A PANDEMIA DA COVID-19 NO BRASIL
informações e contradições na atual conjuntura
Leilah Santiago Bufrem[1]
Universidade Federal do Paraná
santiagobufrem@gmail.com
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Resumo
Este artigo destaca informações como argumentos em defesa da manutenção e aprimoramento da estrutura pública de apoio aos serviços de saúde, de modo especial, diante da emergência da pandemia do novo coronavírus e da urgência de ações para conter a disseminação da Covid 19. Analisa a conjuntura, a partir de seus atores, dos acontecimentos e das relações nela presentes, argumentando que a produção e a comunicação científicas são fatores cruciais para compreender a doença e seus efeitos, na busca de soluções possíveis, se não efetivas ao menos redutoras de riscos. Aponta para a iminência de um desmonte total das estruturas públicas, pós pandemia, com a retomada do processo de privatização, suspenso temporariamente devido às necessidades urgentes de sua manutenção e uso. No atual contexto de capitalismo perverso, aliado a uma política intimidatória do conhecimento científico, do pensamento crítico, dos movimentos sociais e das ações coletiva; o fortalecimento das estruturas públicas de informação, educação e saúde é crucial para a superação da crise.
Palavras-chave: Pandemia da Covid-19. Análise da conjuntura. Conhecimento científico. Informação e Saúde.
THE COVID-19 PANDEMIC IN BRAZIL
information and contradictions in the current situation
Abstract
It highlights information such as arguments in defense of the maintenance and improvement of the public support structure for health services, especially due to emergency of the new coronavirus pandemic and the urgency of actions to contain the spread of Covid 19. It analyzes the situation from its actors, the events and the relationships present in it, arguing that scientific production and communication are crucial factors in understanding the disease and its effects, in the search for possible, if not effective, at least risk-reducing solutions. It points to the imminence of a total dismantling of public structures, after the pandemic, with the resumption of the privatization process, suspended due to the urgent needs for its maintenance and use. In the current context of perverse capitalism, coupled with an intimidating policy of scientific knowledge, critical thinking, social movements, and collective actions, strengthening public information, education and health structures is crucial for overcoming the crisis.
Keywords: Covid-19 Pandemic. Analysis of the conjuncture. Scientific knowledge. Information and Health.
1 INTRODUÇÃO
“Vivemos uma pandemia do novo coronavírus, chamado de Sars-Cov-2”. Com essa declaração, Tedros Adhanom Ghebreyesus expôs, em março de 2020, a urgência de ações para conter a disseminação da Covid 19, doença infecciosa causada pelo vírus, então recém-descoberto (MOREIRA; PINHEIRO, 2020). Sem a intenção de causar pânico, as primeiras informações foram acompanhadas de esclarecimentos a respeito das características da doença que, para a maioria das pessoas, apresenta sintomas leves a moderados e recuperação sem tratamento especial. Alertou-se, também, para a definição de pandemia, cujo principal critério não se restringe a um número específico de casos de atingidos pela doença, mas ao momento em a doença já está disseminada em diversos continentes com transmissão entre as pessoas, pelo mundo. O anúncio deveria servir como alerta aos países, sem exceção, em prol do planejamento e adoção de ações voltadas a conter a disseminação do vírus. Entretanto, como a notícia causou uma separação ideológica mundial, interpretações e reações passaram a variar em intensidade e efetividade nos países do mundo, percebendo-se, além da diversidade das reações, a pandemia contribuiu para mostrar não apenas as lacunas do estado e das condições de saúde da população, mas também as desigualdades existentes e as fragilidades da fração carente da população.
Asssume-se o pressuposto de que a informação é o principal fator para a luta contra a pandemia, especialmente por se tratar de uma doença e de uma situação inéditas; diante de questões como evolução e taxas de letalidade, potencial e tipos de transmissão, tratamento, existência de outros efeitos ou sequelas no organismo dos que foram infectados, assim como outras necessidades de informações surgidas no processo evolutivo da Covid 19. Os Pesquisadores e cientistas, do mundo todo, especialmente os que reuniam condições privilegiadas, contanto com uma efetiva coordenação governamental, mobilizaram-se para estimar tanto os efeitos da doença sobre a saúde da população, quanto os impactos sociais e econômicos da crise gerada pela pandemia.
A Organização Mundial de Saúde (OMS), por sua vez, tem coordenado, mapeado e divulgado os resultados de pesquisa no mundo, reunindo cientistas especializados no assunto e identificado as prioridades de pesquisa, desde o momento em que as primeiras manifestações da doença ocorreram.
