COMPETÊNCIA COMUNICATIVA PARA PROBLEMATIZAÇÃO E APRENDIZAGEM EM ORGANIZAÇÕES

 

Clóvis Ricardo Montenegro de Lima [1]

Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e tecnologia (IBICT)

clovismlima@gmail.com

 

José Rodolfo Tenório Lima [2]

Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

jrtlima@gmail.com

 

Helen Fischer Günther [3]

Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul)

e-mail

 

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Resumo

Este artigo objetiva discutir a competência comunicativa na relação entre discurso e aprendizagem. Utiliza como referencial o agir comunicativo para caracterização da competência comunicativa, o Discurso de Habermas e a relação deste com a aprendizagem construtivista (Freire) e cognitivista (Piaget) e a reconstrução racional a partir da problematização. Explicita-se a convergência entre Habermas, Freire e Piaget, em que o agir comunicativo proporciona aprendizagem do sujeito cognoscente como uma permanente construção. Com este estudo pensamos a competência comunicativa como uma aptidão que, além de linguística, é definida pela aprendizagem que, racionalmente, critica e constrói. Conclui-se que a aprendizagem, considerada como uma reconstrução racional, pressupõe interação entre os sujeitos, suas subjetividades e intersubjetividades, que leva ao entendimento acerca do melhor argumento.

 

Palavras-chave: Competência comunicativa. Razão discursiva. Reconstrução e aprendizagem.

 

COMMUNICATIVE COMPETENCE FOR PROBLEMATIZATION AND LEARNING IN ORGANIZATIONS

 

Abstract

This article aims to discuss communicative competence in the relationship between discourse and learning. It uses as reference the communicative action to characterize the communicative competence, the Habermas´s Discourse and its relation with the constructivist learning (Freire) and cognitivist learning (Piaget) and the rational reconstruction from the problematization. The convergence between Habermas, Freire and Piaget is explained, in which communicative action provides learning of the cognoscent subject as a permanent construction. With this study we think of communicative competence as an aptitude that, in addition to linguistics, is defined by the learning that rationally criticizes and constructs. It is concluded that learning, considered as a rational reconstruction, presupposes interaction between the subjects, their subjectivities and intersubjectivities, which leads to the understanding about the best argument.

 

Keywords: Communicative competence. Discursive rationality. Rational reconstruction and learning.


 

1 INTRODUÇÃO

 

Neste artigo, discute-se o lugar da competência comunicativa na relação entre discurso e aprendizagem. A competência comunicativa a que se refere este artigo é aquela que Jürgen Habermas enuncia, que tem não apenas as características linguísticas de representação e de expressão, mas também a potência de criação de vínculos sociais. A comunicação faz parte dos processos de construção das identidades, de integração social e de socialização.

A crítica de Habermas à racionalidade restrita do agir estratégico tem seu antídoto em uma forma especial de agir comunicativo: o discurso. A interação mediada pela linguagem pode enfrentar os conflitos dentro da sociedade por meio de processos e procedimentos de argumentação, como um jogo em busca de acordos racionais. A situação de fala em que todos podem se expressar e defender seus pontos de vista é a comunidade de comunicação ideal.

A argumentação opera ao mesmo tempo como processo de aprendizagem, na medida em que o falante se coloca na posição do outro para que possam se entender e fazer acordos. Habermas considera que esta capacidade de se colocar no lugar do outro contribui tanto para um desenvolvimento moral quanto para um desenvolvimento cognitivo capazes de construir soluções racionais.

Neste artigo, quer-se discutir dois aspectos especiais da aprendizagem: a problematização e a reconstrução racional. A capacidade de crítica é uma questão que interessa ao educador Paulo Freire, cognitivista e construtivista. A competência de “ler” problema onde existe apenas realidade é uma demanda de quem quer aprender em termos mais amplos do que a mera razão instrumental.

A aprendizagem pode ser ela mesmo processo de reconstrução racional, quando funciona como desenvolvimento da competência comunicativa. A reconstrução racional faz mais do que o compreender: ela permite a ampliação da racionalidade pela interação mediada pela linguagem. O processo de reconstrução racional oferece bases mais largas para orientar o agir, o decidir, o fazer e o avaliar.

Espera-se com este artigo contribuir para o entendimento de que a crítica, com a problematização e a reconstrução, é algo que pode se aprender e desenvolver, de modo a tornar-se uma forma especial de competência comunicativa. Crítica e discurso estão um para o outro como modos de usar e de (re)construir a razão em público.

 

 

 

2 AGIR COMUNICATIVO E COMPETÊNCIA COMUNICATIVA

 

O agir comunicativo é a interação mediada pela linguagem. A mesma permite o entendimento entre as pessoas, constituindo uma intersubjetividade onde existem os sujeitos. A competência comunicativa faz parte do agir, e pode ser aprendida. A linguagem interpreta e representa as coisas no mundo da vida, mas também cria vínculos entre as pessoas. A linguagem socializa e integra aos grupos. A linguagem dá os meios para enfrentar os conflitos com os argumentos.

A competência comunicativa não é apenas a competência linguística, de representar e disseminar informação, mas também de fazer crítica, de problematizar, de aprender e de enfrentar os conflitos sociais com argumentos racionais. Habermas chama de Discurso a esta crítica racional capaz de enfrentar conflitos.

Habermas (2012) em sua crítica a razão funcionalista destaca o conceito de mundo da vida. Para o autor mundo da vida pode ser entendido como o lugar onde as “intersubjetividades” são compartilhadas. Intersubjetividade é compreendida como um entendimento mútuo da sociedade, ou o conceito que ele utiliza de Durkheim de “consciência coletiva”. O mundo da vida por possuir esse compartilhamento de subjetividades é plural e este fato o aproxima da realidade complexa vivida na sociedade. Tal fato deriva do compartilhamento de subjetividades que há nele. Essa pluralidade existente possibilitava uma maior compreensão dos fatos que ocorriam no mundo, pois os entendimentos privados eram compartilhados. A concepção de mundo da vida é complementário ao agir comunicativo. Esse fato ocorre, tendo em vista, que a agir comunicativamente tem como base o processo cooperativo de interpretação, em que os participantes se referem simultaneamente aos mundos: objetivo, social e subjetivo; de uma forma que haja um entendimento compartilhado.

