Brasil, sonhos e utopias

Ricardo Neves

Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ. Diretor do ITC – Desenvolvimento Urbano do Rio de Janeiro. Colunista da revista Época.

E-mail: ricardo@ricardoneves.com.br

Inclusão Social – Em seu livro,Pegando no Tranco, você traça um paralelo entre sonhos e utopias. Você poderia comentar?

Ricardo Neves – O que eu tento passar para o leitor é uma visão decepcionada com essa história de utopias. Pegando no Tranco é um desafio que procura ensinar o cidadão a enxergar as coisas de um novo jeito. Nós temos essa coisa de viver em um tempo meio emperrado, que o Brasil não dá certo, nós temos sempre a esperança em uma perspectiva de mudança que nos conduz em direção à utopia. Na verdade, a vida não é feita de coisas perfeitas. A vida é feita de processos. Então, com essa nossa atitude de “esperante”, nós acabamos ficando parados no tempo, enguiçados, e não vemos que a realidade não é essa. Estamos fazendo sim muitos progressos, e ficamos esperando que as coisas um belo dia comecem a acontecer.

Inclusão Social – Mas, no seu livro Pegando no Tranco, você também diz que as utopias são necessárias para mobilizar o indivíduo e a sociedade.

Ricardo Neves – Eu falo de visão estratégica, que é a capacidade de você visualizar um lugar no futuro que você deseja ocupar e caminhar em direção a este lugar. Isso é diferente da utopia, na qual todas as instituições funcionam de maneira perfeita, com todo mundo feliz, contente, bem nutrido. Isso é utopia, é a perfeição. Então, o que acontece quando você adota uma visão estratégica é que ela é mais pragmática. Ela visualiza um determinado projeto de futuro, e é nessa direção que você deve correr. Perfeição é para os anjos.

Inclusão Social – Tanto é que você constrói a frase: “o sonho é o começo de toda a realização”.

Ricardo Neves – O sonho é diferente da utopia e do desejo da perfeição. O desejo da perfeição acaba

sendo paralisante, assim como os diagnósticos apocalípticos que se fazem a respeito do Brasil e que acabam se tornando também paralisantes. Então, essas duas coisas são paralisantes. O diagnóstico que você faz de que está ruim, tudo arrebentado, nós somos o último país em desigualdade social, a miséria é continental, há um mar enorme de miséria, de carências sociais. Tudo isso é paralisante. Tudo isso é como se você falasse: “O meu câncer está em metástase”. Falou isso, e você já não tem capacidade de autocura. A outra coisa paralisante é mirar um projeto de futuro na utopia, na perfeição. É impossível.

Inclusão Social – Por falar em diagnóstico, em Pegando no Tranco, você faz uma metáfora com um diagnóstico médico. No seu exemplo, o indivíduo recebe um diagnóstico equivocado, que o levará a um estado de descrença total. Os diagnósticos equivocados podem estar levando a nação a um descrédito sobre as suas vocações? Você cita também Antônio Houaiss e foi buscar, no Dicionário Houaiss, o verbete miserabilismo para falar sobre a ladainha da miserabilismo. Você pode explicar melhor o papel que joga a teoria do miserabilismo e a do ufanismo.

Ricardo Neves – Quanto ao ufanismo, eu acho que ele está completamente demodê. Ninguém ousaria ser ufanista a respeito do Brasil. Isso hoje em dia é até politicamente incorreto. Significaria você estar se alienando de questões graves que precisamos ainda realmente resolver, que se encontram pendentes, mas a ladainha do miserê, que é uma forma, digamos, popular de falar da miserabilidade, é uma das características do DNA do brasileiro. Se você juntar dois ou três brasileiros, certamente em algum momento a conversa vai desandar para o muro das lamentações. É uma característica nossa. E isso é uma coisa que nos distingue em termos de nacionalidade. Isso é muito negativo. Qualquer meio social, é como se fosse a família nelsonrodriguiana. O filme sempre acaba em tragédia.

Inclusão Social– Aliás, Nelson Rodrigues é um autor que você cita no livro. Achei interessante a forma como você trata Nelson Rodrigues, principalmente quando você comenta que, para a dramaturgia rodriguena, “a ficção para ser purificadora tem que ser atroz”. Então, fale um pouco sobre essa visão que você toma emprestada do Nelson Rodrigues?

