A inclusão digital e as metas do milênio

Ricardo Young

Presidente do Instituto Ethos, presidente do UniEthos, educação para responsabilidade empresarial e desenvolvimento sustentável. E-mail: cspera@ethos.org.br

Resumo

Com base em dados e informações coletados em várias fontes, este artigo comenta o desafio que “paradigma digital” impõe ao Brasil e ao mundo. As tecnologias da informação e da comunicação (TICs) lançam a humanidade em um novo desafio: capacitar indivíduos e empresas a adquirir habilidades diferentes das até aqui exigidas. Não basta ler, escrever e possuir diploma. É preciso ser um “alfabetizado” digital, operando computadores em rede, buscando informações, trocando conhecimentos e tornando este saber útil e transformador.

Palavras-chave

Inclusão digital. Alfabetização digital. Tecnologias de informação e comunicação (TICs).

The Digital Inclusion and the Goals of the Millennium

Abstract

Based on data and information collected from several sources, this article makes comments about the challenge that “digital paradigm” lays on Brazil and the world. Technologies of information and communications (TICs) bring humankind to a new challenge: to train individuals and enterprises in order to acquire different skills from the ones up to now demanded. It is not enough to read, write and have a diploma. It is necessary to be a digital “literate”, operating online computers, seeking information, exchanging knowledge, and making this knowledge useful and able to transform.

Keywords

Digital inclusion. Digital literacy. Technologies of information and communications (TICs).

As tecnologias da informação e da comunicação (TICs) lançam a humanidade em um novo desafio: o de capacitar indivíduos e empresas a adquirir habilidades diferentes das até aqui exigidas. Não basta ler, escrever e possuir diploma. É preciso ser um “alfabetizado” digital, operando computadores em rede, buscando informações, trocando conhecimentos e tornando este saber útil e transformador. Com base em dados e informações coletados em várias fontes, o artigo comenta o desafio que o “paradigma digital” impõe ao Brasil e ao mundo.

Como presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, entidade criada há oito anos para disseminar nova cultura gerencial, gostaria de utilizar este espaço para comentar um tema fundamental para o futuro de todos nós: a assimilação das novas tecnologias de informação e de comunicação por empresas e indivíduos e os problemas das desigualdades sociais que ainda nos afligem. Normalmente, este assunto costuma ser resumido na expressão “inclusão digital”. Esta, por sua vez, é reduzida à questão “ter ou não ter acesso a um computador”.

O dilema que nos desafia (e assombra) é mais fundo, remete-nos às desigualdades seculares que a humanidade não resolveu; ao contrário, aprofundou (parece-me) ao longo de sua história. O dilema que nos desafia hoje tem muitas semelhanças com aquele vivido pela humanidade do século 15, quando Gutemberg inventou a tipografia. Pela primeira vez, até então, tornou-se possível que uma população muito mais numerosa participasse da ampliação e do intercâmbio das bases do conhecimento humano.

A humanidade pós-invenção da tipografia é aquela que passou a reivindicar o fim dos privilégios da nobreza, o acesso ao ensino público de boa qualidade, a uma vida melhor e mais digna. Não haveria “liberdade, igualdade e fraternidade” sem a tipografia. Aos desafios de eliminar a fome e a miséria, juntou-se mais um: o de prover os seres humanos da ferramenta básica para desbravar o novo mundo do conhecimento: ler e escrever. Evoluímos em cinco séculos, mas o avanço tecnológico, tremendamente impulsionado pela primeira revolução industrial no século 19, andou muito mais à frente que os esforços para terminar com as desigualdades humanas.

Assim, já indo para a segunda metade da primeira década do século 21, atravessamos um novo umbral do conhecimento sem resolver os problemas que sempre afligiram os seres humanos. Vivemos em um tempo em que o acesso às tecnologias da informação e da comunicação está diretamente relacionado aos direitos humanos básicos. Governos e empresas migram suas informações e serviços para meios eletrônicos. Quem não souber utilizar estes meios terá dificuldade de exercer seus direitos de cidadão. A incapacidade de acessar estas tecnologias tem sido denominada “exclusão digital”. Trata-se de um fenômeno que vai muito mais além do “ter ou não ter computador”, e não deixa de ser conseqüência das diferenças de renda e poder já existentes. Assim, inclusão digital significa capacitar as pessoas para o uso efetivo dos recursos tecnológicos de maneira plena, como ferramentas que contribuem para o desenvolvimento social, econômico, intelectual e político do cidadão.

O QUE É, AFINAL, INCLUSÃO DIGITAL?

Inclusão digital pode ser considerada “alfabetização digital”. É a aprendizagem necessária ao indivíduo para interagir no mundo das mídias digitais, podendo não apenas saber onde encontrar a informação, mas também qualificá-la e torná-la útil para seu dia-a-dia. Estamos falando, então, de agregar às habilidades fundamentais e imprescindíveis de ler e escrever aquelas de lidar com a mídia eletrônica –conectar-se em rede, realizar pesquisas, executar tarefas rotineiras por computador (pagar contas, por exemplo) etc. No Brasil, o Comitê pela Democra-tização da Informática (CDI) vem realizando trabalho exemplar de inclusão digital, porque, ao permitir acesso à infra-estrutura, desencadeia na comunidade ou grupo a que está atendendo um processo de reflexão sobre as necessidades locais, o contexto geral e a maneira como a tecnologia pode apóia-los nas ações concretas.

