Economia de francisco e clara:
Respostas das juventudes brasileiras para e por uma nova economia
Andrei Thomaz Costa Oss-Emmer [1]
Universidade Federal de Pelotas
Estela Ramos de Souza de Oliveira1
Universidade Federal de Santa Catarina
Gabriela Consolaro Nabozny1
Universidade Federal de Santa Catarina
Lilian de Pellegrini Elias1
Universidade Estadual de Campinas
Márcio Gasperini Gomes1
Universidade Federal de Santa Catarina
Tiago Arcego da Silva1
Universidade de Passo Fundo
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Resumo
Fome coletiva, pobreza extrema, aumento das desigualdades, insegurança econômica, política e social, perda biodiversidade, acidificação dos oceanos, escassez de água segura, aquecimento global. Os desafios deste tempo estão postos à mesa e urgem por novos caminhos que sejam capazes de superar a lógica de exclusão social e severa degradação ambiental resultantes do modelo econômico atual. Debruçando-se sobre o chamado que faz o Papa Francisco aos jovens do mundo para repensar a economia do presente e projetar a economia do amanhã, o presente artigo tem como objetivo apresentar motivações e princípios que orientam a proposta feito pelo pontífice, denominada Economia de Francisco, assim como expor como as juventudes brasileiras estão dialogando com este chamado.
Palavras-chave: Economia de Francisco. Economia de Francisco e Clara. Novas Economias.
ECONOMY OF FRANCESCO AND CHIARA:
Reponses of Brazilian youths to and for a new economy
Abstract
Collective hunger, extreme poverty, increasing inequalities, economic, political and social insecurity, loss of biodiversity, acidification of the oceans, scarcity of safe water, global warming. The challenges of this time are on the table and urge new paths that are capable of overcoming the logic of social exclusion and severe environmental degradation resulting from the current economic model. Focusing on the call that Pope Francis makes to the young people of the world to rethink the economy of the present and to project the economy of tomorrow, this paper aims to present the motivations and principles that guide the proposal made by the pontiff, called the Economy of Francisco, as well as exposing how Brazilian youths are dialoguing with this call.
Keywords: Economy of Francesco. Economy of Francesco and Clare. New Economies.
1 INTRODUÇÃO
Em meados de 2019, o Papa Francisco lançou um convite a jovens pesquisadores e estudantes de graduação e pós-graduação em economia e áreas correlatas, empreendedores e outros agentes de transformação social (a serviço do bem comum e de uma economia justa, sustentável e inclusiva) do mundo inteiro, para a construção de um pacto por uma nova economia. Intitulada como Carta do Santo Padre para o Evento A Economia de Francisco[2], o Pontífice fez a publicação desta mais precisamente no dia 1º de Maio, data celebrativa do Dia do Trabalhador em vários países e, na tradição do catolicismo, dedicado à memória de São José Operário, como há menção ao término do documento (FRANCISCO, 2019)[3].
Nela estão expressos, além do chamado a um evento específico sobre economia na cidade de Assis, as bases e inspirações para pensar um novo modelo econômico, as quais aprofundaremos ao longo deste artigo, e o apelo que se configura como um importante movimento institucional da Igreja Católica em direção à contestação de modelos pautados em crescimento econômico que degradam a vida, em suas mais diversas formas.
Remetendo à Carta, está expressa a confiança do Pontífice na resposta atenta da juventude mundial, a quem ele indica ser capaz de atender ao chamado e não olhar para o lado[4]. Nesse sentido, em observação às formas de recepção[5] do chamado do Papa Francisco à uma nova economia, este artigo tem como objetivo expor como as juventudes brasileiras estão dialogando com a proposta da Economia de Francisco.
Parte da resposta brasileira à Economia de Francisco pode ser inferida quando observado o número de participantes brasileiros no Evento. O Brasil tem sido identificado como o país com a maior delegação não europeia, ou a segunda maior delegação do Evento, com mais de duzentos jovens entre os dois mil selecionados. O Brasil só tem menos jovens inscritos no Evento se comparado à Itália, país que o sediará. Embora a análise desses números possa indicar diversas leituras, estes evidenciam que os jovens brasileiros foram receptivos à proposta do Papa Francisco e em ir à cidade de Assis e juntos celebrarem o pacto por uma economia “realmada”. No entanto, para além do Evento, o que tem se configurado como prática entre muitos dos inscritos brasileiros, e para além destes, é a mobilização de um processo de reflexão, identificação, contemplação, organização e promoção de (e por) economia(s) consonantes ao que está na proposta da Carta.
