Sistemas Agroalimentares

impactos e desafios num cenário pós-pandemia

João Carlos Sampaio Torrens[1]

Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA)

joaotorrens@gmail.com

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Resumo

A partir da II Guerra Mundial, teve início a organização dos Sistemas Agroalimentares atualmente hegemônicos. Estes sistemas deram origem a grandes corporações transnacionais que progressivamente passaram a controlar as cadeias de valor vinculadas à alimentação. Além disso, este modelo de organização do setor alimentar provocou profundos impactos ambientais, econômicos, sociais e culturais. Atualmente, os acordos internacionais sobre desenvolvimento e as demandas emergentes dos consumidores urbanos exigem novos princípios orientadores e critérios de estruturação desses sistemas. A conformação de Sistemas Agroalimentares Sustentáveis exige uma transformação estrutural do modelo hegemônico. Porém, esta mudança só será alcançada com base na construção de um novo pacto social. Uma coalizão de forças que pressione o Estado para implementar políticas públicas que assegurem a alimentação como um direito humano fundamental.

Palavras-chave: Sistemas Agroalimentares. Alimentação. Segurança Alimentar e Nutricional. Desenvolvimento. Sustentabilidade. Pacto social.

AGRI-FOOD SYSTEMS

impacts and challenges in a post-pandemic scenario

Abstract

After the Second World War, the organization of the currently hegemonic Agri-Food Systems began. These systems gave rise to large transnational corporations that gradually started to control food value chains. In addition, the organizational model in the food sector has had profound environmental, economic, social and cultural impacts. Currently, international agreements about global development and the emergent demands of urban consumers require new guiding principles and criteria for structuring these systems. The formation of Sustainable Agri-Food Systems requires a structural transformation of the hegemonic model. However, this change will only be achieved based on the construction of a new social contract. A coalition forces that pressure the State to implement public policies that ensure food as a fundamental human right.

Keywords: Agri-food systems. Food. Food and Nutrition Security. Development. Sustainability. Social Pact.

1  INTRODUÇÃO

A pandemia provocada pelo SARS-CoV2 e seus efeitos dramáticos aceleraram a crise multidimensional do modelo de organização civilizacional hegemônico, atingindo diferentes áreas da vida social. Seus impactos diretos têm afetado as infraestruturas e os serviços públicos e privados da área da saúde (construção de hospitais de campanha, aquisição de equipamentos de proteção individual, ampliação dos tempos de trabalho das equipes de atendimento médico e assistencial). No entanto, seus efeitos indiretos têm provocado drásticas repercussões sobre a economia (diminuição das atividades produtivas e de serviços, fechamento temporário e permanente de diferentes tipos de empresas e estabelecimentos comerciais, aumento do desemprego e do trabalho informal, redução dos salários, fatores que contribuem para causar quedas acentuadas do Produto Interno Bruto), a educação (fechamento de creches, escolas, colégios, universidades e outros centros educativos, realização de aulas virtuais, problemas de acesso aos conteúdos educativos devido às dificuldades de conectividade para as populações mais vulneráveis ou aquelas residentes em áreas rurais distantes dos centros urbanos), a circulação e transporte coletivo (restrições para a mobilidade social), entre outras áreas. A exponencial disseminação planetária da COVID-19 gerou uma crise sanitária sem precedentes na história recente da Humanidade, desencadeando, assim, reações sobre o tecido econômico, as relações sociais, as estruturas institucionais de poder político e, inclusive, reforçando na agenda pública o tema das formas de interrelação com a Natureza. Neste sentido, a crise econômica do capitalismo global, não solucionada desde 2008, foi potencializada com as consequências provocadas pelo surgimento desta nova pandemia.

No entanto, ao mesmo tempo em que aprofunda as desigualdades sociais, a pandemia abre oportunidades para se repensar o modelo de desenvolvimento que se pretende construir a partir do presente. Um destes aspectos constituintes de nossas sociedades, explicitado pela crise sanitária da COVID-19, que merece ser profundamente reavaliado diz respeito ao papel da ruralidade e dos Sistemas Agroalimentares para o desenvolvimento nacional, bem como à importância das relações entre os espaços rurais e os centros urbanos, em suas diferentes dimensões. Como em toda situação de crise, esta apresenta um cenário de enormes incertezas e de algumas oportunidades que, se bem aproveitadas, podem resultar em importantes avanços sociais e econômicos. Porém, como alerta Celso Furtado (1984), caso as forças sociais não consigam forjar ou ampliar as condições objetivas e subjetivas para potenciar os vetores de uma reconfiguração estrutural do sistema de produção, as crises podem significar também um momento adequado para que os setores hegemônicos se recomponham e se reestruturem parcialmente a fim de seguir implementando seu projeto econômico e político, e evitando a emergência de novas forças contestadoras do modelo dominante.

Na verdade, a conjuntura atual exige um novo pacto global direcionado para, minimamente, acelerar o cumprimento integral da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, plataforma de ação aprovada em 2015 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Esta agenda define 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 Metas, que, em seu conjunto, buscam eliminar a pobreza, reduzir as desigualdades e enfrentar as mudanças climáticas com políticas e iniciativas que contribuam para a emergência de uma nova modalidade de desenvolvimento fundada nos princípios da equidade, sustentabilidade e resiliência (CEPAL, 2018).

Este marco de referência internacional apresenta, portanto, uma grande oportunidade para reestruturar a sociedade, numa perspectiva mais geral, e reconfigurar os territórios rurais e os Sistemas Agroalimentares, dimensões específicas de interesse do presente artigo. Segundo Carolina Trivelli, pesquisadora do Instituto de Estudos Peruanos e ex-Ministra do Desenvolvimento e Inclusão Social do Peru, cerca de 78% dos indicadores vinculados aos ODS dependem, pelo menos parcialmente, do rural e 20% dependem exclusivamente dele (TRIVELLI, 2020). Para aportar à implementação dos ODS, os espaços rurais desempenham múltiplas funções, sendo a produção de alimentos voltados para o mercado interno e para a exportação a mais importante e a mais reconhecida socialmente. Entretanto, estes territórios possuem outros atributos fundamentais, como, por exemplo: (i) abrigam, no caso brasileiro, 37% da população total do país, com distintos modos de organização da vida social, de manifestação cultural e de ocupação dos espaços rurais (IICA, 2017, p. 32); (ii) incluem a uma diversidade de biomas, ecossistemas e recursos naturais, utilizados a partir de técnicas produtivas mais ou menos sustentáveis; (iii) desenvolvem atividades econômicas geradoras de ocupações, emprego e renda que dinamizam os territórios rurais.

