Nossos pobres ou nosso povo? Contribuição para o debate sobre políticas sociais no Brasil *

Marcia Anita Sprandel

Historiadora e antropóloga, integrante da Comissão de Relações Étnicas e Raciais da Associação Brasileira de Antropologia e do Grupo de Pesquisa Pensamento Social.

E-mail: márcia.anita@terra.com.br

Resumo

O trabalho demonstra que o “problema da pobreza” é uma preocupação historicamente recente no Brasil. Realizando uma genealogia da categoria “pobreza”, o trabalho conclui que a naturalização da pobreza foi uma constante em grande parte das interpretações sobre o Brasil. Embora detalhadamente descrita em muitos textos, a pobreza aparece no mais das vezes como uma conseqüência do clima, da mestiçagem, da doença, da desorganização social ou mesmo da falta de condições objetivas para uma revolução popular. Recentemente, com a influência dos grandes organismos internacionais, percebe-se a disseminação de um outro discurso naturalizador da pobreza, que a define como mundial e atemporal. A proposta da autora é que se resgatem as discussões levadas a efeito pelos clássicos do pensamento social brasileiro e, com elas, o passado racista, escravocrata e elitista a que se referiam, como forma de enfrentarmos diversamente os nossos problemas contemporâneos, especialmente as políticas públicas de combate à pobreza.

Palavras-chave

Pobreza. Pensamento social. Políticas públicas.

Our poors or our people? Contribution to the debate about social policies in Brazil

Abstract

This paper shows that “the problem of poverty” is a very recent historical issue in Brazil. By doing a genealogy of the category “poverty”, its conclusion is that naturalization of poverty has been constant in great part of theoretic interpretations of Brazil. Although described in details in many texts, poverty appears frequently as a result of climate, miscigenation, disease, social disorder or even a lack of objective conditions for a popular revolution. Recently, through the influence of important international organizations, dissemination of another discourse naturalizing poverty has been noted, defining it as world-wide and non-temporal. The author’s proposal is to recover the discussions done by classical scholars of the Brazilian social thinking, including a critical approach to their debates related to racism, slavery and elitist aspects of such discussions as a different way for facing our contemporary problems.

Keywords

Poverty. Social thinking. Public policies.

 

Antigamente queríamos ser civilizados.

Agora queremos ser modernos. Continuávamos, ao fim ao cabo, prisioneiros da vontade de não sermos nós.

(Mia Couto, em O último vôo do flamingo1)

 

Há muito intelectuais e governos vêm debatendo as possibilidades, intersecções e limites de políticas públicas focalizadas em grupos vulneráveis e de políticas públicas baseadas na universalização de direitos, embora, como bem lembra Maria Ozanira da Silva e Silva, focalização não se contraponha conceitualmente à universalização 2. A mesma autora alerta, no entanto, que na América Latinafocalização pode traduzir medidas meramente compensatórias aos efeitos do ajuste estrutural sobre populações já estruturalmente vulneráveis, interrompendo o processo de lutas sociais pela universalização dos direitos sociais em curso no continente (e no Brasil) na década de 80.

Para Márcio Pochmann, o problema dos programas de focalização é que estes tenderiam a receber mais recursos governamentais, com a conseqüente redução dos gastos de caráter universal. Tais políticas prejudicariam aqueles não considerados extremamente pobres, que passariam a ter de responder individualmente com gastos referentes à educação, saúde, transporte, entre outros3. Sueli Carneiro, por sua vez, defende a focalização de políticas públicas em segmentos sociais que historicamente estariam sendo excluídos das políticas ditas universalistas 4.

* Este artigo se baseia na tese de doutorado A pobreza no paraíso tropical, defendida em 2001 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília e publicada em 2004, com o mesmo título, pela Editora Relume Dumará.

1 São Paulo, Companhia das Letras, 2005.

2 Em “Programas de renda mínima”, reportagem de Mayla Porto disponível na revista eletrônicaPolíticas Públicas: proteção e emancipação (2002), www.comciencia.br/reportagens/ppublicas/creditos.htm acessado em 20 de fevereiro de 2006.

3 Em Focalização da política social: a recente experiência mexicana . Agência Carta Maior, 15 de março de 2005. http://agenciacartamaior.uol.com.br/ templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=1906&alterarHomeAtual=1 Acesso em 20 de fevereiro de 2006.