2 O CONVITE À “REALMAR A ECONOMIA”
O apelo para um “realmar” a economia não surge apenas de uma leitura romântica de possibilidades, mas sim, a partir de uma profunda leitura e denúncia do estágio do capitalismo mundial, que gera um abismo de desigualdades e uma enorme concentração das riquezas. Não basta apenas remodelar ou oferecer saídas paliativas ao trágico estado da arte, que mantém bilhões de pessoas na linha da pobreza. Pelo contrário, o convite é que seja feito “um ‘pacto’ para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã” (FRANCISCO, 2020).
Os destinatários e destinatárias são os que, na visão de Francisco, portam consigo o apelo ao novo, sensíveis a ouvir, acolher e pôr na centralidade da discussão os mais pobres e o “gemido de toda a criação”, ou seja, as juventudes de todo o mundo, protagonistas da mudança.
2.1 O CHAMADO DO PAPA FRANCISCO
Desde o início do pontificado, em 2013, o Papa Francisco aponta caminhos para a construção de um novo ideal de mundo, indica as bases para que seja construído um sistema apoiado no amor e na ternura, um novo humanismo solidário. Conforme o pontífice, todas e todos devem se propor a construir a Civilização do Amor, como dito em discurso proferido às mais de três milhões de pessoas que se reuniram na Praia de Copacabana, na ocasião da Jornada Mundial da Juventude, em 2013. Para alcançar esse fim, também sugere a Revolução da Ternura, como disse em Capítulo Geral da Ordem dos Frades Carmelitas (TAVARES, 2019). Francisco nos apresenta objetivo e caminho muito evidentes. Basta o aceite a trilhar esses passos.
Hodiernamente, Francisco desponta como o único líder mundial capaz de reunir as mais diversas pessoas em um ideal supra-religioso, que se sobrepõe aos eventuais muros construídos na perspectiva de aprisionar o Sagrado, a conclamar conjuntamente uma nova organização mundial. Ao deixar Buenos Aires para tornar-se o bispo de Roma, Jorge Bergoglio assume o nome de Francisco e, com a profecia que este nome inspira, convida os fiéis católicos a assumirem um novo olhar para com as periferias globais, abandonando a perspectiva eurocêntrica, imperialista, colonizadora, para se propor a estar ao lado das periferias do mundo: geográficas e existenciais, convocação que foi formalizada na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (FRANCISCO, 2013).
Diante de tantas atuações coerentes a esse objetivo, houve algumas que se mostraram ainda mais importantes para concretizar a complexidade do ideal de reconstrução da economia. Citamos duas: os Encontros Mundiais com os Movimentos Populares, que representaram a ousadia do líder global em ir ao encontro e fortalecer iniciativas dos povos, e a publicação da Carta Encíclica Laudato Si’, que demonstrou novas perspectivas para a religião e para o cuidado com a Casa Comum, documento que passou a ser estudado nas mais variadas frentes de atuação, transcendendo o catolicismo.
No Encontro com os Movimentos Populares na Bolívia, em 2015 (FRANCISCO, 2015b), houve talvez a mais forte intervenção realizada por Francisco no que toca à economia, na qual ele se coloca ao lado dos latino-americanos na luta por terra, teto e trabalho, e aponta a necessidade de profundas mudanças. Nessa ocasião, ele convida à realização de três atividades que trilham o mesmo caminho da Economia de Francisco. A primeira é pôr a economia a serviço dos povos, para que os seres e a Terra não estejam a serviço do dinheiro. Depois, chama a unir os povos nos caminhos da paz e justiça, bem como a defender a Mãe Terra.
Também em 2015, foi apresentada ao mundo a Carta Encíclica Laudato Si’ (FRANCISCO, 2015a), que busca demonstrar que não há como dissociar as motivações e consequências da crise socioambiental, mas que tudo está interligado e inserido em uma integralidade complexa, na perspectiva da Ecologia Integral, que deve ser observada na totalidade para que se obtenham resultados concretos na construção do Bem Comum. Sendo impossível, portanto, separar a busca da preservação do Planeta, da justiça para com os pobres e da solução dos grandes problemas mundiais. Nessa Carta, ele aproxima os problemas e as soluções nos ângulos individuais e coletivos, colocando a fraternidade e a equidade como ferramentas de mudança.