No centro destes complexos processos se situa o tema da alimentação e de seu significado para a reprodução das atuais sociedades contemporâneas, bem como das futuras gerações. Uma nova concepção de Sistema Agroalimentar vem sendo elaborada por diferentes setores da sociedade. Os avanços científico-tecnológicos alcançados pelas ciências aplicadas devem contribuir para desenvolver Sistemas Agroalimentares integrados e eficazes, sustentáveis e resilientes, inclusivos, defensores e produtores de vidas, e não destruidores das diferentes formas de vida existentes no planeta. Além disso, a reestruturação desses sistemas vincula-se a outras dimensões transformadoras, como sua articulação com os temas de saúde e nutrição, conservação da biodiversidade, reativação das economias rurais, construção de novos laços de coesão social no interior dos territórios, etc.

Nesse sentido, o redesenho dos Sistemas Agroalimentares, pensado para atender às demandas das próximas décadas do Século XXI, em particular para facilitar a conexão dos indivíduos com a melhoria das condições de vida e com o ambiente em seu entorno, representa uma ação estratégica não só para o cumprimento dos ODS, mas fundamentalmente para a construção de sociedades democráticas e equitativas.

Tendo estas considerações iniciais como pano de fundo, este artigo analisa, em uma primeira parte, as principais caraterísticas dos Sistemas Agroalimentares atualmente hegemônicos para buscar compreender a amplitude dos impactos ecológicos, ambientais, espaciais, sociais, culturais, econômicos e políticos em nossas sociedades, provocando diversos tipos de assimetrias e desequilíbrios. Em seguida, destaca a importância da implementação das agendas e acordos internacionais que definem diretrizes de ação diretamente associadas à refundação das formas de organização econômica do setor alimentício global e, por isso, propõem a conformação de Sistemas Agroalimentares Sustentáveis, baseados em novos princípios e critérios estruturantes. Na terceira parte são analisadas as alternativas em disputa e se sinaliza para a perspectiva de construção de um novo pacto social em torno do tema da alimentação e do desenvolvimento sustentável. Por fim, este artigo conclui apresentando alguns desafios no âmbito das políticas públicas e do papel das organizações sociais.

 

2  CARACTERIZAÇÃO E IMPACTOS DOS SISTEMAS AGROALIMENTARES HEGEMÔNICOS

Para compreender a necessidade histórica de uma reconfiguração profunda da lógica e das bases de organização dos Sistemas Agroalimentares hegemônicos, é preciso, primeiramente, revisar seu significado, suas bases históricas, suas principais características e implicações para as sociedades.

Em termos conceituais, os Sistemas Agroalimentares representam o conjunto integrado dos processos e atores que interconectam os subsistemas associados às cadeias de valor de alimentos necessários para garantir a Segurança Alimentar e Nutricional de uma sociedade. Os Sistemas Agroalimentares são conformados por um feixe de relações e atividades que integra os subsistemas de produção industrial de máquinas, implementos e insumos agrícolas (fertilizantes, herbicidas, pesticidas, sementes, etc.), de produção agropecuária, silvícola, aquícola e pesqueira, de beneficiamento, processamento e agroindustrialização, de distribuição, armazenamento e comercialização, e, finalmente, de consumo dos alimentos gerados no interior das diferentes cadeias de valor. Para integrar estas complexas engrenagens, diversos tipos de serviços são mobilizados: de ensino, pesquisa e conhecimento, de inovação e tecnologia agropecuárias, de financiamento e assistência técnica e extensão rural, de certificação agrícola, de infraestrutura e logística, de comunicação e informação, etc.

Historicamente, as raízes econômicas destes sistemas de organização das cadeias de valor na área da alimentação foram estabelecidas ao final da II Guerra Mundial. Os problemas provocados pelos efeitos desta guerra, particularmente o acelerado processo de urbanização e o aumento da fome no planeta, levou a investigação agrícola, o financiamento da produção agropecuária e, inclusive, os arranjos político-institucionais criados neste período a incentivar a formação de sistemas alimentares produtores de grandes quantidades de calorias. Juan Lucas Restrepo, Diretor Geral da Alliance of Biodiversity International e do Centro de Investigação em Agricultura Tropical (CIAT), denominou este processo como o “efeito não previsto da corrida por proteínas” (RESTREPO, 2019). Por isso, as principais cadeias de valor agropecuário se concentraram ao redor de 15 produtos agropecuários[2], valorizados como verdadeiras commodities no mercado internacional, fator que provocou uma significativa redução das oportunidades econômicas para os produtores rurais e um padrão de dieta alimentar altamente calórico para a população.

No caso brasileiro, para facilitar a consolidação destas estruturas e arranjos produtivos, as políticas agrícolas do Estado nacional jogaram um papel de extrema importância, pois foram estes instrumentos que financiaram direta e indiretamente parte significativa das condições e infraestruturas necessárias para a produção de commodities voltada para atender às demandas dos mercados internacionais. Tais políticas públicas incentivaram com subsídios a instalação de empresas e agronegócios baseados na monocultura exportadora, colocando em segundo plano os programas de estímulo à produção para o mercado interno. A priorização do mercado externo é fruto de uma decisão de política macroeconômica e que garante a sustentação de um pacto político, em torno do qual se aglutinam as elites agrárias, financeiras, industriais e comerciais do país.