Ricardo Neves – Foi o próprio Nelson Rodrigues que diagnosticou que o brasileiro tem complexo de cachorro vira-lata. Ele foi muito feliz, um dos nossos grandes teatrólogos que conhecia muito bem a tragédia humana. Não espere que nada politicamente correto de um tema desenvolvido por Nelson Rodrigues. Se você comparar Nelson com Shakespeare, é uma comparação interessante, porque Shakespeare tem os seus momentos de tragédia, como um Rei Lear, como Macbeth, como Hamlet. Ele tem coisas interessantíssimas, para cima, divertidas, e até mesmo comédias. Mas, no meio de tudo, você tem os retratos positivos da vida. O que incomoda na obra de Nelson Rodrigues é exatamente o fato de não haver nenhum aspecto positivo sequer. Ou seja, em toda ficção o personagem tem de sofrer para que a gente se purifique. Então, de uma certa maneira, isso tem a ver com o DNA do brasileiro, que nos remete sempre a estar, de alguma maneira, nos lamuriando. E é isso que nos impede de reconhecer avanços, o progresso.

Existem avanços importantíssimos que foram feitos neste país. Por exemplo, a mobilidade social no Brasil é hoje uma das maiores do mundo, basta você olhar, por exemplo, quem é o presidente hoje do Brasil. Vamos tomar, como exemplo, os Estados Unidos, que têm, digamos assim, a aparência de ser um edifício da democracia, um dos mais aperfeiçoados, os pesos e contrapesos que estão aí desde 1776. Mesmo assim, para você sonhar em ser presidente dos Estados Unidos, você precisa ter nascido branco, rico, anglo-saxônico e homem. Se não tiver esses quatro pré-requisitos, não sonhe em ser presidente, que é fantasia. No Brasil, não reconhecemos o que está acontecendo em termos de mobilidade social. É uma conquista extraordinária o que estamos conseguindo. Ou seja, você já pode sonhar independentemente do seu berço, da sua conta bancária ou da do seu pai, você já pode sonhar em ser um senador, em ser um governador, em ser um juiz do Supremo Tribunal Federal. Então, essas coisas são extraordinárias. Você deve visualizar isso como sendo uma vantagem competitiva do nosso país. Você não pode oferecer o sonho de ser presidente a nenhum garoto negro nos Estados Unidos. Você não pode oferecer nenhum sonho dessa natureza a nenhum garoto hispânico ou um garoto vietnamita, nos Estados Unidos. Então, o que acontece, no Brasil já temos essa possibilidade. Você olha, por exemplo, para a composição do atual ministério. Você tem uma Marina. Olha qual é a biografia da Marina. Vamos olhar hoje o que temos dentro do Supremo Tribunal Federal, nós já temos negros. Temos negros dentro do quadro de generais. O que é o olhar negativo é aquele cinismo, aquele ceticismo que diz: “Mas eles não são expressivos ainda”. Então, você joga fora a água suja do banho com a criança. Isso é uma forma muito ruim, quando você não reconhece os avanços que você fez, você não pode ter sonhos grandes, não pode visualizar grande. Então, no final das contas, o que eu quis oferecer entre ufanismo e o miserê é a mesma coisa que nós termos de ficar entre o ceticismo e o cinismo e o utopismo. Eu acho que existe um caminho intermediário, que é o caminho do realismo, que é o caminho do pragmatismo, mas ainda sim que não abre mão de grandes sonhos. Sonhos utópicos, não sonhos de perfeição, mas sonhos que estão à nossa altura.

Inclusão Social – Continuando nessa vertente cultural, no seu livro, além de Nelson Rodrigues, você menciona Mário de Andrade e o personagem Macunaíma. O Brasil realmente precisa de visões dessa natureza, nós somos realmente derrotistas por vocação e nós devemos quebrar essa fronteira que nos oprime. Quando do lançamento do filme Cidade de Deus, você fez uma colocação provocativa, ao afirmar, no momento em que o Brasil inteiro elogiava o filme, que o filme visou apenas ao sucesso de bilheteria, que o filme não propõe nenhuma discussão mais profunda do fato social.

