FILA ÚNICA DE LEITOS
urgências, dificuldades e enfrentamentos
Dorival Fagundes Cotrim Junior[1]
Instituto de Medicina Social da UERJ
dorivalfcotrim@gmail.com
Lucas Manoel da Silva Cabral[2]
Instituto de Medicina Social da UERJ
Felipe Rangel de Souza Machado[3]
Fundação Oswaldo Cruz
felipersmachado@gmail.com
______________________________
Resumo
O artigo objetiva discutir a necessidade de implantação da fila única de leitos no contexto da pandemia de COVID-19. O texto demonstra a urgência e a necessidade da regulação de todos os leitos, subordinando-os ao Estado, apresentando ainda as dificuldades de operacionalização, os enfrentamentos com interesses setoriais em face do interesse público, as desigualdades estaduais na oferta e apresenta dados extraídos do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil (CNES). É possível evidenciar que somente com a criação de uma fila única o país alcançará a marca de 2,87 leitos por 10 mil habitantes (superior à média exigida pelos epicentros mundiais, qual seja, 2,4 leitos de UTI por 10 mil habitantes). Por fim conclui-se que todas estas questões precisam ser sopesadas rapidamente, e que, em virtude da urgência, da previsão legal e do direito à vida, o melhor caminho para a regulação seja via requisição compulsória.
Palavras-chave: Regulação Pública de Leitos. UTI. SUS. COVID-19. Pandemia.
SINGLE QUEUE OF BEDS
urgencies, difficulties and confrontations
Abstract
The article aims to discuss the need to implement the single bed queue in the context of the COVID-19 pandemic. The text demonstrates the urgency and the need to regulate all beds, subordinating them to the State, presenting operational difficulties, confrontations with sectorial interests in the face of the public interest, state inequalities in supply and presenting data extracted from the Register National of Health Establishments of Brazil (CNES). It is possible to show that only with the creation of a single queue the country will reach the mark of 2.87 beds per 10,000 inhabitants (higher than the average required by world epicenters, that is, 2.4 ICU beds per 10,000 inhabitants). Finally, it is concluded that all these issues need to be dealt with quickly, and that, due to the urgency, the legal provision and the right to life, the best way for regulation is via compulsory requisition.
Keywords: Public Regulation of Beds. ICU. SUS. COVID-19. Pandemic.
1 INTRODUÇÃO
A questão da fila única dos leitos é medida de primeira ordem e urgência no atual contexto da pandemia da COVID-19 (COSTA e LAGO., 2020; CASTRO et al., 2020), considerando o uso longo e intenso de leitos pelos infectados mais graves ou já com outras comorbidades. O que pensa, por exemplo, o cidadão quando sabe que há leitos disponíveis no setor privado enquanto tem gente morrendo por falta de leitos públicos? O que está em jogo é o confronto entre interesses privados e o interesse público do qual emergem duas dificuldades: 1) as resistências do setor mercantil; e 2) as diversidades regionais do país.
Em números absolutos, disponíveis no CNES, o Ministério da Saúde (MS) disponibilizava em dezembro de 2019 (momento pré-pandemia) 46.045 leitos de UTI em todo o território, sendo 23.049 do SUS e 22.996 da rede privada, o que por si já deveria despertar o real interesse do Estado em fazer valer os seus poderes de Administração Pública com a possibilidade de operar a requisição administrativa destes leitos privados. Contudo, mesmo após os movimentos dos governadores estaduais em expandir o número de leitos de UTI em suas regiões, ocorreu uma inversão e a oferta de leitos privados ultrapassou a oferta de leitos SUS.
Assim, no curso da pandemia (competência abril/2020) o total de leitos de UTI cadastrados no CNES saltou para 60.265, sendo 26.153 da rede SUS e 34.112 da rede suplementar. Ou seja, o aumento de leitos do setor privado no período de dezembro a abril foi de 32,59% enquanto que no SUS foi de 11,87%, somente.
Se unificarmos esses leitos, a média geral sobe para 2,87 a cada 10 mil pessoas, acima da necessidade que vem sendo observada nos países mais afetados. Ou seja, defendemos a fila única, entre outros argumentos levantados, porque sua adoção daria conta das necessidades impostas pela pandemia utilizando-se apenas a capacidade instalada já existente.
É preciso ainda relembrar o “espírito” da Constituição de 1988 no campo da saúde, que indubitavelmente é o da universalidade e da igualdade, dois dos princípios constitucionais do SUS. Há evidências de que a nossa universalidade é rarefeita e pouco sólida, mas em um contexto de pandemia esse tema retorna com mais veemência. Dividimos os leitos em SUS e Não SUS, mas é importante registrar que o SUS engloba todo o sistema de saúde do Brasil, tanto público quanto privado, inclusive é o que justifica a existência da ANS no âmbito do Ministério da Saúde; e assim os princípios de universalidade e igualdade deveriam valer para todos os setores.