A ideia de agir comunicativo é central na solução habermasiana para os impasses, que o desacoplamento entre sistema e mundo da vida causam na contemporaneidade. Entretanto, antes de realizarmos a discussão sobre o agir comunicativo e suas implicações para a interação social cabe recuarmos alguns passos e buscarmos na discussão entre Habermas, Parsons e Luhmann as origens da necessidade de adotar tal mudança. De acordo com Habermas (2012, p.388), Parsons pretende, a partir da sua teoria, estabelecer uma passagem conceitual da unidade da ação (individual) para o contexto da ação (interação). Para isso ele apoia-se na ideia de que a interação compreende simplesmente as ações independentes de dois atores, que atuam monologicamente.

Parsons escolhe como ponto de partida um ator concebido monadicamente. Além disso, ele pretende estabelecer a passagem conceitual da unidade da ação para o contexto da ação apoiando-se na ideia de que a interação elementar compreende simplesmente as ações independentes de dois atores. O ponto de partida da análise é dado pela orientação singular da ação. Esta é tida como o resultado de decisões contingentes entre alternativas. A orientação valorativa manifesta que os valores correspondentes determinam preferências por uma das alternativas dadas. Uma vez a força reguladora dos valores culturais não afeta a contingência das decisões, toda interação entre dois atores que entabulam uma relação está sujeita às condições da “dupla contingência.

 

Essa interação é mediada pelos mecanismos simbolicamente compartilhados que compactuam normas de ação e equalizam as regras de atuação. Entretanto a maneira como Parsons busca explicar a forma de ação do indivíduo peca em não considerar o processo linguístico de construção do entendimento comunicativo entre os participantes da ação e o pano de fundo, ou seja, mundo da vida existente na interação. Habermas (2012, p. 397) destaca:

A ideia dele (Parsons) é a seguinte: um ator age no quadro de sua cultura à medida que se orienta por objetos culturais. Ele chega a mencionar que a linguagem constitui o meio exemplar para a transmissão da cultura; porém, não aproveita essa ideia para fecundar sua teoria da ação. O esquema revela indiscutivelmente que ele passa por alto o aspecto comunicativo da coordenação da ação. (grifo nosso).

 

Parsons não considera que os fatos culturais só podem ser entendidos ou produzidos pelo caminho de uma participação comunicativa dos envolvidos. Processos de entendimento dependentes de linguagem se desenrolam, sob um pano de fundo de uma tradição compartilhada intersubjetivamente, especialmente de uma tradição de valores aceitos em comum.  Parsons contrapõe os componentes da cultura que foram internalizados ou institucionalizados aos padrões de significado cultural que surgem supostamente como “objetos” em situação de ação.  Segundo a proposta parsoniana, quando padrões de valores culturais são internalizados e institucionalizados, há uma definição de expectativas de papéis que se transformam em sistemas de interação, individuados no espaço e no tempo. Os objetos culturais, ao contrário, continuam sendo exteriores aos atores e às suas orientações da ação. (HABERMAS, 2012)

Para Habermas (2012) o problema de construção ocorre no momento em que a cultura, a sociedade e a personalidade, são entendidas como “subsistemas” independentes que agem imediatamente uns sobre os outros e se interpenetram parcialmente. Os sistemas têm de assegurar sua integridade nas condições de um entorno variável e supercomplexo, cujo controle jamais é total. O funcionalismo “biocibernético” do sistema, adotado na proposta parsoniana, busca desenvolver um modelo em que os sistemas autocontrolados mantêm seus limites opondo-se a um entorno supercomplexo.

A proposta de Parsons busca explicar os contextos da ação como sistemas, sem poder se apoiar numa mediação e sem poder tomar consciência da mudança de enfoque que se faz necessária quando se chega metodicamente ao conceito de sistema de ação pelo caminho da objetivação do mundo da vida. O problema poderia ser solucionado se as interpretações dos participantes da interação, as quais tornam possível o consenso, fossem transformadas no componente nuclear do agir social. Essa mudança é necessária tendo em vista que a proposta de Parsons desconsidera o pano de fundo existente na interação intersubjetiva dos participantes.

Por sua vez, a versão luhmanniana do funcionalismo sistêmico substitui o sujeito autoreferencial pelo sistema auto-referencial. De acordo com Habermas (2002) o funcionalismo sistêmico proposto por Luhmann sela tacitamente o “fim do indivíduo”. Pressupõe-se que as estruturas da intersubjetividade se desintegraram, que os indivíduos foram eliminados do seu mundo da vida e que o sistema social e o sistema pessoal constituem mundos circundantes um para o outro.

De acordo com essa teoria, o mundo da vida desintegrou-se totalmente em sistemas parciais funcionalmente especificados, tais como: a economia, o Estado, a educação, a ciência etc. Assim a teoria luhmanniana, com sua perspectiva funcionalista, interpreta a sociedade como um sistema autoprodutor de seus próprios elementos (autopoieses) que agem por meio de uma referência própria (autoreferenciais) e são fechados em si mesmo, autoproduzindo suas modificações a partir de processos comunicativos de ordem seletiva (códigos binários). O indivíduo monológico proposto por Parsons é substituído pelo sistema monológico na versão luhmanniana. Os sistemas substituíram, por nexos funcionais, as relações intersubjetivas a partir de um modo de interação simétrica entre si.