O debate é intenso e está longe de ser encerrado, ainda mais diante da realidade de miséria e desigualdade social que caracteriza o país. Setores governamentais e da sociedade civil que coordenam e implementam programas de transferência de renda estão convencidos da necessidade de manutenção destas políticas para socorrer a população mais vulnerável, mas têm admitido que, mesmo vinculados à educação, estas dificilmente serão capazes de realizar plenamente a inserção social e a emancipação da população atendida.

Neste muito breve artigo, pretendo contribui para o debate de um ponto de vista bastante particular, o das representações sobre a pobreza no pensamento social brasileiro. Como bem demonstra Bourdieu [1997], não devemos procurar os princípios explicativos das realidades observadas no lugar onde elas se encontram, mas na construção social/política da realidade e das representações (principalmente jornalísticas, burocráticas e políticas) de tal realidade, que contribuem para produzir efeitos reais no universo político e intelectual.

Pode-se afirmar que, historicamente, a pobreza não foi a atriz principal dos grandes debates nacionais. Configurou-se, antes disso, como um cenário imóvel ou uma eterna coadjuvante, que tinha como função apoiar os grandes atores: raça, povo e organização nacional. Até o final da II Guerra Mundial (com a derrota da Alemanha e a condenação do nazismo por parte da opinião pública internacional), nossos pensadores se preocupavam sobretudo em saber se – com a configuração racial que nos coube – teríamos condições de nos transformar algum dia em uma nação. Questionavam se a população brasileira poderia ser considerada “povo”, se este povo era ou não triste e se a ausência de organização nos inviabilizaria para a modernidade.

A pobreza aparece em tais análises principalmente para adjetivar aqueles que eram considerados os nossos verdadeiros problemas. Ora aparece como resultado da mestiçagem, ora da escravidão. As análises sobre “classes baixas” urbanas5, embora fizessem referências à pobreza, centravam-se principalmente na periculosidade potencial das mesmas, enquanto os moradores do interior eram analisados a partir de sua apatia, sua tristeza e suas doenças.

Não podemos esquecer que o Brasil nasceu com a marca da abundância. Pero Vaz de Caminha, cronista real, encarregou-se de espalhar pelo Velho Mundo a fama da generosidade da terra e da exuberância das florestas e das águas. Mas da beleza das paisagens não cuidaram os portugueses. Com bem lembra Paulo Prado, “não era, nem do tempo nem da raça, o amor à natureza” [Prado 1997: 62]. O jesuíta baiano Frei Vicente Salvador, escrevendo há pouco mais de 100 anos do descobrimento, diagnosticou com exatidão qual seria a relação do colonizador português e seus descendentes com o Éden de Caminha, “um e outros usando a terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para desfrutarem e a deixarem destruída” [Salvador 1998: 264].

Em 1905, o sergipano Manoel Bomfim deslocou o foco do problema. Muito mais grave do que nossa suposta relação de desperdício com a natureza seria, no seu entender, um perigoso discurso europeu sobre a incapacidade dos latino-americanos para administrar seu território:

A verdade é que tais nações consideram a América Meridional como um reino encantado de riquezas, e ao mesmo tempo consideram as populações que por aqui vivem como absolutamente incapazes de fazer valer estas riquezas [Bomfim,1993: 289].

Infelizmente, Bomfim foi uma voz praticamente isolada. A influência do clima e da paisagem sobre a nossa formação como nação seria ainda discutida por décadas no Brasil. A essa discussão se sobrepunha outra, a de raça. Se o clima já era um problema para o desenvolvimento da nação, a presença de tantos africanos, misturando seu sangue com portugueses e índios, desafiaria todos os princípios genéticos vigentes. Nestes modelos, a pobreza seria uma constante coadjuvante, senão uma decorrência da mestiçagem das raças antagônicas. O Brasil do final do século XIX era considerado pelos europeus um caso único e singular de miscigenação racial. Gustave Aimard, W. Adams, Louis Agassiz, Conde Arthur de Gobineau e tantos outros foram unânimes em condenar a mestiçagem, que estaria apagando as melhores qualidades intrínsecas de brancos, negros e índios e produzindo indivíduos deficientes física e mentalmente, mulatos viciados eassustadora-mente feios [Gobineau, apud Schwarcz 2000:13].