Entretanto, fechamos os olhos para essa questão há tempos, o que acaba por torná-la praticamente uma anedota na vida real, mas que talvez em contexto de pandemia ultracontangiosa essa questão mereça alguma menção. Este é mais um argumento que justifica o poder de requisição do Estado sobre os leitos privados.
Portanto, somente com a criação de uma fila única o Brasil alcançará a marca de 2,87 leitos por 10 mil habitantes (superior a marca de 2,4 leitos de UTI por 10 mil habitantes, que foi a média necessária para os epicentros mundiais da pandemia).
Concluímos que o tema deve ser rapidamente sopesado e que, em virtude da urgência, das previsões normativas e do direito à vida, o melhor caminho para a regulação pública seja via requisição administrativa e que as desigualdades regionais e estaduais nos leitos ratificam a necessidade da fila única dos leitos.
2 METODOLOGIA
Para a construção do trabalho, especificamente para uma revisão bibliográfica, foram realizadas buscas na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e no Google Acadêmico a fim de encontrar textos e artigos que tratassem do tema da fila única de leitos. Todavia, utilizando-se os termos “fila única” e “COVID-19” não foram encontrados resultados relacionados, exceto dois no Google Acadêmico, quanto a um relatório do IE/UNICAMP e a decisão do Ministro do STF Ricardo Lewandowski na ADPF nº 671 cuja pretensão se relacionada ao tema da pesquisa, uma vez que objetivava o controle e gerenciamento de todos os leitos pelo SUS, em uma fila única.
Sendo assim debruçamo-nos sobre uma série de documentos para compreender a questão da fila única no SUS, como os Projetos de Lei (PL) nº 2.308/2020 e PL nº 2.176/2020, relacionados à regulamentação da fila única dos leitos, bem como a ADPF nº 671/2020 (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020), já mencionada, a fim de compreender as tentativas de disputas institucionais (Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal) em torno desta questão que parece ser de crucial importância, considerando as taxas atuais de ocupação dos leitos em todo o país, especialmente nos estados de São Paulo, Ceará, Rio de Janeiro, Amazonas e Pernambuco.
Em seguida buscamos identificar a questão da fila única na Recomendação nº 026, de 22 de abril de 2020 formulada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), assinada pelo presidente do Conselho Fernando Pigatto, que vai no sentido de recomendar aos gestores do SUS, dentro das suas competências, “que requisitem leitos privados, quando necessário, e procedam à sua regulação única a fim de garantir atendimento igualitário durante a pandemia” (CNS, 2020).
Além disso identificamos como importante o Manifesto “Leito para Todos + Vidas Iguais”, apoiado por uma série de Entidades e Movimentos da Saúde Coletiva e mesmo outros movimentos sociais, bem como por muitos apoios individuais (3.012 assinaturas até 11 de maio de 2020, último dado disponível). Há também manifestações de apoio à regulamentação pública por senadores e deputados (STROPASOLAS, 2020).
Notas técnicas também foram consultadas, motivado, sobretudo pela falta de artigos científicos a respeito, e que se mostraram fundamentais para uma compreensão mais robusta e pautada nos fatos. Dentre estas ressaltamos as notas técnicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde – IEPS (RACHE et al., 2020a; WANG e LUCCA-SILVEIRA, 2020), da NESCON/UFMG (ALMEIDA et al., 2020), do GPDES/UFRJ e GEPS/USP (2020) e da CECON/UNICAMP (MELLO et al., 2020).
Para a construção das tabelas e mapas dispostas ao longo do texto foram consultados alguns bancos de dados: IBGE - Estimativa populacional 2019; indicadores obtidos junto ao Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil (CNES), do Ministério da Saúde - Competência abril/2020; Agencia Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – Competência abril/2020; Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS / MS) – Painel Coronavírus e a plataforma internacional de dados aberta Our World In Data. Os leitos de UTI’s considerados foram: UTI adulto I, UTI adulto II, UTI adulto III (Portaria GM/MS nº 1.631, de 1º de outubro de 2015), UTI infantil I, UTI infantil II, UTI infantil III (Portaria GM/MS nº 1.631/2015), UTI neonatal I, UTI neonatal II, UTI neonatal III (PT/GM/M n° 930, de 10 de maio de 2012), UTI de Queimados, UTI coronariana tipo II -UCO tipo II, UTI coronariana tipo III - UCO tipo III (BRASIL, 2017).
