Algumas curiosidades do modelo brasileiro de combate ao trabalho infantil
Pedro Américo Furtado de Oliveira
Mestre em relações internacionais. Coordenador, no Brasil, do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil da OIT.
E-mail: oliveirap@oitbrasil.org.br
Foi o comentário de um colega de trabalho de um país vizinho ao Brasil que me fez pensar sobre o porquê de o Brasil estar em outro planeta quando o assunto é combater o trabalho infantil. Será que é irreal? Será que é inviável em outros contextos políticos e econômicos? Será que as experiências são tão positivas e diferentes que coloca o Brasil em outra estratosfera? Enfim, não sabia se a declaração feita era uma crítica ou um elogio.
Essa situação aconteceu durante um encontro regional de intercâmbio de experiência exitosa no combate ao trabalho infantil, na qual representantes de todos os países em que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) desenvolvia atividades de cooperação técnica nas Américas foram convidados a expor a situação do país que representavam nesse tema. O que me fazia acreditar que o comentário era de fato positivo. Entretanto, o tom não coincidiu com o adjunto adverbial em outro planeta.
Tudo indicava que a reunião de trabalho seria rica em informações e satisfatória nos resultados. Afinal, o Programa da OIT de combate ao trabalho infantil (IPEC) está na América Latina desde 1992, quando foi criado, e já financiou programas de ação em quase todos os países. De fato o evento foi excelente. Já pela Agenda, o sucesso era garantido: as opções de intervenções foram várias e os painéis e grupos de discussão geraram uma pluralidade de abordagens, ainda que o idioma prioritário da reunião fosse o espanhol. Mas lá também havia anglófonos, francófonos e, claro, lusófonos, o que mostra a diversidade cultural da região.
Seguramente houve pelo menos uma boa prática (como o sistema das Nações Unidas gosta de chamar as experiências exitosas aplicáveis em outras localidades) por país. Os organizadores tiveram esse cuidado e oportunizaram que os participantes se sentissem confortáveis em compartilhar com os colegas ao menos uma atividade de sucesso e de impacto na área de educação, de mobilização social, de controle social, com organizações de empregadores e trabalhadores e com governos naturalmente. Tudo isso de fato ocorreu.
No caso brasileiro, foi difícil decidir em qual dos temas o Brasil melhor se encaixaria para expor uma boa prática, pois, em todos os painéis, algo interessante poderia ser partilhado com os participantes sobre as experiências interessantes desenvolvidas em todo o país, apesar de toda complexidade social, pluralidade política, diversidade cultural, demasiada criatividade e ousadia e compromisso que há no Brasil. A OIT participou de tantos momentos importantes na história contemporânea do Brasil, em particular no mundo do trabalho, que foi difícil eleger um tema único que pudesse representar tudo aquilo que se desenvolveu até aquele momento com o apoio e participação do IPEC.
A organização fomentou a constituição e atuação do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), invenção brasileira de estrutura paraestatal inédita no mundo, criada no final de 1994. Seu objetivo era, e continua sendo, o de propiciar uma instância aglutinadora e articuladora de agentes sociais institucionais envolvidos com políticas e programas de promoção de medidas destinadas a prevenir e erradicar o trabalho infantil no Brasil.
As ações do Fórum Nacional permitiram a adoção de uma abordagem nova para o problema do trabalho infantil, que, desde sua existência, passou a ser visto como uma questão de desenvolvimento, o que inclui todas as considerações sobre o acesso à educação e à saúde de qualidade, a erradicação da pobreza, a geração de renda, entre outros.
Emblematicamente, a OIT presenciou e atuou em momentos-chaves no combate ao trabalho infantil no país. As denúncias de meninos e meninas em carvoarias no Mato Grosso do Sul, na produção de calçados em Franca e Novo Hamburgo e na região sisaleira da Bahia foram fatos locais com repercussão nacional e internacional que se tornaram verdadeiros divisores de água no processo de elaboração de políticas públicas de enfrentamento do trabalho infantil.