O mundo da vida ao se diferenciar estruturalmente e constituir sistemas parciais altamente especializados para os domínios funcionais da reprodução cultural, da integração social e da socialização desenvolve uma modesta capacidade do mecanismo de entendimento da complexidade do mundo da vida. A limitação do entendimento deriva do fato de que o processo de racionalização imposto visa reduzir a complexidade existente nas interações.

Os contextos de interação, autonomizados em subsistemas gera o desacoplamento entre sistema e mundo da vida. Tal fato acaba por proporcionar no interior dos mundos da vida modernos a coisificação das formas de vida. O desacoplamento ocorrido a partir da diferenciação das estruturas do mundo da vida, multiplicam-se apenas as formas das patologias sociais, dependendo do componente estrutural que é insuficientemente suprido e do aspecto em que isso acontece há: perda de sentido, estados anômicos e psicopatologias são as classes de sintomas mais videntes deste estado. (HABERMAS, 2002)

O momento em que o mundo da vida se racionaliza a partir da diferenciação funcional há um aumento na necessidade de entendimento tendo em vista que os sistemas fecham em si mesmo e negam a intersubjetividade. Isso acaba por poder gerar distorções na comunicação que produz efeitos vinculantes apenas por meio da dupla negação das pretensões de validade. A linguagem não pode ser desconectada do complexo horizonte de sentido do mundo da vida. Deve permanecer entrelaçado com o saber de fundo, intuitivamente presente, dos participantes da interação. A substituição parcial da linguagem corrente reduz-se também a ligação das ações conduzidas comunicativamente com os contextos do mundo da vida. Os processos sociais, assim liberados, são “desumanizados”, isto é, são libertados daquelas referências à totalidade e daquelas estruturas da intersubjetividade pelas quais a cultura, a sociedade e a personalidade estão entrelaçadas. (HABERMAS, 2002)

Uma forma de resgatar os laços negados pela concepção sistêmica do contexto da ação é por meio do agir orientado ao entendimento ou agir comunicativo. Agir no quadro de uma cultura significa que os participantes da interação extraem interpretações de um estoque de saber garantido culturalmente e partilhado intersubjetivamente, a fim de se entenderem sobre sua situação e a partir dessa base, buscar seus respectivos fins. Na perspectiva conceitual do agir orientado pelo entendimento, a apropriação interpretativa de conteúdos culturais transmitidos se apresenta como ato pelo qual a determinação cultural do agir se realiza. (HABERMAS, 2012)

O agir comunicativo que Habermas se refere é o mecanismo pelo qual os participantes chegam a um entendimento mútuo sobre o problema discutido e, desta forma, acabam compartilhando uma intersubjetividade. O entendimento mútuo que resulta do agir comunicativo, possibilita construir, de forma comunicativa, uma opinião sobre a temática debatida. O entendimento através da linguagem funciona a partir do momento em que os participantes da interação unem-se através da validade pretendida de seus atos de fala ou tomam em consideração os dissensos constatados. Por meio dos seus proferimentos, oriundos dos atos de fala, são levantadas pretensões de validade criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo dos participantes. A oferta contida num ato de fala adquire força quando o falante garante, a partir de sua pretensão de validez, que está em condições de resgatar essa pretensão, caso seja exigido, empregando o tipo correto de argumentos. (HABERMAS, 1990)

A interação comunicativa ocorrida mediante atos de fala realizados sem reservas coloca as orientações da ação e os processos da ação, talhados conforme o respectivo participante, sob os limites estruturais de uma linguagem compartilhada intersubjetivamente. Essas limitações impõem aos agentes uma mudança de perspectiva: os atores têm de abandonar o enfoque objetivador de agente orientado ao sucesso (agir estratégico), que deseja produzir algo no mundo, e assumir o enfoque perfomativo de um falante, o qual procura entender-se com uma segunda pessoa sobre algo no mundo, ou seja, agir comunicativamente em busca do entendimento. (HABERMAS, 1990)

O agir comunicativo difere do estratégico, uma vez que a coordenação bem-sucedida da ação não está apoiada na racionalidade motivadora de atos de entendimento, portanto, numa racionalidade que se manifesta nas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente. A chave para compreendermos essa diferença reside nos mecanismos que coordenam o ato de fala. É preciso saber se a linguagem é utilizada apenas como meio para a transmissão de informações ou também como fonte de integração social. Quando assume o papel de simples transmissão tem-se o agir estratégico, aquele orientado ao convencimento. Já no segundo caso o agir comunicativo se desenvolve, pois tem-se a possibilidade de integração social. A força consensual do entendimento linguístico (agir comunicativo), isto é, as energias de ligação da própria linguagem, tornam-se efetivas para a coordenação das ações, ao passo que na simples transmissão (agir estratégico) o efeito de coordenação depende da influência dos atores uns sobre os outros e sobre a situação da ação, a qual é veiculada através de atividades não-linguísticas, como a coação física, por exemplo. (HABERMAS, 1990)

 Para que haja o agir comunicativo, os participantes devem comporta-se cooperativamente, colocando-se como falantes e ouvintes, possibilitando desta forma ampliar o campo discursivo. Na perspectiva de falante e ouvinte, um acordo não pode ser imposto; seja através da intervenção direta na situação da ação, seja indiretamente, através de uma influência calculada sobre os enfoques proposicionais de um oponente; por uma das partes aos outros participantes. Aquilo que se obtém mediante recompensa ou ameaça, sugestão ou engano, não pode ter validade de um acordo construído intersubjetivamente. A ocorrência de tal acontecimento interfere nas condições sob as quais as forças ilocucionárias despertam convicções, ou seja, a aceitabilidade do argumento livre de constrangimentos para a formulação dos acordos construídos racionalmente. Habermas (1989, p.165) destaca:

O conceito de agir comunicativo está formulado de tal maneira que os atos de entendimento mútuo, que vinculam os planos de ação dos diferentes participantes e reúnem as ações dirigidas para objetivos numa conexão interativa, não precisam de sua parte ser reduzidos ao agir teleológico, [...]Os processos de entendimento mútuo visam um acordo que depende do assentimento racionalmente motivado ao conteúdo de um proferimento. O acordo não pode ser imposto à outra parte, não pode ser extorquido ao adversário por meio de manipulações.