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Tabela 1 : Proporção de leitos de UTI SUS e Não SUS por região / UF. Momento pré-pandemia (dezembro/2019) e Pandemia (abril/2020)
Região / UF |
DEZEMBRO/2019 |
ABRIL/2020 |
||||
Total de Leitos de UTI¹ |
Leitos de UTI SUS¹ |
Leitos não SUS¹ (Privado) |
Total de leitos de UTI¹ |
Leitos de UTI SUS¹ |
Leitos não SUS¹ (Privado) |
|
Norte |
2.355 |
1.501 |
854 |
3.128 |
1.793 |
1.335 |
Nordeste |
8.472 |
5.068 |
3.404 |
12.480 |
5.968 |
6.512 |
Sudeste |
24.277 |
10.600 |
13.677 |
31.292 |
11.696 |
19.596 |
Sul |
6.650 |
4.174 |
2.476 |
8.269 |
4.761 |
3.508 |
Centro-oeste |
4.291 |
1.706 |
2.585 |
5.096 |
1.935 |
3.161 |
BRASIL |
46.045 |
23.049 |
22.996 |
60.265 |
26.153 |
34.112 |
Fontes: Os cálculos foram realizados com bases nos seguintes bancos: ¹indicadores obtidos junto ao Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil (CNES), do Ministério da Saúde – Competências: dezembro/2019 e abril/2020.
Em números absolutos, disponíveis no CNES, o Ministério da Saúde (MS) disponibilizava em dezembro de 2019 (momento pré-pandemia) 46.045 leitos de UTI em todo o território, sendo 23.049 do SUS e 22.996 da rede privada, No curso da pandemia (competência abril/2020) o total de leitos de UTI cadastrados no CNES saltou para 60.265, sendo 26.153 da rede SUS e 34.112 da rede suplementar. Ou seja, o aumento de leitos do setor privado no período de dezembro a abril foi de 32,59% enquanto que no SUS foi de 11,87%, somente.
Se esses leitos forem unificados, a média geral sobe para 2,87 a cada 10 mil pessoas, acima da necessidade que vem sendo observada nos países mais afetados. Ou seja, defendemos a fila única, entre outros argumentos levantados, porque sua adoção daria conta das necessidades impostas pela pandemia utilizando-se apenas a capacidade instalada já existente. E pela necessidade do próprio contexto a ação precisa ser rápida, razão pela qual deve-se adotar o procedimento da requisição administrativa compulsória. Mas o que se entende por ela?
A requisição administrativa é a “utilização coativa de bens ou serviços particulares pelo Poder Público por ato de execução imediata e direta da autoridade requisitante e indenização ulterior, para atendimento de necessidades coletivas urgentes e transitórias” (MEIRELES, 2009).
O fundamento jurídico deste instrumento está em dois artigos da Constituição Federal de 88, 5º, XXIII e 170, III, que autorizam o Estado a, diante de uma situação de perigo iminente, como uma pandemia, requisitar bens móveis/imóveis e serviços imediatamente, prescindindo de prévia autorização judicial, pois o ato que a formaliza é auto executório.
A requisição é, portanto, um ato de força cogente do Poder Público, “discricionário quanto ao objeto e oportunidade da medida, mas condicionado à existência de perigo público iminente e vinculado à lei quanto à competência da autoridade requisitante, à finalidade do ato e, quando for o caso, ao procedimento adequado” (MEIRELES, 2009). E caso haja direito à indenização (se houve algum dano) ela será sempre posterior, podendo o valor indenizatório estipulado ser discutido judicialmente e com base em certos critérios (CARVALHO FILHO, 2009).
O fato de (i) a indenização ser posterior é, com certeza, um dos componentes constituintes do medo e do receio dos agentes privados do mercado, somado à (ii) morosidade do Poder Judiciário, pois este é o espaço de resolução de divergências a respeito do valor indenizatório e (iii) uma forte noção de direito de propriedade que pouco ou nada considera a função social da propriedade, como bem definido na Carta Constitucional (art. 5º, XXIII).
Retomando, adicione-se ainda aos números de leitos o fato de que a proporção nacional de leitos de UTI do SUS é de 12,45 para 100 mil habitantes (estimativa populacional do IBGE em 2019) e os beneficiários de planos privados de saúde ficam com uma fatia numericamente maior dos leitos, conflitando com os dois princípios constitucionais já mencionados, universalidade e igualdade. Proporcionalmente essa parcela da população está expressamente privilegiada em detrimento dos outros, uma vez que a proporção de leitos de UTI privado é 6 (seis) vezes maior que a da rede pública, alcançando a marca de 72,45 para 100 mil beneficiários (cálculos realizados com os dados da Agencia Nacional de Saúde Suplementar - Competência abril/2020, excluídos 23.244 beneficiários cuja residência não foi identificada).. Em alguns estados, essa proporção é ainda maior (ver tabela 2).
Tabela 2: Proporção de Leitos SUS/100.000 habitantes e Não SUS/100.000 beneficiários.
