O SOCIAL E SUAS TECNOLOGIAS: DESLIZAMENTOS SEMÂNTICOS E TRADUÇÕES OPERATÓRIAS DO ÍNDICE DE VULNERABILIDADE SOCIAL EM PARCERIAS TRANSNACIONAIS ENTRE ONGS NO BRASIL
Roselene de Lima Breda[1]
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
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Resumo
Este artigo se insere no debate sobre a emergência e expansão do modelo de parcerias transnacionais entre organizações voltadas à superação da pobreza no Brasil, desde os anos 1990. Aborda a mobilização do índice de vulnerabilidade social como grade de inteligibilidade de processos multiescalares nas parecerias estabelecidas entre uma ONG, aqui chamada de FINANCIADORA, e uma de suas ONGs PARCEIRAS. Para compreender a natureza desta relação mobilizo: 1) pesquisa documental centrada em textos e normativas que direcionam a atuação da ONG FINANCIADORA; 2) pesquisa de campo, de cunho etnográfico, no Escritório Nacional da ONG FINANCIADORA, em Belo Horizonte/MG, e na sede de uma ONG PARCEIRA, no Cariri cearense. Da análise entre as escalas nas quais se desenvolve tal parceria desvelam-se mecanismos de mediação e tradução impulsionadores do uso do índice de vulnerabilidade social na estruturação de uma estratégia de gestão da pobreza que faz uso das “tecnologias sociais”.
Palavras-chave: tecnologias sociais. vulnerabilidade social. indicador social. parcerias/convênios transnacionais. ONGs.
THE SOCIAL AND ITS TECHNOLOGIES: SEMANTIC FLOWS AND OPERATIVE TRANSLATIONS OF THE INDEX OF SOCIAL VULNERABILITY IN TRANSNATIONAL PARTNERSHIPS AMONG NGOS IN BRAZIL
Abstract
This paper falls within the debate on the emergence and expansion of the model of transnational partnerships among organizations aimed at overcoming poverty in Brazil, since the 1990s. It discusses the mobilization of the index of social vulnerability as a grid of intelligibility of multi-scale processes in the partnership established between an NGO, here called the FINANCER NGO, and one of its PARTNER NGOs. To understand the nature of this relationship I mobilize: 1) documentary research focused on texts and regulations that guide the activities of the FINANCER NGO; 2) ethnographic field research, at the National Office of the FINANCER NGO, in Belo Horizonte/MG, and at the seat of a PARTNER NGO, in Cariri Cearense. From the analysis among the scales in which such a partnership develops, are unveiled mechanisms of mediation and translation that promote the use of the index of social vulnerability in the structuring of a poverty management strategy that makes use of “social technologies”.
Keywords: social technologies. social vulnerability. social indicator. transnational partnerships/agreements. NGOs.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho trata da adoção de modelos de gestão da pobreza[2] em parcerias[3] estabelecidas entre ONGs nacionais e estrangeiras que se baseiam no uso de “tecnologias sociais”, como são chamados os projetos sociais cujas propostas de intervenção, gestão, monitoramento e implementação se direcionam a públicos específicos na parceria que é o objeto da investigação que dá base este texto. Tem a ONG FINANCIADORA[4] como entrada empírica e ponto a partir do qual a análise se desenvolve, buscando abordar a emergência e expansão do modelo de parcerias transnacionais entre organizações voltadas à superação da pobreza no Brasil desde os anos 1990, a partir das mediações e das cadeias de tradução que se conformam na mobilização do índice de vulnerabilidade social como grade de inteligibilidade de processos multiescalares na pareceria estabelecida entre a ONG FINANCIADORA e uma ONG PARCEIRA específica.