No Mato Grosso do Sul, a ação da OIT, inicialmente pontual e emergencial, que previa a retirada das crianças do trabalho nas carvoarias, desdobrou-se em um processo amplo de mobilização social que permitiu o acompanhamento e a intervenção do Estado e da sociedade civil em todas as frentes relacionadas com o trabalho infantil na região. Do mesmo modo, em Novo Hamburgo (Rio Grande do Sul) e Franca (São Paulo), as ações iniciais ante a situação inaceitável de milhares de crianças submetidas a longas jornadas de trabalho, em ambientes insalubres, produzindo calçados, geraram outras iniciativas de defesa dos direitos da criança e do adolescente, cujos resultados ainda podem ser sentidos em ambas as regiões.
A mobilização na Bahia para retirar as crianças do trabalho junto às máquinas de beneficiamento do sisal (mutilando muitas delas) não foi diferente. Ela gerou um processo muito mais amplo de desenvolvimento local sustentável. Este, além de retirar todas as crianças do trabalho e de inserilas nas escolas em tempo integral, articulou programas de geração de emprego e renda para as famílias destas crianças, programas de saúde e de mobilização política e cultural comunitários, cujos sucesso e impactos perduram até hoje.
As centrais sindicais foram parceiras perenes e incansáveis da OIT no Brasil. Atividades de sensibilização e capacitação de trabalhadores sindicalizados até a produção de estudos de caso setoriais (sobre crianças envolvidas com a produção de calçados, na construção civil, na colheita da cana, da laranja etc.) foram fundamentais para ampliar o grau de envolvimento do movimento sindical com a questão do trabalho infantil.
O mesmo se deu com os empregadores à medida que a atuação pioneira da Fundação Abrinq, em parceria com a OIT, tornou possível mostrar a viabilidade de engajar esse seguimento produtivo não somente em atividades de campanhas que visem à mudança de preconceitos culturalmente estabelecidos, ligados ao universo do trabalho infantil, mas também dedesenvolver um dos mais conhecidos programas de responsabilidade social da região: programa Empresa Amiga da Criança.
Falar sobre as ações de educação e as atividades desenvolvidas com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação (Cenpec) e o Ministério da Educação seria igualmente estimulante, à medida que o Guia para Educadores: Combatendo o Trabalho Infantil (disponível no site da OIT) tornou-se uma verdadeira ferramenta de trabalho em nível nacional para que os profissionais da educação e a escola assumissem seu papel tranformador e formador de cidadão.
Seria injusto não abordar também o papel que a mídia no Brasil teve na condução das dicussões e na evolução qualitativa das matérias. As pautas afetas às crianças, nesses últimos anos, assumiram destaque, inclusive de manchetes de jornais nacionais. A atuação da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) foi chave para tudo isso. A Rede Jornalista Amigo da Criança, bem como todos os projetos de formação de profissionais da imprensa e a preparação de fontes de informação são inéditos. Hoje, sua estratégia avança pela América Latina e pelo mundo.
Diante desse elenco de experiências, restava ainda a dúvida: qual delas, de tantas outras, seria capaz de explicar como o fenômeno do trabalho infantil, que encontra suas raízes e características na própria história brasileira e na história latino-americana, tornou-se, em pouco mais de uma década, um problema de interesse nacional que colocou o Brasil no topo do ranking dos países que mais reduziram o número de crianças e adolescentes no trabalho no mundo, reintegrando-os ao sistema escolar e reabilitando-os em seu contexto social?
Como explicar, em apenas 20 minutos, toda essa trajetória no Brasil? Como poderia falar, por exemplo, do maior programa de erradicação do trabalho infantil do mundo, o Peti, sem falar do Programa de Ações Integradas (PAI) de onde se originou? Como falar sobre o PAI, sem falar do Fórum Nacional? Como falar do Fórum Nacional, sem falar das carvoarias do Mato Grosso do Sul? Como falar das carvoarias, sem tocar no papel da imprensa? Enfim, como apresentar um projeto, programa ou atividade isolada sem todo esse contexto?