Região / UF |
Leitos de UTI SUS / 100.000 hab. |
Leitos de
UTI NÃO SUS / |
Número de vezes em que a oferta do setor privado de leitos é maior que o publico |
Norte |
9,73 |
78,05 |
8 |
Rondônia |
14,12 |
111,36 |
8 |
Acre |
7,82 |
156,52 |
20 |
Amazonas |
12,50 |
50,50 |
4 |
Roraima |
5,78 |
152,81 |
26 |
Pará |
7,79 |
77,57 |
10 |
Amapá |
8,16 |
113,00 |
14 |
Tocantins |
11,51 |
98,11 |
9 |
Nordeste |
10,46 |
98,62 |
9 |
Maranhão |
8,44 |
79,65 |
9 |
Piauí |
7,42 |
111,21 |
15 |
Ceará |
10,21 |
90,33 |
9 |
Rio Grande do Norte |
9,84 |
117,37 |
12 |
Paraíba |
12,10 |
82,84 |
7 |
Pernambuco |
13,70 |
119,92 |
9 |
Alagoas |
13,48 |
70,08 |
5 |
Sergipe |
12,35 |
39,42 |
3 |
Bahia |
8,89 |
106,91 |
12 |
Sudeste |
13,24 |
68,33 |
5 |
Minas Gerais |
13,68 |
64,31 |
5 |
Espírito Santo |
14,26 |
98,49 |
7 |
Rio de Janeiro |
10,19 |
111,43 |
11 |
São Paulo |
14,09 |
54,08 |
4 |
Sul |
15,88 |
51,20 |
3 |
Paraná |
19,09 |
48,88 |
3 |
Santa Catarina |
13,99 |
47,14 |
3 |
Rio Grande do Sul |
13,85 |
56,15 |
4 |
Centro-oeste |
11,87 |
97,55 |
8 |
Mato Grosso do Sul |
11,91 |
61,68 |
5 |
Mato Grosso |
8,81 |
135,33 |
15 |
Goiás |
12,13 |
82,82 |
7 |
Distrito Federal |
14,79 |
114,77 |
8 |
Brasil |
12,45 |
72,45 |
6 |
Fontes: Os cálculos foram realizados com bases nos seguintes bancos: ¹IBGE - Estimativa populacional 2019; ² indicadores obtidos junto ao Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil (CNES), do Ministério da Saúde - Competência abril/2020; ³Fonte: ANS - Competência abril/2020 (não estão contabilizados 23.244 beneficiários cuja residência não foi identificada);
É importante atentar para o fato de que existem dez estados em que a proporção de leitos privados é superior ao público, sendo que 9 desses estados se encontram nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que já sofrem com a desigualdade de distribuição de leitos, conforme comentado anteriormente. Esse dado é relevante, pois põe em evidência a capilaridade do setor privado.
Não é por acaso que em tempos de pandemia o Amazonas, por exemplo, já enfrenta um estado de colapso na rede pública desde abril, tendo sido contabilizado até o dia 20 de maio 23.704 casos, 1.561 mortes e uma taxa de mortalidade de 37,7 a 100 mil pessoas, sendo a maior incidência proporcional de todo o país.
O Ceará, segundo estado mais afetado em número absoluto de casos contabiliza 30.560, 1.900 mortes e uma taxa de mortalidade 20,8/100 mil hab.; enquanto que o Mato Grosso do Sul, estado menos afetado, contabiliza 693 casos, 17 mortes e uma taxa de mortalidade 0,6/100 mil hab.
No Ceará a proporção de Leitos de UTI SUS a cada 100 mil habitantes é de 10,21 enquanto que a dos leitos NÃO SUS é de 90,33, praticamente nove vezes maior. No estado de Mato Grosso do Sul a proporção leitos SUS a cada 100 mil habitantes é de 11,91 e a de leitos NÃO SUS é de 61,68 a cada 100 mil beneficiários, sendo cinco vezes maior. Os dados sempre demonstram a maior segurança sanitária para aqueles detentores de seguros privados de saúde.
O quinto estado com maior número absoluto de casos é o Pernambuco, com 22.560 casos, 1.834 mortes e uma taxa de mortalidade 19,2/100 mil hab., sendo que o país como um todo já é o terceiro mais contaminado do planeta, com mais de 290 mil casos. Em Pernambuco a proporção de Leitos UTI SUS a cada 100 mil habitantes é de 13,70, ao passo que a dos leitos NÃO SUS é de 119,92, igualmente nove vezes maior que a proporção pública.
E todos estes são os dados oficiais, desconsiderando, portanto, os fortes indícios de subnotificação, como apontam uma série de estudos sobre o tema no país e no exterior (REIS et al., 2020; ROCHA e TOMAZELLI., 2020; KRANTZ e RAO, 2020), bem como a proporção de 63 testes por cada hum mil habitantes, taxa bem inferior a de outros países, mesmo latino-americanos como Cuba (2,65), Chile (6,43), Paraguai (0,83), Peru (4,44), Argentina (0,76) e Equador (1,15) (WHO, 2020)
Mas se fosse incluído no ranking mundial, o Brasil estaria na 60ª posição entre 75 países que realizaram testes para COVID-19 até 30 de abril (WHO, 2020), à frente somente da Tailândia, Filipinas, Paquistão, Marrocos, Bolívia, Índia, Senegal, México, Uganda, Nepal, Quênia, Indonésia, Bangladesh, Mianmar, Etiópia e Nigéria, respectivamente.