O trabalho se ampara em pesquisa de cunho etnográfico, com trabalho de campo multi-situado (MARCUS, 1995, 2011) desenvolvido em dois contextos: desde 2017 na região do Cariri cearense, onde há uma Unidade de Campo da ONG FINANCIADORA e onde se situa a ONG PARCEIRA cujas ações venho acompanhando; a partir de 2018 também no Escritório Nacional da ONG FINANCIADORA, em Belo Horizonte/MG. As estratégias mobilizadas nas incursões a campo, a partir do acompanhamento das rotinas e conexões na região do Cariri cearense e, também, no Escritório Nacional da ONG FINANCIADORA se deu a partir de um conjunto de práticas empíricas e analíticas que incluíram: i) conversas com interlocutores conectados aos circuitos da ONG FINANCIADORA e da ONG PARCEIRA no Cariri, registrando os achados em diários de campo; ii) realização de entrevistas junto a atores inscritos nos cotidianos dos dois contextos de pesquisa; iii) acompanhamento de rotinas de trabalho ao longo de aproximadamente três meses no Escritório Nacional da ONG FINANCIADORA e de um mês na sede da ONG PARCEIRA, no Cariri. O foco da pesquisa de campo se manteve, portanto, nos espaços institucionais que, interconectados, compõem o emaranhado institucional de longo alcance (VIANNA, 2010)[5] no qual se insere a relação de parceria entre ONG FINANCIADORA e ONG PARCEIRA. A pesquisa bibliográfica e documental teve como foco: 1) investigar a origem dos regulamentos que pautam a elaboração e mobilização do índice de vulnerabilidade social por parte da ONG FINANCIADORA; 2) mapear as estratégias formais utilizadas para produzir, legitimar e impor regras para adoção de “tecnologias sociais” à ONG PARCEIRA.
Busco, aqui, com a descrição de circuitos, práticas, processos, interfaces e relações o entendimento de algumas das linhas de força social, econômica e política inscritas na produção dos meios a partir dos quais ONG FINANCIADORA e ONG PARCEIRA seguem, situacionalmente, construindo ou desconstruindo legitimidade e modos de ação. Argumento que a questão da vulnerabilidade social é instrumental e está inscrita nessas regulações centralmente, servindo como parâmetro na definição de quais territórios, grupos sociais e trajetórias individuais e familiares serão acompanhados e alvos de quais tipos de ação, ao mesmo tempo em que constitui e interconecta um emaranhado institucional de longo alcance (VIANNA, 2010) de instâncias que extrapolam o âmbito local (ou mesmo nacional).
O texto está estruturado em três partes: na primeira parte faço um delineamento da estrutura organizacional da ONG FINANCIADORA, indicando cifras, escopo e modelo de intervenção baseado no uso de “tecnologias sociais”; na segunda parte aponto o modo como o índice de vulnerabilidade social pauta centralmente a definição de contextos, públicos-alvo e modos de ação da ONG FINANCIADORA substituindo seu modelo de anterior de atuação por um lado e, por outro, como este índice vai ser a “flecha” que aponta quais as áreas onde deve se dar a prospecção de novos padrinhos para angariação de recursos; e na terceira parte busco retomar as reflexões contidas nas partes anteriores para, em diálogo com a bibliografia, indicar possíveis caminhos analíticos.
2 ONG FINANCIADORA, PERFIL E MODO DE FUNCIONAMENTO
Organização com capilaridade global fundada nos Estados Unidos nos anos 1930 (chega ao Brasil na década de 1960), a ONG FINANCIADORA tem seu modelo de atuação baseado no financiamento de ações e projetos sociais via apadrinhamento individual de crianças, adolescentes e jovens adultos entre 0 e 24 anos. Está presente em 33 países divididos, majoritariamente, entre: i) países de captação; ii) e países de operação. O Brasil, que faz captação interna desde 2012, ocupa uma posição híbrida nesta divisão internacional da ONG FINANCIADORA, cuja matriz é responsável pela articulação e escoamento do fluxo global dos donativos. Tal divisão – estabelecida em razão do entendimento de que o Brasil não é um país pobre, mas desigual – segue, no entanto, muito bem delimitada dentro de sua ALIANÇA INTERNACIONAL, composta pela união dos escritórios dos países captadores apenas (todos países do chamado “Norte Global”) e responsável pela elaboração das diretrizes que pautam o modelo de atuação da ONG FINANCIADORA no mundo. A ALIANÇA INTERNACIONAL – que, em termos normativos e decisórios, corresponde ao mais alto nível hierárquico e ao qual todos os demais setores da ONG FINANCIADORA estão subordinados –, tem assento na Comissão das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável responsável, entre outras pautas, pela formulação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável[6] e pela Agenda 2030[7] aos quais todos os escritórios nacionais da ONG FINANCIADORA se alinham. Dada suas características e a centralidade de sua posição no campo/mercado do desenvolvimento social, tomar ONG FINANCIADORA como objeto de estudo foi uma aposta de que ela poderia se constituir em uma entrada empírica bastante fértil para a compreensão dos mecanismos e dinâmicas específicas que são alvos de interesse deste trabalho.