Ricardo Neves – Essa questão é muito importante porque ela vai no cerne de como a gente não consegue sair dessa karma da ladainha do miserê, sem ir para o ufanismo. A sociedade brasileira está madura para pensar determinadas questões, como, por exemplo, a questão da pobreza. O que acontece, e eu mostro no meu livro, é que na verdade o problema parece maior do que ele realmente é. Quem começou a me chamar a atenção para isso foram pessoas de fora do Brasil, por exemplo, ir com uma delegação de nigerianos, de senegaleses, a favelas do Rio de Janeiro, ou mesmo de delegações de japoneses, ou de pessoas que trabalham com desenvolvimento e pobreza em outros lugares do mundo. Eles falavam assim: “Você está me mostrando essa favela aqui. Você precisa entender o que é exatamente uma miséria africana”. Quando eu fui trabalhar com inteligência de mercado, eu fui trabalhar para empresas, ajudando-as a entender o que está do lado de fora da empresa, para procurar clientes. Eu começo a perceber, por exemplo, que o acesso a bens de consumo e serviços dentro de bairros pobres era contra-intuitivo. Ou seja, a penetração a posse de lavadoras de roupa, de videocassete, de DVD, de automóvel era surpreendente, e não era compatível com o que se via através das pesquisas de renda feitas pelo governo. O que eu fui começar a entender é que, quando você olha a sociedade por meio das pesquisas de mercado, por exemplo, você não pergunta para ninguém quanto é a renda dessas pessoas. É a mesma coisa que eu te perguntasse: “Quanto você ganha por mês?” Você vai dar um riso desenxabido, e nós vamos mudar de assunto. Se eu pergunto: Você tem carro? Você tem plano de saúde? Você tem nível superior? Essas são perguntas tangíveis a que as pessoas respondem. Então, quando você procura saber da renda, sobretudo em uma sociedade onde a informalidade é muito grande, é uma pergunta que vai te levar a uma resposta que não é correta, próxima à realidade. Porque toda resposta de pesquisas quantitativas é um mapa que você faz da realidade. E você tem várias qualidades de mapa. Você tem aquele mapa, por exemplo, que é uma foto aérea. Você tem um mapa que é um croqui de mapa para ir a um churrasco no sítio de alguém que você faz no guardanapo. Obviamente, a pesquisa de renda que é o “pau da barraca” das políticas públicas. O que eu procurei mostrar é que na verdade a pesquisa de renda muitas vezes não corresponde à realidade. Se você souber como ela é feita, você vai ver que é parecido como saber de que é feita a salsicha. É isso que eu quis fazer. O que eu acho que seria mais construtivo, estou vendo a população brasileira fazer isso nas pesquisas que têm sido feitas, por exemplo, para os jornais on-line, para saber qual foi a sua impressão? Quais são os seus comentários? Vamos pensar quantitativamente para começarmos a ver o tamanho do problema. O problema é gravíssimo, do ponto de vista qualitativo, aquilo ali é uma hecatombe. Agora vamos ver se aquilo é um câncer em metástase, ou se aquilo é um câncer localizado. O Rio de Janeiro tem 700 favelas. A população favelada do Rio de Janeiro, que mora nas favelas, tem em torno de 1 milhão e 100 mil pessoas. Nós temos 300 mil residências em favelas no Rio de Janeiro. Suponhamos que você tenha entre 15 a 20 meninos daqueles por favela. Nem todas as favelas têm aquele tipo de ator social. Aquilo ali é minúsculo. Não tem nem essa quantidade de fuzil. Você viu, por causa de 10 fuzis que eles roubaram no quartel. O que eles fizeram para roubar 10 fuzis? Então, vamos fazer contas. Provavelmente, o pior cenário seria nós termos em torno de 15 meninos como esses em cada morro. Vou ser pessimista. Multiplica isso daí: 20 por 700 favelas, ou melhor, vamos multiplicar por 