4 CARNEIRO, Sueli. Focalização x universalização.Correio Brasiliense, Brasília, 25 abr.2003, p. 17.

5 Sobre estas, ver o excelente livro de June E. Hahner, “Pobreza e política- os pobres urbanos no Brasil (1870/1920)”. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1993.

O papel central que a discussão racial assumiu na virada do século XIX para o XX em diversas instituições científicas nacionais 6, analisado por Schwarcz [2000], demonstra a importância e permanência do tema no imaginário intelectual do país. Durante, pelo menos, sessenta anos (1870-1930), um grupo importante de cientistas, políticos, juristas e intelectuais assumiu um modelo racial positivista e determinista para explicar e modificar os destinos da nação. Nestes modelos, a pobreza seria uma constante coadjuvante, senão uma decorrência da mestiçagem das raças antagônicas. Conforme a autora, as discussões sobre raça e sangue ajudaram a justificar teoricamente a aguda diferenciação social existente, ocultando e justificando o “pobre” no “negro” ou no “mestiço”.

As grandes expedições científicas ao sertão brasileiro, realizadas nas duas primeiras décadas do século XX, teriam, nas palavras de Lima e Hochman [1996], nos absolvido enquanto povo e encontrado um novo réu. O povo brasileiro não era preguiçoso por ser mestiço ou em função do clima, mas por estar doente. No entanto, ao mesmo tempo que se preparava para sanear as grandes cidades e o sertão, a medicina do final do século XIX permanecia fortemente arraigada nas teorias racistas. Tendo vencido as epidemias, tratava-se agora de “curar” a raça. Ou seja, a raça como fator explicativo da pobreza permanecia forte, notadamente no sentido de desviar a atenção das hierarquias econômicas e sociais.

Na década de 50, a Unesco financiou uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil, com o propósito de usar o caso brasileiro como propaganda de um país considerado por Gilberto Freyre como “uma democracia étnica” e definido por Donald Pierson como “uma sociedade multirracial de classes”. Os resultados obtidos frustraram as expectativas: “A agência intergovernamental teria acabado por se ver diante de um conjunto de dados sistematizados sobre a existência do preconceito racial no Brasil” [Maio 1999: 150-151]. Autores como Costa Pinto e Florestan Fernandes, ao utilizar a análise sociológica, centrada no tema da modernização do país, abririam ampla discussão sobre a situação das classes sociais no Brasil, marcando uma ruptura sem precedentes nas interpretações sobre o Brasil produzidas até aquele momento.

A partir dos anos 70, em um contexto de ditadura militar e de aprofundamento das especializações universitárias, foram priorizados os estudos de classes e estruturas sociais nos quais a pobreza aparece como um problema a ser resolvido via processo democrático. Daí a força que tomaram os estudos sobre o “novo”: novos movimentos sociais, nova liderança sindical, novas formas de participação. Nessa mudança, teriam emergido os direitos individuais e coletivos das “camadas populares”. Até então, os pobres na produção intelectual brasileira jamais ocuparam o lugar da renovação ou da transformação, “ao contrário, sobre eles caiu grande parte da culpa pela ausência de mudanças significativas e pela conseqüente estagnação política e econômica” [Zaluar 1985:35].

Neste rico momento da história brasileira, a Campanha da Fome colocou a questão da pobreza no centro do debate político. Herbert de Souza a situou na contramão teórica e política, sobretudo por privilegiar o emergencial em detrimento da solução estrutural e a ação em lugar das análises de conjuntura. Com o Plano Real, no entanto, teria havido um deslocamento da pobreza de um lugar politicamente construído para o lugar da não-política, no qual é figurada como dado a ser administrado tecnicamente ou gerido pelas práticas da filantropia. De sinal de um atraso a ser superado pelas forças progressistas, a pobreza teria se transformado na “cifra de nossa própria modernidade” [Telles 2001:10], retornando para seu lugar de “paisagem” externa ao mundo social.

6 Schwarcz [2000] analisou em seu trabalho as seguintes instituições: Museu Paulista, Museu Nacional, Museu Paraense de História Natural, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, Instituto Histórico e Geographico de São Paulo, Faculdade de Direito de Recife, Academia de Direito de São Paulo e os periódicosGazeta Médica da Bahia e Brazil Médico, do Rio de Janeiro.

