E-Topia

Maria Nélida González de Gómez

Doutora em Comunicação. Pesquisadora titular do MCT-Ibict. E-mail: nelida@infolink.com.br

Resumo

No caminho das metanarrativas tecnológicas contemporâneas, “e-topia” sugere algumas novas questões acerca da relação entre conhecimento, informação, política e cidadania.

Palavras-chave

Metanarrativas tecnológicas. Cadeia de informação. Infra-estrutura de conhecimento. Cidadania.

“E-Topia”

Abstract

In the way of the contemporany technological metanarratives, “e-topia” suggest any new questions about the relation between knowledge, information, politics and citizenships.

Keyword

Technological metanarratives. Knowledge infrastructure. Information chain. Citizenships.

A-topia, Eu-topia, E-topia

Na década do 80, líamos atentos o relatório de Lyotard1, A condição pós-moderna, proveniente de um documento apresentado ao governo francês e publicado em 1979 em seu país de origem. Nele proclamava-se o fim das grandes narrativas heróicas, como um dos fatos inaugurais da chamada pós-modernidade.

Não seria, porém, o fim das narrativas acerca de uma civilização mítica na qual seriam superados todos os conflitos e carências das sociedades históricas. As imagens do ciberespaço, da noosfera digital, anunciavam a transformação das ofertas tecnológicas do século XXI em premissas transcendentais da nova civilização.

De fato, já no século XIX encontraremos discursos que sustentam expectativas e demandas de um estado superior de bem-estar e harmonia a partir da emergência de algum dos grandes sistemas tecnológicos que se sucedem e convergem no decurso de algo mais de cem anos: o telégrafo, a eletricidade, o telefone, o cinema, a TV (ver, entre outros, MOSCO, 2004). Em todos os casos, cada uma dessas novas formas de mediação levou a pensar em um universo de relações comunicacionais não empobrecidas pelas filiações, os patrimonialismos, os corporativismos. Poderia falar-se, com alguns cuidados, em utopias tecnológicas.

Desde 1516, quando Thomas Moore deu o nome Utopia a uma ficção filosófica acerca de uma ilha do mesmo nome, onde não existiriam conflitos nem carências (De optimo reipublicae statu deque nova insula Utopia), o termo tem sido usado nas mais variadas acepções. Discute-se, alias, se o “u” resulta da contração do “ou” grego, usado em substituição de um “a” privativo (a forma nesse caso seria “a-topia”, “lugar inexistente”), ou trata-se da contração de um “eu” (nesse caso, seria “eutopia” –”lugar feliz”) (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1993, p. 1285). A interpretação do termo tem oscilado também, entre “maximização dos aspectos positivos da sociedade atual e concreta” ou “transformação social em contradição com os determinismos científico-tecnológicos”. Em sua acepção mais corrente, entende-se como um mundo ótimo, mas inalcançável.

1 O pós-moderno, Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.

Entre os diversos termos que servem de referência às novas “metanarrativas sociais, escolhemos “e-topia”2, utilizado pelo urbanista William Mitchell, porque permitia pensar antes que na mera superação da idéia de lugar, na provisão de novos modelos de tempo e de espaço para a produção de imaginários sociais, a partir da digitalização (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2006).

O interessante destas metanarrativas tecnológicas seria que, se os mitos não são nem verdadeiros nem falsos, mas “vivos ou mortos” (MOSCO, 2004), as tecnologias que neles são “narradas” são reais e efetivas em sua intervenção sobre a economia, a cultura, a política. O telégrafo se comercializa a partir de 1837; a construção da lâmpada, por Edison, em 1879, consolidara o impacto da eletricidade no cotidiano urbano; em 1885 foi criada a AT&-American Telephone and Telegraph, provedora de serviços de longa distância para American Bell, tempo depois da invenção do telefone; na segunda década do século XX o cineasta russo Sergei Eisenstein filma A Batalha de Potemkin, e Chaplin era uma estrela de alcance internacional, dando-se ponto de partida à indústria cultural, mundializada e expandida pela TV aberta, mais ou menos a partir da década de 50 (ver, entre outros, MOSCO, 2004). Kauffman cita Stiglitz e sua afirmação da vigência e atualidade das TICs, após a retração das expectativas sobre as empresas “ponto com”.