A lógica que impulsa a produção desenvolvida por estes Sistemas Agroalimentares se fundamenta no aumento contínuo da produção e da produtividade, bem como no fortalecimento de suas capacidades competitivas frente a outros produtores, empresas ou países, no uso intensivo de tecnologias, numa produção de grande escala orientada para atender os interesses das grandes corporações transnacionais e dos mercados internacionais de exportação. Nesse sentido, os Sistemas Agroalimentares hegemônicos respondem a uma lógica de organização econômica baseada num modelo de produção agropecuária articulado globalmente, onde a produção primária se realiza num continente, o processamento agroindustrial pode ser feito em outra parte do planeta e, na última ponta deste circuito, o produto final pode ser consumido em qualquer país. Todas estas interconexões de processos e atividades econômicas concentradas em um pequeno grupo de cadeias produtivas de alimentos requerem níveis extremamente elevados de especialização técnico-produtiva, em suas diferentes etapas.

Assim, por se tratar de um sistema globalizado, os insumos, produtos e serviços envolvidos nas cadeias de valor dos Sistemas Agroalimentares dominantes são integrados por meio de circuitos de larga distância entre os centros produtores e os centros consumidores. Isto exige uma extensa cadeia logística destinada à circulação de mercadorias, que transporta de um continente a outro uma quantidade gigantesca de produtos. Nesse sistema de interconexão planetária, as estruturas responsáveis pelo subsistema de transporte apresentam significativos fatores de vulnerabilidade, pois estão submetidas às oscilações e crises dos preços do petróleo, bem como às crises provocadas por guerras ou pandemias – elementos que contribuem para acelerar e potencializar as condições de fragilização estrutural dos sistemas.

Também são considerados como sistemas ambientalmente insustentáveis, pois apresentam diversos fatores que ameaçam a reprodução dos ecossistemas e dos recursos naturais, contribuindo para a crescente deterioração ambiental, a perda da biodiversidade e a contaminação dos solos e das águas. De um modo geral, os impactos dos Sistemas Agroalimentares sobre os recursos naturais são preocupantes, do ponto de vista da sustentabilidade e da resiliência, pois estas atividades contribuem com 29% das emissões de gás de efeito estufa, com 80% do desmatamento das florestas, com 70% da água doce utilizada e por 80% da perda da biodiversidade em todo o planeta[3]. Outra dimensão negativa deste modelo tão extensivo de intermediações comerciais se relaciona com o aprofundamento da chamada “pegada ecológica”, devido ao elevado consumo de energias e à emissão de gases de efeitos estufa que, durante todo o processo, contribuem para reduzir a camada de ozônio do planeta e provocar fortes pressões ambientais que afetam a dinâmica e o equilíbrio dos ecossistemas e da biodiversidade.

Do ponto de vista social e cultural, seus efeitos têm provocado o aprofundamento das desigualdades sociais e da pobreza rural e urbana, uma vez que existe uma profunda assimetria no seio das populações para poder adquirir equitativamente os alimentos que chegam aos mercados. Como o desenho do sistema dominante está estruturado para a produção especializada em larga escala, a agricultura familiar se vê, literalmente, excluída da possibilidade de participar em condições igualitárias de competitividade econômica, quando se trata particularmente da produção de grãos – ainda que sua presença nestas cadeias não seja desprezível, quanto ao percentual de participação. Importantes cadeias de valor, como as de produção de aves e porcos, de café e cacau, apresentam uma participação hegemônica da agricultura familiar na composição do valor bruto da produção. Porém, os produtores familiares se inserem de forma dependente e subordinada nestes processos produtivos, que são controlados diretamente pelas grandes empresas vinculadas ao mercado de commodities.

Além disso, devido ao uso intensivo de agroquímicos, hormônios e conservantes químicos que contaminam os produtos agropecuários e agroindustrializados e à baixa qualidade nutricional dos alimentos que resultam da operacionalização destes Sistemas Agroalimentares, uma série de doenças associadas à má alimentação ou à má nutrição dos indivíduos (como a diabetes e as doenças cardiovasculares) tem ganhado relevância entre os principais fatores que contribuem para a mortalidade por problemas derivados da saúde. Por fim, cabe ressaltar que a mudança nos padrões culturais da alimentação típica de um determinado território conduz ao consumo de alimentos desculturalizados, desenraizados da identidade territorial de uma população, e que são introduzidos na dieta local a partir da desvalorização dos produtos regionais. A entrada nos mercados urbanos e rurais dos alimentos ultraprocessados, substituindo os produtos tradicionalmente aceitos na gastronomia local, tem um efeito avassalador na mudança do padrão alimentar, alterando preferências e gostos culturalmente sedimentados na história do território.

Ao definirem os produtos prioritários para os processos produtivos do setor agropecuário, as corporações transnacionais determinam as formas de estruturação dos sistemas de produção, processamento, distribuição e comercialização dos alimentos, ou seja, controlam desde as etapas de investigação e inovação tecnológica para produzir os equipamentos e insumos agrícolas “recomendados tecnicamente” até a fase final do consumo. Assim, estes conglomerados empresariais do setor estabelecem não só as condições tecnológicas sob as quais serão executados os processos de produção, mas também as condições essenciais para a hegemonização e homogeneização dos padrões de consumo, em uma escala global.

De uma maneira geral, as dietas alimentares passam a ser ditadas por estas grandes corporações do setor que exercem um forte poder de pressão sobre a definição do padrão alimentar global, estabelecendo os alimentos que prioritariamente vão ser oferecidos para o consumo e quais alimentos ficarão excluídos ou receberão um tratamento de menor valor. Esta priorização por determinados produtos em detrimentos de outros, inclusive alguns muito arraigados na cultura gastronômica territorial, tem levado as instituições governamentais e empresas privadas que atuam na área de pesquisa agropecuária a concentrarem suas investigações fundamentalmente ao redor de uns quinze produtos (vegetais e animais).

Esta tendência à diminuição da variedade da composição da dieta alimentar e, consequentemente, à homogeneização crescente dos alimentos que são predominantemente utilizados no planeta como comida tem provocado uma diminuição das oportunidades de produção e de inserção dos produtores nos mercados dominantes. Devido às dificuldades de aceitação comercial de determinados produtos e à crescente desvalorização da ingestão de certos alimentos, os agricultores se veem obrigados a direcionar sua oferta de produção para atender aqueles produtos com maior preferência pelos consumidores.