A pobreza, na virada do século, é predomínio temático sobretudo de economistas, afinados com a pauta dos organismos internacionais de desenvolvimento. Há uma consagração do dado numérico que vai além de sua instrumentalidade. O marco nas representações oficiais e internacionais sobre a pobreza foi o ano de 1990, quando a 13a edição do World Development Report, do Banco Mundial, destacou a questão. No mesmo ano foi divulgado o primeiro Human Development Report do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Seu grande diferencial foi a utilização de um novo indicador de pobreza. Diferentemente do Banco Mundial, que prioriza a renda, o PNUD utiliza o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)7, que busca identificar “os mais pobres entre os pobres” e tornou-se o principal instrumento das políticas públicas focalizadas sugeridas pelo Banco Mundial e pelo PNUD como solução global para o enfrentamento da pobreza.

Tais políticas, no entanto, ao serem pensadas de forma descontextualizada, sem levar em consideração aspectos históricos e culturais do país ou região, podem causar sérios problemas aos gestores, em sua implementação. O sociólogo alemão Norbert Elias defende que os problemas contemporâneos de um grupo social são crucialmente influenciados por seus êxitos e fracassos anteriores. Para ele, é possível identificar um “habitus” nacional, capaz de “ajudar uma nação a conciliar-se com seu passado” [Elias 1997: 39]. No caso estudado por Elias, tal método teria ajudado a Alemanha a realizar uma catarse de seu passado nazista. No caso brasileiro, parece fundamental que assumamos e enfrentemos nosso passado escravocrata, elitista e racista, peça importantíssima da nossa construção como nação e elemento fundamental para analisarmos as questões do presente.

Os clássicos do pensamento social brasileiro, brevemente analisados acima, percebiam os problemas da população com categorias nativas, construídas historicamente e que estão longe de terem sido esgotadas na atualidade (embora ocultadas pelo “politicamente correto”). São estas categorias nativas, tanto o discurso das elites quanto o da população, que precisam ser urgentemente analisadas, relativizadas e incorporadas à elaboração e implementação de políticas públicas. Ao ouvir e analisar o que as pessoas dizem, afirma Bourdieu, pode-se entender por que fazem o que fazem e se pode avançar por uma outra maneira de se fazer política.

O sociólogo francês foi um crítico das políticas sociais focalizadas, que no seu entender estariam tomando o lugar das antigas formas de melhoria dos serviços públicos. A ajuda direta a indivíduos estaria reduzindo a solidariedade a uma alocação financeira, visando somente a permitir o consumo. Para Bourdieu, isto significa a passagem de uma política de Estado, que visa a agir sobre as estruturas de distribuição, para uma “caridade de estado”, que objetiva corrigir os efeitos da distribuição desigual de recursos de capital econômico e cultural. Estas novas formas de ação do Estado estariam contribuindo para a transformação do povo (potencialmente) mobilizado em um agregado heterogêneo de pobres atomizados, “excluídos”, como são designados pelo discurso oficial [Bourdieu 1997:219].

Nas próximas décadas, os governantes deverão tomar decisões importantes em termos de políticas públicas de combate a pobreza. Não me refiro aqui apenas a opções entre políticas de focalização ou de universalização. Refiro-me a uma tomada de posição política que se traduza em não aceitar o caminho aparentemente técnico e fácil de transformar o povo brasileiro (potencialmente mobilizado, marcado pela diferença e dono de um discurso riquíssimo sobre suas dores e delícias) em um agregado heterogêneo de pobres atomizados, individualizados em cadastros complexos e sobrepostos, incapazes de emancipar-se.

7 Formado por três componentes: longevidade (esperança de vida ao nascer), nível educacional (taxa de alfabetização de adultos e taxa combinada de matrícula nos ensinos fundamental, médio e superior) e um indicador de renda, determinado a partir da renda per capita.

REFERÊNCIAS

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ELIAS, Norbert. Os alemães- a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

LIMA, Nísia Trindade; HOCHMAN, Gilberto. Condenados pela raça, absolvidos pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Org.). Raça, ciência e sociedade . Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB, 1996.

MAIO, Marcos Chor. O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, p. 141-158, out. 1999.

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SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças- cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

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ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta – as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985.