Apresentação
Em 11 de setembro de 2020 o Brasil atravessou o marco de seis meses da pandemia do Covid-19. Naquele momento, contabilizava 130 mil mortos dentre 4,2 milhões de brasileiros infectados com o coronavírus. A maior tragédia sanitária do Brasil é algo que marca profundamente o ar do tempo.
O grupo de pesquisa do IBICT em Produção colaborativa e Economias solidárias está publicando desde 2014 a revista P2P&Inovação. São seis anos buscando aproximar autores que trabalham com a peer production, o Commons, a economia solidária, a inovação, as tecnologias digitais, a gestão da informação e a organização do conhecimento. Ao mesmo tempo, buscamos formar um público leitor desse vasto campo interdisciplinar.
A publicação desta edição regular da revista nos obriga a olhar no próprio fundo do presente. Os efeitos da pandemia de Covid-19 são desiguais. A maioria dos brasileiros perdeu emprego e renda: o país agora tem 13 milhões de desempregados e 40 milhões de trabalhadores informais precarizados, além de 600 mil micros, pequenas e médias empresas que fecharam as suas portas. Na contramão das perdas, 42 bilionários brasileiros aumentaram sua riqueza em US$ 34 bilhões (mais de R$ 180 bilhões) entre março e julho de 2020.
A crise econômica global provocada pela pandemia deixa meio bilhão de pessoas no limiar da pobreza. Quatrocentos milhões de empregos não existem mais e 430 milhões de pequenos negócios estão sob risco de falência. São dados do relatório da Oxfam, Poder, Lucros e Pandemia, que foi lançado na véspera do alerta global fazer seis meses. O documento revela como grandes corporações priorizaram lucros em detrimento da saúde da sociedade. Destaca-se o uso da influência política das instituições para moldar as ações dos governos, particularmente os benefícios e isenções fiscais e as medidas de isolamento social.
As 100 empresas campeãs do mercado de ações acrescentaram mais de US$ 3 trilhões ao seu valor desde o início da pandemia (em março de 2020). Vivemos uma situação injusta em que milhões de pessoas perderam dignidade, empregos e renda, enquanto alguns poucos bilionários aumentaram sua riqueza. O relatório da Oxfam mostra que a economia só tem funcionado para um pequeno grupo de pessoas: os super-ricos. Os recursos fundamentais para garantir o enfrentamento à pandemia e a sustentação socioeconômica das pessoas estão indo parar nas mãos de poucos.
A situação atual combina uma tragédia sanitária com uma grave crise social e econômica. É preciso uma resposta que priorize o apoio a pobres, trabalhadores e pequenos negócios. A sociedade deve pressionar governos e corporações para que façam acordos que reequilibrem seus propósitos de poder e riqueza. Estamos em um momento crítico. Temos uma escolha a fazer: voltar ao velho modelo de sempre ou aprender com a crise e desenhar uma sociedade mais justa e uma economia sustentável. Se não mudarmos a ordem das coisas, as desigualdades vão aumentar – no Brasil e no mundo.
Aos três meses de pandemia, quando o Brasil tinha apenas metade do atual número de mortes provocadas pelo Covid-19, duas chagas da sociedade brasileira ficaram evidentes: a profunda desigualdade social e o racismo estrutural. De uma hora para outra, descobrimos que nossa população é constituída de pretos e mulheres, historicamente tratados como minorias, assim como os pobres.
A imensa maioria dos que têm emprego no Brasil ganha menos de dois salários mínimos por mês e vive em condições sub-humanas nas periferias, nas favelas, nos cortiços, nas palafitas; sem saneamento básico, sem assistência médica, sem segurança alimentar. O coronavírus mata mais pobres e pretos - não porque são pretos, mas porque são pobres.