É em coerência com esses discursos e documentos, além de tantos que fazem parte do programa do pontificado de Francisco e que foram disponibilizados pelo Vaticano desde 2013, que emerge, em 01 de Maio de 2019, a carta de convocação para o evento A Economia de Francisco, em Assis, na Itália. Não por acaso se dá a escolha desta cidade como ponto de encontro. Foi em Assis que nasceram e viveram Clara e Francisco, símbolos de vivência e atuação da fraternidade e solidariedade. De imediato e contemporâneo ao surgimento do capitalismo, tais figuras já apresentam práticas em que os bens são postos à mesa para a partilha entre aqueles que podem e conseguem produzir e aqueles que não têm idênticas possibilidades.
Nesse mesmo espírito, Francisco de Roma, convoca jovens do mundo inteiro para um grande encontro, no berço do humanismo fraterno, para fortalecer uma nova perspectiva de organização econômica mundial, produzir pontes entre as boas iniciativas já existentes, bem como, para impulsionar aquelas experiências que ainda não são valorizadas diante da potência transformadora que carregam. A carta de convocação para o evento A Economia de Francisco foi endereçada a jovens de 18 a 35 anos - acadêmicos, ativistas, empreendedores -, com o objetivo de promover o encontro, a experiência, o envio para a construção de uma “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta” (FRANCISCO, 2019).
O chamado para “realmar” a economia, contudo, não se restringe aos participantes do evento. É também dirigida a todas as pessoas de boa vontade, dispostas a promover as mudanças a partir de seus territórios, mobilizando-se para cuidar da casa comum, das criaturas que coabitam os diversos espaços, em caminho de superação dos processos exploratórios da terra e das diversas formas de vida.
2.2 ECONOMIA A SERVIÇO DA VIDA: DOS FUNDAMENTOS E PRÁTICAS JÁ EXISTENTES A IMPULSOS PARA NOVAS PRÁTICAS
Em Sobre Ética e Economia, Amartya Sen aponta duas origens distintas e complementares para a economia, uma relacionada à ética e outra relacionada à engenharia. Para o filósofo e economista indiano, estas origens estão mutuamente relacionadas e ele considera que “[...]a natureza da economia moderna foi substancialmente empobrecida pelo distanciamento crescente entre economia e ética.” (SEN, 1999, p.23). A superação desse distanciamento é possível quando, diante do paradigma do auto-interesse como critério exclusivo de racionalidade, são consideradas as dimensões genuinamente humanas da própria humanidade: laços comunitários, princípios, valores e compromissos sociais que regem as instituições nascentes e o elã que motiva as juventudes do mundo a buscar e construir um outro mundo possível.
A indissociabilidade entre ética e economia é reafirmada pelos agentes dos diversos movimentos de economias solidárias e criativas, por grupos voluntários, conselhos comunitários, e tantas outras formas de agremiações participativas. Esses agentes de mudança que, de maneira autogestionada, buscam construir modelos econômicos alternativos são os criadores do novo e é desde estas experiências que as juventudes brasileiras têm articulado a Economia de Francisco e Clara[6].
Essa é a genuína experiência propositiva de um novo paradigma, diante de teorias que endossam a competitividade e o lucro, praticar uma economia a serviço da vida, propondo objetivos, comprometimentos e valores para este novo paradigma, são movimentos humanos que podem “[...] abalar os pressupostos de comportamento que fundamentam a teoria econômica dominante.” (SEN, 1999, p. 73). O exemplo dos Franciscos, o de Assis e o de Roma, inspiram as juventudes a recuperar nesses ícones do passado e do presente a alma que querem atribuir à economia do presente e do futuro.
Uma economia com alma se constrói em caminhada e mutirão, nas quais participam pessoas dispostas a construir pontes, cuidar da vida e garantir o trabalho digno e sua justa remuneração, pois até mesmo o trabalhador da última hora merece receber o justo salário, segundo A Bíblia (MATEUS, 20:1-16). Uma economia com alma faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta. Uma economia com alma coloca a pessoa humana em primeiro lugar, inclui as pessoas, promovendo movimentos por justiça restaurativa, participação e equidade.
Uma economia com alma é transparente e constrói caminhos de participação, solidariedade e justiça. Uma economia com alma é criativa, porque é humana, livre e participativa, está aberta ao novo em suas múltiplas possibilidades. Uma economia com alma reúne em seu caminho muitas pessoas de boa vontade: ativistas, empresários, políticos, pensadores e agentes sociais que acreditam nas pessoas e na possibilidade de trabalho digno para todas. Uma economia com alma é uma economia com participação e criticidade, pois a “[...] liberdade para participar da avaliação crítica e do processo de formação de valores é, com efeito, uma das liberdades mais cruciais da existência social” (SEN, 2010, p. 365).
Por fim, uma economia com alma é uma economia de sabedoria e discernimento, que sabe valorizar em seu caminho tanto o entusiasmo do novo, quanto a tenacidade e a experiência do caminho que já se trilhou.
A construção de uma economia inclusiva, solidária, participativa e transparente requer abertura de novos caminhos, valorização e fortalecimento de práticas já exitosas nos territórios, consciência e rejeição a modelos econômicos que perpetuam a exclusão. Fundamentada na ética e construída por muitas mãos, mentes e corações, a Economia de Francisco e Clara no Brasil é um movimento de jovens que pretende aproximar e reintegrar ética e economia, através de um processo democrático e participativo. Aceitar este chamado é um projeto ousado e um desafio para toda a vida, entretanto, “[...] o argumento em favor de aproximar mais a economia da ética não depende da facilidade em consegui-lo. Fundamenta-se, antes, nas recompensas advindas do exercício.” (SEN, 1999, p. 106). Sem dúvidas, o exercício é de “realmar” a economia nos caminhos do bem viver.
3 ECONOMIA DE FRANCISCO
Situar a Economia de Francisco dentro de marco inicial estanque não é algo consensual mesmo entre aqueles e aquelas envolvidas no processo desse “realmar” a economia. Para muitos, a Economia de Francisco já existe enquanto processo em muitas iniciativas populares, coletivas e individuais, espalhadas pelo mundo, as quais precedem o convite do Papa. Para outros, ela é o chamado a construir algo inédito, estimulando novo(s) modelo(s) econômico(s), modos de estar e cuidar da Terra e de todas as criaturas, inaugurando debates e fundando novas estruturas e relações.
Há, inclusive, quem perceba esses processos coexistindo e influenciando um ao outro. E, sem dúvida, registram-se ainda muitas outras percepções, compartilhadas nos discursos e narrativas quando se fala em Economia de Francisco. O que, longe de ser um problema de síntese e entendimento, é a confirmação da pluralidade de vozes e ações que integram essa proposta, sua abertura para as necessidades dos diversos modos de vida e o respeito à diversidade epistêmica que constrói a história.
Independentemente das compreensões que ganham acolhida e ressonância, confirmam consonâncias e convergências, para tornar mais compreensível aos que não estão familiarizados com os movimentos da Economia de Francisco, parece-nos importante recuperar que, mesmo extrapolando os limites de um evento, esta começa a ser estruturada em torno desse nome com a publicação da Carta do Santo Padre para o Evento A Economia de Francisco. Como vimos, ainda em atenção ao convite do Papa, as bases da Carta refletem a própria trajetória do Pontificado vigente e confirmam a coerência entre a Doutrina Social da Igreja Católica e a trajetória do próprio Jesus histórico. Nesse sentido, Papa Francisco indica uma posição de enfrentamento às injustiças sociais e às crises humanas e socioambientais e recorre a dois grandes referenciais para pensar esta nova economia: a Carta Encíclica Laudato Si, que versa sobre o cuidado com a casa comum, e a figura de São Francisco de Assis, testemunho de Ecologia Integral e comunhão com os invisibilizados e empobrecidos.
A Economia de Francisco, portanto, enquanto um acontecimento em Assis, começa a partir da idealização de um evento mundial, pensado para receber jovens com as suas trajetórias, os seus modos de pensar e agir no mundo, e promover a mobilização e o diálogo engajado. Incluído nessa proposta, o apelo do Papa à presença de empresários e empresárias, estudiosas e estudiosos da ciência econômica para, em conjunto com os jovens e as jovens, aproximar sujeitos, pesquisas, práticas e intervenções em torno da construção de uma economia atenta à vida, à pessoa e ao meio ambiente.
Em sua estrutura básica inicial, cada jovem inscrito no evento optou por uma modalidade de participação (pesquisador, agente de transformação social ou empreendedor) e vinculou-se a uma das dozes vilas temáticas, a saber: Administração e Dom (Management and Gift), Finanças e Humanidade (Finance and Humanity), Trabalho e Cuidado (Work and Care), Agricultura e Justiça (Agriculture and Justice), Energia e Pobreza (Energy and Poverty), Business e Paz (Business and peace), Mulheres pela economia (Women for economy), CO2 das desigualdades (CO2 of inequality), Lucro e Vocação (Profit and Vocation), Empresas em transição (Business in transition), Vida e Estilos de vida (Life and Life-Style), Políticas para Felicidade (Policies for Happiness).
3.1 O EVENTO: AS VILAS TEMÁTICAS
As doze vilas temáticas tratam das sessões de trabalho dos participantes selecionados e inscritos sobre os principais tópicos e questões da economia de hoje e do futuro. A interpretação possível dos nomes das vilas é a conexão de aspectos que, de acordo com os pressupostos da Economia de Francisco, deveriam andar juntos, mas parecem contraditórios para a economia dominante. Cada uma das vilas conta com a presença de “seniores”, que são célebres pesquisadores que buscam estar próximos da juventude para inspirar e apoiar suas atuações. Um breve resumo de cada uma das vilas se inicia no parágrafo seguinte.
A Administração e Dom (Management and Gift) parte da ideia de que a economia dominante pode levar a uma visão reduzida da natureza e do ser humano. Questiona se há espaço dentro desta economia para se repensar a forma como nos relacionamos com o trabalho e com a própria economia, de forma a direcionar os negócios ao bem comum, para a comunidade, para a construção de relações, com sustentabilidade e tendo nestas construções coletivas seus valores.
A vila de Finanças e humanidade (Finance and Humanity) identifica que na economia atual os ganhos financeiros de curto prazo estão sendo priorizados em detrimento do investimento nas pessoas. Nesse sentido, estabelece uma profunda crítica ao destacar que as finanças poderiam ser inclusivas e poderiam se voltar para as pessoas. Investimento só é possível a partir da conexão entre as pessoas, pessoas de diferentes gerações, de diferentes classes sociais, na construção de conexões e de redes de confiança que promovam uma efetiva democratização das finanças e do conhecimento sobre finanças.
Trabalho e cuidado (Work and Care) se refere ao chamado à todas as mulheres e homens para que “cuidem” uns dos outros através do trabalho (através de uma ecologia humana integral). Na responsabilidade de que se criem novas habilidades, pensando nos trabalhos “do futuro” que dêem conta das transformações tecnológicas, sociais e regulatórias que estamos experienciando - amor e respeito um pelo outro e por toda a criação - para a construção de uma economia sustentável, com segurança social, proteção trabalhista e inclusão no mercado de trabalho.
Agricultura e justiça (Agriculture and Justice) parte dos grandes desafios gerados pela agricultura e enfrentados pelos agricultores e camponeses como as mudanças climáticas, a necessidade de alimentar de maneira saudável uma população mundial crescente, conflitos agrários entre outras questões. Os conflitos agrários são centrais por atuarem em gerar incapacidade de reprodução dos modos de vida de agricultores e camponeses, impedindo seus direitos ao trabalho, a água, a terra e a soberania alimentar. O grande desafio é construir uma agricultura justa para preservar o planeta e reconstruir sua biodiversidade.
Energia e pobreza (Energy and Poverty) busca a construção de um acordo que contemple meio ambiente e as pessoas. Parte da ideia de que apenas um “Green Deal” não basta para gerar transformações efetivas, visto que o paradigma econômico dominante vem capturando a narrativa em torno da criação de uma economia “verde” e trazendo soluções de mitigação que são insuficientes, enquanto segue baseado no pressuposto de “crescimento infinito” com demandas crescentes em termos energéticos. As soluções devem efetivamente barrar e reverter a degradação ambiental, impedir que as populações em vulnerabilidade social sigam sofrendo os impactos negativos mais severos das mudanças climáticas, bem como beneficiar estas populações com o acesso a energias renováveis que contribuem com mudanças estruturais em direção às condições necessárias ao bem viver.
Business e paz (Business and Peace) realça que os problemas econômicos estão, via de regra, na raiz dos conflitos, locais e internacionais. No entanto, a economia, os negócios e os mercados podem ser reconfigurados de forma a não mais serem guiados pela competição, direcionando suas atenções para as “vantagens da comunidade”. Um ambiente em que todos objetivem vantagens mútuas e o bem comum, promovendo relações mais igualitárias e pacíficas e promovam o combate das desigualdades, pobreza e injustiças. A criação de uma nova economia se fundamenta em inserir dentro da dinâmica econômica aqueles que, secularmente, apenas se alimentam das sobras da produção capitalista.
As estruturas da economia dominante, os bancos, o setor financeiro e os investidores precisam ser questionados pelo seu papel determinante na concentração de riqueza que se reflete na reprodução e ampliação das desigualdades, que, por sua vez, culmina em conflitos e enfraquecimento das democracias. As periferias ao redor mundo, desprovidas de meios financeiros e de condições básicas de cidadania, são resultado cristalino do modelo econômico vigente. É urgente reverter a lógica de escassez na abundância através da construção de uma economia a partir dos excluídos.
Mulheres pela economia (Women for economy) evidencia que o reconhecimento das capacidades da mulher é uma pré-condição para que possamos, juntos, buscar novas soluções. As análises a partir dessa vila pretendem compreender novas formas organizacionais, novos estilos de governança e liderança e novas formas de relações, para construir uma economia que seja inclusiva, cooperativa e voltada para as pessoas.
CO2 das desigualdades (CO2 of inequality) pensa em como a economia dominante é uma fonte de desigualdades que podem causar e ser determinadas por muitos tipos de desequilíbrio. A busca pelo equilíbrio parte de conhecer as origens das desigualdades para que seja possível a construção de uma economia regenerativa e inclusiva, um sistema econômico que inspire e facilite o desenvolvimento das pessoas, a conexão entre as pessoas e a empatia. Os meios de fazer esta construção passam por pensar a saúde, a educação, a construção de capacidades, o bem-estar e em outras aspectos da vida humana através do apoio social, garantia de direitos humanos, participação democrática, empoderamento de grupos vulneráveis e de gênero, levando em consideração a questão ambiental.
Lucro e vocação (Profit and Vocation) questiona o distanciamento entre trabalho e vocação e busca criar um ambiente que propicia sua reconexão. A construção de uma economia que permita que as pessoas possam direcionar sua energia na busca por sua vocação dentro do propósito da Economia de Francisco.
Empresas em transição (Business in transition) parte da ideia de que estamos passando por uma série de profundas transformações provocadas pela crise ambiental, revolução tecnológica e pelas mudanças sociais. Neste contexto, empresas precisam rever a forma que produzem e suas relações para dentro e para fora, responsabilizando-as a firmar um compromisso de criar negócios sustentáveis, empoderando as populações, fomentando a conexão entre as pessoas e regenerando o meio ambiente.
Vida e estilos de vida (Life and Life-Style) coloca a vida e os estilos de vida a serviço da garantia da igualdade social, da dignidade dos trabalhadores e das gerações futuras e do meio ambiente. O que requer repensar, construir novos modos de vida soberanos e outras relações que ocupem o lugar do consumo e da produção, de forma a combater o desperdício e a desigualdade, bem como criar novas medidas de riqueza e bem-estar.
Políticas para a felicidade (Policies for Happiness) foca em pensar políticas que promovam o bem viver. Dentro da proposta do “realmar” a economia, a felicidade está vinculada à experiência de contemplação, temperança, compreensão dos carismas e das necessidades humanas, em caminho de construção libertadora da sobriedade. Por isso, o propósito desta vila pauta-se na inter-relação entre realização humana e os esforços que promovam a vida em sua plenitude, com a superação das distrações e distorções promovidas pelo individualismo, consumismo e injustiça social.
3.2 AS AÇÕES A PARTIR DAS VILAS E DOS TERRITÓRIOS: PESQUISAS, PROJETOS WEBINARS E STARTUPS
Os jovens foram chamados para construir a Economia de Francisco pelo comitê central do evento de Assis a partir das vilas acima descritas através de quatro diferentes “streams”, que são: pesquisa, projetos, startups e webinários. O contato entre a comissão organizadora do evento e os jovens inscritos se inicia em maio a partir de reuniões online. Os jovens interessados em cada stream foram sendo direcionados para grupos menores onde a articulação de atividades e ações concretas foram sendo construídas.
O stream de webinários articulou uma série de palestras e debates envolvendo os seniors de cada vila, seus integrantes, apoiadores e convidados. O stream de pesquisa articula os jovens pesquisadores para a elaboração conjunta de produção acadêmica como forma de fundamentar e documentar os passos que vêm sendo construídos coletivamente pela Economia de Francisco. O stream de projetos vem para articular jovens já envolvidos em projetos sociais e socioambientais compatíveis com a construção da Economia de Francisco para conectá-los, estimulá-los e replicá-los. O stream de startups une jovens com novas ideias para que estas sejam impulsionadas e se concretizem.
No Brasil, os jovens inscritos nas vilas e envolvidos nas diferentes streams, muitas vezes em mais de uma, atuam territorialmente, aproximando práticas locais às redes da articulação brasileira. O que encaminha para novos desdobramentos, diálogos e concretudes, os quais impactam e influenciam também a Economia de Francisco, em âmbito global, na forma como tem se constituído enquanto movimento de jovens.
4 O MOVIMENTO SOCIAL DA ECONOMIA DE FRANCISCO E CLARA NO BRASIL
No Brasil, o aceite de 280 jovens ao chamado do Papa Francisco, compondo a segunda maior delegação destinada à participação no evento (RODRIGUES; PHILLIPPI, 2020), impulsionou a formação de redes de aproximação e, a partir de novembro de 2019, além dos jovens selecionados para estar com o Papa em Assis, inúmeras outras pessoas, no país, se juntaram ao processo para “realmar” a economia. Esse grande grupo de entusiastas de um novo sistema econômico em potencial, composto diretamente por mais de 500 pessoas, além de um universo de apoiadores externos, apresenta diversas frentes de pensamento e atuação.
Em terras brasileiras, o chamado para a Economia de Francisco fez nascer um movimento social denominado Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara, reunindo atores dos mais diversos setores, ligados por uma compreensão de que a reconstrução da economia passa pelo restabelecimento da lógica, na qual se fundamentam as relações. Para potencializar o chamado capaz de reunir todos aqueles dispostos a conglobar as práticas mínimas e mais abrangentes de mudança social, inúmeras ações passaram a compor o desenvolvimento desse movimento. Essas são, principalmente, focadas no fortalecimento da proposta, na reunião daqueles e daquelas que já vivem e exercem os mesmos princípios em suas iniciativas e comunidades, bem como na formação dos envolvidos, com o objetivo de dar vazão aos ideais e fazê-los reverberar na prática.
Como visto, cabe pontuar que a construção brasileira abraça a figura de Santa Clara de Assis, para evidenciar a potencialidade da figura do feminino, ao colocar a ousadia e a coragem próprias da juventude, identificadas na vida de Clara, como cerne da discussão e da atuação.
4.1 ARTICULAÇÃO BRASILEIRA PELA economia de francisco e clara
A Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC) vem se organizando a partir de quatro linhas de atuação: os movimentos sociais, as igrejas, a pesquisa e conjuntura e projetos. No que se refere à organização interna, há quatro grupos de trabalho centrais: Articulação; Pesquisa e Conjuntura; Comunicação; e Observatório de Finanças.
Em caminhada, a ABEFC e os sujeitos e as sujeitas que a compõem atuam na identificação e consolidação de iniciativas, divulgação, formação, diálogo com territórios, e na construção de práticas ressonantes à Economia de Francisco e Clara. Como movimento social, as diversas formas de intervenção e participação das juventudes brasileiras e daqueles e daquelas que constituem a Economia de Francisco e Clara seguem em construção. O que caracteriza essencialmente esse movimento no Brasil é o esforço coletivo de aproximação junto a movimentos sociais, universidades, organizações da sociedade civil e comunidades, em mobilização para a busca de atuação conjunta.
Ao passo que é feita essa aproximação, construímos paralelamente nossa identidade que, a cada dia, se compromete mais com a busca pela formação de redes de cooperação de toda ordem. Em coerência, há entre os participantes da ABEFC a busca por pessoas, ideias, iniciativas, propostas que estão de acordo com os pressupostos dessa economia “realmada” para que possamos nos colocar à disposição enquanto articulação para conectar pessoas, levar novas ideias e proporcionar respostas às perguntas que nos são feitas.
5 CONCLUSÃO
O apelo do Papa Francisco para o “realmar” a economia ganhou eco e ressoa nos mais diversos cantos do mundo. Jovens de vários lugares, como previa o pontífice, responderam ao chamado e seguem mobilizando-se, construindo redes, intervindo nos territórios, aproximando iniciativas consonantes aos princípios da Carta do Santo Padre para o Evento A Economia de Francisco, da Laudato Si, dos testemunhos de São Francisco de Assis e, no caso brasileiro, especialmente, de Santa Clara de Assis.