A professora Elisabeth Rondelli, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lista quatro passos para a inclusão digital, no artigo denominado justamente “Quatro passos para a inclusão digital”: 1 – permitir acesso, em rede, às “tecnologias da informação e do conhecimento” (TICs); 2 – criar oportunidades para que os aprendizados feitos a partir dos suportes técnicos digitais possam ser empregados no cotidiano da vida e do trabalho; 3 – criar um “ambiente institucional” propício à inclusão digital, com empresas, governos e sociedade civil organizada discutindo e propondo novas formas de utilização dos recursos tecnológicos; 4 – buscar constantemente a inovação para produzir e fazer circular a informação e o conhecimento, modos diferentes dos tradicionais que estamos acostumados a ter acesso ou freqüentar.

Outro aspecto importante a ressaltar é que inclusão digital não diz respeito apenas a indivíduos. Uma empresa também precisa fazer parte do processo, se quiser continuar a fazer negócio em um mundo globalizado. Isto significa manter processos integrados em sistemas eletrônicos e colaboradores capacitados a operá-los e a trabalhar em rede, em um ambiente de aprendizagem e intercâmbio constantes. Com isso, é possível tirar maior proveito dos investimentos em tecnologia, trazendo vantagens competitivas para o negócio e para o próprio país.

Para chegarmos a este estágio, no entanto, é preciso pensar uma política de inclusão digital voltada para as médias, pequenas e microempresas no Brasil. Em março de 2004, o Instituto Ethos lançou a publicação O que as empresas podem fazer pela inclusão digital, em que realça, juntamente com as ações voltadas ao indivíduo, o trabalho do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) para levar a inclusão digital às Pequenas e Médias Empresas (PMEs). Esta mesma publicação traz um comentário do professor Gilson Schwartz, da Universidade de São Paulo, segundo o qual a exclusão digital – das empresas e das pessoas – limita a inserção global do Brasil. O problema não se restringe a questões técnicas ou metodológicas, mas de políticas empresariais e de governos. Sem a formação de redes e a criação de indicadores socioeconômicos para “medir” a inclusão digital, fica difícil superar o atraso.

E OS OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO, ONDE ENTRAM?

Entre os dias 13 e 16 de novembro de 2005, a União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), realizou a 2a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, em Tunis, capital da Tunísia. O evento contou com a participação de mais de 10 mil pessoas de 180 países que discutiram, entre outros assuntos, a situação geral do mundo, a exclusão digital, os casos de sucesso para enfrentá-la e o papel das tecnologias de informação e da comunicação (TICs) na redução das desigualdades. O documento final reafirma os desafios apontados na declaração final da 1a Cúpula, ocorrida em 2003, em Genebra (Suíça). Tanto Túnis quanto Genebra apontam como grande desafio atual utilizar a tecnologia para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) definidos pela declaração da ONU em 2000: acabar com a fome e a miséria; promover educação de qualidade para todos; proporcionar igualdade entre sexos e valorização da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde das gestantes; combater a Aids, a malária e outras doenças; promover qualidade de vida e respeito ao meio ambiente; fazer com que todos juntos trabalhem pelo desenvolvimento.

O relatório de 2005 repete 2003, ao enumerar os princípios essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade da informação que beneficie a todos, dos quais destaco: melhora no acesso à infra-estrutura de informática e elecomunicações; criação de um ambiente de incentivo à adoção de novas tecnologias; desenvolvimento e ampliação das aplicações das TICs; respeito à diversidade cultural; respeito às dimensões éticas da sociedade da informação; incentivo à cooperação internacional e regional. O documento também insiste que a adoção das TICs pelas empresas pode promover o desenvolvimento econômico com mais igualdade.

A mesma UIT divulgou, em novembro de 2003, um estudo sobre a inclusão social no mundo em que o Brasil aparece em 28o lugar, junto com Rússia, México e Ilhas Maurício, colocação que nos habilita como país de “nível alto” de infra-estrutura, acesso, poder aquisitivo e nível educacional do usuário.

Os números não revelam a distorção existente em todos os setores da vida brasileira: o desenvolvimento que atende a uma pequena parcela da população, relegando a vasta maioria a um limbo de esquecimento e desamparo. Dados da pesquisa “Mapa da Exclusão Digital”, feita em 2003 pela Fundação Getúlio Vargas e pelo CDI, indicam que há 148 milhões de brasileiros sem acesso à internet, a rede mundial de computadores. Os mesmos brasileiros que, em geral, freqüentam as estatísticas sobre má distribuição de renda e baixo nível de escolaridade. O esforço a ser feito para torná-los “incluídos digitais” exige investimentos e criatividade.

São bem-vindas e necessárias as políticas que garantem acesso aos meios eletrônicos. Incluo neste rol os telecentros, os computadores populares, as linhas de financiamento para as PMES operarem com processos digitais e integrados. Se quisermos cumprir o compromisso assumido com os ODMs, no entanto, precisamos fazer mais.