... las bases de la Economía del Conocimiento, admite Stiglitz, son reales: Internet es real, los progresos tecnológicos son verdaderos, y las formas innovadoras de producción y desarrollo de negocios son también auténticas. Si los siglos XVIII y XIX presenciaron el pasaje de una economía de base agrícola y primaria a la economía industrial, y la mayor parte del siglo XX asistió al cambio de la economía de base industrial a otra economía basada en los servicios, la última década del siglo XX marcó el pasaje a lo que Stiglitz llama la “economía sin peso” (STIGLITZ, 2003, p. 228).

Nada garante, porém, a direção “eu- tópica” dessas mudanças tecnológicas.

2 Termo proposto no livro E-topia – A vida urbana mas não como a conhecemos, do urbanista William J. Mitchel, em que o autor, parodiando a Utopia de Thomas Moore, imagina uma civilização urbana baseada no fluxo de informações em lugar da acumulação de coisas, capaz de superar os conflitos e encruzilhadas sociais e econômicas da cidade moderna.

Das TICs às metatecnologias

O “e”, de e-topia, remete-nos a uma “família” de tecnologias que podemos identificar pela junção da eletrônica, a digitalização e a telecomunicação. Indica assim um ponto imaginário de cruzamento entre variáveis simbólicas e materiais: a materialidade técnico-ecônomica que sustenta o digital, e a configuração simbólica, mas não menos atual, dos fluxos informacionais que transitam pelas redes eletrônicas e planetárias. Antes que um não-lugar, seria um “e-lugar” em direção ao qual se construiriam as infra-estruturas digitais e eletrônicas em domínios específicos: e-comércio, e-ciência, e-conhecimento, e-governo, e-cidadania.

Braman (2004) considera necessário diferenciar, no contexto atual, após a passagem das ferramentas as tecnologias, um novo deslocamento das tecnologias as “metatecnologias”.

As ferramentas são aquelas que podem ser usadas por um único indivíduo, trabalhando sozinho, e permitem transformar a matéria ou a energia em uma única etapa: por exemplo, algumas das muitas ferramentas usadas na técnica da escrita, como o uso de lápis e papel.

As tecnologias são sociais em sua produção e em seu uso. Elas permitem interligar e realizar ao mesmo tempo diversas etapas de processamento no decurso de uma atividade de transformação da matéria ou da energia; para cada tecnologia, porém, teríamos uma única seqüência conforme a qual as etapas podem ser cumpridas, só um ou uns poucos tipos de material podem ser processados e só um ou uns poucos tipos de produto podem ser obtidos (tecnologias da rádio aberta e da impressão de jornais).

As metatecnologias seriam aquelas que aumentam o grau de liberdade com que os homens podem atuar nos mundos social e material. Permitem executar largas cadeias de processamento, a partir de diversos inputs e obtendo um número indefinido de produtos. Sendo sociais em sua produção, permitem que desde um único ponto se possa intervir em uma vasta rede com múltiplas conseqüências no mundo social e material.

“As metatecnologias são sempre informacionais e a Internet é o primeiro exemplo de uma meta-tecnologia usada com propósitos de comunicação” (BRAMAN, S., 2004)3.

A digitalização tem um papel decisivo nestas mudanças. “A digitalização refere-se à transformação da comunicação, pela inclusão das palavras, imagens, figuras em movimento e sons numa linguagem comum” (MOSCO, 2004, p. 155).