Ademais, esta homogeneização dietética carrega consigo outra importante forma de padronização: a das paisagens rurais, que tendem a assumir características similares em várias partes do planeta, desfigurando os espaços rurais originais e reconfigurando-os metaforicamente como “desertos verdes”[4], ou seja, grandes áreas de terra utilizadas para o cultivo de poucos produtos (soja, milho, trigo, cana-de-açúcar, algodão, pinus, eucalipto) ou para a bovinocultura extensiva.

Uma terceira consequência negativa deste processo de padronização é a perda da biodiversidade, irreparável em muitos casos, pois muitas sementes crioulas, adaptadas a determinadas zonas, se perderam e já não podem mais ser recuperadas. Assim, parte do patrimônio genético de um povo e que constitui um elemento essencial de sua soberania alimentar, não poderá ser utilizado para promover estudos sobre as capacidades de resiliência e adaptação destas espécies para responder às mudanças climáticas em curso. Associado à degradação destes recursos está a erosão dos saberes e conhecimentos tradicionais vinculados à reprodução e manejo da biodiversidade. Por fim, um quinto efeito negativo associado à padronização da dieta alimentar é sua capacidade de influenciar na incidência de doenças que apresentam elevados níveis de mortalidade, como a diabetes tipo 2, os problemas cardíacos e alguns tipos de câncer.

Portanto, as considerações apresentadas nesta breve caracterização dos atuais Sistemas Agroalimentares demonstram que os custos ecológicos, ambientais e sócio-culturais para sua implementação são muito elevados e não são contabilizados no cálculo dos custos envolvidos nas diferentes etapas destes processos. Se aos custos econômicos fossem incorporados estes outros custos que incidem sobre o cálculo real da produção e consumo dos alimentos, seria possível revelar o quanto estes sistemas, na sua integralidade, são inadequados, ineficientes e insustentáveis. Nesse sentido, as preocupações a respeito dos efeitos da pandemia provocada pelo SARS-CoV2 sobre o funcionamento destes Sistemas Agroalimentares e o abastecimento dos alimentos para toda a sociedade servem para sugerir a necessidade de uma avaliação profunda destes arranjos econômicos hegemônicos e, principalmente, buscar criar as condições para a emergência de novas lógicas e formatos para a organização dos sistemas agroalimentares do futuro.

 

3  A RECONFIGURAÇÃO DOS SISTEMAS AGROALIMENTARES NA PERSPECTIVA DA SUSTENTABILIDADE

O contexto da atual pandemia provocada pelo SARS-CoV2 abre caminhos para a realização de uma ampla reflexão com a sociedade a respeito das diversas consequências do atual modelo de estruturação e articulação das atividades envolvidas no processo de produção, processamento, comercialização e consumo dos alimentos. Nesse sentido, diferentes organizações, como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e Centro Latino-Americano para o Desenvolvimento Rural (RIMISP), têm aprofundado a elaboração de conteúdos conceituais e promovido debates interinstitucionais que buscam estabelecer as bases para a criação de Sistemas Agroalimentares Sustentáveis[5]. Estas formulações buscam sintetizar e amplificar diferentes tipos de iniciativas que, desde uma escala mais micro ou territorial, apontam para a necessidade de definir novas bases e dinâmicas estratégicas inovadoras para assegurar a alimentação como um direito humano fundamental. Além disso, o encontro entre a emergência de práticas locais inovadoras, o desenvolvimento de políticas propulsoras desta transição e a atualização conceitual sobre os conhecimentos gerados estas experiências foram fatores interligados que permitiram, num nível global, a negociação e consolidação de diversos acordos e pactos internacionais (Agenda 2030, Decênio da Agricultura Familiar, Acordo de Paris, etc.) que representam uma ruptura paradigmática com os princípios que sustentam os atuais modelos hegemônicos.

Portanto, a categoria de análise Sistemas Agroalimentares Sustentáveis se contrapõe frontalmente aos sistemas dominantes. De acordo com seus princípios orientadores, estes sistemas foram criados para expandir a oferta de alimentos, a partir da diversificação do catálogo de produtos disponíveis para a alimentação humana e do estímulo à territorialização dos processos de produção, buscando reduzir a importação de produtos similares. Assim, sistemas diversificados e localizados têm a vantagem de reconhecer a importância da agrobiodiversidade dos territórios e ampliar a autonomia e independência alimentar[6].

Assim, pode-se afirmar que os Sistemas Agroalimentares Sustentáveis se estruturam com base em oito pilares básicos, que estabelecem entre si profundas relações de interdependência:

1. Diversificação: a heterogeneidade sociocultural e as identidades territoriais de um determinado país definem distintos padrões de consumo alimentar, o que exige a valorização de alimentos diversificados, de qualidade, produzidos segundo práticas inovadoras e agregadoras de valor. Esta mudança nos hábitos das dietas alimentares implica numa drástica redução ou eliminação dos produtos ultraprocessados e sua substituição por vegetais, frutas, proteínas e fibras, ou seja, uma dieta mais diversificada e rica em vitaminas, antioxidantes e minerais.

2. Nutrição: nesta reconfiguração dos sistemas agroalimentares, a qualidade nutritiva dos alimentos se constitui num elemento fundante do novo modelo. Estes sistemas valorizam sua contribuição à nutrição e à saúde humana, e ao bem-estar físico e mental, como um princípio básico de sua formação, pois são concebidos para defender e produzir vida. A produção de alimentos diversificados e nutritivos está associada à perspectiva de promover uma elevação dos indicadores nutricionais da população e, ao mesmo tempo, uma redução da obesidade que se apresenta como uma das principais causas para as enfermidades vinculadas à alimentação. A melhoria das condições de saúde e nutrição da população supõe a ativação dos centros de pesquisa e laboratórios dedicados às pesquisas agropecuárias, ao melhoramento genético de sementes e plantas para que apresentem maior tolerância às variações climáticas (aumento da temperatura, secas prolongadas, inundações, etc.), à produção de alimentos diversificados em sua composição nutricional, à geração de variedades de cultivo resistentes a pragas e doenças, à elaboração de alimentos que reduzam a incidência de doenças com altos indicadores de mortalidade e, ao mesmo tempo, ajudem a aumentar as capacidades dos organismos humanos a proteger-se de uma série de doenças que apresentam grandes riscos à saúde humana. Ou seja, a ampliação das pesquisas em inovação tecnológica na área da agricultura necessita introduzir novos critérios, complementares àqueles vinculados à produtividade – objetivo principal das pesquisas agropecuárias realizadas nas últimas décadas.

