As nanotecnologias como solução da pobreza?

Noela Invernizzi

Doutora em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp. Pós-doutorado no Center for Science Policy & Outcomes (Columbia University).

E-mail: noela@ufpr.br

Guillermo Foladori

Doutor em economia pela Universidad Nacional Autonoma do México.

E-mail: fola@estudiosdeldesarrollo.net

Resumo

Argumenta-se que a nanotecnologia é a próxima revolução tecnológica. Os apologistas da nanotecnologia a consideram a solução para os principais problemas dos países em desenvolvimento. Argumentamos que esta visão otimista desconsidera o contexto social no qual a ciência e a tecnologia se desenvolvem.

Palavras-chave

Nanotecnologia. Ciência e sociedade. Países em desenvolvimento.

Nanotechnologies as a solution for poverty?

Abstract

Nanotechnology is thought of as the next technological revolution. The apologists of nanotechnology consider it as a solution for the main problems of the developing countries. Arguments are presented concerning this optimistic view that does not take into consideration the social context in which science and technology are developed.

Keywords

Nanotechnology. Science and society. Developing countries.

INTRODUÇÃO

Um dos assuntos mais discutidos e mais difíceis de discernir de antemão, na crescente discussão sobre nanotecnologia, são seus possíveis efeitos nos países e setores mais pobres da população. Contrapõem-se posturas otimistas, que consideram a nanotecnologia uma panacéia, e posturas pessimistas, que supõem que a brecha entre ricos e pobres incrementar-se-á como resultado da difusão dessa tecnologia. O debate sobre as distintas posturas, sustentado com argumentos teóricos e 13 informação empírica, é fundamental para se chegar a uma visão equilibrada do fenômeno.

No início de 2005, um influente artigo colocou a nanotecnologia como uma alternativa viável para resolver a maioria dos problemas anotados como Millennium Development Goals pelas Nações Unidas. Nas páginas seguintes pretendemos questionar tal otimismo, colocando essas novas tecnologias no seu contexto social.

AS NANOTECNOLOGIAS COMO TECNOLOGIAS DESESTRUTURANTES

A nanotecnologia é o estudo e a manipulação da matéria numa escala sumamente pequena, na faixa entre 1 e 100 nanômetros. Para se ter uma referência, um vírus tem entre 20 e 300 nanômetros de tamanho. Embora não estejamos muito habituados com esta tecnologia, já há no mercado vários produtos “normais”, aos quais têm se acrescentado nanopartículas para dar-lhes características especiais. Segundo o Nanotech Report (FORBES, 2004), entre os primeiros produtos com conteúdos nanotecnológicos comercializados em 2004 encontram-se calçado térmico (Aspem Aeogels); colchões que repelem o suor e pó (Simmons Bedding Co.); tacos de golfe mais resistentes e flexíveis (Maruman & Co.); cosméticos pessoais (Bionova); vestidos para feridos e queimados que evitam as infecções (Westain Corporation); desinfetantes e limpadores que se aplicam em aviões, barcos, submarinos etc. (EnviroSystems); spray que repele água e sujeira (Basf); tratamento aos vidros para repelir a água, a neve, insetos etc. (Nano-film); creme contra dor muscular (CNBC) e adesivos dentais que fixam melhor as coroas (3M ESPE). Lux Research, uma empresa dedicada ao estudo da nanotecnologia e seus negócios, estima que a venda de artigos com nanopartículas vá superar a soma dos 500 bilhões em 2010 (BAKER & ASTON, 2005).

Há, pelo menos, quatro aspectos que caracterizam a nanotecnologia como uma grande descontinuidade tecnológica. Em primeiro lugar, trata-se de construir do menor (átomos e moléculas) ao maior (produto final) – processo bottom-up –, em lugar de começar pela matéria física tal como está dada na natureza, segundo suas estruturas próprias de união, e reduzi-la ao tamanho dos objetos de uso, como se vinha fazendo até agora – processo top-down. Apesar de este caminho já ser conhecido em processos químicos, a novidade é que agora se podem manipular diretamente os átomos e moléculas para construir produtos (RS&RAE, 2004). Isto constitui uma novidade na história da humanidade e uma nova forma de pensar o mundo.