Ante a multiplicidade de tecnologias analógicas, o código digital oferece uma linguagem comum para processar sinais orais, verbais e imagéticos, linguagens estáticas e cinéticas, de modo que as bases do transporte, processamento e distribuição de conteúdos em meio eletrônico não fariam diferença, em princípio, entre uma página de jornal, as notícias difundidas pela rádio, uma comédia televisada, um CD de música ou uma mensagem de e-mail (MOSCO, 2004, p.155). Terá de ser questionado, em outro momento, se à medida que os dispositivos tecnológicos reduzem suas diferenciações funcionais, os usuários desses dispositivos deverão aumentar suas capacidades de discernimento (BLAIR, D., 2003 ).

Para Borgman, a “convergência digital” e a potência de reunião de fluxos de informação analógica e digital (BORGMANN, 2000) são destacadas como componentes de um princípio operacional decisivo que desencadearia, com as redes eletrônicas e interativas mediadas por computador, um processo irreversível de construção de novos “infrapoderes informacionais”.

Os quadros a seguir (quadros 1 e 2), obtidos de Singh (2004, p. 93), comparam as diferentes trilhas informacionais, sejam configuradas pelas condições constitutivas das tecnologias analógicas (dissociando a representação de voz, texto, imagem, dados, movimentos), ou das tecnologias digitais (associando voz, texto, imagem, dos audiovisuais, alinhados em conteúdos, dispositivos multimídia e infra-estrutura).

³ “Meta-technologies are always informational, and the Internet is a premiere example of a meta-technology used for communication purposes”.

Esse poder metamediático se manifestaria na Internet, alterando o modo de agir das tecnologias sobre a comunicação e suas estruturas relacionais no tempo e no espaço:

QUADRO 1

A: Influência de tecnologias analógicas

QUADRO 2

B: Influência de tecnologias digitais

 

As mediações tecnológicas da comunicação poderiam ser caracterizadas pelo estilo e extensão da comunicação: a rádio e a TV aberta permitem a comunicação um a muitos, não interativa, mas sincrônica; a telefonia, a comunicação um a um, interativa e sincrônica; uma carta, comunicação interativa, um a um, mas a-sincrônica. A Internet, porém, permite ao mesmo tempo a comunicação de um usuário com uma única pessoa, com um grupo ou com o público em geral, e pode transitar de uma a outra forma, numa mesma sessão; pode também alternar comunicação de uma via ou interativa, sincrônica (chat) e asincrônica (e-mail), dentro de uma mesma de atividade (BRAMAN, 2004, p. 158-9).

As mudanças contínuas e acumulativas dificultam, de fato, uma visão prospectiva. A computação nômade, por satélite e telefonia celular, permite antecipar uma nova reformulação do que sejam as infra-estruturas; e a imersão da inteligência digital em geladeiras, roupas e ainda – cada vez mais no futuro – em animais, plantas e no corpo humano, complica ainda mais a compreensão do papel futuro das novas tecnologias, até agora definidas a partir de conjuntos identificáveis, visíveis e discretos de objetos, com funções preestabelecidas e relativamente fixas.

A busca de evidências empíricas de transformações já iniciadas pareceria levar-nos ao domínio dos programas de ação de diversos atores e organizações, envolvendo diferentes condições empírico-instrumentais de ação e diferentes metas, direções e implicações.

Informação e políticas simbólicas

Para alguns, a fase mítica da emergência das tecnologias poderia servir para generalizar sua aplicação e uso, dissociando-as de estratégias políticas e econômicas singularizadas. Para nós, ao hiperdimensionar o fatum tecnológico, pelo contrário, abrem-se as portas para um debate no qual o papel das tecnologias se considera não em cadeias curtas meio-fim, em que a eficácia se mede sobre objetivos segmentados e imediatos, mas na amplitude e compreensão da esfera das políticas.

Nesse caso, uma das primeiras conseqüências de nosso ponto de partida metafórico – a e-topia – seria sua oferta de “enredamento” das mediações da comunicação, da informação, da esfera cultural, destacando-se a importância e necessidade de tratar ao mesmo tempo de questões de índole política que até aqui têm sido desdobradas entre múltiplos e diversos atores, atividades, instituições e dispositivos tecnológicos. Poderíamos dizer, agora, que “ e-topia” designa um lócus, antes metafórico que mítico, da possível mediação de todas as mediações, através de processos concretos de codificação, digitalização e convergência tecnológica.