500, já que em 200 favelas não existe tráfico. Quantos meninos você estima que tenham aí? Mil, em uma população de 1 milhão e 100 mil. Então, nós vamos ter de fazer alguma coisa. É mesma coisa que eu fazia em relação ao menino de rua. Com a população de meninos de rua na América Latina, a conclusão foi essa de 20 mil, e que, no Brasil, na pior das hipóteses no Rio de Janeiro, temos menos de mil crianças de rua. Então, você não tem um câncer em metástase. Você tem um indício de que a sua próstata está com algum problema. Agora a morbidez de um câncer na próstata no início é muito pequena. O que acontece é que adquirimos certa zona de conforto psicológico em se mortificar, ou seja, quando eu estou no asfalto e olho a favela, a minha zona de conforto vai dizer que aquilo ali é pobre. Um analista de mercado que olha para lá e vê aquilo ali como um potencial de mercado. Agora, por exemplo, você olha a Favela da Rocinha. A Favela da Rocinha para uma empresa como a Casas Bahia significa hoje um potencial, são 25 mil residências. “Eu vou vender ali em torno de três a quatro mil televisões de 29 polegadas, mais uns 500 plasmas”. “Mas como você pode estar pensando em lucro, quando só moram miseráveis?” Aquilo se chama baixa renda. Quando mostro os números, a miséria não está mais na favela. A favela não é mais o endereço da miséria. Quando você troca esses óculos aí, você passa a ver o seguinte: a informalidade, na verdade, é o câncer em metástase. Então, no Rio de Janeiro, quando você olhar a favela, você tem de pensar que, tudo bem, existe o crime lá. Você tem 300 mil domicílios no Rio de Janeiro, aproximadamente 95% não têm um papel, um documento de propriedade, ou seja, o imóvel não têm no mercado. São imóveis que as pessoas investiram 20 ou 30 anos na construção, na melhoria, na manutenção e que não podem colocar no mercado. Então, o que é contra-intuitivo é dizer: Olha, você está vendo parede descascada, alvenaria sem acabamento no morro, aquilo não significa miséria. Aquilo significa que a prioridade das pessoas é equipar aqueles metros quadrados que elas construíram. Provavelmente, para essas pessoas, é muito mais eficaz um programa de regulamentação fundiária, é o primeiro patamar para dar a elas o direito de propriedade, do que uma Bolsa Família, um Fome Zero. Aí é uma questão de eficácia. O que é mais eficaz? Provavelmente, essa é a maior necessidade. Quando se roteiriza uma realidade de favela do Rio de Janeiro com o objetivo de chegar a indicação do Oscar – é obvio que o Fernando Meireles não faz dessa maneira. Mas o que ele quis foi pegar um produto global. Quando você falar um produto global, você vai usar os clichês. Quando eu sou entrevistado por repórteres internacionais, eu gosto de brincar com eles dizendo o seguinte: como é que você consegue fazer uma reportagem, se você é um correspondente doLe Monde, do La Liberation, do Washington Post, do Wall Street Journal, do New York Time? Como você consegue transmitir a sua informação aqui do campo com menos clichê? Aí um dos repórteres um dia me disse, Ricardo, o clichê é a bola salva-vidas do correspondente. Não é só para o meu público que eu tenho de usar os clichês para tornar viável a comunicação. O meu chefe, por exemplo, de um grande jornal, nunca saiu da região de Massachussets. Ele é um cara que nasceu em Boston, vai a Nova Iorque, vai a Washington, mas o máximo que ele conhece de exterior foi nas férias que ele tirou em Paris. Esse é o cara que faz a triagem dos correspondentes da América Latina. O que eu digo é o seguinte: eu acho que o Fernando Meireles, quando pega uma realidade de Cidade de Deus e fala “eu vou fazer um produto global”, ele vai ter de ser muito bom para nadar contra essa corrente.