No Brasil, com cerca de 25 mil padrinhos, dos quais pouco mais de 8 mil são brasileiros, a ONG FINANCIADORA conta com um fluxo financeiro anual da ordem de 30 milhões de reais investidos em quase 170 projetos espalhados em 53 municípios nos estados de Minas Gerais, Ceará, Bahia, Goiás e Piauí[8]. Entre inscritos e apadrinhados[9], cerca 42 mil crianças, adolescentes e jovens são beneficiados com os projetos e, se consideradas suas famílias e comunidades, o número sobe para algo perto de 140 mil pessoas atingidas de maneira direta ou indireta pelas atividades desenvolvidas pela ONG FINANCIADORA.
A relação com as organizações locais, categoria na qual se enquadra a ONG PARCEIRA, é regida por meio de carta-acordo, contrato no qual a ONG FINANCIADORA estabelece uma série de requerimentos relativos à necessidade de demonstrações de desempenho e prestação de contas por parte das organizações locais. No centro suas ações estão as “tecnologias sociais”, terminologia adotada pela ONG FINANCIADORA ao fazer referência às metodologias mobilizadas para dar conta de suas metas gerais e específicas nas comunidades nas quais está presente através das parcerias com organizações locais. Operando como um fundo que repassa doações de padrinhos às organizações locais responsáveis pelo desenvolvimento de projetos voltados às crianças, adolescentes e jovens apadrinhados/inscritos, a ONG FINANCIADORA também fornecesse assessoria técnica a estas organizações e às atividades que desenvolvem, o que justifica a necessidade das Unidades de Campo em regiões nas quais mantem parcerias. A partir das Unidades de Campo, técnicos replicam capacitações em “tecnologias sociais” elaboradas pela própria ONG FINANCIADORA e em “tecnologias sociais” desenvolvidas por outras instituições, repassadas pelos formuladores via capacitação às equipes da ONG FINANCIADORA – no Escritório Nacional e e/ou nas próprias Unidades de Campo. Posteriormente, os técnicos da ONG FINANCIADORA replicam tais metodologias junto às equipes das organizações locais avaliando e corrigindo eventuais desvios periodicamente, como ocorre com ONG PARCEIRA no Cariri, onde realizei parte da pesquisa de campo.
As “tecnologias sociais” compõe, portanto, parte do mercado de compra e venda de ideias, modelos e formações como mercadorias (os recursos para esta área estão previstos no orçamento anual da ONG FINANCIADORA). Tal possibilidade se efetiva em razão das “tecnologias sociais” encerrarem sobre si alguma flexibilidade, o que possibilita sua adequação, via organizações parceiras, em contextos diferentes daqueles para os quais elas foram originalmente pensadas. O mercado de “tecnologias sociais”, que une ONG FINANCIADORA e ONG PARCEIRA, é mediado pela dimensão das certificações que, em diferentes escalas, articula fluxos de ideias, recursos financeiros e pessoas. As certificações se dão em dois níveis: capacitação e avaliação. Por meio de consultorias internacionais, técnicos da ONG FINANCIADORA são capacitados e recebem certificações que os habilita à gestão de projetos no âmbito do desenvolvimento social[10]. Na esfera da avaliação, um sistema de mensuração de resultados e prestação de contas conecta crianças apadrinhadas e organizações parceiras aos padrinhos doadores através da análise de verificações periódicas por meio das quais técnicos alocados na Unidade de Campo, no Escritório Nacional, no Escritório Regional (Panamá) e na Sede (EUA) definem áreas e público alvo, estratégias que serão mobilizadas no enfrentamento às vulnerabilidades sociais identificadas, além de avaliar resultados. Em bibliotecas itinerantes, oficinas de fotografia, rodas de terapia comunitária etc., entre outras atividades que acompanhei ao longo da pesquisa de campo, voluntários e profissionais dos quadros da ONG PARCEIRA, treinados pelas equipes da Unidade de Campo, mobilizam “tecnologias sociais” desenvolvidas e/ou compradas pela ONG FINANCIADORA que visam sanar (ou ao menos reduzir) os níveis de vulnerabilidade social identificados através do IVS - Índice de Vulnerabilidade Social formulado pela ONG FINANCIADORA e sobre o qual falo a seguir.