Outra questão importante e que prejudica viabilizar as requisições é a não disponibilização do quantitativo de leitos disponíveis e ocupados, bem como o quantitativo de internações e o tipo de leito utilizado, como determinado pela Portaria nº 758, de 9 de abril de 2020, especificamente no art. 2°, § 2°.
Como se não bastasse essa negligência, as Secretarias Estaduais de Saúde (SES) passaram a divulgar diariamente a taxa de ocupação, mas o MS simplesmente não os reúne, obstaculizando o direito à informação do cidadão, provavelmente por falta de vontade política e de organização, pois, apenas no período pandêmico, já ocorreram três saídas da pasta da Saúde e no momento em que escrevemos esse artigo, julho de 2020, o cargo ainda está vago.
O direito à informação integra o rol de direitos fundamentais exarados no art. 5º, XXXIII da CF 88, que prevê o direito de qualquer um receber dos órgãos públicos “informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestados no prazo da lei”, excetuados os casos em que o “sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.
O direito à informação dos dados relacionados à pandemia é claramente de interesse coletivo ou geral, não devendo ser escondido ou escamoteado, sob pena de prejudicar uma intervenção política mais consistente no combate à COVID-19 e seus reflexos sociais; e um planejamento minimamente adequado em saúde. É o que decorre também da inteligência do art. 7º, inciso VII da Lei Orgânica da Saúde (LOS), que determina a “utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática”. Na qualidade de princípio ele deve ser observado e cumprido nas ações e serviços públicos de saúde bem como nos serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS, com fundamento constitucional no art. 198 da Carta Magna.
Este direito está igualmente resguardado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, ambos especificamente no art. 19; bem como no art. 13 da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos. No âmbito interno ele encontra embasamento no art. 7º da LOS, especificamente no inciso VI, que prevê a “divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário”. Tal como comentando no parágrafo acima, a sua observância é obrigatória nas ações e serviços públicos e privados de saúde. Agora nesta pandemia ela adquiriu uma relevância ainda maior, uma vez que o recebimento correto e em tempo das informações está umbilicalmente ligado com o exercício digno da cidadania (FARIAS, 2004) e do protagonismo político das lutas cidadãs.
Ademais a garantia do direito à informação está relacionada com a dignidade da pessoa humana, vetor axiológico da Carta Cidadã de nossa República, na medida em que o acesso à informação verídica, já produzida e oficial atua positivamente na garantia e desenvolvimento de toda a coletividade, especialmente em tempos pandêmicos nos quais se luta contra um agente invisível.
Portanto, para além da importância deste direito enquanto uma garantia em si, ele também serve como um instrumento de realização de outros direitos, como o direito à saúde, a nível individual e coletivo.
Por vezes parece que o Governo Federal pouco ou nada se importa com a vida dos cidadãos, independente do espectro político ou orientação ideológica, filosófica, religiosa, etc., ao adotar posturas tão declaradamente negacionistas e/ou minimizadoras quanto à pandemia (NORTON, 2020).
E quanto às diferenças regionais é preciso considerar as dinâmicas de cada região, uma vez que no estado de São Paulo 37,33% da população possui plano de saúde (ao passo que em alguns estados do Nordeste, como o Maranhão e do Norte essa taxa é inferior à 10%, como no Pará (9,13%), Maranhão (6,69%), Tocantins (6,80%), Acre (4,85%) conforme a tabela abaixo. Outro fator que chama a atenção é o fato das regiões que tem a menor proporção de distribuição de leitos de UTI’s são aquelas em que a população, em sua grande maioria, é usuário exclusivo do SUS (tabela 3).
Tabela 3: Proporção da população dependente do SUS x população com planos privados de saúde
Região / UF |
População¹ |
Proporção da População Dependente do SUS (%) |
Beneficiários de planos privados de saúde³ |
Proporção da População com plano de saúde (%) |
Norte |
18.430.980 |
90,72 |
1.710.534 |
9,28 |
Nordeste |
57.071.654 |
88,43 |
6.602.963 |
11,57 |
Sudeste |
88.371.433 |
67,55 |
28.678.570 |
32,45 |
Sul |
29.975.984 |
77,14 |
6.852.060 |
22,86 |
Centro-oeste |
16.297.074 |
80,12 |
3.240.438 |
19,88 |
Brasil |
210.147.125 |
77,59 |
47.084.565 |
22,41 |
Fontes: Os cálculos foram realizados com bases nos seguintes bancos: ¹IBGE - Estimativa populacional 2019; ² indicadores obtidos junto ao Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil (CNES), do Ministério da Saúde - Competência abril/2020; ³Fonte: ANS - Competência abril/2020 (não estão contabilizados 23.244 beneficiários cuja residência não foi identificada).