Contextualizando a situação brasileira, informações recentes do consórcio de veículos de imprensa divulgam o levantamento da situação da pandemia de corona vírus no Brasil a partir de dados consolidados das secretarias estaduais de Saúde evidenciam, desde a primeira morte pela doença, ocorrida no país em 12 de março deste ano, um total de 136.677 mortes e 4.531.539 casos de coronavírus confirmados até as 13h de domingo, 20 de setembro, sendo 3.789.139 recuperados e 135.857 mortes registradas em 19 de setembro de 2020, apontando a doença como a causa-morte com mais vítimas em um único ano já registrada no país. (Casos, 2020)
Na mesma semana, resultados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostraram a crise econômica enfrentada pelo Brasil nos últimos anos, causando impacto negativo nas famílias pobres. Depois de mais de uma década em declínio, a fome voltou a crescer entre 2017 e 2018. A melhora registrada ao longo de uma década, e que havia tirado o Brasil do Mapa Mundial da Fome em 2014, foi registrada no segundo relatório global divulgado à época pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Após de ter se destacado favoravelmente, o país retrocede, chegando a um total de 10.284 milhões de indivíduos atingidos pela fome, o que correspondente a 5% da população brasileira (VILLAS BÔAS; SARAIVA, 2020).
Neste momento, a produção e a comunicação científicas são fatores cruciais para se compreender a doença e seus efeitos para a busca de soluções possíveis, se não efetivas ao menos redutoras de riscos. Entretanto, na contracorrente desse fluxo, destaca-se um estado de desinformação e insegurança. Em recente pesquisa da UFRJ-IBICT foi descrito o uso da Lei de Acesso à Informação (LAI) no mês de abril, diante das crises políticas diárias em meio a epidemia e depressão econômica. Segundo essa pesquisa, o uso da LAI, em abril, diante de crises políticas diárias, em meio à epidemia e à depressão econômica, aponta para a falta de coordenação do governo federal para atender pedidos desesperados dos cidadãos e empresas por informações. “Metade dos pedidos relacionados à Covid-19 foi dirigido ao Ministério da Cidadania, que só conseguiu dar acesso a 3% das solicitações de informação”, enquanto os demais (97%) foram encaminhados para as ouvidorias, classificados como não sendo solicitações de informação. Os dados mostram a popularização do uso da LAI como canal de interação com o governo, mas por outro lado, a comprovação da “baixa prioridade política dada à coordenação dos canais de informação e comunicação do governo com a sociedade”, neste momento crítico (PESQUISA..., 2020)
O fluxo dos acontecimentos tem evidenciado uma mobilização em sentidos opostos, a partir dos quais se pode questionar, nessas condições, se o Brasil poderá superar a crise provocada pela pandemia, qual a atuação de seus atores sociais, quais os acontecimentos destacáveis no cenário de instabilidade e que relações dinamizam essa conjuntura política e ideologicamente conturbada, a ponto de secundarizar elementos vitais ao processo político decisório? O que nos dizem as informações sobre o potencial construído nas instituições públicas de ensino e pesquisa e seu papel para o o enfrentamento da crise? As questões que envolvem o diferencial do Brasil, e a possibilidade de suas estruturas públicas serem capazes de ações de resistência diante da pandemia também integram o rol de questionamentos.
Pode-se imaginar, como contraponto, a não existência de toda essa estrutura, aberta a cidadãos e cidadãs, com os mais diversos perfis. Como seriam atendidos esses cidadão e cidadãs se essas instituições e os hospitais universitários, também públicos, com corpo clínico altamente capacitado e oriundo, em sua maioria, das universidades federais ou estaduais, fechassem por falta de investimento?