3 ONG FINANCIADORA E A MOBILIZAÇÃO DO ÍNDICE DE VULNERABILIDADE SOCIAL COMO INSTRUMENTO TÉCNICO
A escolha dos municípios de operação e de captação de recursos junto a padrinhos é amparada, no Brasil, pelo IVS – Índice de Vulnerabilidade Social[11], formulado pela ONG FINANCIADORA em parceria com um grupo de estatísticos. Composto pela soma dos indicadores como o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e IBEU (Índice de Bem-estar Urbano), o IVS, juntamente com o cálculo da longevidade do apadrinhamento a partir do número e perfil etário dos possíveis apadrinhados é a métrica que direciona, desde 2015, a escolha das áreas de expansão, onde a ONG FINANCIADORA buscará novas organizações locais para estabelecer parceria, e das áreas onde serão feitas ações de mobilização e captação de recursos junto a novos padrinhos.
Com base nos critérios do planejamento estratégico da ONG FINANCIADORA, a prospecção e expansão de seus contextos de atuação na última década tem sido direcionada a territórios onde os índices de vulnerabilidade social, apontados pelo IVS, são considerados críticos. O processo de expansão para uma região no interior do Piauí, por exemplo, em curso desde 2015, pautou-se pela seguinte pergunta: “o projeto terá longevidade e será economicamente viável?”. Além do alto nível de vulnerabilidade social, privação e exclusão medidos pelo IVS, a área de expansão deve concentrar um mínimo de 2000 crianças com até 11 anos em condição de serem apadrinhadas[12], embora o ideal é que essas crianças tenham até 5 anos segundo o planejamento estratégico da ONG FINANCIADORA. Isso garante a longevidade do apadrinhamento, que pode se estender até os 24 anos, e confere viabilidade ao processo de expansão para uma nova área. Na outra ponta, as regiões com os melhores indicadores sociais onde estão cidades como Águas de Lindóia, no interior paulista, passam a ser alvos de campanhas de prospecção de padrinhos, conectadas às regiões com alto índice de vulnerabilidade social através de uma espécie de “elo social”.
No circuito transnacional no qual se situa a parceria entre a ONG FINANCIADORA e organizações locais no Ceará, Minas Gerais, Bahia, Goiás e Piauí, o índice de vulnerabilidade social se constituir de modo inseparável dos agentes que implementam seus usos, promovem sua evolução e compõem em torno dela comunidades de especialistas. Assim, a compreensão e abordagem dos recortes territoriais e populacionais colocados em curso pela ONG FINANCIADORA passa por mecanismos de mediação e tradução que animam o uso do índice de vulnerabilidade social, instrumentalizada na escolha de contextos e públicos-alvo aos quais se destinam ações de prevenção e enfrentamento dos riscos que feixes de indicadores sociais, produzidos por um conjunto de saberes e expertises, estão apontando.
A ordem de problemas que vai compondo as questões pertinentes à mobilização do índice de vulnerabilidade social como instrumento técnico de intervenção (LASCOUMES e LE GALÈS, 2005), ao longo do emaranhado institucional de longo alcance (VIANNA, 2010) que conecta a ONG FINANCIADORA a organizações locais dá subsídios à análise situacional do índice de vulnerabilidade social, bem como às suas implicações e desdobramentos em contextos sócio espaciais específicos. A presença de organismos transnacionais que, pela via da parceria e dos convênios com organizações de base local compõem o quadro de atores implicados no manejo das populações socialmente vulneráveis deu origem a uma espécie de governamentalidade transnacional (FERGUSON e GUPTA, 2002; VIANNA, 2011) nesta área. Tal modelo de definição das áreas de atuação e público-alvo, no entanto, é recente no caso da ONG FINANCIADORA.