 

A modificação de perspectiva que o agir orientado ao entendimento proporciona deve ser considerada na medida em que há uma alteração da “perspectiva do observador” (aquela que objetiva o mundo) para a “perspectiva eu-tu” (aquele que interage visando o entendimento). Ao adotar a perspectiva do “eu-tu”, que tem como pano de fundo o mundo da vida, tem-se a associação da primeira e segunda pessoa no processo de comunicação a partir dos papéis de falante e ouvinte. Diante disto temos o estabelecimento de um mecanismo de aprendizagem a partir dos laços comunicativos estabelecidos entre os participantes. (HABERMAS, 1989)

O agir comunicativo permite esclarecer o modo como a cultura, a sociedade e a personalidade se relacionam entre si enquanto componentes do mundo da vida estruturado simbolicamente. Os conceitos de agir comunicativo e de mundo da vida são complementares entre si.  A reprodução do mundo da vida nutre-se das contribuições do agir comunicativo, enquanto este, depende dos recursos do mundo da vida. Mas não devemos entender este processo de forma circular, segundo o modelo da autoprodução, como produção a partir dos próprios produtos e, muito menos, associá-los à auto-realização, pois assim estaríamos caindo no ponto de crítica que Habermas faz a teoria luhmanniana. Temos que interpretá-lo como o resultado de um compartilhamento de saberes entre atores que estão ligados intersubjetivamente. Habermas (2012, p. 399) enfatiza que: “A tarefa principal de sujeitos que agem comunicativamente consiste em encontrar uma definição comum para sua situação e em se entender sobre temas e planos de ação no interior dessa moldura de interpretação”.

A proposição contida no agir comunicativo propõe que o “telos” do entendimento reside na linguagem. Habermas (1990, p. 77) chama a atenção para uma sutil diferença que em um primeiro momento passa despercebido. O “entendimento”, obtido mediante o agir comunicativo, possui conteúdo normativo, que ultrapassa o nível da compreensão de uma expressão gramatical. Um ator entende-se com outro sobre uma determinada coisa. E ambos só podem visar tal consenso se aceitarem os proferimentos por serem válidos. O consenso sobre algo ocorre pelo reconhecimento intersubjetivo da validade de um proferimento fundamentalmente aberto à crítica. Diante disto tem-se que “Existe certamente uma diferença entre compreender o significado de uma expressão linguística e entender-se com alguém sobre algo com o auxílio de uma expressão tida como válida; da mesma forma, é preciso distinguir claramente entre um proferimento válido e um proferimento tido como válido”.

 

3 DISCURSO E APRENDIZAGEM

 

Quando os falantes se põem em conflito sobre algo no mundo a vida, eles têm a opção ética de seguir o agir de um modo racional e contrafactual que é a argumentação em busca do entendimento. Habermas diz que o telos do entendimento habita na linguagem.

O Discurso é processo e procedimento que, a partir do jogo de linguagem argumentativo, pretende encontrar acordo em torno da melhor proposição. A avaliação dos argumentos racionais é dos falantes e deve poder ser aceita por todos os concernidos no problema. O discurso implica simetria entre os falantes, o que não está presente nas relações eu-ele da perspectiva do observador externo.

A interação entre falantes constrói uma intersubjetividade e, ao mesmo tempo, as subjetividades. Este processo proporciona aprendizagem, que é cognitiva, construtora e pragmática. O discurso constrói acordos, e faz aprender a criticar, argumentar, decidir e agir.

A argumentação é necessária no processo de aprendizagem, pois suas razões têm a ver com a possibilidade da participação e não do conhecimento. E o Discurso é um dispositivo que assegura a mesma chance de participação de todos os concernidos por meio de regras de comunicação (HABERMAS, 1989, p. 89).

O Discurso prático habilita cada pessoa concernida a se convencer de que a norma proposta é igualmente boa para todos, conforme as circunstâncias que foram dadas. Isto é, quando o Discurso prático é o meio pelo qual passa a vigorar uma norma, ela se torna justificada, uma vez que a decisão alcançada argumentativamente indica que é igualmente boa para cada um dos concernidos (HABERMAS, 1989, p. 91). 

Habermas (1989) também elucida que a argumentação, como empreendimento intersubjetivo, é necessária para a fixação de uma linha de ação coletiva, coordenando intenções individuais e chegando a uma decisão comum sobre essa linha de ação. Somente quando a decisão resulta de argumentações, ou seja, forma-se segundo as regras pragmáticas de um Discurso, que a norma decidida pode valer como justificada. Assim, garante-se que toda pessoa concernida tem a chance de, espontaneamente, assentir. É importante colocar atenção na forma dessa argumentação, a fim de evitar que alguns simplesmente sugiram ou mesmo prescrevam aos outros o que é bom para eles. A argumentação deve possibilitar a autonomia da formação da vontade, a partir da ininfluenciabilidade. Nesta medida, as regras do Discurso têm elas próprias um conteúdo normativo: elas neutralizam o desequilíbrio de poder e cuidam da igualdade de chances de trazer os interesses próprios de cada um.

O Discurso prático é, então, um processo de entendimento mútuo, apropriado para encontrar respostas a questões práticas, por exemplo: o que devemos fazer? Os participantes procuram ter clareza sobre um interesse comum e chegar a um balanceamento entre interesses particulares e antagônicos, negociando um compromisso (HABERMAS, 1989).

A argumentação traz, portanto, condições ideais e se mostra como uma forma ideal de comunicação, mediante estruturas de uma situação de fala que está particularmente imunizada contra a repressão e a desigualdade (HABERMAS, 1989, p. 111).