O grande número de mortes nas periferias de regiões metropolitanas é uma consequência da condição de vida nesses locais. Nas periferias, há mais moradores por domicílio, o acesso à água encanada não existe ou é intermitente, e a insegurança econômica obriga a sair de casa para obter algum dinheiro. Cabe recordar que quando a pandemia começou, muitas pessoas diziam que a Covid-19 iria igualar os desiguais, pois todos iriam ficar doentes, precisar de respiradores, etc. A história mostrou que a doença afetou desigualmente os desiguais, e tem sido cada vez mais dura com os mais pobres. A vulnerabilidade desigual fica clara com o impacto nas pessoas que perdem emprego ou que não conseguem manter renda de subsistência. Estima-se que a pandemia do Covid-19 afetou 80% da força de trabalho no Brasil (80 milhões de pessoas), sendo metade de trabalhadores informais.
Uma questão que reflete essa afecção distinta da pandemia sobre a sociedade é a possibilidade de ficar em casa fazendo “isolamento social". As relações sociais de produção interferem profundamente na observação desta orientação sanitária universal para reduzir os níveis de disseminação da doença. Ficar em casa depende da natureza do trabalho, da garantia de renda, das condições de vida e da existência de poupança. É fácil perceber que pobres, trabalhadores informais e pequenos empresários têm enorme dificuldade para se isolar em uma casa confortável com estoque de comida e pagamento de contas básicas. É nesse contexto que os olhos da sociedade se voltam para a principal experiência de renda mínima: o Bolsa Família.
A pandemia de Covid-19 em 2020 fez rapidamente algo que anos de discussão política no Brasil não tinham conseguido: a ampla legitimação social do programa social Bolsa Família. O denominado “Auxílio Emergencial”, benefício financeiro concedido pelo Governo Federal a partir de abril, é destinado aos trabalhadores informais, micro empreendedores individuais, autônomos e desempregados, com a finalidade de fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise social e econômica causada pela pandemia.
Em setembro de 2020 estima-se que mais de 60 milhões de pessoas receberam diretamente o Auxílio Emergencial. Se contabilizado o número de integrantes de cada família, o benefício chega a mais de 120 milhões de pessoas, ou seja, 60% dos brasileiros. Além de sustentar as famílias, o Auxílio estimula o consumo e a demanda agregada. Inicialmente previsto para ser pago por três parcelas, o Auxílio Emergencial foi prorrogado por mais dois meses e cada pessoa pode receber até cinco parcelas. É importante registrar que mais 75% dos assistidos no programa são das regiões Nordeste e Norte. Os benefícios incluem 150 mil indígenas cadastrados no Bolsa Família.
Outro grande “efeito colateral" da pandemia do Covid-19 é a valorização do Sistema Único de Saúde, o maior sistema de cobertura universal de saúde do mundo. Antes da pandemia a agenda neoliberal era forte na sociedade brasileira, com a defesa do Estado mínimo. A pandemia expôs o dano potencial da implantação da agenda: o que teria acontecido se tivéssemos o Estado mínimo em vigor? O que seria do Brasil com a pandemia se não tivéssemos o SUS? No fim das contas foram os serviços públicos de saúde, do sistema de vigilância epidemiológica às unidades de terapia intensiva dos hospitais de campanha, que enfrentaram a pandemia e garantiram a defesa da vida dos brasileiros.
A manutenção do programa de renda mínima e do Sistema Único de Saúde expõe os danos causados pela agenda neoliberal, que tem fixação no equilíbrio fiscal como indicador de sucesso. Garantir a sobrevivência dos brasileiros, especialmente dos trabalhadores e dos pobres, fura o teto de gastos do Estado. O “samba de uma nota só” neoliberal não se afina com as necessidades da sociedade em um país extremamente desigual ameaçado por uma pandemia global. Após duas décadas de veneração cega por grande parte da sociedade, o monolito do Estado mínimo é trincado, e pode ruir. Fica muito claro que demandas importantes só serão respondidas e satisfeitas por políticas públicas efetivas.