Estabelecidas ao longo das décadas de 1970 e 1980, as chamadas “áreas consolidadas” remontam ao período no qual a ONG FINANCIADORA, mobilizou um modelo de expansão e de abordagem voltado às necessidades imediatas observadas em regiões onde a pobreza extrema e seus efeitos deletérios eram ostensivos. Não foi por acaso, portanto, que o Cariri cearense se tornou um dos focos de ação da ONG FINANCIADORA naquele momento[13]. Região historicamente figurada como território de pobreza (BACELAR, 2000), o Cariri expunha o flagelo da fome e das secas (MARTINEZ, 2002) no momento de chegada da ONG FINANCIADORA no Brasil e se tornou um destino óbvio. Este contexto territorial é um dos cenários onde se observa, hoje, o movimento de retração da ONG FINANCIADORA com encerramento gradual, desde fins dos anos 1990, de parcerias com as organizações locais.
Avalio que a compreensão do processo sócio-histórico e político que possibilitou tal reconfiguração nos modos de atuação da ONG FINANCIADORA no Cariri e a atual retração de suas atividades neste contexto passa por um conjunto de transformações estruturadas a partir de dois movimentos específicos, mas que se desenvolvem de modo concomitante. O primeiro tem relação com o leque de políticas, programas e projetos sociais formulados e implementados desde os anos 2000[14] e que imprimiram transformações não só de ordem econômica, mas também demográfica e social profundas e coincidem com a saída do Brasil do “Mapa da Fome” em 2014[15], graças à reconfiguração de regiões como o Cariri – que passa ao status de novo território produtivo (LIMA, BORSOI e ARAUJO, 2011). Tal processo reduz a força da justificativa na busca por novos padrinhos estrangeiros e na manutenção dos padrinhos existentes por parte da ONG FINANCIADORA. O Brasil, então 7ª economia mundial na primeira década dos anos 2000 (PAULA e PIRES, 2017), passa a ser preterido por padrinhos de países do chamado “Norte Global” que consideram que aqui a questão está ligada à desigualdade e não à pobreza[16], e preferem enviar seus donativos à regiões onde a pobreza segue sendo ostensiva. Tal processo coincide com o período a partir do qual a ONG FINANCIADORA começa a fazer captação interna no Brasil, como tentativa de recuperar parte dos recursos perdidos junto aos padrinhos estrangeiros. O segundo está ligado à transformações em legislações nas esferas da Assistência Social, Saúde e Educação que, desde os anos 1980, passaram a regular as possibilidades de ação de ONGs e os tipos de parcerias e convênios que podem ou não ser estabelecidos nestas áreas (BREDA, 2016). Somam-se a estes dois movimentos, transformações internas no modelo de atuação da ONG FINANCIADORA relativos à troca de seu modelo de atuação que marcaram um tipo diferente de relação com as organizações locais que recebem os repasses de donativos para implementar atividades junto aos apadrinhados/inscritos, em uma abordagem que passa a privilegiar a promoção do acesso a direitos em detrimento da abordagem de cunho mais “assistencialista” voltada às necessidades, predominante até os anos 1980.
4 CONSIDERAÇÕE FINAIS
Organizações transnacionais voltadas ao desenvolvimento[17] para a superação da pobreza têm, contemporaneamente, adquirido importância social, política e analítica renovadas. No Brasil, nos últimos trinta anos, destaca-se uma série de modificações intensas, e relacionadas, nas possibilidades de estruturação de parcerias entre organizações não-governamentais nas suas diferentes variações[18], e delas com ONGs estrangeiras, organizações multilaterais e esferas estatais. Na parceria estabelecida entre ONG FINANCIADORA e ONG PARCEIRA, baseada no Cariri cearense, tem se destacado o esforço empreendido na busca por traduzir o arsenal conceitual e operatório mobilizado ao longo do emaranhado institucional de longo alcance (VIANNA, 2010) no qual tal parceria se insere e que permite que ela se sustente – desde as especificidades e exigências das políticas municipais, estaduais e nacionais (BRASIL, 2014), até os mecanismos de comercialização de “tecnologias sociais” (DAGNINO, 2012) e certificação dos profissionais do desenvolvimento, passando pelos critérios de seleção das crianças por parte de padrinhos que financiam os projetos e pelo fluxo mundial de donativos financeiros que, no caso da ONG FINANCIADORA, passa por países como o Panamá.