3. Sustentabilidade: a utilização de tecnologias, insumos e práticas de manejo das atividades agropecuárias que respeitem as condições de reprodução dos ecossistemas é um elemento constituinte destes processos inovadores. As técnicas de produção sustentável estabelecem formas de gestão eficiente dos recursos naturais e favorecem a reprodução da biodiversidade, com base na implementação de boas práticas agrícolas, com enfoque ecossistêmico.

4. Resiliência às mudanças climáticas: o desenvolvimento de técnicas sustentáveis de produção e manejo, a adoção de práticas produtivas que estimulem a resiliência dos ecossistemas e dos produtos às mudanças climáticas, bem como a incorporação de mecanismos para reduzir a emissão de gases de efeito estufa ao longo das cadeias de valor, são medidas necessárias para diminuir as externalidades negativas da atividade agropecuária sobre os recursos naturais (pressão pelo desmatamento, contaminação dos solos e águas pelo uso indiscriminado dos insumos químicos, contaminação dos agricultores e consumidores) e também das demais atividades vinculadas à transformação e aos serviços sobre a dinâmica ecológica do planeta. O incremento da resiliência ecológica das comunidades e famílias do campo se constitui num componente importante para compensar os efeitos das afetações climáticas, particularmente para mitigar os riscos de vulnerabilidade que, de forma crescente, tendem a afetar aos segmentos mais empobrecidos e vulneráveis do setor rural.

5. Inclusão: a conformação de sistemas de produção, transformação, circulação, comercialização e consumo agroalimentar sustentável exige prioridade ao protagonismo, autonomia e controle empresarial por parte da agricultura familiar, como sujeito estruturante e integrador dos processos inclusivos em construção. Este novo padrão de organização dos Sistemas Agroalimentares necessita fundar-se nas alianças desenhadas pelas organizações da agricultura familiar e dos demais setores vinculados à economia popular e solidária, com o apoio de outros atores econômicos comprometidos com este projeto. Nesta transição, é recomendável dar especial atenção ao papel desempenhado pelas agricultoras familiares na produção de alimentos culturalmente apropriados, pois elas representam um segmento social com um peso significativo e, em muitos casos, determinante, para a produção das cestas básicas das populações. Esta é uma oportunidade para gerar processos de inclusão social e produtiva que enfatizem a autonomia dos sujeitos da agricultura familiar e contribuam também para diminuir as desigualdades no interior dos demais elos destas cadeias.

6. Territorialização: o estímulo à constituição de encadeamentos produtivos que dependam cada vez menos de sua integração a processos econômicos globalizados, se apresenta como uma forte característica destes sistemas. As tendências à desglobalização e à relocalização constituem-se em traços essenciais deste novo modelo que contribui para a implementação da Agenda 2030. Neste modelo valoriza-se, ao máximo, a circulação dos processos de produção e consumo final no interior do próprio território ou nos territórios do entorno onde as pessoas vivem. Este redesenho contribui para diminuir a pegada ecológica, promover dinâmicas econômicas territoriais, facilitar a apropriação de alimentos enraizados na identidade cultural e consolidar redes solidárias de comercialização e laços diretos de sociabilização entre produtores rurais e consumidores urbanos, favorecendo a coesão social do território. A adoção de um enfoque territorial busca desenvolver uma nova estratégica de reordenamento da ocupação dos espaços rurais, implicando numa redistribuição do acesso a ativos (terra, água, tecnologias, financiamento, infraestrutura produtiva), serviços e mercados, a partir de um enfoque de relocalização da produção e de democratização equitativa dos negócios. Além disso, uma maior territorialização dos Sistemas Agroalimentares facilita a constituição de mecanismos de governança capazes de articular e coordenar os processos que envolvem os diferentes atores econômicos e sociais vinculados em cada elo das cadeias de valor.

7. Organização para a cooperação: do ponto de vista da estrutura organizacional, a reconfiguração dos Sistemas Agroalimentares supõe a conformação de micro, pequenas e médias empresas, cooperativas, associações, agroindústrias e empreendimentos solidários, organizados preferentemente em forma de rede, que promovam a autonomia econômica das diferentes iniciativas de produção e comercialização e, consequentemente, a diminuição da dependência destes atores frente aos conglomerados agroindustriais ou aos intermediários que tendem a impor relações comerciais abusivas.

8. Sistêmico: por se tratar de uma organização econômica baseada em uma perspectiva sistêmica, a reconfiguração das estruturas agroalimentares implica em considerar as dinâmicas de interação que se estabelecem entre as diferentes dimensões e as conexões desenvolvidas permanentemente com o contexto socioambiental.

Portanto, um dos principais desafios da atualidade é a construção de Sistemas Agroalimentares orientados para o manejo sustentável da biodiversidade e recursos naturais, o fortalecimento das capacidades de resiliência dos ecossistemas, a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas sobre a agricultura, a definição de mecanismos de circulação e comercialização dos alimentos com baixos níveis de consumo de energia e de impacto ambiental, a ampliação das oportunidades de inclusão social e produtiva que fortaleça a agricultura familiar, os empreendimentos ligados à economia popular e solidária e as micro, pequenas e médias empresas do setor, a melhoria das condições de saúde e nutrição da população, a produção de uma diversidade de alimentos inócuos e certificados, a afirmação de um padrão alimentar, mais nutritivo, com identidade cultural e que contribua para promover uma maior aproximação entre produtores e consumidores, e também entre os espaços rurais e urbanos. Em síntese, o valor central dos Sistemas Agroalimentares Sustentáveis reside em sua capacidade de responder ao interesse público, em suas distintas dimensões (ecológica, ambiental, social, econômica, cultural e política), tal como afirmou Jeffrey Sachs, em um artigo publicado na Folha de São Paulo, em 21 de novembro de 2017 (SCHNEIDER, 2019). Nessa perspectiva, os alimentos e a alimentação como um ato social e político ganham múltiplos contornos e implicam em uma nova relação com a natureza e novas formas de relacionamento social, de equidade social e de compromisso ético com a vida e o planeta.

