há unanimidade da parte de vários estudos*** no sentido de priorizar a educação em todos os níveis e modalidades.

Aqui, tanto no curto como no longo prazo, TICs ganham importância estratégica. Muitos estudos e discussões no mundo têm evidenciado claramente que não há como optar entre investir em TICs, ou investir em combate à pobreza. É necessário investir em ambas as frentes, mirando o uso de TICs como ferramenta estratégica para fomentar a produção e os serviços, de um lado, e a melhoria e a ampliação de oportunidades de educação, de outro lado.

* FSP: Medo do fisco barra meios eletrônicos em lojas. Folha de S. Paulo, 22 de setembro de 2005.

** FSP: Jovens entre 16 e 24 anos são 46% dos desempregados. Folha de S. Paulo, 20 de setembro de 2005.

*** CNI: Mapa Estratégico da Indústria 2005-2015. CNI, 2005.

Em fomento à produção e a serviços, TICs permitem a empresas de todo porte, mas especialmente às de pequena/microescala, bem como a empreendedores na economia informal:

Em educação, e em especial junto aos jovens, equipamentos e serviços baseados em TICs (computadores, jogos, filmes, etc.) exibem a característica única de serem, ao mesmo tempo,úteis, mas divertidos. E as mesmas habilidades desenvolvidas na prática de jogos, por exemplo, servem para uso geral, como em interface com aplicações complexas, em navegação e busca de informações na Internet, etc. Do lado de planejadores de atividades educacionais, a possibilidade de se atingir e de interagir com uma multitude de pessoas em locais distantes via Internet, televisão digital, etc., a custo fixo, potencializa o impacto dessas atividades a um nível inédito.

O QUE FAZER?

Há muitas atividades de inclusão digital em curso no país, muitas delas de excelente qualidade e de abrangência significativa. Mas o desafio da inclusão digital (especialmente se acoplado, como se sugere enfaticamente acima, ao de inclusão social e econômica) é de tal magnitude, que somente a ação do governo federal pode realmente fazer uma diferença decisiva.

Em termos concretos, há quatro ingredientes essenciais que devem ser considerados para a concepção e execução de uma política nacional de inclusão digital, a saber:

(i) recursos materiais e humanos;
(ii) diretrizes e prioridades;
(iii) mecanismos de ação; e
(iv) perseverança na execução.

Recursos materiais e humanos

Há países em que não há recursos materiais e humanos para se pensar seriamente em esforços nacionais de inclusão digital. Não é o caso do Brasil. Não faltam recursos humanos (em empresas, em ONGs, em escolas técnicas, em instituições públicas) para mobilização em escala nacional para um “mutirão” de inclusão digital. Tampouco faltam recursos no âmbito federal para financiar ações mobilizadoras em inclusão digital: Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel), Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e outros. Falta decisão sobre usá-los, conforme se comentará na seção a seguir. Mas os recursos existem.

Diretrizes e prioridades

Quando não há diretrizes globais claras e a definição subseqüente de prioridades, surge uma cacofonia de propostas e projetos que não têm foco e sobretudo limites claros, não se articulam e não guardam nenhum tipo de precedência ou hierarquia entre si. O governo precisa definir centralmente e em nível muito alto quais diretrizes e prioridades ele propõe e, uma vez consensadas e aceitas, traduzi-las em número bastante reduzido de projetos mobilizadores. Cinco ou seis serão suficientes, cobrindo acesso associativo; acesso individual; educação; governo eletrônico; fomento a negócios de micro, pequenas e médias empresas (MPMEs); inovação tecnológica.

Mecanismos de execução

É necessário separar claramente a concepção/ coordenação da execução realde atividades de inclusão digital. A administração federal é historicamente deficiente na execução de projetos: ela deve articular a execução com administrações estaduais e municipais, e criar mecanismos licitatórios para contratar serviços externos de variada envergadura. Além disso, ela deve criar/identificar mecanismos internos de concepção/coordenação e de acompanhamento de ações, conciliando a articulação e delegação a estruturas operacionais verticais (dentro de ministérios, e em estados e municípios) com a coordenação e acompanhamento horizontais (entre ministérios e agências e com os outros Poderes).

Perseverança na execução

Finalmente, é necessário perseverar: em jogos das dimensões que temas como inclusão digital demandam, os resultados se formam a cada passo, mas se consolidam somente a longo prazo. Não se pode mudar de diretrizes e prioridades a cada mudança em um ministério ou mesmo a cada administração. E não se pode mudar a natureza dos processos envolvidos: por exemplo, uma rodada completa de “exercício do poder de compra do Estado” pode significar cinco anos de trabalho contínuo (ano zero: planejamento orçamentário; ano um: licitação; ano dois: contratação e início de execução; ano três: execução real; ano quatro: avaliação e revisão de projeto/prioridades), o que significa duas geraçõesde produtos/serviços de TICs.

OBSERVAÇÃO FINAL

Não há nada novo ou surpreendente nas observações anteriores. Em larga medida, elas refletem a experiência mundial nos últimos cinco anos sobre o tema de inclusão digital*. O que falta ao Brasil? Provavelmente, só uma coisa: um posicionamento central, claro e irrevogável, da Presidência da República, no sentido de se articular e efetivamente executar um programa de inclusão digital de âmbito nacional. O restante, se tem ou se faz no caminho.

* UNICTTF: Livros da ICT TF Series <http://www.unicttf.org>. ITAFE/WEF: Orchestrating demand and supply in a sustainable ecosystem for digital inclusion. Janeiro 2005.