Em segundo lugar, neste nível atômico não há diferença entre a matéria biótica e a abiótica, de ma-neira que resulta potencialmente possível aplicar procedimentos biológicos aos processos materiais, ou interferir com materiais nos corpos vivos, adaptando estes últimos a determinados fins ou oferecendo vantagens particulares, ou também criar vida artificial para desempenhar funções específicas. Um exemplo seriam os dispositivos que permitiriam descansar o corpo sem dormir, o que seria muito útil na guerra e em outras atividades de grande intensidade física ou mental.

Em terceiro lugar, as nanopartículas podem apresentar propriedades físicas e químicas (condutividade elétrica, mecânica, óptica, etc.) distintas dos mesmos elementos em escala macroscópica. Ao mudar as propriedades físicas da matéria, surgem possibilidades que surpreendem e entusiasmam os cientistas e as empresas. Muitos dos nanomateriais que já estão à venda aproveitam esta vantagem. Os nanotubos de carbono, por exemplo, são mais duros que o diamante e entre cinqüenta e cem vezes mais fortes que o aço.

Por último, a nanotecnologia combina várias tecnologias e ciências, como a informática, a biotecnologia e a tecnologia de materiais. Esta convergência não é um elemento menor, se pensarmos que um verdadeiro desenvolvimento da nanotecnologia irá requerer uma formação profissional totalmente nova, que obrigará a redesenhar planos de estudo, talvez desde a educação primária.

Os possíveis benefícios da nanotecnologia são impossíveis de calcular. Basta aqui realizar uma rápida referência a alguns dos mais prováveis. Na área da saúde, poderia aumentar a qualidade de vida e sua duração. Nanosensores incorporados ao próprio organismo, e viajando como se fossem vírus pelo sangue, poderão detectar doenças antes que se expandam, e combatê-las eficientemente. As drogas não serão genéricas, mas específicas segundo a composição genética individual, o sexo, a idade, etc. Os mecanismos de envelhecimento poderão ser retardados e inclusive revertidos. Com sensores artificiais, a pessoa poderá se transformar em um ser biônico, melhorando suas capacidades biológicas e desenvolvendo outras. O campo das próteses é também um dos mais promissores.

Na área dos materiais, uma novidade são as nanopartículas inteligentes. Uma peça de roupa, por exemplo, poderá reagir às mudanças de temperatura, chuva, neve, sol, etc., mantendo o corpo sempre à temperatura programada. Além disso, repelirá o suor e o pó, assim não precisará ser lavada. Se isso é pouco, impedirá que bactérias ou vírus penetrem nela, mantendo-a inclusive distante de possíveis atentados bioterroristas. O mesmo que se aplica à vestimenta poderia aplicar-se às moradias e aos meios de transporte.

Outra novidade são os nanotubos de carbono, cinqüenta a cem vezes mais fortes que o aço e com 1/6 de seu peso, que além de possuírem grande condutividade, não perdem energia na transmissão. Terão impacto especial na indústria aeroespacial, na construção, indústria automotriz, eletrônica e muitas outras.

A área da informática e comunicações será uma das primeiras e mais revolucionárias. Computadores cem vezes mais rápidos e muito menores e leves poderão programar a produção segundo as características de desenho, tamanho, forma, cor, cheiro, resistência, etc., do comprador. Os protótipos elaborados com sensores incorporados acelerarão os desenhos, adaptando-se a processos de produção flexíveis em diferentes partes do mundo, superando muitas das barreiras que a distância impõe. A antiga produção just in time será obsoleta e, quem sabe, surja a produção as you need. As possibilidades da concentração monopólica da produção, que alguns chamamglobal business enterprises, serão multiplicadas.

A combinação de sistemas computadorizados, laboratórios químicos, sensores em miniatura e seres vivos adaptados a funções específicas revolucionarão a medicina (lab-on-a-chip) e também será uma rápida solução a problemas históricos de contaminação. Talvez pequenas bactérias providas de sensores sejam capazes de consumir corpos de água contaminados por metais pesados, ou descontaminar em tempo recorde a atmosfera terrestre. Nanocápsulas com sistemas combinados de sensores e aditivos revolucionarão as indústrias de lubrificantes, farmacêutica, filtros e outras.