Precisamos transformar a própria tecnologia da informação e da comunicação na ferramenta que vai nos permitir resgatar, do atraso, da miséria e da ignorância, a maioria da nossa população. Não se trata apenas de transformar a escola, mas de criar um novo paradigma educacional em que se promovam a aprendizagem e a reflexão contínuas como maneiras de assimilar e construir continuamente o conhecimento. Não basta distribuir renda, é preciso permitir o acesso às informações para que qualquer cidadão possa decidir em igualdade de condições o que é melhor para si, para a sociedade e para o planeta. É preciso permitir o seu acesso a esta nova dimensão de cidadania que o qualifica para uma atuação social diferenciada e mais participativa, por meio de blogs e comunidades em rede. Este esforço pode nos permitir pular etapas pelas quais outras sociedades precisaram passar, em um bom exemplo de amadurecimento democrático que prenuncia e prepara sua população para um estágio superior de educação e atividade política com elevado poder de redução das desigualdades.

PARCEIRA DA CIDADANIA

A inclusão digital, assim, torna-se parceira da cidadania e da inclusão social. O cartão do Bolsa-Família ou dos benefícios do INSS (idosos aposentados também são excluídos digitais!) e a urna eletrônica são dois exemplos de que me lembro imediatamente, quando penso sobre o assunto. Ainda não há consistente levantamento sobre o impacto dessas tecnologias na vida dessas pessoas. Mas penso que é possível afirmar que a mudança cultural tem sido assimilada sem muitos traumas. O que a mudança representou para a atividade intelectual destes novos usuários de TICs? Transformaram a visão de mundo? Vislumbraram novas oportunidades de relacionamento e de trabalho? Sentiram-se mais “incluídos”? E as instituições que passaram a operar por meio digital para este público promoveram transformações internas? Mudaram a estratégia, para atender a estes novos públicos? Empresas e indivíduos puderam ter acesso a informações mais relevantes para suas vidas por meio destas tecnologias?

Respostas a estas e outras perguntas tornam-se cada vez mais fundamentais para o planejamento não apenas de políticas de governo, mas também das estratégias das próprias empresas. Entendida como uma política que vai além do acesso ao computador, a inclusão digital pode ser uma aliada da empresa e da sociedade para que ambas se apropriem das tecnologias existentes, de modo a assegurar autonomia e capacidade de escolher a melhor maneira de utilizá-la para segmentos crescentes da população.

Vivemos um tempo que me remete ao escritor inglês Charles Dickens. Ele soube como poucos descrever as mazelas, os desafios e as oportunidades da industrialização. Não fosse a tipografia, Dickens não teria chegado até nós. Não fosse a internet, ele não chegaria até mim, enquanto pesquisava fontes e informações para este artigo. Eu me lembrei particularmente do parágrafo de abertura de “Um conto para duas cidades”. O texto fala do dilema de um homem. E começa por onde termino este artigo, pois considero ser a reflexão mais adequada para o nosso dilema moderno (a citação é livre): vivemos o melhor dos tempos e o pior dos tempos; a época da sabedoria e a época da tolice; a era das luzes e a era da escuridão. Perscrutando o Paraíso e, ao mesmo tempo, indo na direção oposta.

Depende de nós resolver este impasse a favor de uma sociedade na qual justiça, dignidade e qualidade de vida não sejam o sonho de Paraíso para a maioria.

REFERÊNCIAS

CRUZ, Renato. O que as empresas podem fazer pela inclusão digital.

[S.l.]: Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, 2004. AS EMPRESAS do bem. Revista Isto É Dinheiro. São Paulo: Editora Três, [s.d.].

INSTITUTO ETHOS DE EMPRESAS E RESPONSABILIDADE SOCIAL. O compromisso das empresas com as metas do milênio. [S.l.], 2004.

JORNAL Folha de S. Paulo.

OBJETIVOS de desenvolvimento do milênio – relatório nacional de acompanhamento, Presidência da República. [S.l.: s.n.], 2005.

Fontes na Internet

Abecortel – Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Engenharia de Telecomunicações www.abecortel.org.br

CDI – Comitê para a Democratização da Informática www.cdi.org.br

CGI – Comitê Gestor da Internet no Brasil – www.cgi.br

CUMBRE mundial sobre la Sociedad de la Informacion. Disponível em: http://www.itu.int/wsis/index-es.html. Acesso em: 2006.

Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas www.ibase.org.br

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística www.ibge.gov.br

Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social www.ethos.org.br

Instituto Polis www.polis.org.br

NÓS podemos – 8 jeitos de mudar o mundo. Disponível em: <www.nospodemos.org.br>. Acesso em: 2006.

MAPA da exclusão digital. Disponível em: http://www2.fgv.br/ ibre/cps/mapa_exclusao/apresentacao/apresentacao.htm. Acesso em: 2006.

RONDELLI, Elisabeth. Cúpula mundial da Sociedade da Informação. Disponível em: <http://www.comunicacao.pro.br/setepontos/5/ 4passos.htm>. Acesso em: 2006.