Não obstante, Habermas orienta que é preciso considerar que há contextos em que se encontram limitações de espaço e tempo, que os participantes de argumentações não são caracteres inteligíveis e também são movidos por outros motivos que não o da busca cooperativa da verdade. Por isso, faz-se necessário dispositivos institucionais que neutralizem as limitações empíricas (inevitáveis) e as influências externas e internas (evitáveis), de tal sorte que as condições idealizadas (ainda que sempre pressupostas pelos participantes da argumentação) possam ser minimamente suficientes.

Infere-se de que a regulação pode ser necessária em algumas situações, a fim de fazer valer as condições mínimas necessárias para que o Discurso se manifeste, para que o processo seja estabelecido, independentemente do conteúdo dado. A circunstância em que se imprime o Discurso prático é aquela em que, tendo como perspectiva o mundo da vida de um determinado grupo social, necessariamente há a presença de conflitos de ação e os participantes consideram como sua a tarefa de regular consensualmente determinada matéria social controversa.

No Discurso prático, a possibilidade de se chegar a um acordo racionalmente motivado sempre existe quando a argumentação pode ser conduzida de maneira suficientemente aberta e prolongada pelo tempo necessário. O Discurso que não é conteudístico, mas é processual, é rico de pressupostos para garantir a imparcialidade da formação do juízo. O Discurso prático é um processo, não para a produção de normas justificadas, mas para o exame da verdade de normas consideradas hipoteticamente. É só com esse proceduralismo que a ética do Discurso se distingue de outras éticas cognitivistas, universalistas e formalistas, primando pelo ponto de vista moral (HABERMAS, 1989).

Por conseguinte, a ética do Discurso vem ao encontro da concepção construtivista da aprendizagem na medida em que compreende a formação discursiva da vontade (e a argumentação em geral) como uma forma de reflexão do agir comunicativo e na medida em que exige, para a passagem do agir para o Discurso, uma mudança de atitude de desinibição na prática comunicacional quotidiana (HABERMAS, 1989).

O construtivismo traz para o aprendizado a segurança que advém do “saber confirmado pela própria existência de que, se minha inconclusão, de que sou consciente, atesta, de um lado, minha ignorância, me abre, de outro, o caminho para conhecer” (FREIRE, 1996, p. 86).

A consciência de que há ignorância é que abre a possibilidade do saber. O sujeito que se conecta ao mundo e aos outros inicia com esse gesto a relação dialógica que se confirma como inquietação e curiosidade (FREIRE, 1996, p. 86). Para que haja aprendizado, além da consciência do não saber, é necessária a disposição para a descoberta, a intenção curiosa.

A origem de um novo aprendizado abre seu leque de possibilidades assim que o sujeito consegue admitir que há lacunas, incompletudes e equívocos no seu próprio processo de conhecimento e, inclina-se para se rever e, então, prosseguir. Tanto a construção do conhecimento pessoal como a construção de um novo fazer social exigem o compartilhar, o fazer junto (VALE, 1998).

Depreende-se que todo conhecimento envolve a formulação de novos problemas, a medida em que são resolvidos os precedentes. Para Freire, o conhecimento é uma atividade que se constrói incessantemente por meio de permutas entre o organismo e o meio. Em consonância com Piaget, Freire concebe homens e mulheres como produtores de cultura e sujeitos produtores do conhecimento (FEITOSA, 2016).

O avanço na aprendizagem em Freire se dá por meio das discussões e da problematização da realidade. Há figuras que podem exercer o papel de animadores de debates, com a função de criar condições para que o sujeito aprendiz participe ativa e livremente. “O construtivismo reconhece como sujeito ativo aquele que compara, exclui, ordena, categoriza, reformula, comprova, formula hipóteses e reorganiza o conhecimento em ação efetiva, ou interiorizada” (FEITOSA, 2016, p. 3).

Necessariamente a aprendizagem ocorre nas situações em que há conflito entre o conhecimento antigo e o novo, situações em que há conflito cognitivo (momento de perturbação em que o conhecimento já assimilado é visto como insuficiente para responder a um novo conflito dado). São situações conflituosas, sim, mas suportáveis e que constituem desafios para se avançar no sentido de uma nova reestruturação (FEITOSA, 2016), algo que Freire identifica como situações-limite que devem ser enfrentadas e superadas.

Feitosa (2016) reflete que, quando as perspectivas se mostram para além das situaçõeslimite, surge o denominado inédito-viável, que constitui uma nova possibilidade de solucionar aqueles primeiros problemas revelados. O inédito-viável pode ser visto como a possibilidade ainda inédita de ação, que se tiver os desafios superados, será a transformação da realidade e a concretização do futuro que estava por ser construído (futuridade histórica).

Piaget (1973) elucida o confronto criação-repetição na aprendizagem, em que o princípio fundamental para a cognitivismo é o de que compreender é inventar, ou reconstruir através da reinvenção, e será preciso curvar-se ante tais necessidades se o que se pretende, para o futuro, é moldar indivíduos capazes de produzir ou de criar, e não apenas de repetir.

A capacidade assimiladora desses indivíduos é vista como ato significador e que caracteriza a aprendizagem, que é a condição necessária para qualquer nova aprendizagem (PIAGET, 1973). Cada parte da aprendizagem é uma função do desenvolvimento total, pois a aprendizagem é um processo secundário quando se considera que é dependente em tudo do desenvolvimento cognitivo (PIAGET 1973).

Piaget e Freire convergem, implícita ou explicitamente, ao esclarecerem a ideia de que qualquer nova aprendizagem deve partir da capacidade cognitiva do sujeito para que ele possa, progressivamente, assumir o próprio processo e levá-lo adiante (BECKER, 2017).

A capacidade cognitiva é pressuposto para o Discurso pois é a geradora da pergunta, da curiosidade, da ação exitosa (prática), da ação refletida (práxis), do diálogo, da liberdade, da autonomia, da transcendência e da aprendizagem transformadora. A cognição é que cria horizontes nos quais é possível inventar e criar o novo e, fazer história (BECKER, 2017).