Não era tarefa fácil. Seria importante escolher um tema que possibilitasse expor os antecedentes dos movimentos sociais entre os anos 70 e 80, década em que o Brasil era jovem demograficamente, com crescimento da população urbana e decréscimo da população rural. Teria de contextualizar o papel da OIT/IPEC no início dos anos 90 e mencionar as mudanças na política econômica promovidas pelo Governo Collor de Mello, que extinguiu a Coordenadoria do Trabalho da Mulher e do Menor, vinculada ao Ministério do Trabalho, relegando o assunto do trabalho infantil ao completo esquecimento pelo governo federal. Seria fundamental associar essa decisão política ao fato de o número de trabalhadores infantis, entre 10 e 17 anos, passar de 7,6 milhões em 1989 para mais de 9 milhões em 1992.
Vinte minutos definitivamente não seriam o suficiente para mostrar esse panorama e dar uma pincelada no contexto histórico e em ações-chave, no começo da década de 90, que contribuíram para mudar o rumo da história do trabalho infantil no Brasil. A iniciativa da Associação Gaúcha dos Inspetores do Trabalho (Agitra), posteriormente denominada Sindicato Nacional dos Agentes da Inspeção do Trabalho (Sinait), foi fundamental ao verificar o aumento abusivo dos problemas relacionados ao trabalho infantil e escravo e denunciar em nível mundial, inclusive para a Organização Internacional do Trabalho, essa situação.
Uma análise da evolução do quadro do trabalho infantil não poderia deixar de mencionar o processo de organização da sociedade civil, marcado pela defesa dos direitos das crianças e adolescentes, que emergem em todas as grandes cidades na busca de alternativas à problemática dos meninos e meninas de rua, e o surgimento do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua; das reivindicações que foram parte das mudanças incorporadas na nova Carta Constitucional do Brasil, de 1988, que culmina com os artigos 227 e 204, fruto de emendas populares; da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o famoso ECA, que estipulou a necessidade de formação dos Conselhos Municipais dos Direitos das Crianças e Adolescentes para viabilizar o monitoramento dos direitos das crianças; dos Conselhos Tutelares; do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), do Ministério Público do Trabalho, do antigo Grupo de Combate ao Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente (Gectipa), enfim, para falar de qualquer iniciativa pontual no Brasil que desse esse retrato, seria vital explicar o papel de cada um desses e outros atores sociais para o sistema de garantias de direito.
Seria difícil justificar a surpreendente redução da mão-de-obra infantil (meninos e meninas de 10 a 17 anos) em termos absolutos de 1992 a 2004, de 7.940.239 para 4.788.071, isto é, em quase 40%, sem contar um pouco desse encadeamento de fatores e sem apresentar as respostas que o Estado brasileiro deu aos problemas sociais. Além do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que está explicitamente relacionado ao combate ao trabalho infantil, há toda uma série de outros programas que indiretamente atingem esse público, como o Paif, Salário Educação, Fundef, FNDE, Pnae, PNLD, PDDE, PNTE, PNBE, Fundescola, Proinfo Saeb, Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Agente Jovem, Sentinela, Auxílio-gás, Fome Zero, Geração de Renda, Benefício de Prestação Continuada, Proger, Planfor, Pronaf, Saúde da Família, Saúde Bucal, entre tantos outros. O Programa Bolsa Família merece destaque por seu caráter geral de combate à pobreza e à fome.
De qualquer forma, decidi, portanto, concentrar minha apresentação na experiência do Fórum Nacional, que seguramente seria interessante compartilhar com os colegas de outros países na medida em que se configura, definitivamente, com a instância mais interessante e inovadora que algum país no mundo havia ainda experimentado. Além do mais, o Fórum esteve, e ainda continua, presente em todos esses momentos importantes históricos no tema no Brasil. É palco e cenário para todos e quaisquer roteiros de sucesso no combate ao trabalho infantil.
Diante dessa singularidade de tema e da falta de um espaço reservado para inserir essa categoria de experiência na programação do evento, contentei-me em ter minha apresentação classificada simplesmente como uma experiencia brasileña, em um dos últimos painéis do evento.