Quando os brasileiros pareciam conformados com o fato de 2020 ser marcado exclusivamente pela pandemia do Covid-19, eis que o país começa a arder em chamas com queimadas de norte a sul. O Brasil vinha tendo protagonismo na agenda ambiental global desde a realização da Eco-92. O Observatório do Clima recorda que entre 2004 a 2012 o país reduziu em 80% o desmatamento e se tornou líder mundial da agenda ambiental. O Brasil tinha 27 mil km² de desmatamento em 2004 e reduziu para 5 mil km² em 2012. Isso ocorreu com demarcação de territórios, melhoria na capacidade de implementação da legislação, fortalecimento dos órgãos de fiscalização ambientais e, sobretudo, uma mensagem clara de combate ao desmatamento.
O que se vê neste momento é a destruição da política de proteção e preservação ambiental que foi construída nos últimos 30 anos. O Brasil deixa de ser bom exemplo e passa a ser vilão do meio ambiente, com recordes de desmatamento, queimadas e mineração em terras indígenas. Está viva na memória dos brasileiros a imagem do Ministro do Meio Ambiente, em abril, sugerindo “passar a boiada” de atos de revogação e revisão das normas de proteção ambiental durante a pandemia. A sociedade e a imprensa estariam “distraídas" com a tragédia sanitária da Covid-19. A política ambiental sempre sofreu com a falta de recursos, mas o que estamos vendo é um ataque ativo ao trabalho dos órgãos ambientais que efetivam a legislação.
A resposta a este retrocesso é a forte pressão de ambientalistas e, sobretudo, de agentes políticos e econômicos estrangeiros, como fundos de investimentos internacionais, grandes empresas multinacionais e governos e parlamentos de diversos países. Os acordos internacionais firmados anteriormente pelo governo brasileiro trazem obrigações como políticas de proteção e preservação, o respeito aos direitos dos povos indígenas e o respeito aos direitos humanos. Nós estamos muito mal, se formos comparar aquilo com que o Brasil se comprometeu e aquilo que está acontecendo.
É neste contexto de adversidades sanitárias, ambientais, sociais e econômicas que estamos vivendo. É nele que se reafirma o nosso compromisso com o bem-estar social, a redução das desigualdades, a proteção de direitos, a produção colaborativa, a economia solidária e a sustentabilidade ambiental. Informação, ciência, tecnologia e inovação fazem sentido se estão articulados com estes compromissos. É esta a nossa missão.
Isto é especialmente relevante quando parece haver uma expectativa generalizada em relação ao que será o nosso futuro comum. Retornaremos ao mundo que nos conduziu a esta situação, particularmente com a devastação ambiental? Foi ela que nos conduziu às novas epidemias, ao aquecimento global e que também alimenta a desigualdade social. Ou seremos capazes de aprender com nossos erros políticos e morais? Qual mundo queremos legar para os nossos filhos e netos, e as novas gerações?
Esta encruzilhada da humanidade emerge na discussão sobre o que se esconde sob a designação de “novo normal". O que será a nova normalidade? As esperanças agora estão concentradas no desenvolvimento de vacina antiviral. Dezenas de iniciativas correm atrás da imunização que facilitará o retorno e esconderá o conflito. O Brasil entra nesta concorrência com as cobaias humanas, o que sequer nos garante lugar na mesa dos beneficiados com o novo produto. A indústria farmacêutica opera com a lógica do mercado e os ricos estão comprando antecipadamente a sua imunidade contra o vírus.
Só a solidariedade dos excluídos, daqueles que não têm o reconhecimento da sua dignidade humana, é capaz de enfrentar o poder e o dinheiro. Só a solidariedade construída, que não está dada, pode nos fazer atravessar as dificuldades estruturais e conjunturais. A soma da P2P com a inovação tem este sentido, de produzir oportunidades, brechas e portas para uma vida melhor e menos ameaçada.
Boa leitura!
Rio de Janeiro, 16 de setembro de 2020
Clóvis Ricardo Montenegro de Lima
Editor