PAUL SINGER: MEMÓRIAS DE UMA EXPERIÊNCIA APRENDENTE[1]
Valmor
Schiochet [2]
Universidade de Brasília (UnB)
e-mail
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Resumo
O texto
relata as memórias e expereincias do autor com Paul
Singer. Descreve sua trajetória em vários momentos históricos ao lado de Paul
Singer como membro de sua equipe. Apresenta suas reflexões sobre o impacto de
Singer com sua força
ético-política e de direção moral e intelectual da sociedade.
Palavras-chave: Histórico; Economia Solidária; Politica Economica.
PAUL SINGER: MEMORIES OF A LEARNING EXPERIENCE
Abstract
The text recounts the author's
memories and experiences with Paul Singer. Describes his trajectory in several
historical moments alongside Paul Singer as a member of his team. It presents
his reflections on the impact of Singer with his ethical-political force and of
moral and intellectual direction of the society.
Keywords: Historic; Solidarity Economy; Economic Policy.
Paul
Singer é um dos maiores economistas que tivemos, mas em verdade foi um grande
educador a semelhança de Paulo Freire. Para ele tudo se traduzia em
oportunidade de aprendizagem. Chegou a definir a economia solidária como um ato
pedagógico em si. Assim podemos dizer também que a convivência com o professor
é uma experiência aprendente.
Minha
relação com Paul Singer ocorreu em três momentos distintos. Dois momentos de
encontro e o terceiro quando por duas vezes tive oportunidade de compor a sua
equipe na direção da Secretaria Nacional de Economia Solidária.
Em
1997, na condição de Secretário Municipal de Trabalho, Renda e Desenvolvimento
Econômico do município de Blumenau recorri ao Professor Singer para
encontrarmos alguma alternativa política para enfrentar a grave crise de
desemprego que se abatia sobre a cidade. A motivação para este encontro foi o
fato de que em sua tese de doutoramento sobre industrialização e urbanização o
professor realizou uma reflexão específica sobre o processo de industrialização
de Blumenau. A ideia era que ele revisitasse sua tese quase 30 anos depois.
Em
verdade está motivação foi frustrada pois Singer já estava em outro momento de
sua vida intelectual e política. Mas frustação se transformou em
motivação. Encontramos outra razão para
sua estada em Blumenau naquele ano de 1997: as suas reflexões relativas a
autogestão e a economia solidária como proposta para o combate do desemprego.
No ano anterior, desafiado a
apresentar um programa para as políticas municipais de enfrentamento do
desemprego e pobreza, me deparei com reflexões bastante novas para mim tomadas
de alguns escritos de José Luis Coraggio,
Luiz Razetto e Paul Singer sobre a existência de uma
economia fundamentada na solidariedade, na cooperação e na autogestão.
Tema
que de forma bastante tangencial incluí na minha tese de doutoramento sobre os
dilemas conceituais relativos à sociedade civil no Brasil.
Este
contexto possibilitou a aproximação com o professor Singer para aprofundar a
reflexão de como na prática poderíamos utilizar da autogestão, das cooperativas
de trabalho e das mais diversas formas coletivas de auto-organização dos
trabalhadores e comunidades pobres para enfrentamento da crise. O que naquele
momento passou a ser denominado por Singer de Economia Solidária, conceito que
segundo ele foi utilizado por Aloísio Mercadante em 1996 e que Paul Singer
assumiu e passou a defender teórica e politicamente.
Um
conceito para denominar uma pluralidade de práticas organizativas promovidas
pela Cáritas Brasileira em seus projetos alternativos
comunitários (PACs), pelo Movimento dos Sem Terra nas
Cooperativas dos Assentados da Reforma Agrária, pelo movimento dos agricultores
familiares com suas cooperativas de crédito, industrialização e comercialização
e pela Associação Nacional de Trabalhadores de Empresas de Autogestão e
Participação Acionária (ANTEAG).
A
presença do Singer em Blumenau em 1997 nos possibilitou a aproximação com este
amplo movimento experimental de auto-organização dos trabalhadores e a
implementação de um programa municipal de apoio as formas cooperativas e autogestionárias de organização econômica. No meu
entendimento uma experiência pioneira de política municipal voltada à
organização da população desempregada e pobre. É importante reconhecer que aqui
em Lages/SC, por ocasião do governo de Dirceu Carneiro nos anos 80 ocorreram
iniciativas muito valiosas nesta direção.
Singer
foi decisivo para que eu mergulhasse no campo da economia solidária e assim
encontrasse uma conexão de sentido com anterior interlocução que mantive com
Cláudio Nascimento e Armando Lisboa em meados dos anos 80 quando empreendemos a
mobilização de coletivos pela autonomia e autogestão nas regiões de Joinville,
Florianópolis, Lages e Criciúma.