Percebe-se, então, a convergência da ética do Discurso com o construtivismo e o cognitivismo, inserindo-se no “círculo das ciências reconstrutivas que têm a ver com os fundamentos racionais do conhecer, do falar e do agir” (HABERMAS, 1989, p. 121).

Ao se compreender a aprendizagem a partir da confluência entre desenvolvimento humano e cognição, pode-se firmar o alinhamento entre as ideias de Freire e Piaget, ratificando que qualquer processo de aprendizagem deve partir de onde o sujeito está cognitivamente, de seus conceitos espontâneos ou de suas capacidades estruturais (BECKER, 2017). A partir daí, dessa subjetividade, a partir do diálogo com outros sujeitos, da problematização e da intersubjetividade construída no Discurso, há aprendizado.

 

4 PROBLEMA E RECONSTRUÇÃO

 

O Discurso é uma forma especial de agir comunicativo, que proporciona aprendizagem. Ao mesmo tempo ele articula em seu processo de construção a problematização e a reconstrução racional. Assim se estabelece uma interface entre Paulo Freire e Jurgen Habermas em torno desta construção permanente.

Paulo Freire pensa a aprendizagem como problematização, na medida em que ela supõe uma cognição que não se resigna e faz a crítica. Habermas pensa a aprendizagem como reconstrução racional, em que eu e o outro interagimos, eu reconheço e me coloco no lugar do outro e nos entendemos em torno de melhor argumento.

A questão que interessa neste artigo é pensar a competência comunicativa como uma capacidade que, além de linguística, inclui a aprendizagem que critica e constrói racionalmente. Assim, faz-se algumas considerações gerais sobre o construtivismo em Freire e Habermas, para deduzir elementos da competência comunicativa dos sujeitos falantes.

Habermas faz críticas ao sistemismo luhmanniano, tendo em vista a insensibilidade que o mesmo aponta para a realidade existente no mundo da vida. Cabe destacarmos que a dupla contingência existente impede o compartilhamento intersubjetivo entre os sistemas participantes. Os sistemas criam autopoieticamente seu entendimento sobre os acontecimentos ocorridos fora do sistema a partir da seleção de possibilidades, tendo como meios demarcadores os códigos binários. Habermas (1997, p. 63)

A teoria dos sistemas abandonam o nível dos sujeitos da ação, sejam eles individuos ou coletividades, e, amparada na densificação dos complexos organizatórios, chega à conclusão de que sociedade constitui, uma rede de sistemas parciais autônomos, que se fecham uns em relação aos outros através de semânticas próprias, formando ambientes uns para os outros. A interação entre tais sistemas não depende mais das intenções ou dos interesses dos atores participantes, mas de modos de operação próprios, determinados internamente. [...] Todavia, este ganho ‘realista’ proporcionado pela observação seletiva sobrecarrega a teoria com um problema colateral inquietante. Segundo sua descrição, todos os sistemas funcionais conseguem sua autonomia através da criação de códigos e de semântica próprias, não traduzíveis entre si. Com isso, perdem a capacidade de comunicar diretamente entre si, limitando-se apenas à observação mutua.[...]. E este encapsulamento autopoietico o impede quase por completo de integrar a sociedade em seu todo.

 

Siebeneichler (2006) destaca que na teoria luhmanniana as necessidades de comunicação entre os sistemas não residem no meio linguístico da comunicação (linguagem comum) apreensíveis intersubjetivamente. Na verdade, há uma decisão individualizada sobre o sucesso ou fracasso das “suposições” realizadas autopoieticamente pelos sistemas. A impossibilidade enfatizada pelo autor gerar incompatibilizações de entendimento do ambiente por parte do sistema. O que efetivamente acontece é uma interpretação autorreferente do contato realizado que pode está distorcida da realidade. A insensibilidade ou fechamento sistêmico é um ponto de crítica habermasiano a teoria luhmanniana. Uma forma de romper o fechamento é abrir-se para as discussões que ocorrem no ambiente externo ao sistema.

De acordo com Habermas (2012) há um desacoplamento entre sistema e mundo da vida, onde desencadeiam-se em incapacidades para os sistemas em entender os acontecimentos ocorridos no mundo da vida. O mesmo autor também cita que esse mecanismo acaba por reduzir as formas de integração social, pois a integração passa a ser mediada por sistemas e não mais por pessoas, com as suas intersubjetividades. Com esse desacoplamento o mundo da vida acaba por ser reduzido a mais um subsistema da sociedade. Diante deste fato tem-se que há uma diferenciação sistêmica, onde subsistemas são criados, dentre eles o mundo da vida. Porém essa fragmentação do mundo da vida desencadeia problemas, tendo em vista, a incapacidade de perceber a realidade complexa, por parte dos sistemas.

A incapacidade dos sistemas, que deriva da sua forma de interação entre o sistema e o seu ambiente resulta numa forma “codificada” de interação. Pois a linguagem comum, contida no compartilhamento intersubjetivo do mundo da vida, é substituída pelos mecanismos codificadores de interação, os “códigos binários”. Esse fato repercute numa insensibilidade para perceber os efeitos que suas ações são causadas em outros sistemas.

De acordo com Habermas (1997, p. 74) “O entendimento fora de códigos específicos passa a ser tido como coisa ultrapassada. Isso equivale a afirmar que cada sistema perde a sensibilidade em relação aos custos que inflige a outros sistemas”. Esse fato da incapacidade de perceber os custos é importante para entendermos, por exemplo, a problemática ambiental que aflige a sociedade no século XX.