Reconhecendo a complexidade das questões lançadas, o que se pretende é destacar argumentos consistentes em defesa da manutenção e do aprimoramento da estrutura pública de apoio aos serviços de saúde, a partir de seus atores, dos acontecimentos destacáveis e das relações presentes nessa conjuntura. O valor desta exposição está na iminência de um desmonte total das estruturas públicas, pós pandemia, com a retomada do processo de privatização, problema já destacado por Soares (2000) há duas décadas, ao argumentar pela defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), resgatando seus princípios constitucionais de universalidade, integralidade e acesso igualitário a todos os níveis de complexidade do sistema. Dessa maneira, conforme argumenta a autora, seria garantida a qualidade da atenção por equipes profissionais qualificadas e com condições de trabalho, o que na época já não seria suficiente, “face ao explícito e implícito processo de desmonte” que o sistema de saúde já vinha sofrendo. Quase uma década depois, já no governo Bolsonaro, acentua-se o enfraquecimento do setor público, conforme análise de Callegari (2019), sobre a privatização e a guerra ideológica travada pelo presidente, alertada no artigo pelo sociólogo. Cortes orçamentários na educação e recorrentes ataques aos professores e instituições públicas, acusados de disseminar o “marxismo cultural” no Brasil, estão longe de expressar a simples falta de projeto do governo para o setor, são uma síntese das tentativas de desmonte das estruturas públicas, representando a ameaça constante que o país vem sofrendo e destacadas pelo autor.
Este artigo estrutura-se com a primeira parte apresentando uma visão geral da conjuntura e dos conceitos na fundamentação dos argumentos. As seções subsequentes tratam dos acontecimentos internos e externos influentes para a mobilização das relações de força e das decisões política, bem como das dinâmicas orientadas para ações e participações efetivas diante da crise. A seção final, por sua vez analisa as possibilidades de ação política em prol das estruturas públicas.
2 UMA CONJUNTURA EM DISCUSSÃO
O olhar objetivo e realista em direção às contradições da atual conjuntura marcada pela pandemia revela um quadro ameaçador, de crescente incerteza, que evidencia a falta de informações e segurança, por parte de um governo não apenas descrente, mas agressivo em relação à ciência, às instituições científicas públicas, aos órgãos de apoio e aos esforços por seu desenvolvimento efetivados pelos pesquisadores e profissionais. A desvalorização da ciência e do conhecimento científico resulta na incerteza quanto às decisões a tomar e na ambiguidade em relação aos rumos indicados ou a indicar.
Como atores na atual conjuntura, os especialistas, pesquisadores e profissionais das áreas mais afetadas, têm previsto impactos consideráveis na saúde e na economia do país, diante da crise que se avoluma e não se restringe obviamente à saúde, mas se estende aos demais setores da sociedade organizada. Seria impossível analisar, aqui, demoradamente todos os benefícios trazidos pelo saber científico à sociedade e à vida das pessoas, no seu cotidiano e, como seu contraponto, as consequências de seu desprestígio no cenário atual, de alienação social e descaso pelo conhecimento científico, com prejuízo para toda uma nação. Mas parece evidente o papel indispensável a ser exercido pelo estado nesses momentos, não só com investimentos na manutenção da infraestrutura atual, para se adequarem às necessidades emergenciais, quanto na inovação e na transformação dessas estruturas para os retornos de médio e longo prazo. Essa postura exigiria vontade política e investimento com custo elevado.
Desde o aparecimento dos primeiros casos de covid-19 no país, no mês de março, boa parte dos mais de 4,5 milhões de cidadãos foi atendida por estabelecimentos ligados ao SUS. Por conta disso, o Sistema precisou se adequar repentinamente para atender aos casos das mais diversas complexidades, ligados à doença. Como um dos marcos institucionais do país, o SUS é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo. Inspirado no National Health Service Britânico, o SUS foi instituído pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 195, regulado pela Lei nº. 8.080/1990 (BRASIL 1990), que completou 30 anos, em 19 de setembro p.p. Como forma de efetivar o mandamento constitucional do direito à saúde como “direito de todos” e “dever do Estado”, o SUS está presente na vida de todos os brasileiros e, com seu advento, toda a população brasileira passou a ter direito integral à saúde universal e gratuita, financiada com recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios. Fazem parte do Sistema os centros e postos de saúde, os hospitais públicos, incluindo os universitários, os laboratórios e hemocentros, os serviços de vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, vigilância ambiental, além de fundações e institutos de pesquisa acadêmica e científica, como o Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Vital Brasil, cujo foco está na saúde com qualidade de vida, visando a prevenção e a promoção da saúde da população.
Uma das questões decorrentes dessa estrutura legal e administrativa, que atende cerca de 75% da população brasileira, é a gestão das ações e dos serviços de saúde, que deve ser solidária e participativa entre união, estados e municípios, pois sua rede é ampla e abrange tanto ações quanto serviços de saúde, desde a atenção primária, média e alta complexidades, aos serviços de urgência e emergência, atenção hospitalar, ações e serviços das vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental e assistência farmacêutica.