Como muitos desses exemplos mostram, as nanotecnologias serão, provavelmente, tecnologias desestruturantes que tornarão obsoletas, uma vez estabelecidas, as tecnologias concorrentes hoje existentes. Os efeitos sociais e econômicos desse processo, tanto em nível nacional quanto mundial, são difíceis de prever. O crescente debate se polariza hoje entre aqueles que alertam sobre as possíveis conseqüências negativas e riscos associados às nanotecnolgias e aqueles que manifestam forte entusiasmo pelas possibilidades abertas por essas novas tecnologias para o desenvolvimento econômico e o bem-estar social. As visões mais otimistas consideram inclusive que as nanotecnologias oferecem benefícios para todos, incluindo os países e populações pobres. Entretanto, esse otimismo revela-se bastante ingênuo, ao sustentar-se em uma forma de pensar tecnicista e linear que desconsidera a complexidade das relações socioeconômicas no seio das quais esta revolução tecnológica está sendo gestada.

A NANOTECNOLOGIA COMO SOLUÇÃO À POBREZA?

Um exemplo das posturas otimistas é o recente relatório das Nações Unidas Millennium Project, Task Force on Science, Technology and Innovation (Innovation: applying knowledge in development, 2005). Este documento considera que a nanotecnologia será importante para o mundo em desenvolvimento, porque implica pouco trabalho, terra e manutenção; é altamente produtiva e barata; e requer modestas quantidades de materiais e energia (SciDevNet, 2005). Entretanto, estas mesmas qualidades poderiam ser qualificadas como prejudiciais, uma vez que os países pobres dispõem justamente de abundante trabalho e, em muitos casos, terra e recursos naturais.

Refletindo de uma maneira puramente técnica e linear, poder-se-ia dizer que qualquer país pode entrar na onda da nanotecnologia. Um esforço no financiamento público poderia criar as bases para estabelecer novas indústrias, ou estimular as empresas inovadoras já existentes para que fabriquem nanocomponentes específicos que satisfaçam necessidades concretas a um custo relativamente baixo. Tal parece ser a opinião de Salamanca-Buentello et alii (2005), autores de um artigo que tem recebido grande acolhida pela imprensa internacional (BRAHIC, 2005; CHOI, 2005), no qual se endossa a postura do relatório das Nações Unidas já mencionado.

Os autores, do Joint Centre for Bioethics da Universidade de Toronto, cheios de otimismo, apresentam a nanotecnologia como solução para muitos problemas dos países em desenvolvimento. Consideram que o esforço para desenvolver a nanotecnologia realizado por alguns desses países é uma demonstração de sua vontade de superar a pobreza: “…mostramos que países em desenvolvimento já estão explorando a nanotecnologia para enfrentar algumas de suas necessidades mais urgentes” (SALAMANCA-BUENTELLO et alii, 2005, 1). A partir de entrevistas realizadas com 63 experts em nanotecnologia de diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento, identificaram as dez principais nanotecnologias que poderiam resolver problemas em áreas tais como água, agricultura, nutrição, saúde, energia e meio ambiente.

Essas tecnologias vão de sistemas de produção e conservação de energia, passando por sensores para aumentar a produtividade agrícola e o tratamento da água, até o diagnóstico de doenças. Propõe-se, no artigo, criar um fundo mundial para produzir tais tecnologias para os países em desenvolvimento. Cheia de boas intenções, a proposta reflete um enfoque mecânico, supondo que uma vez identificado corretamente um problema, basta aplicar a tecnologia adequada para resolvê-lo. A maioria dos exemplos que utilizam ignora que a relação entre ciência e sociedade é bastante mais complexa (SAREWITZ et alii, 2004). A fragilidade deste enfoque se revela ao considerarmos algumas das propostas de soluções nanotecnológicas sugeridas pelos autores no contexto social dos países em desenvolvimento. Vejamos alguns exemplos.