Após
meu afastamento da Prefeitura Municipal e consequente retorno à Universidade
Regional de Blumenau tive a oportunidade de conhecer o movimento que estava
acontecendo nas Universidades Brasileiras com o surgimento da Unitrabalho, uma Rede Interuniversitária de Pesquisas e
Estudos sobre o Mundo do Trabalho sob a ótica dos trabalhadores. Lá estava
também nosso professor Singer e seu esforço de colaboração e de busca de
agregação de todos os esforços para a ampliação da capacidade militante da
academia em favor dos trabalhadores, em especial aquelas e aqueles em condição
de maior precariedade. Vi em Singer uma enorme crença sobre o papel
transformador da universidade, dos intelectuais, da academia. Sob a coordenação
acadêmica de Paul Singer representei a Unitrabalho
num grupo de trabalho que coordenou a primeira pesquisa nacional sobre a economia
solidária. Deste Grupo também participou o professor Luiz Inácio Gaiger o qual posteriormente organizou a publicação dos
resultados da pesquisa sob o título “Sentidos e Experiências da Economia
Solidária no Brasil”. Singer sempre
manifestou que após ter publicado artigo na Folha de São Paulo, onde pela
primeira vez utilizou a expressão “economia solidária” para descrever as
iniciativas coletivas de trabalhadores contra o desemprego e a miséria passou a
receber inúmeros relatos de que o conceito que ele tinha inventado já estava
sendo vivido na prática por muito tempo no Brasil. Durante o grupo de trabalho
o professor estava entusiasmado com a ideia de que havia uma realidade pulsante
de caráter socialista disseminada em todo o território. O que demonstraria a
pertinência de suas ideias. A cada
relato, a cada descoberta manifestava enorme satisfação e curiosidade em
conhecer mais.
Também
é desta época que percebi o quanto o professor Singer era um defensor da
unidade. Frente as dificuldades de entendimento envolvendo as diversas
organizações e instituições acadêmicas e sindicais sua disposição sempre foi a
de estar em todos os espaços, valorizar todas as iniciativas, relativizar as
disputas em torno de pretensas verdades ou razões que justificavam as divisões.
Era preciso avançar e avançar juntos era um princípio importante para ele. Além
de da crença no coletivo manifestava uma enorme crença na capacidade humana do
entendimento pelo convencimento em torno de argumentos válidos.
Deste
momento também fui percebendo que o Professor representava uma tradição de
pensamento e de movimento político. Para ele a economia solidária era expressão
do movimento operário em oposição ao capitalismo. Toda referência histórica
inicial das falas de Singer sobre a economia solidária estava na Sociedade
Equitativa dos Pioneiros de Rochdale, fundada em
1844. E o pioneiro citado quase sempre
era Robert Owen (1771-1858).
Praticamente nunca fazia referência ao
socialismo francês ou outros movimentos socialistas. No pensamento marxista
tinha como referência Rosa Luxemburgo e sua defesa de pensar e praticar o
socialismo a partir da democracia. Para ele, não há socialismo sem democracia.
O socialismo é a radicalização da democracia. A base do socialismo é a
autogestão. Bem, assim não conheci o Paul Singer economista, apenas conheci o
Paul Singer da economia solidária e do socialismo autogestionário.
Um defensor intransigente da democracia.
O
terceiro momento começou com um telefonema recebido em meados do mês de
fevereiro ou de março de 2003. Após ser anunciada a criação da Secretaria
Nacional de Economia Solidária e da decisão do presidente Lula de que ela seria
coordenada pelo Professor Singer recebi um inesperado telefonema, e do outro
lado da linha o professor fazendo o convite para que eu compor a equipe da
Secretaria Nacional de Economia Solidária. Ainda não tinha claro qual o papel
deveria cumprir pois a Secretaria ainda estava sendo pensada. Mas manifestou
que gostaria da minha colaboração para a construção de uma política de formação
e educação em economia solidária.
Bem,
a experiência com a SENAES foi longa. Um primeiro momento de 2003 até início de
2007 e um segundo momento de 2011 até 2016. Agora sim experiência de
convivência mais cotidiana e não esporádica com o Secretário Singer, mas sempre
professor.
Primeiramente
o que me chamou a atenção foi a determinação com a qual assumia as decisões e
posições. Frente a uma dificuldade política que adiou minha nomeação por mais
de três meses e minha quase desistência de honroso convite ele manteve-se firme
e forte na defesa de que a equipe fora por ele escolhida e deveria ser mantida
sem exceção. Não tinha dúvida na defesa de sua equipe e das pessoas que havia
escolhido. Além do esforço permanente para manter a unidade de todas e todos.