Embora parte do segmento desse emaranhado institucional de longo alcance (VIANNA, 2010) se constitua e opere em escala transnacional, vinculado a circuitos financeiros altamente rentáveis, tem ficado cada vez mais evidente a territorialização de suas práticas em pontos estratégicos, notadamente entre territórios e populações classificados como socialmente vulneráveis. Tem-se observado, assim, tanto transformações nas estratégias de angariação de recursos, cada vez mais preocupadas com o tema da transparência e obediência à normas técnicas internas às próprias ONGs – como as do porte da ONG FINANCIADORA –, e também externas a elas, como a renovação do modelo de atendimento, agora baseado, também, no uso de “tecnologias sociais” visando estender direitos sociais às parcelas da população categorizadas como socialmente vulneráveis.
No Brasil, acrescenta-se a essa dinâmica, de modo muito central desde fins dos anos 1980, as particularidades em relação à legislação (no que diz respeito à relativa autonomia sobre o desenho e implementação de programas e projetos por parte de estados e municípios), à medida em que se desloca de uma cidade a outra ao longo do território nacional, no que toca os formatos possíveis das parcerias entre ONGs (BRASIL, 2014). A filantropia e o caritativismo, bastante presentes no modelo de ação das ONGs voltadas ao enfrentamento da pobreza e seus efeitos até os anos 1980 (LANDIM, 1993), passaram a dividir espaço com modos bastante profissionalizados de ação nas últimas décadas (DAGNINO e TATAGIBA, 2007; OLIVEIRA, 2002), acompanhando a expansão formal da gramática dos direitos (FAGNANI, 2005), a mudança do regime político (CODATO, 2005), a reestruturação produtiva (ANTUNES, 2014), a transnacionalização da economia (GERSCHMAN, 2003), a reforma do Estado (MARANHÃO, 2009), a estruturação e posterior financeirização das políticas sociais (LAVINAS, 2015). Seguindo esse conjunto de transformações, a questão da pobreza progressivamente se reconfigura, ao longo dos anos 1990, para além do problema meramente econômico (SEN, 2000, 1993; LAUTIER, 2014). O não acesso a níveis adequados de renda, mas também de educação, saúde, liberdade, justiça etc., passa a compor os índices de mensuração dos graus de risco (CASTEL, 1986, 1983) que podem conduzir os indivíduos à condições de vulnerabilidade social (ROSE, 1998).
Impulsionada pela sedimentação da nova racionalidade neoliberal do período (DARDOT e LAVAL, 2016), a lógica da vulnerabilidade social – que conjuntos de indicadores sociais estão apontando (BARDET, 2014; IPVS, 2006; DESROIÈRES, 2000; TOPALOV, 1992) – vai ser o motor de terceirização e mercantilização das políticas sociais a partir dos anos 2000 (GEORGES e SANTOS, 2013), período que já começa a ser classificado como “era lulista” (SINGER e LOUREIRO, 2016). Nesse cenário, claramente se modificaram de maneira muito profunda as formas de operacionalização nas relações de parceria colocadas em curso por ONGs desde o plano da organização local (BREDA, 2016) e seus modos de inserção em redes de cooperação e financiamento transnacionais (CARDOSO, 2002), até suas formas de relações com o Estado (LANDIM, 2002; OLIVEIRA, 2002).