• Salamanca-Buentello et alii sugerem que semicondutores moleculares (quantum dots) poderiam detectar, em estágios precoces, moléculas associadas ao HIV-Aids, facilitando o tratamento e reduzindo a incidência da Aids. Embora isso seja factível, de um ponto de vista estritamente tecnológico, os autores parecem esquecer da história dos últimos 10 anos, a de uma guerra aberta entre as corporações farmacêuticas multinacionais e os governos de países que pretenderam fabricar antiretrovirais contra a Aids. Nesse conflito, a Organização Mundial do Comércio e o representante Comercial de Estados Unidos jogaram sistematicamente o papel de representantes dessas corporações.

Devido às patentes, o preço dos medicamentos é monopólico durante vinte anos, o que torna impossível para as pessoas pobres comprar novos medicamentos protegidos por patentes. Assim, quando surge uma epidemia, alguns países não conseguem cobrir os custos dos remédios necessários. Um dos casos históricos mais alarmantes que ilustra o comportamento das empresas multinacionais contra a saúde pública foi a ação posta em 2001 por 39 grandes corporações farmacêuticas contra o governo da África do Sul, para impedi-lo de produzir medicamentos genéricos para o tratamento da Aids.

Os produtos da nanotecnologia já estão sendo patenteados, em sua maioria pelas principais corporações. Uma patente custa, nos Estados Unidos, 30 mil dólares em burocracia legal, e uma patente mundial pode estar em torno de 250 mil dólares (REGALA-DO, 2004). Para um país em desenvolvimento, é muito difícil desenvolver qualquer fármaco que tenha um mercado importante (como é o caso da Aids), se levarmos em conta a guerra econômica e legal internacional em torno ao mercado de medicamentos, assim como as restrições burocráticas existentes.

Esta história tem uma simples moral: a tecnologia é produzida num dado contexto social, e também a eficiência e as implicações de sua aplicação dependem desse contexto.

Salamanca-Buentello et alii (2005) identificam a nanotecnologia como a solução para cinco dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas. Entre essas soluções estão os nanosensores e nanocomponentes para melhorar a dosagem de água e fertilizar as plantas. Com isso, seria possível reduzir a pobreza e a fome no mundo. Os autores não lembram que, há pouco tempo, nos anos 80, os organismos geneticamente modificados (OGMs) foram vozeados como a solução para acabar com a fome e a pobreza. Entretanto, os OGMs terminaram sendo utilizados principalmente nos países desenvolvidos, e três de cada quatro patentes estão hoje em mãos de quatro grandes multinacionais. Não houve melhoria para os países do Terceiro Mundo; pelo contrário, os transgênicos invadiram áreas não procuradas, como ocorreu no conhecido caso da infecção do milho em Oaxaca, México; e incrementou-se a dependência comercial e tecnológica (SCHAPIRO, 2003).

A nanotecnologia aplicada à agricultura não tem por que reproduzir o controvertido caminho seguido pelos OGMs. Porém, para que isso não aconteça, é imprescindível discutir as suas possíveis implicações sociais, econômicas e políticas em tempo real real ( time technology assessment – GUSTON & SAREWITZ 2004), assim como levar em conta a experiência pas-sada em torno dos OGMs e outras tecnologias.

No entanto, a experiência passada não parece estar sendo levada em conta. Já são visíveis pressões econômicas e políticas no desenvolvimento de nanoprodutos que estão determinando o technological path da nanotecnologia. Isso se revela, por exemplo, na exploração do vácuo regulatório que se cria em torno do caráter paradoxal dos próprios produtos nanotecnológicos: se, por um lado, são partículas de elementos químicos conhecidos – ou seja, partes da natureza, nada novo –, por outro, são manipulados de uma forma que não é natural. Da primeira característica se depreende que os nanoprodutos não necessariamente devem passar por provas farmacológicas para ser registrados (WWICS, 2003).

No entanto, a segunda qualidade dos nanoprodutos os torna patenteáveis e, de fato, estão sendo patenteados como elementos novos que não são achados na natureza em tal estado. A citação seguinte é ilus-trativa desse paradoxo: “É verdade que não se pode patentear um elemento encontrado em sua forma natural, entretanto, se se cria uma forma purificada desse elemento que tenha usos industriais – por exemplo, o néon – temos uma patente segura” (Lila Feisee, da Biotech Industry Organization, citada por ETC, 2004). “Business as usual”, mais do que a experiência aprendida do passado, parece estar determinando o desenvolvimento da nanotecnologia.