Sandra Brama reconhece esses liames políticos ressaltados pela convergência digital e tecnológica.

A política dos médios em seu sentido mais amplo seria co-extensa com o campo da política de informação, envolvendo questões que se originam em cada um dos momentos da cadeia de produção da informação que envolve a criação, processamento, fluxo e uso da informação (BRAMAN, 2004 b, p.178)4.

Propõe assim duas formas de leitura do cenário contemporâneo:

a) uma visão de alcance mais largo (política de informação), que parte da “cadeia de produção de informação” como princípio heurístico para identificar, descrever e codificar orientações políticas não segmentares, com capacidade de vincular diferentes manifestações de demandas, meios e recursos de informação;

b) uma visão de meio alcance (política de meios de comunicação), focando o público como sujeito da política e olhando as condições informacionais e comunicacionais que facilitam ou impedem seu engajamento nos processos de produção e reprodução da sociedade, no sentido mais abrangente e como membro de uma esfera pública. A mediação comunicacional jogaria “um papel constitutivo na estruturação da sociedade ao facilitar o papel construtivo do público” (BRAMAN, 2004b, p.178)5.

4 “Media policy in its broadest sense is co-extant with the field of information policy, which involves issues that arise at every stage of an information production chain that includes information creation,processing, flows and use. Braman, 2004b, p.178; ver tambem, p.156: Conceptually, the field of media policy can be considered co-extant with that of information “policy, broadly defined as all policy pertaining to information creation, processing, flows and use. The distinction remains important, however, in order to ensure that constitutional principles provide the foundation for the making, implementation and interpretation of the law as well as to serve pragmatic needs”.

Para Braman, a “cadeia de produção da informação”, como heurística dos parâmetros de definição das políticas de informação, permitiria obter uma visão dos cenários contemporâneos intermediária, entre um nível macro, de maior abstração (regimes internacionais de informação?) e um nível mais empírico, um micronível 6. É interessante destacar que a autora propõe a análise e reflexão acerca dos diferentes momentos e configurações da cadeia produtiva da informação, como metodologia para a reconstrução de questões relevantes e pertinentes para a elaboração de políticas de informação, independentemente de suas jurisdições midiáticas (rádio, TV, jornais, bibliotecas etc.) e de suas jurisdições administrativas, a fim de que tenham a extensão e complexidade requerida por seu caráter transversal e pervasivo. Conforme a autora, os principais momentos dessa “cadeia informacional” seriam:

a) a criação de informação, entendendo como tal a criação do novo, ou a geração de valores informacionais a partir de fontes textuais, factuais ou de dados – como as séries estatísticas;

b) o processamento de informação, diferenciando aquele que se realiza através de algoritmos, usando linguagens matemáticas e computacionais e os processos cognitivos, usando linguagem natural e códigos especializados;

c) a mobilização da informação, desdobrada em transporte (mobilização de mensagens em ações pontuais, incluem uma mensagem) e distribuição (canais regulares de fluxos de informação);

d) a armazenagem e preservação da informação, destacando a importância da formação e consolidação de memórias sociais e culturais;

e) a destruição de informações, considerando quais ficam sem inscrição, quais sem tratamento, quais sem disseminação, e preocupando-se com a destruição de registros organizacionais ou do patrimônio natural e cultural das populações nativas e locais;

f) a busca de informações, considerando as novas formas sociais de agregação e dispersão de fontes, recursos e instrumentos de busca de informação, diferenciando-se as questões que resultam do acesso à infra-estrutura das questões que resultam do acesso às próprias fontes (lingüísticas, epistêmicas, sociais) e, em ambos casos, as questões das condições econômico-sociais de disponibilização e acesso à informação.