Foi interessante, confortante e surpreendente ouvir os colegas antes de apresentar a experiência brasileira. Interessante, pois tive a oportunidade de verificar que o fenômeno do trabalho infantil era o mesmo em toda a América Latina. Ainda que sua configuração pudesse ser diferente entre os países, as raízes históricas e as causas eram muito semelhantes. Foi interessante à medida que aprendi como meus colegas enfrentaram as dificuldades e como os atores sociais em cada país reagiram ao problema. Foi curioso perceber, de maneira concreta, que os números e percentuais no Brasil são muito grandes comparados a cada um dos paises irmãos.
Ouvir as experiências das nações vizinhas foi confortante, uma vez que, no Brasil, o ensino público é universal e efetivamente gratuito, e a saúde, idem. Que existem programas de transferência de renda para as famílias, como o Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, hoje todos unificados no Programa Bolsa Família. Enfim, que existem políticas de combate à pobreza e à fome e que existe orçamento para tudo isso.
Foi surpreendente saber que isso não é comum em todos os países. Que a educação não é totalmente gratuita. Que não há programa de combate às DST/ Aids para todos. Que não há inspetores do trabalho suficientes para aplicar a lei. Que não há Ministério Público do Trabalho. Que não há um controle social capaz de, efetiva e adequadamente, monitorar o cumprimentos dos direitos da criança e do adolescente. Que não existem escolas suficientes para todos. Que ainda existem organizações que defendem o trabalho infantil publicamente.
Foi surpreendente constatar que o Brasil criou o maior programa de combate ao trabalho infantil do mundo, antes mesmo de se ter comprometido em nível internacional, por meio da ratificação das convenções da OIT no tema, de números 138 e 182. Foi confortante dar-se conta de que o Brasil vem quebrando paradigmas e provou que, mesmo com indicadores econômicos desfavoráveis, foi possível reduzir drasticamente o número de crianças exploradas no trabalho. Isso, graças à geração sistemática de informações qualitativas e estatísticas confiáveis sobre o assunto.
Além de outras descobertas no evento, compreendi porque, após a breve exposição da experiencia brasileña, ouvi o comentário de que o Brasil estava em outro planeta. Realmente está, se todas essas razões concretas e histórico-políticas do país forem consideradas como resposta da sociedade brasileira a um problema universal. Os números do Brasil são grandes e refletem o seu tamanho e importância continental. E acabam inflacionando os resultados positivos que os demais países vizinhos também obtiveram.
Entretanto, hoje o cenário da América Latina é outro de quando o programa IPEC veio para a região. Quase todos os países já ratificaram as convenções nos 138 e 182, com exceção de quatro países dentre 25. A Comunidade Andina de Países está se consolidando, assim como o Mercosul. Sob essas iniciativas de integração regional, ou melhor, subregional, as legis-lações nacionais estão se harmonizando (Comissão Labral do Mercado Comum). O fenômemo da informalidade do mundo do trabalho está sendo muito parecido na América Latina inteira. A agenda de trabalho decente avança nos países, em especial nos países do Mercosul.
Na verdade, o Panorama Laboral de 2004 apresenta, com mais profundidade, o quadro geral da região nos temas do mundo do trabalho, bem como analisa a situação do trabalho infantil a ser abolido na região, na ordem de 18,5 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos. Efetivamente, essa taxa varia de país para país e oscila entre 3% no Chile e Panamá e 20% na Guatemala.
Para tanto, o Brasil pode ter um papel muito importante na promoção dos esforços nacionais contra o trabalho infantil e auxiliar na transformação da vontade política dos governos vizinhos em uma verdadeira prioridade nacional. Se combater o trabalho infantil é estar em outro planeta, é lá onde devem estar todas as nações. Mas, como isso é irreal, pois sequer sei a que planeta o colega quis se referir, prefiro supor que o planeta imaginado por ele seja o sonho, esse possível e atingível, ao nosso alcance, como já ocorre não apenas no Brasil, mas no México, Colômbia, Costa Rica, e em muitas outras partes deste planeta.