Por ser evidente que algo distancia as ONGs locais daquelas de alcance e atuação mundial, na bibliografia específica é forte o debate sobre a desigualdade e a oposição nas relações entre organizações do Norte e do Sul Global (ETIENNE, 2007; ABONG, 2003). Contudo, numa outra perspectiva, se reconhece que algo as vincula de maneiras particulares ao/no mundo social no qual se territorializam (FASSIN, 2005; SEIDEL, 1993), e não é difícil perceber tais vinculações: como qualquer organização parceira, a ONG FINANCIADORA também está sujeita aos marcos regulatórios nacionais que definem suas possibilidades de operação, angariação e distribuição de recursos. Ao fluxo de capital via doações de padrinhos e agências multilaterais voltadas ao desenvolvimento social que conformam parte significativa do aporte oferecido pela ONG FINANCIADORA, somam-se as estratégias de angariação de recurso junto ao Estado nas mais variadas possibilidades oferecidas pelas parcerias e convênios que as organizações parceiras estabelecem com estados e municípios. Há mercados de “tecnologia social” profissionais (DAGNINO, 2012) e centros/agências/consultorias de formação e certificação especialmente voltadas para essa atividade (DONADONE, 2010). Na interface entre parcerias transnacionais colocadas em curso por ONGs, estrangeiras e de base local, que atuam sobre a pobreza estão, portanto, algumas das linhas de força – ligadas às mudanças das últimas três décadas – do processo que possibilitou que a adoção de modelos de gestão da pobreza direcionados pelo índice de vulnerabilidade social e baseados no uso de “tecnologias sociais” adquirissem centralidade no manejo da questão social ensejada entre as parcelas da população classificadas como socialmente vulneráveis[19].
O contexto situado no qual estes processos multiescalares se desenvolvem, compondo-se e interagindo com circunstâncias locais, toca questões muito concretas: prática solidária internacional via apadrinhamento (ARAGÃO, 2012), formas de controle e policialização das condutas (LAUTIER, 2014; DONZELOT, 1986), construção de populações vulneráveis (FASSIN, 2005), desenvolvimento de ferramentas para mapear o espaço urbano (mas não apenas) e populações segundo níveis de vulnerabilidade social (BARDET, 2014; IPVS, 2006; DESROSIÈRES, 2000). Nas mediações que vão se instaurando na parceria estabelecida entre ONG FINANCIADORA e ONG PARCEIRA com as outras escalas do emaranhado institucional de longo alcance (VIANNA, 2010) na qual se inserem, e que inclui sua escala transnacional, a mobilização do índice de vulnerabilidade social é o elemento que conserva o nexo de racionalidade que permite colocar escalas variadas deste emaranhado em relação. Trata-se de um índice que opera fixando limites, ordenando e hierarquizando os fluxos que perpassam e, portanto, ligam os elos que unem o emaranhado institucional de longo alcance no qual se insere as parcerias que a ONG FINANCIADORA estabelece no Brasil.
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[1] Pesquisadora do Laboratório Misto Internacional - Social activities, gender, markets and mobilities from below (Latin America)/ LMI-SAGEMM. Doutoranda em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com estágio na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Bacharel em Ciências Sociais, com ênfase em Sociologia, pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
[2] O termo pobreza vem sendo tratado com diferentes ênfases nas Ciências Sociais (LAUTIER, 2014; TELLES, 2001; SEN, 2000, 1993; SIMMEL, 2011) e, considerando os interesses específicos deste texto, a formulação elaborada por Gerschman (2003) parece oferecer rentabilidade imediata: na leitura proposta pelo autor, pobreza e riqueza se relacionam gerando efeitos políticos e simbólicos estruturantes das relações de poder e conflito que sustentam desigualdades, embora a questão que conforma essa desigualdade não seja posta em debate no cenário político da sociedade globalizada, remetendo a não concretização da promessa da modernidade no que toca o progresso da ideia de cidadania como um valor normativo e universal.
[3] Opto pela mobilização do termo parceria ao me referir à relação entre ONG FINANCIADORA e ONGs locais porque os próprios atores, em campo, adotam este termo, em detrimento de outros como convênio ou cooperação, bastante presentes na bibliografia específica. Ver, por exemplo, Silva (2008), Vianna (2014; 2010).
[4] ONG FINANCIADORA e ONG PARCEIRA são nomes fictícios. O intuito é preservar a identidade das ONGs pesquisadas e dos interlocutores da pesquisa. Assim, opto por não indicar links para o site da ONG FINANCIADORA onde constam documentos consultados e, pela mesma razão não indico, ao longo do texto, e tampouco nas referências bibliográficas, documentos e diretrizes produzidos pela ONG FINANCIADORA.