O SUS tem tido uma trajetória de muito esforço e desafios enfrentados, diariamente, para proporcionar e garantir o direito universal à saúde como dever do Estado, pois abarca desde o simples atendimento para avaliação da pressão arterial, por meio da Atenção Primária, até o transplante de órgãos, garantindo acesso integral e gratuito para toda a população do país.
Hoje, com a pandemia, é possível constatar a força e importância do Sistema, que atende a maioria da população brasileira. Sob a gestão e união dos três entes – governo federal, estados e municípios – tem sido possível garantir assistência aos pacientes infectados pela Covid-19 e o atendimento daqueles que necessitam de tratamentos especializados.
O projeto Saúde Brasil 2030, conduzido pela Fiocruz mediante um acordo de cooperação técnica com a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), contou com a participação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o apoio financeiro do Fundo Nacional de Saúde do Ministério da Saúde e da SAE. O estudo refere-se ao processo de prospecção estratégica, com fundamento em Habegger (2010), podendo ser conceituado e implementado de várias maneiras, embora a maioria dos estudiosos siga a lógica trifásica: a detecção precoce e a análise da informação, que envolve a identificação e o monitoramento contínuo dos temas, tendências, desenvolvimento e mudanças dos processos em estudo; a geração de conhecimento prospectivo, que implica a avaliação e entendimento dos desafios para a implementação das diferentes políticas e o desenvolvimento das opções (de políticas) futuras, assentado na formulação dos futuros desejados e das ações políticas necessárias para alcançá-los. Isso implica explorar diversos “futuros” ou cenários alternativos. Em cenário otimista e possível, o SUS deverá ter ampla legitimidade social e a imensa maioria dos brasileiros, incluindo camadas médias urbanas, terá confiança nos serviços públicos de saúde ou mesmo preferência por utilizá-los. A vigilância epidemiológica terá escopo amplo, abrangendo doenças infecciosas e crônico-degenerativas e violências, articulando políticas de promoção e de atenção à saúde; haverá sistemas de informações consistentes que apoiarão a intervenção; investimentos federais substantivos favorecerão a redução da incidência e prevalência de agravos específicos. (FIOCRUZ, 2012)
Entre 2003 e 2016, observamos um investimento substancial na Saúde, com aumento e evolução dos recursos, destacando-se o SUS, saltando de R$ 64,8 bilhões por ano em 2002 para 120,4 bilhões por ano em 2016, ano do impeachment; a ampliação de Unidades Básicas de Saúde (UBS) em todo país; o programa Mais Médicos, estendendo serviços profissionais médicos para todos os municípios do país; construção e aparelhamento de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs); implantação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) em todo território nacional; incremento da quantidade das farmácias populares; criação de novos cursos de Medicina e outros na área da saúde, tanto na rede pública, quanto na rede privada de ensino, aumentando a quantidade de profissionais no mercado de trabalho; ampliando o número de equipes nos programas Saúde da Família; Brasil Sorridente e a quantidade de equipes de saúde bucal.
Embora o SUS venha lutando pela sua sobrevivência, desde sua fundação, é nos últimos cinco anos, por obra de políticas predatórias, resumidas em duas palavras: “privatiza tudo”, que a crise tem sido mais acentuada. Em 2005, o país contava com 19 leitos para cada 10.000 habitantes, hoje apenas 14 para os mesmos 10.000 habitantes, embora a população tenha crescido significativamente.
Profissionais da área de Saúde, médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e fisioterapeutas são os principais atores atuando diretamente na assistência e no combate à pandemia. Sobre esses profissionais, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) publicou em junho, em parceria com os Conselhos Federal de Enfermagem e Federal de Medicina, a pesquisa nacional Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da Covid-19 no Brasil. De acordo com Boletim Epidemiológico Especial nº 22 do Ministério da Saúde, até julho, haviam sido registrados 180 mil casos de Covid-19 em profissionais de saúde de todo o país, com 163 óbitos (LEONEL, 2020). Na atual precariedade das condições do país para enfrentar a Covid-19, esses profissionais têm sido submetidos a condições de trabalho inadmissíveis, conforme pesquisa realizada pelo Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo, o Sindesp, e que oferece um panorama do dia a dia daqueles que estão lutando na linha de frente a Covid-19. O Intercept teve acesso com exclusividade à pesquisa realizada com 627 servidores municipais de São Paulo e mostra como esses trabalhadores correm sério risco para atender a população e manter seus salários (LARREZI, 2020).