Isso leva a pensar a eficácia da fila única em todas as unidades da federação, certos de que não inviabiliza todo o projeto e de que continua sendo uma indubitável medida de justiça e de consideração igualitária de todas as vidas humanas.
Apesar dessas diferenças regionais os números encontrados sugerem um forte crescimento do setor privado em todos os estados quanto ao número de leitos de UTI, mesmo os do Norte e do Nordeste, bem superiores ao avanço dos leitos públicos (ver tabela 4).
Tabela 4: Criação de leitos de UTI – COVID públicos e privados por região/UF
Região / UF |
Leitos de UTI SUS COVID-19 |
Leitos de UTI NÃO SUS COVID-19 (privado) |
Total de leitos de UTI COVID-19 criados (SUS E NÃO SUS) |
Norte |
292 |
481 |
773 |
Rondônia |
38 |
25 |
63 |
Acre |
10 |
44 |
54 |
Amazonas |
144 |
113 |
257 |
Roraima |
0 |
30 |
30 |
Pará |
32 |
254 |
286 |
Amapá |
32 |
11 |
43 |
Tocantins |
36 |
4 |
40 |
Nordeste |
900 |
3.108 |
4.008 |
Maranhão |
110 |
134 |
244 |
Piauí |
20 |
202 |
222 |
Ceará |
200 |
648 |
848 |
Rio Grande do Norte |
10 |
313 |
323 |
Paraíba |
21 |
82 |
103 |
Pernambuco |
256 |
770 |
1.026 |
Alagoas |
139 |
101 |
240 |
Sergipe |
54 |
3 |
57 |
Bahia |
90 |
855 |
945 |
Sudeste |
1.096 |
5.919 |
7.015 |
Minas Gerais |
45 |
1.595 |
1.640 |
Espírito Santo |
88 |
372 |
460 |
Rio de Janeiro |
50 |
1.634 |
1.684 |
São Paulo |
913 |
2.318 |
3.231 |
Sul |
587 |
1.032 |
1.619 |
Paraná |
345 |
253 |
598 |
Santa Catarina |
212 |
264 |
476 |
Rio Grande do Sul |
30 |
515 |
545 |
Centro-oeste |
229 |
576 |
805 |
Mato Grosso do Sul |
35 |
107 |
142 |
Mato Grosso |
0 |
284 |
284 |
Goiás |
104 |
185 |
289 |
Distrito Federal |
90 |
0 |
90 |
Brasil |
3.104 |
11.116 |
14.220 |
Fontes: indicadores obtidos junto ao Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil (CNES), do Ministério da Saúde - Competência abril/2020
Tratar da fila única dos leitos não significa desprezar outros recursos e iniciativas, como a criação emergencial dos hospitais de campanha (um equívoco, em verdade, pois seria mais interessante ampliar e adequar os leitos dos hospitais já existentes), mas que sozinhos também não são suficientes, eis que materiais e recursos humanos são imprescindíveis para a materialização da assistência e do cuidado, não obstante receberem tratamentos e orientações diversas a depender do país e dos locais de trabalho (NORTON, 2020; HUXTABLE, 2020; O’SULLIVAN, 2020).
Ao se pensar a fila única é preciso dizer que o Brasil não está sozinho, pois outros países já tomaram medidas semelhantes, como a Espanha que chegou a estatizar os seus hospitais (CARVALHO, LIMA e COELI, 2020), mas a construção da fila deve ainda observar o baixo quantitativo e a má distribuição territorial dos leitos hospitalares de UTI, conforme a tabela 5.
O CNS a partir da Recomendação nº 026/2020 sugeriu aos gestores do SUS, no seio das suas competências, a requisição dos leitos privados, quando necessário, bem como a regulação única para que seja materializado o atendimento igualitário, como esposado na Carta Constitucional (CNS, 2020).
Como dito, tanto é possível fazer acordos de contratação de leitos com o setor privado, quanto o Estado operar a requisição de leitos a partir de um decreto do Poder Executivo local e sendo o pagamento, em regra, definido depois, em modo de indenização. São estes os dois modos possíveis de se realizar a união dos leitos.
Há ainda os dois projetos de lei em tramitação a respeito da fila única, PLs nº 2.176/2020 e 2.308/2020, prevendo a destinação de recursos da União para o financiamento do uso compulsório dos leitos ou mesmo a sua contratação emergencial, alterando a Lei nº 13.979/2020.
Caso algum dos PLs venha a se tornar lei será preciso criar uma espécie de censo hospitalar diariamente alimentado para que se saiba, com precisão, quais as regiões mais afetadas, as que eventualmente estarão com leitos disponíveis, entre outras informações para bem operacionalizar a política.