Inclusão Social – Como ele foi no Doméstica. Você também cita?

Ricardo Neves – Que filme sensível. Que filme que desmonta uma realidade complicadíssima que é essa nossa. Você vê que politicamente correto o tema de Doméstica...

Inclusão Social – Está na pauta, digamos assim...

Ricardo Neves – Exatamente. Eu, por exemplo, no livro, bato nesta questão. Quanto mais empregado doméstico um país tem, menos gente qualificada ele possui. Se você pegar países escandinavos, o trabalho doméstico é feito pelas pessoas que moram naquela residência. No Brasil, se você é de classe média, não é treinado a fazer a própria cama. Tem sempre uma empregada que subiu de elevador para resolver. Essas coisas, eu acho que são uma pauta. Precisam ser discutidas. O país que fica estimulando a perpetuação desse tipo de coisa não percebe que na verdade é o seguinte: se você pegar países escandinavos, mesmo os países europeus, antes do boom da imigração dos anos 80, eram países onde as pessoas resolviam não terceirizar os seus trabalhos domésticos, porque a sociedade estava trabalhando como um todo do lado de fora. Estava ocupada. E você tinha que agregar valor não ao trabalho doméstico, mas ao que a sociedade como um todo faz para ela mesma e faz para competir globalmente. Você pega o filme Domésticas, a qualidade dele é extremamente superior ao esquematismo primário de Cidade de Deus. Eu tenho amigos na África do Sul, e é interessante que a África do Sul tem muito a ver com o Brasil. É só você pegar onde estava o Mandela há 20 anos. Estava mais ou menos igual ao Lula há 20 anos. O filme que ganhou agora aborda a questão da criminalidade na África do Sul, da mesma forma que o Cidade de Deus. É um filme de ação, um filme de entretenimento para as massas. É um filme que um americano médio, que, cá entre nós, não é nenhum modelo de educação elevada, aprecia, para ficar na frente da televisão ou no cinema comendo uma tonelada de pipoca.

Inclusão Social – Entretenimento. Não passa disso.

Ricardo Neves – O filmeCidade de Deus é um ótimo filme de ação, mas não nos ajuda a amadurecer devidamente a questão. Essa coisa que eu falei da visão estatística, da quantificação. Agora vamos ver o problema em termos quantitativos. Se você está me dizendo que aquilo é o retrato de mil crianças em uma população de 1 milhão e cem, que são os que vivem em áreas pobres, de baixa renda em uma megacidade que tem quase 11 milhões de habitantes. Então, você está falando de uma coisa muito delimitada, e nós não temos de nos vitimar. Nós devemos cobrar a solução disso daí. É muito desperdício de energia negativa, sem amadurecer o problema.

Inclusão Social – Saindo um pouco desse terreno da área cultural, da interpretação que a área cultural faz dos problemas sociais, você diz no seu livro que não é nenhum acadêmico e faz questão de deixar isso bem claro. Você é um cara que trabalha com mercado, entrando no terreno propriamente dos números, campo em que você tem um domínio maior. O Brasil tem esse problema, que é um emaranhado de indicadores. Há muita gente que faz pesquisa, como o IBGE, o Ibase, o Ipea, entre outros. Parece que o Brasil está submerso em uma enorme quantidade de indicadores que não estão nos levando a nada. Haveria possibilidades de o país ter indicadores verdadeiramente confiáveis, capazes de gerar políticas públicas corretas?