Também entre os atores empenhados no enfrentamento da problemática, as universidades públicas, enquanto mantém seus princípios básicos relacionados ao ensino, à pesquisa e à extensão, procurando acompanhar o desenvolvimento tecnológico como política redutora das consequências da pandemia são “lugares de combate ao obscurantismo". Em seu interior, já no mês de maio, estavam sendo conduzidas mais de 800 pesquisas para mapear coronavírus e encontrar uma vacina, conforme a Andifes (SILVA, 2020).
Inserido entre as maiores economias do mundo, na década de 2010, graças à elevação significativa dos gastos em P&D, o país destacou-se na formação de seus docentes e na infraestrutura de laboratórios e hospitais. Universidades públicas passaram a cumprir papel significativo na universalização e democratização do acesso ao ensino e à mobilidade de suas estruturas, tanto em prol da interiorização de suas atividades, quanto de seu relacionamento interinstitucional e internacional. As Bases de dados de acesso público passaram a ser disponibilizadas pela Renpac, rede de comunicação de dados operada pela Embratel. O Portal de Periódicos CAPES foi oficialmente criado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no ano de 2000. Elaborado com a pretensão de fortalecer os programas de pós-graduação no Brasil por intermédio da democratização do acesso online à informação científica, o Portal fornece acesso a conteúdo em formato eletrônico, tais como: textos disponíveis em mais de 45 mil publicações periódicas, nacionais e internacionais; diversas bases de dados que reúnem trabalhos acadêmicos e científicos, além de patentes, teses e dissertações e outros tipos de materiais, cobrindo todas as áreas do conhecimento (CAPES, 2020). Pesquisadores, alunos e funcionários de instituições vinculadas ao projeto têm acesso ao Portal por intermédio de computadores conectados à internet no interior das instituições participantes do projeto ou por acesso remoto por meio de usuário e senha, denominado como acesso Comunidade Acadêmica Federada (CAFÉ).
Com esta reflexão, procuramos evidenciar elementos para valorizar as construções científicas institucionalizadas, especialmente quando um acontecimento como a atual pandemia ilustra uma crise de imensas proporções. Agravada com a ação predatória dos ideólogos liberais, responsáveis pela política dominante, visando a concretização dos planos de redução dos gastos públicos e a privatização, em prol de um estado mínimo, a crise é orquestrada por poderoso grupo, responsável pelos constantes ataques, em modalidades muitas vezes ilegítimas, às instituições públicas de ensino e pesquisa. A consciência desses ataques tem impulsionado movimentos sociais, representativos de professores e pesquisadores, associações e sindicatos, a uma luta histórica, cujos resultados mostram-se insuficientes para frear o desmonte de projetos e ações institucionais públicas.
A tentativa de desmontar estruturas e instituições científicas, perceptível por um lado, na falta de iniciativas, fomento ou verbas, a partir do governo Temer, e, por outro lado, as medidas predatórias e os cortes intencionais nas verbas públicas, marcando uma guerra ideológica de matizes fascistas, tende a nos levar a um melancólico cenário de escombros das instituições públicas. A promulgação da Emenda Constitucional 95, pelo Congresso Nacional, passou a limitar os gastos públicos por 20 anos. Encaminhada pelo então presidente Temer ao Legislativo, sob pretexto de equilibrar as contas públicas, a emenda foi reforçada com rígido mecanismo de controle de gastos (Fonte: Agência Senado) e, com outras providências, oriundas de uma política precária de Estado.
Professores e pesquisadores já vêm tomando consciência dos resultados dessa política, e de que em pouco tempo os recursos se escassearão e a produção científica e tecnológica, assim como a inovação, passará a ser pífia, pois a pertinência de aplicação de recursos na pesquisa científica e tecnológica parece ser indiscutível em qualquer país, mas, sobretudo, em países em desenvolvimento como o Brasil, cujas carências sociais são evidentes e impactantes. Como a evidenciar a falácia dessa ideologia acientífica, o Brasil passou a contar com as estruturas públicas criadas e mantidas por governos anteriores, tais como o SUS, a Fiocruz, os institutos de pesquisa e as universidades, no afã de superar a atual pandemia.
A Fiocruz é outra instituição exemplar de uma estrutura cujas ações e projetos têm servido para a luta contra a Covid19, desde a identificação dos primeiros casos no Brasil, pesquisando as características da doença, enfrentando a disseminação da doença em todo o território nacional e produzido protótipos de kits com insumos para a realização de testes diagnósticos. O Ministério da Saúde (MS) encomendou à Fiocruz o desenvolvimento e a produção dos kits para diagnóstico, destinados a atender a rede de laboratórios públicos do país, os quais têm sido desenvolvidos pelos institutos de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) e de Biologia Molecular do Paraná (IBMP).