A pergunta necessária a ser feita diz respeito a possibilidade ou não de o Ministério da Saúde promover tal ação, uma vez que sua atual direção vem provando, quase que diariamente, o desinteresse completo acerca da COVID-19 e da saúde pública/coletiva em geral (HORTON, 2020), forçando-nos a tentar pensar outras saídas, novas alternativas, de modo a depender o mínimo possível do governo federal.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda ter o mínimo de um leito de UTI para cada 10 mil habitantes (WHO, 1984). Embora a média nacional do SUS cumpra, no limite, a recomendação com 1,24 leitos/10mil hab, dois terços dos entes federativos (10 dos 27) não chegam a isso, conforme a tabela 5.
Segunda a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB, 2020) nos epicentros mundiais da epidemia, a demanda chegou a 2,4 leitos de UTI por 10 mil habitantes. É quase o dobro da média disponível no setor público brasileiro. A questão é que 77,59% dos brasileiros usam exclusiva e diretamente o SUS e 22,41% (tabela 3) têm plano de saúde (que atendem com folga os parâmetros da OMS em todos os estados, com média de 7.24 leitos por 10 mil segurados).
No total, contando UTIs do SUS e privadas, o Brasil tem 60.265 mil leitos (26.153 SUS e 34.112 não SUS, vide tabela 1). Assim, unificando os leitos, a média sobe para 2,87 a cada 10 mil pessoas, acima da necessidade que vem sendo observada nos países mais afetados. As piores situações estão nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, as mais pobres. No Sul e no Sudeste, o Rio de Janeiro é o único estado precário nesse ponto.
Tabela 5:UTI’s nos estados na crise do coronavírus – competência abril de 2020
Região / UF |
Leitos / 10.000 hab. |
Leitos SUS / 10.000 hab. |
Leitos NÃO SUS /10.000 beneficiários |
Norte |
1,70 |
0,97 |
7,80 |
Rondônia |
2,36 |
1,41 |
11,14 |
Acre |
1,54 |
0,78 |
15,65 |
Amazonas |
1,90 |
1,25 |
5,05 |
Roraima |
1,32 |
0,58 |
15,28 |
Pará |
1,49 |
0,78 |
7,76 |
Amapá |
1,68 |
0,82 |
11,30 |
Tocantins |
1,82 |
1,15 |
9,81 |
Nordeste |
2,19 |
1,05 |
9,86 |
Maranhão |
1,38 |
0,84 |
7,97 |
Piauí |
1,86 |
0,74 |
11,12 |
Ceará |
2,27 |
1,02 |
9,03 |
Rio Grande do Norte |
2,68 |
0,98 |
11,74 |
Paraíba |
2,07 |
1,21 |
8,28 |
Pernambuco |
3,05 |
1,37 |
11,99 |
Alagoas |
2,12 |
1,35 |
7,01 |
Sergipe |
1,78 |
1,24 |
3,94 |
Bahia |
2,03 |
0,89 |
10,69 |
Sudeste |
3,54 |
1,32 |
6,83 |
Minas Gerais |
2,91 |
1,37 |
6,43 |
Espírito Santo |
4,15 |
1,43 |
9,85 |
Rio de Janeiro |
4,48 |
1,02 |
11,14 |
São Paulo |
3,43 |
1,41 |
5,41 |
Sul |
2,76 |
1,59 |
5,12 |
Paraná |
3,13 |
1,91 |
4,89 |
Santa Catarina |
2,36 |
1,40 |
4,71 |
Rio Grande do Sul |
2,64 |
1,39 |
5,61 |
Centro-oeste |
3,13 |
1,19 |
9,75 |
Mato Grosso do Sul |
2,49 |
1,19 |
6,17 |
Mato Grosso |
3,18 |
0,88 |
13,53 |
Goiás |
2,58 |
1,21 |
8,28 |
Distrito Federal |
4,93 |
1,48 |
11,48 |
Brasil |
2,87 |
1,24 |
7,24 |
Fonte: Os cálculos foram realizados com bases nos seguintes bancos: ¹IBGE - Estimativa populacional 2019; ² indicadores obtidos junto ao Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil (CNES), do Ministério da Saúde - Competência abril/2020; ³Fonte: ANS - Competência abril/2020 (não estão contabilizados 23.244 beneficiários cuja residência não foi identificada).
Caso o modo de se fazer a fila única seja via contratação e não requisição administrativa compulsória os valores contratados podem chegar a valores acima da média do mercado e dos valores já praticados pelo MS nas relações com os entes federados.
Não há necessidade de se fazer uma lei para a requisição administrativa, pois a própria Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), em seu art. 15, inciso XIII prevê este mecanismo, bastante conhecido pelo Direito Administrativo. Não obstante isso, a previsão foi reforçada no estado de São Paulo, a partir da Lei Municipal nº 17.340/2020, que dispõe sobre medidas de proteção da saúde pública e de assistência para o enfrentamento da Emergência de Saúde Pública em decorrência do Coronavírus no âmbito do Município de São Paulo.