Ricardo Neves – A questão que eu vejo é a seguinte: nós temos uma pobreza localizada e temos uma baixa renda enorme. Quando falamos em baixa renda, se você estiver de má vontade, vai dizer que é uma discussão semântica. Mas não é uma discussão semântica, é como um copo pela metade. Um copo pela metade significa que, dependendo da sua atitude, se ela for positiva em relação à vida, você vai falar que está com o copo meio cheio. Se você for um cara pessimista, o copo vai estar sempre meio vazio. Foi publicada esta semana no jornal O Globo uma matéria sobre a informalidade. O jornal para que eu colaborasse sobre informalidade. Eu falei dos vários aspectos. Eu entendo a informalidade como uma coisa caleidoscópia. A informalidade não diz respeito apenas ao camelô na rua, ao trabalho que é feito sem contrato. Mas a informalidade também é tudo aquilo que é extralegal. Por exemplo, a posse da sua casa que você não pode apresentar papel. Ela é extralegal, pode até ser lícita, você tem aquele direito, mas, se você não tem papel, não adianta. Nessa condição, por exemplo, estão 13 milhões de imóveis do Brasil, dos 50 milhões que nós temos. Na entrevista com a repórter, ela me levava para determinados corners em que ela queria confrontar a minha opinião com a de especialistas. O que eu procuro deixar claro, que eu acho que estou dando a minha contribuição, não é a visão de mais um especialista, é uma visão de quem procura integrar. O que são os indicadores que são produzidos, por exemplo, relativos à pobreza? O que eu chamo de economia da pobreza é um território que é basicamente do governo, de órgãos multilaterais, como o Banco Mundial. Mas tem outro território que são os indicadores de riqueza, que são, por exemplo, os que usam a pesquisa de mercado para achar onde está a riqueza, afinal de contas, você é um industrial que tem a capacidade de fazer 1 milhão de microondas por ano, você precisa saber se o mercado pode absorver isso ou não. Se você fizer 1 milhão e naquele ano só forem tomadas 500 mil decisões de compras de microondas, você está em maus lençóis. Pesquisa de mercado não é uma pesquisa vil, como nós achamos acha que é para enganar, engambelar as pessoas. Ela é uma outra janela que se abre sobre a realidade. O que eu procuro fazer é integrar essas visões. Eu não sou um especialista em pobreza. Eu não sou um economista, eu não entendo de macroeconomia com profundidade e não pretendo substituir o saber dos economistas. O que eu tenho de novo é uma visão integradora, e efetivamente o que é visão integradora? É a visão estratégica. É fazer as perguntas certas a serem feitas. A visão estratégica te diz o que é a coisa certa a fazer. Quando você não tem visão estratégica, você pode estar fazendo as coisas certas, mas as coisas certas não chegam lá. Você pode ter um programa, por exemplo, de assistência social absolutamente correto do ponto de vista gerencial. Agora, ele pode ser totalmente equivocado do ponto de vista da realidade estratégica. O que eu acho que hoje existe no Brasil é uma carência do pensamento estratégico que emperra as várias especialidades. Você tem um cara muito bom em pobreza dentro da FGV, você tem um cara muito bom em macroeconomia em Campinas, mas o que eu vejo é que a liderança e, eu prezo muito essa palavra liderança, porque, a meu ver, o que difere um país do outro, uma sociedade da outra, é a qualidade da liderança. Se você pegar uma liderança, é sempre assim: uma minoria animada que faz a maioria dançar. Esse é o papel de uma elite no sentido bom, no sentido correto da palavra. Eu acho que nós precisamos da elite. A elite dá norte a uma sociedade enorme. A elite amadurece as questões que são prioritárias. O que acontece é que, nos últimos 20 anos, com o problema da inflação, a visão estratégica do Brasil ficou resumida a uma discussão macroeconômica. É, como se você, por exemplo, fosse um empresário e deixasse a gestão estratégica, mercadológica, organizacional da sua empresa, ser conduzida pelo seu contador. Quando eu abro as revistas que saíram há duas semanas com matérias em cima do crescimento pífio que o Brasil fez e que vem fazendo há mais de 10 anos, percebo que estamos crescendo menos. Esse ano que passou, nós crescemos menos não foi só da média global dos países. Nós ficamos no último batalhão junto com Honduras e Haiti. Por que o Brasil não cresce? Aí você vai ver quem foram as pessoas que foram perguntadas a esse respeito. Quase que, sem exceção, os economistas, ou seja, o economista, assim como o contador, não recebe treino para ter uma visão estratégica. A visão estratégica é integradora. A visão macroeconômica é uma dimensão da realidade. Ela não te dá a qualidade do progresso, ela te dá a quantidade do crescimento econômico e ponto final. A sociedade brasileira perdeu muito em matéria de liderança, ou seja, os grandes estrategistas. Nós tivemos um exemplo no passado com homens como Getúlio, como Juscelino. Juscelino, com o seu grande pecado, a irresponsabilidade fiscal. Nós pagamos depois o pato, porque tirou o dragão da inflação da jaula. Mas, de qualquer maneira, a sociedade brasileira está começando a amadurecer para perceber que nós precisamos da visão integradora agora que a economia foi estabilizada. Mandando de volta para casa os economistas depois que foi dominado o dragão da inflação, nós temos de convocar uma nova elite que saiba fazer as perguntas certas, para podermos então elaborar as respostas, que é a coisa certa a fazer. Eu não estou preocupado mais em discutir cada número naquele próprio território, eu quero confrontar a economia da pobreza. São aqueles órgãos usados para elaborar políticas públicas, sobretudo com a questão da pobreza, com a questão do desenvolvimento social, com os óculos que estão olhando o lado da riqueza, da iniciativa privada. É como se criássemos um bifocal, ou seja, em vez de usarmos aqueles olhos que sempre enxergam quem está abaixo de uma hipotética linha da pobreza, nós precisamos integrar essa visão com outra visão, que procura a riqueza.

Inclusão Social – Essa nossa conversa foi muito construtiva. Além da entrevista, é claro. Saio dela com o meu espírito renovado. Em nome do Ibict, muito obrigado.

Entrevista concedida no dia 21 de março de 2006 a Pedro Anísio Sousa de Figueiredo (Ibict).