A crítica problematizadora pode emergir no entorno das organizações, em função dos seus riscos e das suas externalidades.  Abre-se deste modo uma situação limite para os sistemas. De um lado as organizações podem se fechar, mas por outro podem se abrir a crítica. Siebeneichler (2006, p.50) em sua discussão sobre o sistema imunizador luhmanianno e o mundo da vida habermasiano lança uma questão para a reflexão:

[...] é possível sair do círculo de pressões de engate e de seleções de sentido que circunscrevem as possibilidades de livre-escolha, tanto do ego, como do alter, as quais se bloqueiam reciprocamente! E caso a resposta seja positiva convém colocar uma segunda pergunta [...]. É possível sincronizar de alguma forma essas perspectivas totalmente estranhas entre si e geradoras de insegurança [..]?

 

Uma saída para essa indagação é a ideia de reconstrução discursiva das organizações, que tem como mecanismo operacionalizador o agir comunicativo e racionalidade comunicativa. Esse mecanismo tenta ser a “ponte” sincronizada entre o sistema e o seu entorno, ou seja, tenta reconstruir as ligações que foram desfeitas, a partir do fechamento operacional dos sistemas, na redução de complexidade existente no mundo da vida.

Cabe destacarmos, conforme relatam Repa e Nobre (2012a), que a ideia de reconstrução é central no trabalho habermasiano. De acordo com os autores o projeto reconstrutivo de Habermas pretende elucidar as regras e os processos sociais em que objetos simbólicos emergem e ganham sentido nas relações sociais. Reconstruir, no sentido habermasiano, significa refletir sobre as regras que têm de ser supostas para que seja possível a própria compreensão do sentido que é construído social e simbolicamente. 

A resposta de Habermas a ideia de emancipação, que caracteriza o campo crítico de sua construção teórica, é o mecanismo reconstrutivo de modo que os principais componentes da teoria reconstrutiva da sociedade podem ganhar seu sentido à luz do conceito de ação e de racionalidade comunicativa. (REPA; NOBRE, 2012a)

A proposta presente no processo de reconstrução é romper a barreira imposta pela dupla contingência existente entre dois sistemas que interagem. Tal barreira acaba sendo criada pela redução de complexidade imposta pelo sistema, que tem o seu sentido como operador das fronteiras. Essa redução implica em perda de conhecimento mais amplo do entorno. Além disso, o sentido, que opera a fronteira do sistema, por ser auto referencial, acaba desenvolvendo uma gramática própria, que inviabiliza o entendimento ou limita a compreensão dos fatos ocorridos externamente e, estes, por sua vez, podem resultar nas “patologias sociais”, assim denominadas por Habermas.

As organizações são entendidas por Luhmann (1997) como sistema autopoiético que tem como base a decisão. As decisões são tomadas tendo como referência uma construção racional monológica, pois autorreferencialidade sistêmica não permite a interação comunicativa, na verdade ela rompe com o compartilhamento intersubjetivo. Diante disto as regras ou formas de entendimento que são construídas partem de um pressuposto interno ao sistema.

A reconstrução discursiva dos sistemas organizacionais significa buscar refletir sobre as regras que pautam o processo decisório e que têm de ser supostas como princípio para a compreensão do sentido. São essas regras, estruturas e processos que constituem a racionalidade imanente aos objetos simbólicos, a racionalidade que eles reivindicam por si mesmos para que possam ter sentido. A reconstrução racional de estruturas profundas, geradoras das decisões, permite investigar a racionalidade própria das regras usadas em um determinado momento pelo sistema.

Silva e Melo (2012), por sua vez, destacam que a reconstrução, na perspectiva procedimental, discute a tensão entre factividade e validade que se observa tanto interna quanto externamente ao sistema direito na legitimação de suas normas na sociedade plural. Para os autores, Habermas indica, na sua proposta, que essa tensão tem de ser reconstruída, pois guarda possibilidades de uma democratização radical da vida social. Esse fato implica em uma submissão constante das instituições (sistemas) existentes à crítica e à transformação reflexiva, superando, desta forma, a imunização existente nos seus conteúdos normativos e formas de funcionamento.

É a partir desta visão, reflexiva e crítica, que se pensa a reconstrução discursiva das organizações, ou seja, propor um mecanismo em que as organizações se abram para a escuta dos seus críticos e, desta forma, problematize sobre sua interação com o entorno. A abertura a crítica é o caminho para ampliar o campo perceptivo das organizações, pois a partir da construção de um entendimento baseado na discursividade, há uma tentativa de estabelecimento de uma “ponte” com a complexidade excluída e existente no mundo da vida. A partir deste movimento de reflexividade tem-se espaço para o processo de aprendizagem, necessário para o ambiente no qual as organizações estão inseridas. A reconstrução se propõe, conforme apontam Silva e Melo (2012, p. 135), a uma “diluição de naturalizações e engessamentos indevidos das formas institucionais” que impedem a percepção multidimensional.

O procedimento adotado para a reconstrução discursiva das organizações está fundamentado em uma atitude que tem o processo comunicativo como chave. Essa proposta rompe com a atitude objetivante, típica de um observador de regularidades empíricas. Neste caso os atores agem comunicativamente buscando encontrar uma definição comum para sua situação, assim como, em se entender sobre temas e planos de ação existentes interna e externamente a organização.

Silva e Melo (2012) sinalizam que a reconstrução procedimental habermasiana possui dois ambientes de atuação, um interno e outro externo. A reconstrução interna se volta aos modos de funcionamento do sistema, procurando recompor a tensão entre suas expectativas normativas de legitimação e a facticidade de sua forma impositiva. Nesse caso busca-se reconstruir discursivamente a normatividade sistêmica, tendo participação direta dos atores envolvidos. Essa visão é importante para discutirmos a validade de normas criadas para serem cumpridas pelos sujeitos organizacionais. A construção discursiva é uma tentativa de reduzir a tensão existente entre a positividade das normas e o reconhecimento validativo de seus executores. O grande objetivo desta proposta de reconstrução é uma autocompreensão sistêmica, que seja construída dialogicamente entre seus participantes.