Entre as dificuldades desta leitura e desta integração, segundo Braman (2004), fazem referência as mudanças no papel de agente dos que participam das novas cadeias produtivas da informação e da comunicação. Se o próprio de um agente seria a capacidade de agir conforme sua própria intenção, as mediações constitutivas de processos e ações de geração e uso de informação se caracterizariam pela interação estrutura – agência seriam estruturações. Acontece que essa potência de estruturação seria cada vez mais reduzida do lado do agente e cada vez mais importante do lado das tecnologias. E as políticas públicas deveriam proteger a os indivíduos para que tivessem a “agentividade comunicativa” necessária para intervir e afetar os processos de governança. Se pode diferenciar assim um poder instrumental (a capacidade de afetar comportamentos mediante a ação física), um poder estrutural (a capacidade de afetar comportamentos mediante a confi-guração de instituições e regras) e um poder simbólico (a capacidade de afetar comportamentos mediante a configuração de percepções e modos de pensamento). As metatecnologias constituiriam uma nova e quarta modalidade do poder, o poder informacional, que consistiria na capacidade de afetar comportamentos por meio das bases informacionais das formas instrumental, estrutural e simbólica do poder (BRAMAN, 2004 b, p. 160).

5 The constitutional functions of media policy, determined by constitutional law, address the conditions under which the public can actively engage in the production and reproduction of the society in which members of the public live. Within the constraints thus established, the media play the constitutive role of structurally shaping society through its facilitation of the constructive roles of the public. BRAMAN, 2004b, 178.

6 “The model of an information production chain is useful in breaking down complex communicative processes into their elements for differential analysis and legal treatment of those elements. Thus, while interactive and non-interactive, synchronous and asynchronous, and intercast, narrowcast and broadcast communications may all be mixed by users of the Internet, the concept of an information production chain can be of value in determining just how to distinctly apply legal principles”. BRAMAN, 2004b, p.172.

Essa potência metatecnológica seria um complicador a mais para estabelecer o que sejam as políticas de informação, já que transvasa não um setor ou outro das atividades sociais, mas as próprias fronteiras do que seja “estrutura” e “agente”, ao ponto em que “a estrutura informacional vai devir agência” – no sentido, por exemplo, de um motor de busca que toma “decisões acerca da recuperação da informação” que independe do agente humano da busca pontual. Diante desse dilema, as políticas deveriam preocupar-se em preservar o “público” como ponto de vista coletivo, no gnosiológico e no político, capaz de ponderar o que nos é “comum” no desenho e avaliação dessas novas formas de mediação informacional.

Em uma segunda leitura, Braman (2004 b) parte da busca de uma definição do interesse público, “discurso acerca de problemas compartilhados que requerem soluções compartilhadas”. Ao reconstruir algumas das condições de uma política não setorializada que possa dar cobertura a questões da comunicação um a muitos, um a um, ou indiferente às particularidades dos meios – como a Internet –, Braman sinaliza também o caminho para elaborar políticas públicas de informação que superem jurisdições corporativas e subsistemas funcionais do estado.

a) Trata-se daquelas políticas que afetam odiscurso público acerca de problemas compartilhados que requerem soluções compartilhadas.

b) Abrange todas as políticas referentes aodiscurso de e para o público e dentro da esfera pública

c) Relaciona-se com todas as políticas públicas referentes a assuntos e questões que afetam direta ou indiretamente o público.

Infra-estrutura e gestão dos conhecimentos

Em nosso ponto de vista, faltaria incluir, nesse quadro, com mais ênfases, questões acerca da ciência e da tecnologia e também da informação científico-tecnológica.

Para Kahin (2004), as sociedades contemporâneas estariam configuradas por três grandes infra-estruturas, altamente coesas, baseadas em codificações e que requerem a constituição de padrões, instituições e profissões específicas: a infra-estrutura do conhecimento, a infra-estrutura legal e a contabilidade (accounting infrastructure).

A infra-estrutura do conhecimento científico denominaria o universo ideal das bases de dados, os periódicos, o complexo sistema de editoração científica, de colaboração entre pesquisadores e instituições de pesquisa e um sistema não menos complexo de monitoramento, avaliação e financiamento. A infra-estrutura legal estaria constituída pelo direito e outros instrumentos normativos, como estatutos, tratados, regulamentos, contratos, patentes.

A infra-estrutura contábil confere, mesura e monitora as atividades econômicas.

Todas elas manteriam relações intensas coma nova infra-estrutura constituída pela Internet, que, como todas elas, tem como principal domínio de ação e intervenção os contextos de informação. Conforme o mesmo Kahin, ao reunir características das infra-estruturas físicas – como as infra-estruturas viárias e de telefonia –e características próprias de infra-estruturas baseadas em codificações, “assume uma posição central e definidora entre o tangível e o intangível que ilumina as características infra-estruturais dos sistemas codificados” (KAHIN, 2004, p. 40).

Códigos e padrões, ao mesmo tempo, constituídos em essência por regras, no sentido wittgensteano de usos ou convenções, ao mesmo tempo reúnem e dissociam, gerando diferentes tipos de convergências, justaposições e conflitos.

A e-topia ficaria assim ameaçada por múltiplas distopias.

Essa breve referência ao conceito de infra-estrutura de conhecimentos, porém, nos servirá para abordar melhor algumas outras mudanças significativas.

Para melhor explicar nossa própria leitura desse cenário, consideramos importante definir o que entendemos por metaconhecimento, como um modo de conhecimento que se tem construído por movimentos de coleta e envolvimento de outros conhecimentos, e que teria como espaço desses deslocamentos os estratos e categorizações oferecidas pela informação e sua representação, que deno-minamos metainformação.

De fato, nas formações sociais ditas da modernidade, foi sendo aceita uma divisão social da produção de conhecimento científico e tecnológico, diferenciando-se grupos e instituições que produziriam em primeiro lugar conhecimento (como os institutos de pesquisa e as universidades) daqueles que seriam responsáveis pela produção de metaconhecimento, com finalidades avaliativas, de planejamento, gestão e de contribuição à elaboração de políticas específicas. Tal seria o caso de órgãos como os conselhos nacionais e estaduais de pesquisa, as congregações e conselhos das grandes universidades, as comissões parlamentares de ciência e tecnologia e muitas outras agências de cooperação internacional, tais como as secretarias e comissões da ONU, Nafta, OCDE, Mercosul, entre outras. Por outro lado, a partir da pós-guerra, uma certeza generalizada acerca da importância da ciência reunia os programas de desenvolvimento industrial e as metas de segurança nacional.

Nesse quadro, enfim, as políticas de informação tinham assim no Estado um princípio generalizador das demandas e das especificidades setoriais.

O conceito genérico de infra-estruturas de conhecimento contribui a pensar em algumas das mudanças que têm alterado aquele quadro que poderíamos caracterizar como “moderno”.

Em primeiro lugar, já não seria clara e aceita uma distribuição funcional da produção, gestão, disseminação de conhecimento, metaconhecimento e informação, nem dentro de uma unidade organizacional nem nos macrocenários da atividade social. Todas as fases e processos de geração e disseminação de informação se redistribuem entre diversos atores públicos e privados, resultando na emergência de estratégias de metaconhecimento e de conhecimento que não têm o escopo e abrangência da esfera decisória do Estado nacional. Temas como os de “governança da ciência” ou “gestão do conhecimento” são evidência dessa reformulação e complexificação das cadeias decisórias do conhecimento e a informação. Em segundo lugar, teríamos as mudanças resultantes da intervenção das metatecnologias e do conseguinte obscurecimento da diferenciação entre agentes e estruturas de informação, que interfere na produção dos conhecimentos e afeta principalmente as plataformas informacionais e comunicacionais de formalização, controle e disseminação.

Estamos assim chegando à consideração de uma questão central: à medida que aumentasse o peso decisório de ações de metaconhecimento corporativas, plurais e dissociadas, junto ao impacto indireto das metatecnologias, maior seria a opacidade do conhecimento social, das direções prioritárias de sua construção e projeção, de seus domínios de referências, suas metas, seus modos de absorção, réplica e socialização. Seria necessário encontrar novas vinculações entre o e-conhecimento e a cidadania. Quais as condições, nesse quadro, para a formação deliberativa e informada de políticas democráticas acerca da formação e distribuição de um excedente social de conhecimento?

Cidadania, e-cidadania

O conceito de cidadania, em seus diversos usos modeladores, parece reter uma referência ao caráter deliberativo e público dos processos decisórios, sob a vigência do estado de direito.

Sendo o cidadão o sujeito de deveres e direitos estabelecidos de modo constitucional e sancionados na ordem jurídica e institucional, a cidadania e seu exercício pressupõem algunsprincípios a regular a formação e sanção dos processos decisórios nas diferentes esferas da ação política, tais como os princípios de igualdade ante a lei [isonomia] e de autolegislação7.

Para Borja, o conceito de cidadania, em sua construção histórica, teria duas dimensões principais: uma, racional, orientada pelo princípio de equivalência, conforme o qual, uma sociedade deve ser justa para que seus membros a percebam como legítima; outra, referente ao sentimento de pertencimento, conforme a qual se constitui um princípio de adesão à comunidade e seus planos coordenados de ação, à medida que ela oferece formas eqüitativas de inclusão, permitindo processos coletivos e ampliados de identificação.

7 Entende-se por autolegislação o princípio de que os destinatários das leis devem ser ao mesmo tempo seus autores. Ou, de modo mais geral, que a esfera dos que tomam a decisão deve ser da mesma extensão e constituição que a esfera dos que são afetados por essa decisão.

A cidadania, a partir da modernidade, seria assim mediadora entre um princípio de justiça e um sentimento de identidade, ao mesmo tempo que identificaria a operação de transformação dos direitos universais da humanidade – enquanto universais, ideais e formais – em direitos e expectativas jurídica e institucionalmente definidas e sancionadas e, portanto, suscetíveis de demanda e observação local e empírica de seu desempenho. Com esses pontos de partida, o conceito de “cidadania” associaria as exigências de legitimidade e de justiça (direitos e deveres) e a construção de uma identidade coletiva na medida em que faz referência aos que são membros de uma comunidade política (BORJA, 2000, pág. 3).

Conforme a definição de Borja:

“A cidadania é, em primeiro lugar, uma relação política entre um indivíduo e uma comunidade política, em virtude da qual é membro de pleno direito dessa comunidade, a qual lhe deve lealdade enquanto desfruta dela. Na atualidade, a cidadania supõe um estatuto jurídico que atribui um conjunto de direitos políticos, cívicos e sociais aos sujeitos que a desfrutam, já o sejam por nascimento ou por aquisição posterior dessa cidadania. Assim, a cidadania permite executar, ao menos teoricamente, o conjunto de roles sociais que permitem aos cidadãos intervir nos assuntos públicos (votar e ser eleito, participar em organizações políticas e sociais, exercer plenamente as liberdades e os direitos reconhecidos por lei)”. (BORJA, 2000, pág.3)

A relação entre o conhecimento, a informação e o público requer agora que a redefinição das cadeias decisórias e a reformulação da configuração horizontal das políticas e de suas referências locais e globais sejam revisadas à luz de estratégias mais exigentes ainda: o jogo da justiça e o jogo da identidade cultural.

Afirmamos que todas essas questões ora políticas, ora teóricas, ora técnicas, passam hoje – de modo necessário se não de modo suficiente – pela questão da informação e das tecnologias de comunicação e informação. Recuperamos novamente um dos textos de Kauffman, no qual lembra que um bom governo poder ter um bom e-governo, um mau e-governo ou nenhum e-governo, mas um mau governo nunca poderia ter um bom e-governo. Logo, sem cidadania, não poderemos ter uma boa e-cidadania, assim como um bom e-conhecimento parece demandar o fortalecimento de uma “esfera pública do conhecimento” em que a cidadania se encontre com a ciência. Fica em aberto, no domínio das questões da informação, um amplo espaço para debate e reflexão.

REFERÊNCIAS

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