Diante da extrema urgência em certos estados já calamitosos a melhor opção é a requisição administrativa pela agilidade e também quando se considera a bioética (MARTINS, 2020), pois é inadmissível que haja mortes evitáveis (por não poderem receber cuidados por falta de leitos, quando estes estão disponíveis no setor privado). É socialmente inaceitável e conflita com a busca e prevalência do interesse público em face de interesses privados/setoriais, conforme aponta vasta literatura em direito administrativo (MELLO, 2019; CARVALHO FILHO, 2009; DI PIETRO, 2010, 2016).
Francisco Braga, pesquisador da Fiocruz, entende, de modo correto, que as contratações só seriam viáveis se tivessem sido acertadas há meses (janeiro ou fevereiro), o que não foi o caso, haja vista o tempo gasto nas tratativas jurídico-negociais desse porte (FERNANDES, 2020).
O tempo, portanto, aqui funciona como um adversário dos interesses privados que querem negociar os leitos e em defesa da fila única, à medida que contribui, infelizmente, para o aumento do número de casos, de mortes e para a percepção da urgência que o tema merece.
A irresolubilidade do MS (do Governo Federal de modo geral) é também outro problema que precisa ser contornado de alguma forma, pois, ao que tudo indica, não partirá da União indicações neste sentido, já que o próprio presidente considera a COVID-19 uma “gripezinha” e vem constantemente provocando crises em seu governo, inclusive na pasta da Saúde, que é, em verdade, uma “distração mortal” no meio da pandemia (NORTON, 2020).
O ex-Ministro da Saúde, Nelson Teich, que pediu demissão no dia 15 de maio de 2020, tendo ficado menos de um mês à frente do cargo, já afirmou, em defesa dos interesses setoriais, que é preciso ter muito cuidado como isso será feito, pois “pode ter implicações muito grandes no que vai acontecer depois”, e potencialmente “gerar uma insegurança para aqueles que trabalham nos hospitais privados”, podendo ser bem ruim em uma perspectiva de longo prazo. Ele só admitiu conversar sobre isso caso houvesse um esgotamento no SUS (FERNANDES, 2020), ignorando completamente a urgência do assunto e a necessidade de planejamento para as ações de saúde.
Hoje existem estados-membros da federação que estão tentando comprar leitos do setor privado, como Ceará, Pernambuco e São Paulo, comprometendo os seus orçamentos (PITOMBO et al., 2020), o que é extremamente problemático caso não haja um apoio do Governo Federal, o que não está ocorrendo, pelo menos até o momento.
Por fim, não se pode em uma crise ficar à mercê da solidariedade de hospitais particulares para a doação de leitos, que pode ou não acontecer (alto nível de incerteza), como apontou o ex-ministro Teich, da pasta da Saúde; enquanto que já se sabe que na falta de leitos e recursos correlatos vidas serão perdidas, e esse é o maior bem jurídico a ser tutelado e considerado.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O contexto da atual pandemia evidenciou desafios subsumidos ante outras necessidades presentes no cotidiano do SUS. A questão da fila única é um deles. As diretrizes de igualdade e universalidade e o sentido maior de garantia da vida só teriam sido possíveis com a adoção de tal mecanismo. Certamente o setor privado não vê com bons olhos tal proposição, mas não se pode perder de vista que não é possível pensar o direito à saúde em sua plenitude no Brasil sob a batuta do mercado. Não estamos propondo, no entanto, eliminação da existência do privado ou dos planos de saúde, mas pensar a gestão da saúde no Brasil tendo como norte o Direito Fundamental à Vida. Como discutimos ao longo desse texto, O CNS publicou a Recomendação n.026/2020 apoiando a regulamentação da fila única. Tal medida, reforce-se, já está prevista no ordenamento jurídico brasileiro via requisição administrativa compulsória ou a partir da contratação, não sendo necessário, portanto, nenhuma inovação legal. De todo modo existem dois Projetos de Lei em tramitação no Parlamento Brasileiro que versam sobre esta matéria (2.176/2020 e 2.308/2020). Esta pandemia lançou luz para toda sociedade sobre a questão da fragmentação do acesso à saúde e da necessidade de reversão do seu histórico subfinanciamento, reluzindo a urgência de se retomar os princípios firmados na construção de nossa cidadania presentes no Pacto Constitucional de 1988. Esta pandemia mais do que evidenciou a capacidade de atuação do SUS em âmbito nacional.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 2.308. Altera a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para dispor sobre uso compulsório de leitos privados disponíveis, de qualquer espécie, pelos entes federativos para a internação de pacientes acometidos de Síndrome Aguda Respiratória Grave ou com suspeita ou diagnóstico de COVID-19, e dá outras providências. Disponpivel em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141752. Texto original.
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[1] Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC Rio
[2] Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
[3] Mestre e Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social - IMS/UERJ