[5] A noção “emaranhado institucional de longo alcance”, elaborada por Vianna (2010) no estudo sobre a relação de parceria entre a ONG internacional CAFOD e ONGs locais no Recife, faz referência a prolongamentos institucionais caracterizados, sobretudo, pela variedade em seus formatos. Tais emaranhados podem, de acordo com a autora, seguir direcionamentos pouco previsíveis, dada a diversidade nas suas configurações, embora mantenham em comum a forma por meio da qual se interligam, mobilizando saberes que promovem o alastramento de aparatos técnico-burocráticos, invariavelmente conectados entre si.
[6] A integra dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável pode ser conferida em: http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/ODSportugues12fev2016.pdf. Acesso em 13/11/2018.
[7] O documento final da Agenda 2030, pós 2015, está disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf. Acesso em 13/11/2018.
[8] Os números constam no relatório anual da ONG FINANCIADORA publicado em 2018, referente ao ano de 2017.
[9] Crianças apadrinhadas recebem doação mensal de um padrinho e crianças inscritas aguardam apadrinhamento, embora possam usufruir de atividades e projetos financiados pelos recursos angariados junto aos padrinhos (dentro de limites estabelecidos localmente por cada ONG parceira e Unidade de Campo da ONG FINANCIADORA).
[10] Os concluintes que atingem a pontuação necessária se tornam certificados internacionalmente como gestores de projetos de desenvolvimento por consultorias como a APMG International, instituição que certifica cerca de 20 metodologias no mundo.
[11] O Gestor de Projetos da Unidade de Campo da ONG FINANCIADORA no Cariri/CE, ao se referir ao Índice, diz que “(...) o IVS vai funcionar como essa flecha que nos aponta quais são essas cidades em que há os maiores índices de vulnerabilidade social” (Trecho de Entrevista, dezembro de 2017).
[12] Renda familiar per capta que não exceda meio salário mínimo também é um dos critérios para que a criança possa entrar no sistema de apadrinhamento.
[13] As regiões do Vale do Jequitinhonha, de Belo Horizonte e de Fortaleza completam o quadro de “áreas consolidadas” da ONG FINANCIADORA.
[14] Faço referência a uma série extensa de Programas Sociais como o Minha Casa, Minha Vida e o Minha Casa, Minha Vida Rural, o Luz para Todos, o Um Milhão de Cisternas, o Mais Médicos, o Brasil Sorridente, o PROUNI, o REUNI, o Bolsa Família etc. Todos, hoje, sob risco de extinção/cortes ou já extintos.
[15] Informação disponível em: http://www.fao.org/hunger/es/. Acesso em 04 de setembro de 2019.
[16] Constatação feita pela Gerente de Programas da ONG FINANCIADORA durante entrevista, em maio de 2018.
[17] Termo polissêmico e com várias acepções no âmbito das Ciências Sociais (SINGER, 1998; FURTADO, 1968; CARDOSO e FALLETO, 1970; FERGUSON, 2001), desenvolvimento é aqui mobilizado nos moldes do debate dedicado à análise das ações e gramáticas acionadas nas relações de cooperação entre organismos multilaterais, ONGs internacionais e agências dedicadas à abordagem da pobreza e seus efeitos com ONGs locais (VIANNA, 2010; SILVA, 2008; PANTALEÓN, 2002; CERNEA, 1988) e Estados nacionais (ESCOBAR, 1995).
[18] Organizadas sob a forma jurídica de fundações privadas e associações, as Organizações Não Governamentais – ONGs, podem receber as designações de OSCIP e OS. Trata-se de qualificações que associações e fundações podem receber, uma vez preenchidos os requisitos legais. Cf. Silva, 2010.
[19] Este quadro teórico-analítico se desdobra de pesquisa anterior (BREDA, 2016). Tratando da circulação de usuários da Assistência Social ao longo da rede socioassistencial de serviços da cidade de São Paulo, o trabalho explicitou a lógica de parcerias e convênios estabelecida entre ONGs e Secretaria Municipal de Assistência Social. Os achados da pesquisa indicam que essa lógica não está separada empírica ou analiticamente de processos que transbordam o perímetro local, mas que se trata de uma lógica informada por processos multiescalonados inseridos numa escala transnacional na qual o índice de vulnerabilidade social é mobilizada como instrumento transversal no universo das parcerias entre ONGs e delas com o Estado (BREDA, 2016).