A reconstrução interna remete a processos deliberativos que transcendem os discursos herméticos dos operadores sistêmicos, incluindo a possibilidade de participação da comunidade organizacional em seu todo. A partir desta reconstrução reconhece-se a insuficiência de os debates circunscritos às instâncias formais de tomada de decisão cumprirem sozinhos as exigências de uma formação discursiva da opinião e da vontade da comunidade sistêmica. Há, como forma alternativa, a necessidade de se manterem os processos deliberativos mais densos e plurais, os quais tomam lugar à margem de suas fronteiras institucionais.

Já a reconstrução externa é a proposta de sincronização com o entorno sistêmico, ou seja, a abertura do sistema para a complexidade existente no mundo da vida. Para operacionalização deste procedimento é fundamental o reconhecimento e predisposição para a interação com as esferas públicas que habitam o entorno do sistema. De acordo com Lubenow (2007, p. 112) tendo como base a própria revisão elaborada por Habermas, a esfera pública “é uma estrutura comunicativa que elabora temas, questões e problemas relevantes que emergem da esfera privada e das esferas informais da sociedade civil e os encaminha para tratamento formal no centro político”.

Nas sociedades modernas forma-se uma consciência comum difusa baseada em projetos polifônicos e opacos de totalidade. Tal consciência pode concentrar-se e articular-se de maneira mais clara com o auxílio de temas específicos e de contribuições ordenadas que são condensados em uma esfera pública. Nas esferas públicas, os processos de formação da opinião e da vontade são institucionalizados e, por mais especialização que possam ser, estão orientados para a difusão e à interpenetração. A discussão oriunda da esfera pública faz considerar um fato importante, ou seja, a opinião, que emerge com o processo discursivo, passa a mediar o poder público, fazendo tornar pública vontades, até então contidas em uma esfera privada (intimidade). Um fato que podemos notar, da temática envolvendo esfera pública, é que os anseios existentes na esfera privada (intimidade) são levados ao debate público, por meio da esfera pública, onde o processo de discussão, gera problematização sobre temas até então não discutidos ou não “percebidos” pelos códigos dos sistemas.  Habermas (1997, p. 92) destaca:

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de se condensarem em opiniões publicas enfeixadas em temas específicos. [...] a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da pratica comunicativa cotidiana.

 

Os sistemas devem se abrir para discutir com o seu entorno, buscando ampliar o conhecimento existente da complexidade externa ao sistema. Devem-se instalar sensores de intercâmbio entre mundo da vida e sistema, pois é necessário que os impulsos do mundo da vida possam influir no autocontrole dos sistemas funcionais. No entanto, isso exige uma nova relação entre as esferas públicas autônomas e auto-organizadas, de um lado, e os operadores de fronteira sistêmica do outro. Essa nova relação deve se basear em um agir comunicativo, pautado pela busca do entendimento mútuo.

A reconstrução discursiva das organizações a partir das críticas a imunização sistêmica pode ser uma saída para a perenidade das organizações, assim como, busque uma redução das externalidades negativas que impactam no entorno e, que acabam por comprometer os limites de sua sustentabilidade. Além disso, essa proposta faz parte da agenda humanística da administração, que se propõe a reconectar laços podados pela ação instrumentalizadora que se desenvolveu com o sistema capitalista de produção.

 

 

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Este estudo interligou elementos importantes para discutir o papel da competência comunicativa na relação entre discurso e aprendizagem, problema e reconstrução. O agir comunicativo é aquele agir baseado na interação por meio da linguagem que possibilita o entendimento nos grupos e faz erigir a intersubjetividade.

No agir, reside a competência comunicativa, que pode ser aprendida. A linguagem media as relações tanto na comunicação quanto no estabelecimento de vínculos entre as pessoas, pois socializa e integra os grupos e oferece meios para enfrentamento dos conflitos: os argumentos.

A competência comunicativa é competência linguística, representa e dissemina Informação, mas também é competência que critica, problematiza, aprende e enfrenta conflitos com argumentos racionais, sendo denominada, por Habermas, de Discurso. A argumentação visa ao entendimento e, Habermas diz que o entendimento está na linguagem.

O Discurso é processo e procedimento que, a partir da argumentação, pretende apoiar a construção do consenso acerca da melhor proposição, a partir da interação dos falantes e do aceite total pelos concernidos no problema. A interação entre os sujeitos contribui para o desenvolvimento de subjetividades e intersubjetividade. Nesse processo há aprendizagem: cognitiva, construtora e pragmática. Assim, o Discurso edifica acordos, gera aprendizado tanto sobre criticar e argumentar, quanto sobre decidir e agir.

Aí se encontra a convergência entre Habermas, Freire e Piaget: o agir comunicativo que proporciona aprendizagem do sujeito cognoscente como uma permanente construção. Para Freire, a aprendizagem e a problematização são indissociáveis, considerando uma cognição que critica.

Habermas vê a aprendizagem como uma reconstrução racional, mediante interação entre os sujeitos que se reconhecem e se colocam no lugar do outro e, assim, entendem-se em torno do melhor argumento. Tem-se assim, suporte orientativo para o agir, o decidir, o fazer e o avaliar. Com este estudo pensamos a competência comunicativa como uma aptidão que, além de linguística, é definida pela aprendizagem que, racionalmente, critica e constrói.

 

 

 


 

REFERÊNCIAS

 

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MEDEIROS, A. M.; NORONHA, N. M. Ação comunicativa e ação dialógica: diálogos entre Jürgen Habermas e Paulo Freire no âmbito da “esfera pública”. In: Congresso Nacional de Educação, 2, 2015. Anais. Campina Grande: CONEDU, 2015, v. 2. p. 1-12.

 

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VALE, M. J. O Social-Construtivismo: princípios fundamentais. São Paulo: IPF, 1998.

 

 



[1] Doutor em Administração e Doutor em Ciência da Informação

[2] Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

[3] Doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento