Fotogafias, prova e contexto

uma reflexão a partir das imagens dos campos de concentração nazistas

Claudia Bucceroni Guerra[1]

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

claudia.guerra@unirio.br

Jairo André Marques Junior [2]

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

jairounirio@gmail.com

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Resumo

Este artigo tem como objetivo refletir sobre as fotografias dos campos de concentração e sobre as possibilidades de re-utilização dessas imagens em novos contextos que possibilitem restituir seu valor histórico e informativo. A representação visual do que ocorria nos campos de concentração é majoritariamente composta de fotografias que foram tiradas quando os soldados aliados invadiram os campos e libertaram os poucos prisioneiros que sobreviveram às atrocidades que ali ocorreram. Passados mais de setenta anos, de tão divulgadas em sites de diversos assuntos e redes sociais e arquivadas sem critérios de descrição corretos, percebe-se o problema da descontextualização, dos equívocos e do apagamento de importantes informações de muitas dessas fotos.

Palavras-chave: Fotografia. Contexto. Campo de Concentração. Legenda. Holocausto/Shoah.

PHOTOGRAPHS, PROOF AND CONTEXT

a reflection from the images of the nazist concentration fields

Abstract

This article aims to reflect on the photographs of concentration camps and on the possibilities of reusing these images in new contexts that make it possible to restore their historical and informative value. The visual representation of what took place in the concentration camps is mostly composed of photographs that were taken when the Allied soldiers invaded the camps and released the few prisoners who survived the atrocities that occurred there. After more than seventy years, since they were so publicized on websites of different subjects and social networks and filed without correct description criteria, the problem of decontextualization, misunderstandings and the deletion of important information from many of these photos is perceived.

Keywords: Photography. Context. Concentration camp. Subtitle. Holocaust / Shoah.

1  INTRODUÇÃO

No contexto da Segunda Guerra, o momento da chegada dos soldados aliados, jornalistas e fotógrafos nos campos de concentração nazistas, revelou-se ao mundo uma série de práticas cruéis, que são ainda hoje consideradas inclassificáveis. Imagens de corpos esqueléticos amontoados em pilhas ou tentando sobreviver como num fio de vida, ilustraram o poder de destruição de uma nação voltada contra pessoas indefesas.

Pessoas com algum tipo de deficiência, esquerdistas e comunistas, Testemunha de Jeová ou inimigos do regime nazista, passaram e pereceram nos diversos campos de concentração. No entanto foram os judeus de toda Europa ocupada pelo ou aliada do governo alemão sob o comando de Hitler que sofreram num plano desumano de tornar o continente um território judenrein (livre de judeus, ver ARENDT, 1999).

Giorgio Agamben propõe pensar o campo (de concentração) não apenas como um fato histórico, “anomalia do passado”, mas como um conceito de algo que ainda é possível de acontecer, como um “paradigma biopolítico do Ocidente” (AGAMBEN, 2007, p. 187). A imensa, mas silenciosa tragédia que vitimou os judeus-europeus durante o período da história alemã chamado Terceiro Reich seria amplamente divulgado pela imprensa após a libertação dos campos entre os anos de 1944 e 1945, expondo uma face da Segunda Guerra Mundial que, mesmo em tempos modernos, é de difícil compreensão e aceitação acerca de suas motivações e da forma que foi executada.

As imagens fotográficas dos diversos campos de concentração nazistas vêm sendo utilizadas como forma de denúncia e conscientização para as novas gerações, contra as possibilidades de desumanização do outro e de atrocidades terríveis que a humanidade foi capar e, infelizmente, ainda é.

A representação visual do que ocorria nos campos de concentração é majoritariamente composta de fotografias que foram tiradas quando os soldados aliados invadiram os campos e libertaram os poucos prisioneiros que sobreviveram às atrocidades que ali ocorreram. Passados mais de setenta anos, de tão divulgadas em sites de diversos assuntos e redes sociais e arquivadas sem critérios de descrição corretos, percebe-se o problema da descontextualização, dos equívocos e do apagamento de importantes informações de muitas dessas fotos.

A ensaísta Susan Sontag (2004) aponta outra questão no que concerne à divulgação dessas imagens: o sentimento de esgotamento visual. Para Sontag, a fotografia fornece conhecimento dissociado da experiência, eventos são vistos e não vivenciados, no entanto, não é mais necessária a imaginação para decifrar narrativas de eventos, a fotografia fornece a imagem (SONTAG, 2004). No conjunto de suas reflexões, a questão do esgotamento do olhar é considerada por Sontag, de forma que as pessoas não mais se chocam com as imagens de atrocidades, pelo desgaste da exposição repetida.

Hoje estamos vivendo um contexto de excesso de informação visual nas diversas redes sociais no qual um fenômeno invade e perturba as instituições democráticas e pluralistas: as fakenews. Quantas imagens fora de contexto ou desvirtuadas de suas reais legendas são disseminadas para confundir e criar opiniões contrárias à liberdade de expressão e ao exercício da democracia? Numa busca simples no Google com os termos holocaust, fakenews e photography, encontramos diversas páginas antissemitas ou adeptas de teorias conspiratórias utilizando fotografias dos campos de concentração, numa tentativa de negar o Holocausto, buscando nas próprias imagens aspectos que poderiam comprovar serem fraudes.

Por outro lado, a febre narcisista de selfies tem invadido os lugares de memória sobre a Shoah (Holocausto[3]), revelando uma incapacidade das novas gerações em perceber a gravidade do que aconteceu nesses lugares. Vejam por exemplo o caso da adolescente norte-americana Breanna que, em 2014, postou no Twitter uma selfie sorridente no portão de Auschwitz. Apesar da enxurrada de mensagens criticando a imagem, não houve da adolescente ou de seus parentes nenhuma nota de pesar ou desculpas.[4]

Fotografia 1 – Selfie in the Auschwitz Concentration Camp.

Fonte: The Washington Post (https://www.washingtonpost.com/news/the‑intersect/wp/2014/07/22/the‑other‑side‑of‑the‑infamous‑auschwitz‑selfie/).

Este artigo tem como objetivo refletir sobre as fotografias dos campos de concentração e sobre as possibilidades de re-utilização dessas imagens em novos contextos que possibilitem restituir seu valor histórico e informativo.

Buscamos tornar a percepção dessas fotografias contemporâneas na definição de Agamben (2009), que afirma que ser contemporâneo não é simplesmente viver na época contígua ao fato, mas também ser um observador de temporalidades diversas.

O contemporâneo é também aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, não buscando perceber as luzes, mas a escuridão, a obscuridade presente em cada época: “Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando apenas nas trevas do presente”. (AGAMBEN, 2009, p. 63)

 

2  O horror traduzido em fotografias e a Vida Nua

A fotografia como fonte de estudo sugere a possibilidade de conectar o presente e o passado ao observar e compreender um mundo que não mais. Toda imagem carrega consigo as marcas do momento em que foi feito o disparo pela câmera fotográfica. As fotografias possibilitam obter informações sobre sociedades distantes (geograficamente e/ou temporalmente) e eventos que representem o período de sua existência. São elas vestígios visuais que comprovam a presença de algo em determinado período temporal. No entanto, por mais que sejam consideradas provas documentais, não são capazes de transmitir com exatidão a essência do fato representado. Pois, ao confrontar uma imagem, o que chega ao espectador nada mais é do que a informação isolada de realidade palpável, onde a crença no teor de veracidade do registro se faz por meio do tratamento das informações apresentadas. Berger (2017, p. 89) afirma que “[...] toda fotografia nos apresenta duas mensagens: uma concernente ao evento fotografado e outra concernente a um choque de descontinuidade”. Essa descontinuidade está relacionada à essa impossibilidade de apreendermos o que realmente aconteceu naquilo que olhamos numa fotografia.

Imagens fotográficas são uma espécie de atestado da permanência do objeto fotografado em seu tempo. Através de sua aparência é possível associá-la à estética visual do mundo e classificá-la segundo uma escala cultural-imagética que define o passado por seus traços conhecidos. No entanto, imagens fotográficas carecem de significado se não houver uma legenda, descrição ou contextualização.

Olhar e compreender uma fotografia requer conhecimento prévio sobre o tema exposto e uma certa percepção histórica para entender o que ela pretende representar. Para tal, a imagem necessita obrigatoriamente de uma legenda explicativa que assume a função de situar a foto em um contexto. A associação do visual com o textual reforça a autenticidade do que se vê de forma que seja inquestionável e irrefutável. No entanto, a descontinuidade age no momento em que o significado criado no ato de ver e capturar a fotografia generaliza o evento e poupa o espectador de questionamentos do que deveria representar, o privando, de imediato, de pensar sobre o que ela ilustra e qual é a sua mensagem.

Na relação entre uma fotografia e palavras, a primeira anseia por uma interpretação, e as palavras normalmente a suprem. A fotografia, irrefutável como evidência, mas fraca em significado, ganha das palavras um significado. E as palavras, que por si mesmas permanecem no nível da generalização, ganham uma autenticidade específica por meio da irrefutabilidade da fotografia. Juntas, as duas tornam-se então muito poderosas: uma questão em aberto parece ter sido totalmente respondida (BERGER, 2017, p. 92).

A legenda, que tem como função a transmissão rápida da referência contextual, se torna vaga quando o propósito de expor informações mais detalhadas. É impossível contar uma história em poucas palavras. E a interpretação, quando auxiliada apenas pelo uso da legenda, encaminha a leitura da imagem longe da evidência fotográfica para se tornar parte do emocional particular do espectador. Isto é, o sentido se faz a partir do conflito de emoções entre a imagem exposta e quem a vê, em um sentido de “eu vejo, eu sinto, eu entendo”.

Uma foto pode ser objeto de três práticas (ou três emoções ou de três intenções): fazer, suportar, olhar. O Operator é o fotógrafo. O Spectator somos todos nós... E aquele ou aquela que é fotografado, é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto (BARTHES, 1980, p. 20).

As intenções da fotografia, teorizada por Barthes, propõem que toda fotografia surge através de uma intencionalidade prévia do fotógrafo (Operator) e que o objeto fotografado se torna uma personagem correspondente a um evento (Spectrum) aos olhos do espectador (Spectator).

Tomamos como exemplo, a fotografia de Juana Bormann, que faz parte de uma série de fotos de prisioneiros e ex-guardas do campo de concentração de Bergen-Belsen, expressa, em primeiro momento, que a intenção do fotógrafo seja a de documentar o rosto de todos os envolvidos sobreviventes do campo antes do julgamento de seus crimes. Apesar de haver participação direta com o evento, a fotografia da mulher não tem força o suficiente para causar os mesmos sentimentos oferecidos pelas fotografias de pilhas de corpos sem vida.

Fotografia 2 – Juana Bormann, parte de uma série de retratos de ex-guardas e prisioneiros do campo de Belsen antes do Julgamento em frente a um Tribunal Militar Britânico.

Foto em preto e branco de homem pousando para foto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos. Fotografia de 08 de agosto de 1945.

Se divulgarmos essa foto sem as informações precisas de que se trata de uma agente do campo de concentração, poder-se-ia pensar que se trata de uma prisioneira?

Sem legenda nenhuma, Juana Bormann poderia passar por prisioneira de Bergen-Belsen por seu olhar sem esperança. Com uma legenda de poucas palavras não temos a dimensão de seus atos criminosos e cruéis; a contextualização não cabe em uma legenda de rápida leitura.

A utilização de legendas explicativas dá a ideia do lugar e do tempo, mas deixa brechas de interpretação pela falta de uma narrativa. A descontinuidade adiciona ao registro duplicidade de sentido entre o que pode ser rapidamente lido e o que necessita de tempo para ser compreendido.

A descontinuidade sempre produz ambiguidade. Mas frequentemente essa -+ambiguidade não é óbvia, pois assim, tão logo as fotografias passam a ser usadas ao lado de palavras, elas juntas produzem um efeito de certeza, ou até mesmo de afirmação dogmática (BERGER, 2017, p. 92).

A comparação entre o que está descrito e o que é mostrado na fotografia de Juana Bormann direciona a atenção para uma pergunta básica: Seria ela uma ex-guarda ou sobrevivente?

A falta de uma legenda própria que defina ao todo a imagem da mulher transporta o espectador para a ação imaginária de investigar e presumir qual seja a sua origem. Algumas perguntas podem ser feitas: Se de fato dedicou sua força de trabalho como oficial nazista, quais foram os seus crimes? Teria sido ela capaz de cometer algum ato desumano pela própria vontade ou foi forçada a tal? Ou era ela uma sobrevivente que sofreu os mais diversos males enquanto prisioneira no campo de concentração de Bergen-Belsen?

A descontinuidade isola o espectador de questionar qual é a sua história e a legenda, que reforça a imagem, conforma o olhar. Apesar de seu aspecto se assemelhar ao de uma camponesa de vida simples, Juana foi julgada pelo tempo de trabalho em que barbaramente torturou prisioneiros. Eis a narrativa contextual fornecida pelo banco de dados do Museu Memorial do Holocausto dos Estados unidos (United States Holocaust Memorial Museum):

Uma das funcionárias mais antigas da SS em Bergen-Belsen, aos 52 anos, Juana Bormann tinha a reputação de sádica. Testemunhas repetiam constantemente como, em Auschwitz, ela colocava seu cachorro em prisioneiros e observava como eles eram despedaçados. Perguntas sobre sua sanidade surgiram durante o julgamento de Bergen-Belsen, mas não foram suficientes para impedir que ela fosse declarada culpada pelo Tribunal Militar Britânico. Ela foi condenada à morte e enforcada em 13 de dezembro de 1945 em Hameln, Alemanha. (Nota anexa à imagem de Juana Bormann no website do United States Holocaust Memorial Museum/ Washington https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1048404).

Em seu livro “Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua (2007), Giorgio Agamben pretendeu estabelecer uma relação entre o corpo biológico do cidadão e sua ligação com o poder autoritário, recorrendo a duas expressões para estabelecer essa relação: o Poder Soberano e a Vida Nua. O poder soberano se caracteriza pelo paradoxo de estar “dentro e fora do ordenamento jurídico” ao reconhecer o poder de proclamar o estado de exceção e de suspender a validade desse ordenamento, ele permanece fora do ordenamento jurídico, mas faz parte desse ordenamento que o legitima (AGAMBEN, 2007, p. 14). De fato, Agamben nos ilustra com novas facetas o poder totalitário, em destaque o nazismo e o fascismo.

Agamben foi buscar em Aristóteles o conceito de Vida Nua. O filósofo grego estabeleceu dois termos para definir vida: zoé e bíos. Zoé significa a vida de todo ser vivente, a vida natural. Bíos significa o viver próprio de um indivíduo ou grupo, uma vida qualificada. A Vida Nua se encontra nessa diferença, segundo Aristóteles: “nascida em vista do viver, mas existente essencialmente em vista do bem viver” (apud AGAMBEN, 2007, p. 10). A vida nua é o próprio viver natural ou biológico que se torna bem viver quando em contato com as relações sociais, políticas, a vida politicamente qualificada.

O poder soberano se conecta com a vida nua através de um conceito vindo do direito romano, o homo sacer, um ser humano podia ser morto por qualquer um de forma impune, pois não estaria inserido nas normas do rito, portanto não seria um sacrifício (AGAMBEN, 2007).

Agamben ilustra suas ideias por meio de exemplos dos campos de concentração na Segunda Grande Guerra. O que a Alemanha nazista fez com os judeus, ciganos, e outros povos nos campos de concentração seria um retorno à vida nua, um total despojamento de qualquer direito desses povos.

Nascida num contexto positivista, a fotografia desde o princípio “flertou” com o real, se caracterizando como uma forma de representação singular da realidade, pois, ao contrário de outras representações imagéticas, o referente (aquilo que foi fotografado) permanece, adere ao suporte. Por isso a fotografia foi adotada pelo jornalismo numa união sem precedentes. Mais que isso, o uso dessa técnica para registrar cenas de guerra mudou a própria forma de ver as guerras. A humanidade visualizou as guerras de forma precisa e assustadora com a fotografia. Antes as gravuras e pinturas de guerra apenas sugeriam a desgraça.

O corpo mutilado ou morto, vítima de estados de exceção, de atrocidades, seria o extremo da vida nua. Por isso Agamben utiliza as imagens (sob a forma de imagens descritas e não imagens fotográficas) dos campos de concentração nazista e das experiências pseudocientíficas que lá ocorreram. A imagem da morte, exposta através de várias representações: representações discursivas, imagéticas, cinematográficas ou sonoras, ilustram e consolidam o conceito de vida nua.

Quem melhor escreveu sobre fotografias de guerra foi Susan Sontag no seu livro Diante da dor dos outros (2003). Discorrendo sobre guerras desde os primórdios da fotografia, Sontag faz uma reflexão sobre a desgraça e a guerra e como pensar essas questões através da iconografia, da pintura e da fotografia.

As fotos de atrocidades ilustram e corroboram opiniões, preconceitos, fantasias e interpretações muitas vezes erradas. Sontag cita Hannah Arendt que, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, afirmou que as fotografias e os noticiários cinematográficos sobre os campos de concentração eram enganosos, pois mostravam os campos quando as tropas aliadas ali entravam. Aqueles sobreviventes esqueléticos e amontoados de cadáveres não eram o comum nos campos de concentração. “O extermínio dos prisioneiros era feito de forma organizada, planificada” (SONTAG, p. 2003).

Podemos considerar as fotografias dos campos de concentração representações visuais do conceito de Vida Nua. Mas essas imagens expressam o verdadeiro terror sentido pelas pessoas que pereceram nesses campos?

Em resposta à pergunta podemos pensar nas imagens fotográficas como fontes históricas, passíveis de serem utilizadas como prova dos acontecimentos numa narrativa. Como foi dito anteriormente, o peso de realidade das fotografias lhes confere um expressivo valor como prova. No entanto, abstraídas de suas legendas e de seu contexto, elas podem se tornar enganosas.

Num artigo intitulado L’histoire par la photographie, Ilsen About e Clément Cheroux (2001), afirmam que devemos ter cuidado com o uso das fotografias dos campos de concentração. Eles citam como exemplo cinco imagens de uma fila de mulheres nuas que foram amplamente divulgadas como se fossem uma representação do campo de concentração de Treblinka, na Polônia. Na verdade, se tratava de um campo na Ucrânia. O uso dessas fotos pretendia ressaltar os horrores de Treblinka de uma forma que os autores criticam chamando de um caso de “pedagogia do horror”:

Pois desde a abertura dos campos em 1945, essas imagens participaram ativamente de uma verdadeira pedagogia pelo horror. As fotografias dos campos foram, portanto, imediata e abundantemente mostradas, reproduzidas, transmitidas e reduplicadas correntemente. Como se o assassinato em massa pudesse apenas responder à disseminação em massa (ABOUT, CHEROUX, 2001, p. 8).

Fotografia 3 – Fotógrafo anônimo, provavelmente membro do Polícia ucraniana, mulheres judias e crianças do gueto de Mizocz antes de sua execução, Rovno/Ucrânia, 13 a 14 de outubro de 1942.

Foto em preto e branco de grupo de pessoas em um campo

Descrição gerada automaticamente

Fonte: United States Holocaust Memorial Museum/ Washington.

Ver: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1065461.

O uso de imagens dos campos de concentração nos permite visualizar de forma perturbadora mecanismos de exclusão, atrocidades e infâmias. Agamben baseou todo o seu trabalho na premissa da politização da Vida Nua, e o aniquilamento, sem culpa, do homo sacer.

Não basta contar essa história de horror e tragédia, é preciso ilustrar e na falta de uma legítima imagem, atribui-se erroneamente ao campo de Treblinka porque é preciso ilustrar o que ocorreu nesse campo. Segundo uma linha de atribuições, a primeira vez que essa imagem foi descrita erroneamente como Treblinka possivelmente foi propositalmente descrito de forma enganosa, nas reproduções subsequentes o erro de contextualização permanece. Para restituir a real informação da imagem é preciso pesquisar o contexto em que foi feita a fotografia e descrevê-la o mais detalhadamente possível. Por vezes as informações são falhas e escassas.

O papel dos bancos de dados dos diversos Museus do Holocausto na atribuição correta ou possível dessas imagens vem sendo um trabalho expressivo e importante para a restituição da memória dos campos de concentração por meio de pesquisa e depoimento de testemunhas, reconstituindo assim a contextualização e compondo legendas informativas precisas.

 

3  Fotografia como prova e contexto

Barthes (1984) considera as fotografias como signos desprovidos de um código, pois que tem a pretensão de ser pura transcrição do real, totalmente denotativas.

Este fator denotativo seria como algo dado, portanto, não há muito que falar sobre elas, as fotografias. Estas imagens são caracterizadas pelo paradoxo de conter em si duas mensagens coexistentes: “uma sem código (denotativa) e outra com código (conotativa)” (BARTHES, 2000, p. 325).

Dando como exemplo fotografias jornalísticas, Barthes discorre, com atenção mais detalhada aos fatores conotativos que insere sentidos outros à imagem fotográfica, modificando sua mensagem. Para o autor, a legenda é considerada como uma mensagem parasita, a escrita não ilustra a fotografia simplesmente, “insuflam significados”, modificam os sentidos da imagem publicada. Os espaços na página do jornal ocupados pela linguagem escrita, por manchetes, legendas e textos são fatores que interagem com a imagem fotográfica, modificando sua mensagem (BARTHES, 2000, p. 326).

No âmbito da documentação, da classificação, descrição e, principalmente, da contextualização, nenhuma informação deve ser descartada de uma fotografia. Se a imagem fotográfica de um modo geral é essencialmente denotativa, referencial: a imagem “diz tudo”, quando falamos de fotografias de assuntos sensíveis como as imagens dos campos de concentração não podemos prescindir de legendas que ancorem essas imagens em suas narrativas como provas de acontecimentos atrozes que o exército nazista fez de tudo para apagar no fim da guerra.

O historiador da fotografia John Tagg (2005) desenvolve uma análise sobre os usos da fotografia como documentos, elementos de prova e arquivo em tribunais, hospitais e outras formas de controle, questionando a ideia de que a fotografia é um registro fiel da realidade através das concepções discursivas de Michel Foucault.

Segundo Tagg (2005, p. 11), para fotografia ser considerada uma prova, não depende de um fato natural ou existencial, e sim de um processo social, semiótico. O valor de prova não está incrustado na cópia impressa, há uma estratégia de significação que lhe confere este valor.

Consideramos como exemplo as fotografias estudadas por Didi-Huberman em seu livro Imagens apesar de tudo (2020).

Entre os anos de 1944 e 1945, percebendo uma possível e inevitável derrota contra os Aliados, Hitler e seu staff ordenaram a execução sumária de todos os detentos em campos de concentração, principalmente judeus: a chamada solução final. No campo de Auschwitz os soldados da SS empreendiam ações para matar os prisioneiros e eliminar as provas, os cadáveres, do maior número e o mais rápido possível. Eram mortos com gás Zyklon B, cremados e suas cinzas jogadas num rio próximo. Na estrutura de trabalho do campo, havia os sonderkommando, homens cativos que eram obrigados a manter as câmaras de gás e os fornos crematórios limpos. No verão de 1944, um grupo de sonderkommando se rebelou e destruiu o crematório 4, foram todos mortos pela SS. Nessa mesma ocasião, dois sonderkommandos conseguiram uma câmera fotográfica e tiraram 4 fotografias que revelam, pela primeira e única vez, a rotina de extermínio do campo. As fotos são a prova concreta das ações de genocídio do governo nazista[5].

Toda a trama que envolve essas imagens consiste em uma narrativa que ilustra a situação trágica em que viviam esses indivíduos e, principalmente, a difícil e perigosa operação de capturar essas imagens: não se sabe como conseguiram uma câmera, as fotos foram tiradas de dentro do crematório 5 de forma precária e contrabandeadas para fora de Auschwitz dentro de um tubo de pasta de dentes.

Fotografia 4 – Imagem feita ilegalmente pelos membros do Sonderkommando, 1944. Auschwitz, Polônia.

Uma imagem contendo ao ar livre, foto, neve, em pé

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Wikipedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Sonderkommando_photographs.

O quarto fotograma das fotografias dos sonderkommando aparentemente não contem os dados informativos que eles tanto lutaram e deram a vida para denunciar, tanto assim que o Memorial e Museu de Auschwitz-Birkenau não disponibiliza essa imagem em seu banco de dados. No entanto, na trama que envolve a feitura das quatro imagens essa é tão importante quanto as demais segundo Didi-Huberman (2020). A imagem é puro gesto de medo e apreensão de serem pegos num ato desesperado de criar uma prova visual do que estava acontecendo ali. Denotativamente ela não diz nada, são sombras e árvores. Conotativamente, ela faz parte de um contexto de captura que é uma verdadeira trama: esses homens fizeram o impossível para criar uma prova da tragédia e da desumanidade que representa Auschwitz. Princesa Breanna precisava ser visualmente educada para perceber o quanto é sensível e duro visitar um lugar como aquele.

 

4  Considerações Finais

As imagens da Shoah guardadas nos diversos Centros de Documentação e Museus do Holocausto pelo mundo e dispersas pelas diversas redes e sites na Internet precisam ser contextualizadas e re-contextualizadas sempre. Não consideramos que sua divulgação irá acabar com a iniquidade e os horrores da guerra de uma forma geral. A história está aí para nos fornecer exemplos de que a experiência da Shoah eliminou o fenômeno dos genocídios.

No entanto, a disseminação fácil e irresponsável de imagens atrozes nas redes sociais com suas legendas mentirosas e guiadas para a discórdia e desinformação nos remete à reflexão de como são imprescindíveis e urgentes a contextualização e a redação de legendas corretas.

Esta operação contextual/descritiva faz com que as imagens sejam ressignificadas e ganham uma nova interpretação e uma visibilidade. Precisamos rever essas fotos sempre, com novos olhares e motivações.

 

REFERÊNCIAS

ABOUT, Ilsen, CHÉROUX, Clément. L'histoire par la photographie. Études photographiques, v. 10, nov. 2001. p. 8‑33. Disponível em: http://journals.openedition.org/etudesphotographiques/261. Acesso: 10.09.2020

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó/SC: Argos, 2009.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BARTHES, Roland. A Mensagem Fotográfica. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 325-341.

BERGER, John. Para entender uma fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

DIDI-HUBERMAN. Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.

DIDI-HUBERMAN. Georges. Imagens apesar de tudo. São Paulo: Editora 34, 2020.

FELDMAN, Ilana. Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação, de Shoah a O filho de Saul. In: ARS. n. 28, 2014. p. 135-153.

KOSELLECK, Reinhart. Terror e sonho – anotações metodológicas para as experiências do tempo no Terceiro Reich. In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro e Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Editora PUC Rio/Contraponto, 2006. p. 247-265.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

TAGG, John. El peso de la representación. Barcelona: Gustavo Gili, 2005.



[1] Professora doutora em Ciência da Informação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

[2] Graduando de Biblioteconomia e monitor da disciplina Tópicos Especiais em Ciência da Informação – fotografia/documento sob orientação da professora Claudia Bucceroni Guerra.

[3] A palavra Shoah (catástrofe ou desastre em hebraico) tem sido utilizada em substituição da palavra Holocausto que tem um significado religioso problemático segundo os estudiosos do tema. Ver FELDMAN, 2014.

[4] Citamos também o artista israelense Shahak Shapira que busca nas redes sociais fotografias tiradas no Memorial dos Judeus Mortos, em Berlin, e insere fotos dos campos de concentração para protestar contra o desrespeito e a falta de consciência histórica. Ver: https://petapixel.com/2017/01/21/artist-shames-disrespectful-holocaust-memorial-tourists-using-photoshop/.

[5] Esse acontecimento foi descrito e comentado em: DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. São Paulo: Editora 34, 2020. Veja também o filme Filho de Saul, 2015, dirigido por László Nemes.