Os encaminhamentos assumidos pelas juventudes, seja por meio da organização das vilas propostas pelo comitê gestor do Evento, pelas organizações locais, como acontece com a Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara, ou mesmo por iniciativas de pequenos grupos inseridos nesse movimento social indicam que os sujeitos e as sujeitas assumiram um compromisso com as vidas do presente e do futuro. E que a tendência de inserção nos territórios dessa economia segue a passos firmes e largos.
Nesse sentido, é possível perceber que esse movimento extrapola os limites do Evento e, embora com as especificidades e limitações naturais de estar em processo inicial de inserção, ganha respaldo e envolve pessoas de todas as idades, o que permite sua ampliação e intersecção com outras iniciativas que carregam os mesmos princípios de priorização da vida.
Em consideração ao que se tem visto no Brasil, a Economia de Francisco e Clara já se constitui como um processo em andamento com significativa adesão, configurando-se hoje como um movimento que aproxima projetos, organizações, comunidades, pastorais, universidades, instituições e pessoas (das mais diversas idades, setores, formações, atuações, religiões), impulsionado pelo cuidado com a casa comum. Dentre as características que atravessam os engajados nas diversas iniciativas dessa economia do “realmar”, está a essência do pensar ser possível e buscar, de forma prática e vivencial, consolidar uma economia orientada pela Ecologia Integral, que faz viver, inclui, humaniza.
Em caminhada contínua, processual e de aprendizado, A Economia de Francisco e Clara apresenta-se, portanto, como um movimento em construção a partir de princípios bem definidos e contestadores de todos os modos de degradação da vida, ao mesmo tempo em que se apresenta aberto a todas e a todos que desejam nele atuar de modo coerente e fraterno, em busca de justiça social e equidade.
REFERÊNCIAS
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FRANCISCO, Papa. To Young Economists and Entrepreneurs Worldwide. Economy of Francesco, 2019. Disponível em: https://francescoeconomy.org/wp-content/uploads/2019/06/press-release.pdf. Acesso: 15 de ago. de 2020.
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RODRIGUES, Arnaldo; PHILLIPPI, Ezequiel Henrique Selhorst. Jovens do Brasil: segunda maior delegação no encontro Economia de Francisco. Vatican News, 2020. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2020-01/economia-de-francisco.html. Acesso: 22 de ago. de 2020.
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TAVARES, Manoel. O Papa recebe capitulares carmelitas. 2019. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2019-09/papa-francsico-capitulares-carmelitas.html. Acesso em: 30 ago. 2020.
[1] Jovens selecionados na Economia de Francisco e atuantes na Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara.
[2] A Carta do Santo Padre para o Evento A Economia de Francisco foi amplamente publicizada pelos veículos oficiais do Vaticano e por outros meios, em iniciativas individuais e de organizações coletivas, de modo a chegar ao maior número de jovens possível. O conteúdo da Carta confirma o desejo do Papa Francisco de convidar jovens do mundo inteiro, independentemente de religião. Ou seja, não se trata de um chamado restrito aos católicos, mas, sim, um convite para um movimento global por uma nova economia.
[3] A versão da Carta em português pode ser encontrada na página do Vaticano no Brasil, disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2019/documents/papa-francesco_20190501_giovani-imprenditori.html
[4] Em trecho da Carta, o Pontífice dirige-se aos destinatários: "Caríssimos jovens, bem sei que sois capazes de ouvir com o coração os brados cada vez mais angustiantes da terra e dos seus pobres em busca de ajuda e de responsabilidade, ou seja, de alguém que “responda” e não olhe para o outro lado. Se ouvirdes o vosso coração, sentir-vos-eis portadores de uma cultura corajosa e não tereis medo de arriscar, nem de vos comprometer na construção de uma sociedade renovada. Jesus Ressuscitado é a nossa força! Como eu vos disse no Panamá e escrevi na Exortação Apostólica pós-sinodal Christus vivit: «Por favor, não deixeis para outros o ser protagonista da mudança! Vós sois aqueles que detêm o futuro! Através de vós, entra o futuro no mundo. Também a vós, eu peço para serdes protagonistas desta mudança. [...]Peço-vos para serdes construtores do futuro, trabalhai por um mundo melhor» (n. 174)."
[5] Recepção, neste artigo, diz respeito às movimentações diversas de organização (social, acadêmica, política, espiritual etc.) estimuladas a partir da Carta do Santo Padre para o Evento A Economia de Francisco.
[6] Como será exposto na seção 3, no Brasil, a figura feminina de Clara de Assis foi incorporada entre as inspirações desta nova economia.