Neste
momento vou me limitar a abordar duas dimensões de profunda aprendizagem desta
experiência de convivência com o professor Paul Singer na condição de
Secretário Nacional. A primeira diz respeito a concepção e prática de política
pública. A segunda impressões gerais sobre o ser humano Paul Singer.
Para
Singer a economia solidária era uma economia da sociedade civil, uma economia
das trabalhadoras e dos trabalhadores, uma economia das comunidades. Esta era a
economia solidária autêntica pois resultado da livre adesão das sócias e dos
sócios. Esta economia deveria ser apoiada pelo Estado. Em muitas vezes
utilizava a expressão “ajudada” pelo Estado. Toda economia solidária cuja
origem era motivada pela ação direta do Estado era vista pelo Professor como
uma “maneira artificial” de criar economia solidária.
O
papel do Estado era fundamentalmente o de apoiar, o de alocar recursos
financeiros e institucionais para fortalecer a autogestão, transferir recursos
para as organizações da sociedade civil que já fazem e sabem fazer economia
solidária. Ao Estado caberia a tarefa de dar visibilidade, disseminar as
experiências realizar um intenso processo formativo a começar pela própria
equipe responsável pela política de economia solidária, pelo Ministério no qual
a Secretaria estava alocada e de todo o Governo Federal. Não por acaso uma das
iniciativas mais entusiasmadas foi nossa parceria com a Escola Nacional de
Administração Pública (ENAP) com a oferta de um curso de formação em economia
solidária para gestores dos diversos ministérios e órgãos do governo federal.
Os momentos de maior satisfação eram aqueles de diálogos com sua equipe, os
momentos de formação. Geralmente ao termino das atividades ele dizia com
satisfação: - “aprendi muito com vocês hoje”. Para Singer o fomento à economia
solidária era basicamente acesso ao conhecimento, à educação, a troca de
experiências.
Outro
elemento característico da política nacional de economia solidária pode ser resumido
em uma expressão recorrente em suas falas: - o sentido da política de economia
solidária é promover o “resgate humano”. Singer pensava na economia solidária
como expressão de um setor organizado da sociedade civil, em especial de todo o
movimento articulado em torno do Fórum Brasileiro de Economia Solidária.
Caberia aos participantes da economia solidária não defender uma política para
si (suas bases) mas defender que a economia solidária fosse a política para
toda a população, em especial para a inclusão e emancipação da população mais vulnerabilizada, desumanizada e estigmatizada. Por ocasião
do Fórum Nacional do Trabalho (FNT) fez uma defesa contundente de que o
trabalhador não poderia ser confundido com o assalariado, o desempregado. Mas
trabalhador são todas e todos que buscam dignidade pelo reconhecimento de sua
atividade laboral. A presença das prostitutas e suas organizações nas
atividades do FNT manifestava este sentido amplo dos desafios para o mundo do
trabalho. O resgate humano esteve presente na aproximação da Secretaria
Nacional de Economia Solidária com os beneficiários do Fome Zero, depois Bolsa
Família, dos usuários da saúde mental, dos catadores de material reciclado, dos
moradores de rua, dos povos e comunidades tradicionais, dos encarcerados, dos
jovens e das mulheres. Mulheres. Singer sempre um feminista convicto.
Impressionava pela defesa das mulheres e de seus direitos e pela denúncia do
machismo. Singer via na economia solidária uma economia feminista para além de
ser feminina pois a maioria de participantes da economia solidária e muitas de
suas lideranças são mulheres.
Alguns
argumentos do Singer quanto a política nacional de economia solidária nos
desafiava constantemente. Um dizia respeito ao crédito que era uma
reivindicação ampla do movimento de economia solidária quanto a necessidade da
abertura de linhas de crédito fortemente subsidiadas e simplificadas para os
pobres organizados na economia solidária. Singer manifestava pouca vontade de
“brigar” para o acesso aos fundos públicos. Entendia que a economia solidária
já havia descoberto os instrumentos adequados de crédito e financiamento. Eram
as finanças solidárias organizadas nas cooperativas de crédito, nos fundos
rotativos solidários e nos bancos comunitários de desenvolvimento. Ao invés de
levar crédito para a economia solidária, defendia que deveríamos levar as
finanças solidárias ao crédito. O que não impediu de buscar uma importante
parceria com o BNDES para um programa de fortalecimento da autogestão e da
economia solidária no país.
Outra
dúvida e contra-hipótese constante dizia respeito as
compras governamentais. Também uma reivindicação do movimento consubstanciada
nas deliberações das conferências nacionais de economia solidária. A tese era
de que as compras governamentais e aquisições institucionais constituiriam uma
ação política decisiva para possibilitar abertura de mercado aos
empreendimentos da economia solidária. Singer, por sua vez, argumentava que o
mercado institucional era uma espécie de mercado protegido e sua preocupação de
que todo mercado protegido teria como consequência a redução da criatividade da
economia solidária. Entendia que o mercado tinha esta importante função de
estimular a criatividade e o adequado atendimento das expectativas dos
consumidores. Somente com muita argumentação e com os exemplos do Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar
(PNAE) é que ele foi convencido da importância das compras governamentais para omentar a economia solidária.
Enfim,
acho que havia nele uma coerência entre sua visão da autenticidade da economia
solidária da sociedade civil e o risco do artificialismo produzido pela
excessiva presença do Estado.
Para
terminar este breve relato faço algumas referências a alguns aspectos que me
impressionaram muito no Professor e Secretário Paul Singer.
Sua
força ético-política, acho que no sentido gramsciano
de direção moral e intelectual da sociedade. Singer expressava uma força
impressionante. Em sua humildade e sabedoria era reverenciado. Incólume perante
crises de governo e ministeriais. Um secretário nacional que manteve à frente
da Secretaria de 2003 até 2016. Quatro governos, dois presidentes, oito
ministros, entre titulares e interinos, dois diferentes partidos na condução do
Ministério. Deixou a Secretaria já com saúde bastante debilitada, mas a deixou
com tristeza pois sem dúvida dela vinha boa parte da força que o animava a
enfrentar dificuldades.
Um
ser humano coerente. Foi impressionante a disposição de em plena crise do
Governo Dilma conceder uma entrevista para a Folha de São Paulo (FSP,
10/06/2015) com críticas contundentes à política econômica do governo. A
mensagem foi de que “Dilma estava fazendo a política que Aécio prometeu fazer e
que havia um risco enorme desta política levar à perda da base popular e social
do governo”. Não atribuía somente a culpa ao governo pois já denunciava a
existência de uma greve dos capitalistas impondo forte austeridade à sociedade.
Mais tarde, em outubro repetiu a análise em entrevista concedida para o Jornal
Zero Hora (Zero Hora, 31/10/2015).
Um
ser humano estudioso. Gostava de receber livros e artigos. Quando o tema
despertava o seu interesse a leitura era imediata. Ao receber o material ao
final do dia impressionava o fato de na manhã do dia seguinte ele nos chamar
para comentar a leitura. Também gostava de escrever. Após alguma reflexão
coletiva sobre temas relativos a conjuntura ou a política de economia solidária
no dia seguinte aparecia o Singer com um texto redigido. Era impressionante ver
uma pessoa com sua idade dele e com fragilidades de saúde passar a noite em
claro lendo ou escrevendo com tamanha intensidade.
Enfim,
conheci Paul Singer como um ser feliz com a possibilidade de viver a
experiência da economia solidária. Após uma reunião de trabalho no Palácio do
Planalto caminhávamos até o carro a passos lentos. Tomei a liberdade de
perguntar. - “Professor neste cenário difícil que estamos vivendo o que lhe
anima a permanecer no governo, a trabalhar e a acreditar no que estamos
fazendo?” Resposta: - “Nunca imaginei em minha vida poder ver com os
olhos e viver tudo o que acreditei em termos de experiência socialista. A
economia solidária que vemos e apoiamos no Brasil e está presente no mundo todo
é a experimentação efetiva do socialismo democrático que sempre defendi”.
Brilhavam os olhos de um ser aprendente e ensinante.
REFERÊNCIAS
SINGER, P. I. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
SINGER, P. Paul Singer:
"Dilma está fazendo o que disse que Aécio faria". Zero Hora, Porto Alegre, 31 out. 2015. Disponível em:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/10/paul-singer-dilma-esta-fazendo-o-que-disse-que-aecio-faria-4891433.html.
Acesso em: 12 dez. 2015.
[1] Tive o prazer de participar de uma mesa em
homenagem ao professor Paul Singer no XII Encontro de Economia Catarinense,
realizado em Lages/SC no último mês de maio. Na oportunidade falei sobre
impressões sobre a presença do Professor na minha recente trajetória de vida.
Agora tenho a oportunidade de apresentar minhas reflexões sob forma de texto a
pedido do Professor Armando Lisboa a quem devo muito da minha aproximação com a
autogestão e a economia solidária
[2] Doutor em
Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB),
professor do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia e do Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e da Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares na Universidade Regional e ex-diretor de Estudos e
Divulgação da Secretaria Nacional de Economia Solidária.