A implementação prática deste conjunto de princípios orientadores para a configuração de Sistemas Agroalimentares Sustentáveis vincula-se diretamente à construção da Agenda 2030. Por isso, estas transformações estruturais requerem uma visão coordenada que integre diferentes áreas de conhecimento e atuação institucional, nos marcos de uma estratégia política de longo prazo. O enfoque deixa de restringir-se ao setorial agrícola e busca articular os setores ligados ao ambiente, energia, investigação, inovação, tecnologia, financiamento, saúde, nutrição, educação, infraestrutura produtiva, organização associativa, cultura, político-institucional, entre outros, num entrelaçamento sinérgico de ações coletivas que mobilize as forças transformadoras interessadas nesta nova configuração estrutural.

Assim, os desafios contemporâneos evidenciados pelas funções multidimensionais da ruralidade revelam que os atuais Sistemas Agroalimentares necessitam ser profundamente reestruturados, de maneira que possam cumprir adequadamente não só com as recentes tendências de um consumo saudável, mas também que incorporem em sua concepção e componentes critérios de produção, circulação e comercialização alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Deste modo, estas novas formas de organização do setor alimentício, com suas implicações diretas sobre os modelos de ordenamento ambiental e de ocupação social e econômica dos espaços rurais, representam oportunidades concretas a partir das quais é possível conformar processos inovadores de desenvolvimento.

Nesse sentido, a agenda política do desenvolvimento, nas próximas décadas do Século XXI, precisa assegurar um lugar estratégico à ruralidade, à agricultura e à alimentação de qualidade, visto que, pelo menos, nove Objetivos de Desenvolvimento Sustentável dependem total ou parcialmente das mudanças que se operem no modelo de ocupação das zonas rurais. Esta não é uma tarefa tão fácil, pois o desenvolvimento rural e agrícola, historicamente, foi concebido a partir dos benefícios gerados pela produção agropecuária para o funcionamento das sociedades urbanas e o crescimento da urbanização. A visão urbana sobre a ruralidade, como um espaço funcional e subordinado ao desenvolvimento das cidades, impediu a emergência de políticas e ações que favorecessem a diversidade dos atributos dos espaços rurais, considerados a partir da visão de suas próprias populações. As políticas para o rural foram majoritariamente concebidas, planejadas e executadas por atores do mundo urbano e para atender às demandas do urbano, e não para responder às necessidades específicas e diversas dos territórios rurais e de sua gente. A questão central não é incluir o rural e a alimentação na agenda urbana. Se trata de redefinir a agenda nacional, pensando o rural e o urbano a partir de suas especificidades e complementaridades, e não considerando as relações de dependência e subordinação que vigoraram até o presente. Esta situação histórica coloca o desafio de refundar os Sistemas Agroalimentares não só a partir do ponto de vista das populações urbanas, mas principalmente dos interesses das populações rurais, numa perspectiva de construção do bem coletivo[7].

Assim, a transformação estrutural para os Sistemas Agroalimentares Sustentáveis representa a valorização pela sociedade dos múltiplos atributos da ruralidade e da agricultura, na medida em que esta busca construir novas estruturas econômicas baseadas na articulação de princípios ecológicos, ambientais, sociais, econômicos, culturais e políticos que implicam em uma ampla corresponsabilidade entre os diferentes atores envolvidos nas cadeias de valor. Sua reconfiguração deve ser percebida como parte da própria reestruturação dos territórios rurais, entendidos como espaços sociais prioritários onde estes sistemas se constroem num ambiente de conflitos de interesses e antagonismos de projetos, mas também de cooperação e solidariedade. Em sua essência, a implementação destes sistemas agroalimentares ambientalmente sustentáveis e resilientes, economicamente viáveis, socialmente inclusivos e equitativos, nutricionalmente adequados, culturalmente apropriados e territorialmente referenciados significa a implementação de um novo paradigma de desenvolvimento, construído no marco de uma correlação de forças sociais e políticas favoráveis à afirmação de um conjunto de valores éticos pela sociedade, tanto no âmbito das relações sociais quanto no que se refere às suas relações com o entorno ecológico.

 

4  AS ALTERNATIVAS EM DISPUTA E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PACTO SOCIAL

A velocidade deste processo de transformação multidimensional e a definição do campo de forças econômicas e sociais que impulsará esta reconfiguração vão depender de uma combinação de fatores. Do lado das corporações transnacionais que controlam atualmente o cenário agroalimentar, dependerá de sua capacidade de auto-reorganização para antecipar-se às novas e crescentes exigências do mercado consumidor e ajustar seus modelos de negócio aos novos tempos. Para incorporar os princípios anteriormente mencionados, o setor agroindustrial global poderá promover alterações parciais ou estruturais em sua lógica de organização do sistema, dependendo, por exemplo, do apoio das políticas dos Estados ou da pressão da sociedade civil para provocar estas mudanças. Caso a cidadania não demonstre capacidade de articulação e mobilização de suas forças em prol de um projeto sustentável, a tendência é a persistência da lógica hegemônica dos atuais Sistemas Agroalimentares.

De outro lado, uma aliança entre os movimentos, organizações e redes da agricultura familiar e de outros segmentos da economia popular e solidária com as organizações da sociedade civil pode constituir-se num importante agente motor destas transformações, já que estes atores, de uma maneira geral, reconhecem os fatores de insustentabilidade do atual sistema e buscam criar as condições para a emergência de um modelo de organização produtiva de menores riscos ambientais, econômicos, sociais e culturais. Na perspectiva deste campo político o que está em jogo é a oportunidade histórica de estabelecer um ponto de inflexão, ou seja, uma mobilização social que exija a produção e o consumo de alimentos diversificados e nutritivos, elaborados com base em práticas sustentáveis, que gerem encadeamentos produtivos que incluam a diferentes atores e assegurem o protagonismo às organizações da agricultura familiar e da economia popular e solidária, e que dinamizem economicamente os territórios, sem que isso signifique a destruição da biodiversidade e dos modos de vida e culturas tradicionais. Para viabilizar esta alternativa, as forças sociais e políticas associadas a esta abordagem transformadora precisam ampliar suas bases de sustentação para conformar um pacto social mais amplo tendo como eixo a construção de um novo padrão alimentar e um modelo de desenvolvimento sustentável, resiliente e equitativo para a sociedade.