A moral da história é que a eleição da tecnologia não é um processo neutro, depende de forças políticas e econômicas. Não necessariamente sobrevive a tecnologia que melhor satisfaz às necessidades sociais.

Salamanca-Buentello et alii (2005) supõem que as entrevistas feitas a 38 cientistas do mundo em desenvolvimento e a 25 dos países desenvolvidos lhes permitem falar dos interesses dos países em desenvolvimento, como se aqueles fossem seus porta-vozes. Em artigo anterior ao que estamos discutindo (COURT, et alii, 2004), três dos mesmos autores sustentam que a posição do príncipe Charles (LEAN, 2004), argumentando que a nanotecnologia aumentará a brecha entre os países pobres e os ricos, assim como o pedido de moratória do grupo ETC ao financiamento público à nanotecnologia (ETC, 2003) “ignoram as vozes da gente dos países em desenvolvimento”. Seguramente, com esta pesquisa, os autores pretenderam preencher esse vazio. Mas a opinião dos cientistas não necessariamente deve coincidir com os caminhos mais apropriados para satisfazer às necessidades dos pobres.

Os cientistas não são alheios às pressões sociais e políticas e, de fato, há muitos exemplos recentes de práticas duvidosas. Na arena biomédica elas são particularmente abundantes. Há, por exemplo, casos de determinação independente de estándares (independent determination of standards) em provas biomédicas comprometidos ou autocensurados pela influência das corporações farmacêuticas (FERRIMAN, 2000; WOODMAN, 1999). Há casos de financiamento dados por corporações farma-cêuticas a universidades com o propósito de influenciar nas decisões sobre a agenda de pesquisa,ganhar direitos de patentes, ou sustentar seus interesses com estudos acadêmicos (SMITH, 2005; MONTANER et alii, 2001; PRESS & WASHBURN, 2000). Têm sido também bastante reportados casos de provas de laboratório duvidosas ou fraudulentas (SHAH, 2003; BODENHEIMER, 2000; CAFMR, 1995; BRAITHWAITE, 1984). Há, enfim, casos de pressões de companhias farmacêuticas sobre pesquisadores para impedir que informações que possam prejudicá-los venham a público (COLLIER & IHEANACHO, 2002). A lista pode continuar. As opiniões dos cientistas não são as vozes dos pobres.

Por outra parte, quando os autores identificam as opiniões críticas sobre a nanotecnologia com posturas antitecnológicas que piorarão a situação de pobreza, parecem ignorar que a tecnologia é apenas uma parte do quebracabeça. Podemos coincidir em que as doenças infecciosas são um dos principais problemas que enfrenta o mundo em desenvolvimento. Porém, as formas de atingir sua solução podem ser radicalmente diversas. Não é necessária a nanotecnologia para, por exemplo, diminuir radicalmente a malária, como sugerem os autores. É claro que nanosensores podem ajudar a limpar a água e nanocápsulas a dirigir mais eficientemente as drogas. No entanto, na província de Henan, na China, a malária foi reduzida em 99% entre 1965 e 1990, como resultado da mobilização social apoiada por fumigação, redes mosquiteiro e medicina tradicional (WHO, 2002). O Vietnã reduziu as mortes provocadas pela malária em 97%, entre 1992 e 1997, mediante mecanismos semelhantes (WHO, 2003).

A moral da história tem duas faces: os cientistas nem sempre são os porta-vozes dos pobres, ainda que sejam de países pobres. E existem diversos meios para um determinado fim: nem sempre a tecnologia é a solução, a organização da população – o que alguns chamam de tecnologia social – pode ser igualmente importante.