Ambos campos de articulação de projetos disputam a hegemonia para incidir sobre a definição da agenda política do desenvolvimento, desde uma perspectiva mais geral. Nesse sentido, o posicionamento institucional do Estado, por meio das políticas públicas e dos mecanismos de financiamento, cumpre um papel fundamental como fiel da balança destas transformações. Outro ator que tem desempenhado uma função primordial nestes processos de decisão são as universidades e os centros de gestão do conhecimento, responsáveis pela elaboração de valorosos trabalhos científicos.

Portanto, neste cenário de crises combinadas, aceleradas pela pandemia do SARS-CoV2, o redesenho dos Sistemas Agroalimentares dependerá de um conjunto interligado de fatores. Dependendo das pressões dos setores populares, bem como das capacidades de incidência política das organizações internacionais e nacionais, as grandes corporações multinacionais poderão promover ajustes no sistema agroalimentar, com o objetivo de continuarem controlando os processos de produção, transformação e consumo de alimentos. Nesse sentido, as mudanças promovidas no setor alimentar pelas corporações transnacionais dependerão, em grande medida, das capacidades e disposições do próprio sistema capitalista para absorver e ajustar-se, ainda que parcialmente, às diretrizes mais gerais aprovadas nos acordos internacionais. Aqui é importante recordar que o tema multidimensional da alimentação ocupa um lugar de destaque nos pactos vinculados ao desenvolvimento global e, por isso, é impensável imaginar qualquer ajuste do setor alimentício hegemônico desvinculado de uma estratégia de auto reestruturação do capital internacional.

De outro lado, devido à força econômica, social e política exercida por estas corporações, também é difícil supor que os movimentos de conscientização e mobilização dos consumidores urbanos, em aliança com as organizações da agricultura familiar e da economia solidária, tenham condições de impor, no curto ou médio prazo, uma transformação substantiva e radical dos Sistemas Agroalimentares, de maneira que estes atendam aos critérios de sustentabilidade, resiliência e equidade.

Na verdade, qualquer que seja a alternativa que se viabilize no futuro, este caminho vai implicar na renovação das bases econômicas e políticas do atual pacto hegemônico, obrigando as empresas transnacionais a promover adequações parciais na estrutura dos sistemas existentes, ou na conformação de um campo de forças sociais, econômicas e políticas que se constitua no agente propulsor de um amplo pacto social em defesa da construção de Sistemas Agroalimentares Sustentáveis que atendam à totalidade das características mencionadas anteriormente. Entre ambas alternativas pode emergir um gradiente de processos intermediários, com maior ou menor capacidade de representar uma transformação do paradigma que sustenta a concepção dominante sobre desenvolvimento e sobre as relações Ser Humano-Natureza.

Reconhecer as dificuldades determinadas pela atual correlação de forças políticas, tanto no plano internacional como nacional, para construir caminhos que conduzam à sustentabilidade dos Sistemas Agroalimentares não significa que os sujeitos sociais interessados nestas transformações devam abdicar de uma estratégia de mobilização que organize novas lutas, que conquiste novos direitos, que coloque em prática novos projetos e iniciativas sociais, que proponha e implemente novas políticas públicas, que construa novos conhecimentos a partir das experiências concretas, que amplie o campo das coalizões políticas, etc. Significa que cabe, principalmente, às diversas organizações da sociedade civil comprometidas com as linhas gerais desta transformação estrutural desenvolver uma estratégia de acúmulo progressivo de forças políticas capaz de provocar alterações no campo hegemônico e construir ações permanentes que levem a uma ruptura sistêmica deste modelo organização da econômica global.

 

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente análise, portanto, valoriza a abordagem multidimensional e integradora da questão alimentícia, contextualizando-a, em termos globais, como um dos componentes essenciais do processo de construção de um projeto de desenvolvimento nacional referenciado estrategicamente nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Neste ambiente complexo e global, se situam o debate e as ações que buscam redefinir o papel a ser desempenhado pelos Sistemas Agroalimentares nas futuras sociedades. Historicamente, é possível identificar a emergência de determinadas condições materiais e subjetivas (ainda que sejam atualmente insuficientes) que apresentam forças potencializadoras para forjar as soluções capazes de refundar os Sistemas Agroalimentares a partir de novos princípios orientadores, estruturas, processos e práticas sociais e econômicas.

Num plano mais específico, esta oportunidade histórica para impulsar a produção e o consumo de alimentos diversificados, nutritivos e inócuos se insere no âmbito de uma estratégia de construção de uma justiça ambiental, social e econômica que garanta a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Nesta perspectiva, a alimentação pode ser considerada como um ponto central da agenda do desenvolvimento rural-urbano, pois tem a capacidade de estabelecer ao seu redor relações sociais, econômicas e políticas que promovam uma distribuição equitativa dos alimentos produzidos ou que circulam nas economias modernas.

Este enfoque sistêmico permite perceber que a conformação de Sistemas Agroalimentares Sustentáveis depende das transformações que, de forma paralela e articulada, sejam introduzidas progressivamente nas esferas ambiental, social, cultural, econômica e política. Os caminhos para alcançar este objetivo não se limitam às ações setoriais no campo da produção e comercialização dos alimentos. Como se trata de um tema multidimensional, requer uma abordagem integradora e sistêmica por parte das políticas de Estado. Para que estas transformações estruturais possam gerar efeitos a médio e longo prazo, recomenda-se que estejam articuladas às políticas de desenvolvimento inclusivo dos territórios rurais, de fortalecimento da agricultura familiar e de integração dos atores sociais e econômicos, rurais e urbanos, com o objetivo de estabelecer novas coalizões e alianças sociais que promovam uma maior coesão social. Além disso, precisam integrar-se com as políticas macro, de âmbito nacional, e com outras políticas setoriais (educação, saúde, moradia, saneamento, energia, transporte, comunicações, indústria, cultura, ambiente, etc.). As relações sinérgicas entre estas políticas e seus resultados tendem a provocar um efeito sistêmico nos processos multidimensionais do desenvolvimento. Como adverte Carolina Trivelli (2020), as políticas formuladas para resolver problemas específicos, focalizadas e desarticuladas entre si, produzem impactos limitados e fragmentados, com pouca capacidade de irradiar seus efeitos a outros setores e regiões.