REFLEXÕES FINAIS

Na história do último quarto de século, a aceleração do desenvolvimento tecnológico foi paralela ao aumento da desigualdade social em nível mundial (WADE, 2001; WELLER, 2002; BANCO MUNDIAL, 2003 e 2004). O desenvolvimento científico-tecnológico não se traduz linearmente em melhoriaspara os países ou populações pobres. Para atender às necessidades dos pobres, a tecnologia deve ser utilizada em contexto socioeconômico favorável. Mais ainda, as características constitutivas da tecnologia e o caminho seguido no seu desenvolvimento frequentemente impedem que ela seja utilizada livremente para o beneficio das maiorias nos países em desenvolvimento.

Tememos que as nanotecnologias acabem se inserindo nas tendências econômicas dominantes que estão levando a uma crescente desigualdade. Primeiro, porque as grandes corporações multinacionais estão patenteando a maior parte das descobertas e produtos nanotecnológicos. A patente é a garantia de lucros monopólicos por vinte anos, algo que com certeza impede a rápida difusão dos benefícios potenciais da tecnologia para os pobres.

Segundo, porque o principal problema para um país em desenvolvimento não é tanto os custos fixos de um laboratório medianamente sofisticado, mas o contexto social necessário para que essa tecnologia se incorpore realmente à economia. Sem fluidos mecanismos de integração vertical entre os setores produtores de nanopartículas e as empresas que são potenciais compradoras, as nanopartículas não sairão do laboratório. Isto parece estar ocorrendo atualmente. Wildson (2004), a partir de entrevistas realizadas em empresas inglesas, aponta que “as nanopartículas são uma solução em busca de um problema”. Apesar de suas variadas aplicações potenciais, os produtores ingleses dizem carecer de clientes. Isto é confirmado por um artigo do Business Week que assinala que, apesar de um futuro promissor, muitas empresas que vendem produtos nanotecnológicos enfrentaram dificuldades financeiras em 2004 (BAKER & ASTON, 2005).

Em terceiro lugar está a dificuldade de encontrar os trabalhadores qualificados. A carreira tecnológica de um país requer um contexto social que forneça as condições necessárias no longo prazo. Será difícil para muitos países pequenos e pobres reunir o pessoal necessário para trabalhar interdisciplinarmente em nanotecnologia. O México, por exemplo, a 13a potência exportadora do mundo, só tem 11 grupos de pesquisa em três universidades e dois centros de pesquisa, somando 90 pesquisadores e nenhum programa oficial de apoio à pesquisa no campo (MALSCH, 2004). O Brasil, que lançou seu programa de pesquisa e desenvolvimento em nanotecnologia pioneiramente – se consideramos que foi o mesmo ano que o dos Estados Unidos (2000) – tinha entre 50 e 100 pesquisadores em 2002 (KNAPP, 2002), e provavelmente em torno de 300 em 2004. Estima-se que a nanotecnologia vá implicar uma reestruturação de todo o ensino, para quebrar as tradicionais fronteiras disciplinares que, na prática, a nanotecnologia já ultrapassou. Isto significa que esforços multissetoriais são apostados nestas mudanças, e requerem-se maiores demandas sociais.

A concorrência por cientistas qualificados pode vir a se acirrar, incrementando a migração de cérebros do Terceiro Mundo para os países avançados. Essa polarização do mercado de trabalho penalizará os países mais pobres, com uma força de trabalho menos qualificada. É pouco provável que a vasta maioria dos países em desenvolvimento venha a ter os recursos, a infra-estrutura e a força de trabalho que lhes permitam entrar na onda da nanotecnologia e transformar seus sistemas produtivos.

Finalmente, mesmo se os grandes países em desenvolvimento, como China, Índia, Brasil e outros conseguem se tornar fabricantes de nanoprodutos capazes, por exemplo, de gerar energia de maneira limpa e barata, produzir água potável a baixos custos e incrementar a produção agrícola, isso não significa que a maioria da população pobre será beneficiada. Para os pobres, a estrutura socioeconômica representa uma barreira muito mais alta que a inovação tecnológica.

A nanotecnologia está ainda nos seus primeiros estágios. Todavia, quanto mais tarde sejam discutidas publicamente suas implicações sociais e econômicas, menores serão as chances de que essa tecnologia ajude a superar a pobreza, uma vez que suas raízes se fixarão na estrutura socioeconômica hegemônica, caracterizada por profunda desigualdade em nível mundial.

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