Assim, para que estas políticas ocupem maior centralidade na agenda política do desenvolvimento dos Estados nacionais, as organizações da sociedade civil, de uma maneira geral, cumprem um papel de vital importância. As diferentes iniciativas implementadas pela sociedade civil para buscar una maior aproximação entre a agricultura familiar e os consumidores servem de base para a transformação do “estatuto social atribuído à alimentação”, como enfatiza a Maria Emília Pacheco (2020), para que esta seja compreendida como um direito humano fundamental, permitindo à população ter acesso a alimentos diversificados e nutritivos e vendidos a preços justos.

Por fim, é fundamental que os movimentos, redes e organizações da sociedade civil se articulem com outros setores interessados neste projeto de interesse comum e desenvolvam ações conjuntas que gerem resultados inovadores. Com base nestas referências construídas coletivamente, estas organizações terão melhores condições de incidir na agenda das políticas públicas, de maneira que se defina um conjunto integrado e coordenado de instrumentos programáticos do Estado. Neste contexto, estas políticas assumirão um duplo papel: de um lado, estimular as transformações estruturais nos Sistemas Agroalimentares como sistemas de defesa e promoção da vida, em suas múltiplas dimensões (humana, biodiversidade, ecossistemas, planeta). De outro lado, assegurar o cumprimento do preceito universal que estabelece o direito humano fundamental à alimentação como um dos pilares fundamentais da organização social.

 

REFERÊNCIAS

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FURTADO, C. Cultura e desenvolvimento em época de crise. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 128 p.

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RESTREPO, J. L. El rol de la tecnología en el futuro de los sistemas alimentario. WEBINAR El futuro de los Sistemas alimentares y la Transformación del sector rural. Direção: BID. [S. l.: s. n.], 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P_4VuFylcAU&t=4578s. Acesso em: 18 ago. 2020.

SCHNEIDER, S. WEBAULA Agricultura, alimentação e saúde: o sistema agroalimentar moderno e seus efeitos na saúde. Direção: UFRGS. [S. l.: s. n.], 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lkhSP-hDjgY&t=4s. Acesso em: 31 jul. 2020.

TRIVELLI, C. Tomar ventaja de la coyuntura para impulsar la transformación rural. WEBINAR El futuro de los Sistemas alimentares y la Transformación del sector rural. Direção: BID. [S. l.: s. n.], 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P_4VuFylcAU&t=4578s. Acesso em: 18 ago. 2020.



[1] Sociólogo (UFSC) e mestre em Desenvolvimento Agrícola (CPDA/UFRRJ), com experiências nas áreas de cooperação técnica internacional, pesquisas sobre políticas públicas de desenvolvimento rural e assessoria às organizações de agricultura familiar.

[2] Conforme dados divulgados por Héctor Mauricio Parra Quijano (2020), na Conversação Reconfiguração dos Sistemas Agroalimentares na Pós Pandemia, promovido pela Universidade Nacional da Colômbia, calcula-se que nas sociedades ocidentais somente 200 espécies de vegetais e animais formem parte da dieta alimentar, sendo que 120 contribuem significativamente para a alimentação. Deste total, 90% das calorias de origem vegetal estão associadas a 15 espécies, sendo que quatro delas (trigo, milho, arroz e batata) são responsáveis por 50% destas calorias. No que diz respeito ao consumo de carnes, 14 animais garantem 90% do total do consumo de proteínas de origem animal. Nos dois casos, é possível observar que entre as possibilidades existentes na biodiversidade do planeta e as reais ofertas de consumo para a população, existe um grande funil que descarta uma quantidade imensa de produtos com potencialidades para o consumo humano.

[3] De acordo com informações disponibilizadas pelas Nações Unidas. Disponível em: https://www.un.org/sustainabledevelopment/es/food-systems-summit-2021/. Acesso em: 03 agosto de 2020.

[4] A categoria “desertos verdes” foi criada inicialmente para designar as monoculturas do setor silvícola (pinus e eucalipto), mas progressivamente foi ganhando uma conotação mais ampla, referindo-se a todas as grandes extensões de terra destinadas ao uso agropecuário ou para extração de madeira. Sobre este tema específico, consultar, por exemplo, The Nature Conservancy. Ver: https://www.nature.org/es-us/que-hacemos/nuestra-vision/perspectivas/monocultivos-amenaza-desiertos-verdes-produccion-alimentaria/. Acesso em: 20 set 2020.

[5] Sobre este conceito, consultar FAO (2013), FAO-OPS (2017), CEPAL-FIDA (2019) e o Programa Sistemas Agroalimentares Sustentáveis, articulado pelo RIMISP. Ver: https://webnueva.rimisp.org/nuestro-trabajo/sistemas-agroalimentarios-sostenibles/. Acesso em: 20 set 2020.

[6] De maneira alguma se pretende reproduzir aqui uma visão romântica, segundo a qual os territórios terão que ser autônomos e autossuficientes para produzir localmente os alimentos necessários para o consumo de seus habitantes. Afinal, se reconhece que nem todos os territórios reúnem as condições adequadas para produzir a variedade de produtos agrícolas capazes de suprir a dieta alimentar cotidiana. No entanto, o que esta afirmação busca ressaltar é que os produtos não têm que percorrer largas distâncias para serem consumidos.

[7] Segundo Carolina Trivelli (2020), metodologias contemporâneas de classificação das populações rurais e urbanas para a América Latina e Caribe revelam que as populações rurais, entendidas para além dos habitantes dos campos, rios e florestas, podem chegar a representar cerca de 40% da população total desses países, fator que altera significativamente o peso demográfico destes grupos sociais. Além disso, é preciso considerar que do total das populações rurais quase 50% é de origem indígena e afrodescendente, revelando a diversidade social destes povos.