O Observatório Covid-19 da Fiocruz tem como função produzir informações para ação, com o propósito de desenvolver análises integradas, tecnologias, propostas e soluções para enfrentamento da pandemia por Covid-19 pelo SUS e pela sociedade brasileira. Estruturado de modo colaborativo, o Observatório permite que as iniciativas e os trabalhos desenvolvidos nos diversos laboratórios, grupos de pesquisas e setores da Fiocruz, no âmbito de suas competências e expertises, tenham agilidade, em redes de cooperações internas e externas, para a produção e divulgação de materiais de enfrentamento da pandemia. Sua dinâmica de trabalho envolve a produção de informações, dashboards, análises, desenvolvimento de tecnologias e propostas. (OBSERVATÓRIO, 2020)
Na tentativa de revelar um retrospecto histórico das principais continuidades, rupturas, avanços e retrocessos institucionais que marcaram a evolução das políticas de C&T no Brasil, recorremos a Pelaez et al (2017), cuja análise diacrônica abrange o período dos anos 1950 a 1970, quando ocorrem as principais políticas e avanços institucionais, obtidos a partir da implementação de um modelo de desenvolvimento baseado na substituição de importações. O segundo período, entre os anos 1980 e 1990, caracterizou-se pelo predomínio de uma longa crise macroeconômica, combatida por políticas liberais, e pela retirada das políticas industriais das agendas de governo. O terceiro período se inicia com o primeiro governo do presidente Lula, em 2003, quando, segundo os autores, se discute a retomada das políticas industriais, subordinadas, porém, a uma continuidade de política macroeconômica restritiva aos investimentos de risco associados à inovação tecnológica (PELAEZ et al , 2017).
Muitas das instituições atuantes no atual cenário de crise foram criadas ainda durante o regime militar. Em 1971, iniciativas correspondentes à política científica brasileira colocam em operação o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Com a finalidade de fomentar projetos e programas de desenvolvimento científico e tecnológico, passou a ter a Finep, criada em 1967, como responsável pela sua gestão. As duas instituições compõem, desde então, a principal fonte de recursos à C&T. A atuação da Finep passou a ser fulcral para o financiamento das pesquisas básica, aplicada, experimental, estudos de viabilidade econômica e engenharia final. Além do impulso positivo para C&T brasileira, passou-se a incentivar a ligação direta do programa com os líderes dos grupos de pesquisa do país.
Esta operação conseguiu assegurar recursos vultuosos, nunca então percebidos para a C&T no país, com apoio à consolidação de laboratórios, programas de pós-graduação e centros de pesquisa, especialmente para aquisição de equipamentos, custeio de obras, pagamentos e/ou suplementação de salários (pesquisadores, técnicos) e bolsas de estudos. (BALBACHEVSKY, 2010)
Assim, foi sendo ampliada a rede de influência e de investimentos, chegando a atingir níveis de excelência, pelo seu potencial de democratização do ensino, pois, entre seus estudantes, 51,4% seriam de famílias com renda bruta de até três salários mínimos, segundo pesquisa do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (FONAPRACE, 2016), sendo apenas 10,6% dos estudantes integrantes de famílias com renda bruta superior a dez salários mínimos.
Entretanto, a cada mudança de governo, ou ameaça de instabilidade política, professores e pesquisadores vêm sentindo as pressões por privatização e a necessidade de demonstrar, não com evidências estatísticas, mas com argumentação sólida e eloquente, a importância dos incentivos e do fomento às estruturas necessárias ao desenvolvimento da pesquisa científica, tecnológica e de inovação, para implementar o ciclo de sua produção e comunicação. Mas, apesar desse histórico de implantação e defesa das estruturas institucionais, dos argumentos pragmáticos em prol de sua continuidade e dos indicadores da pesquisa como base da inovação e fator essencial ao desenvolvimento econômico e à geração de riqueza, as decisões governamentais vêm na contramão do desenvolvimento esperado, com uma política de entrega de empresas públicas a corporações estrangeiras, como é o caso da Eletrobras e da Petrobras, cujos processos de privatização já foram iniciados e da Embraer, que por anos tem sido objeto de negociação com a Boeing, a respeito de condições do contrato e da parceria nas operações.
Talvez levada por esse pragmatismo impulsionado pelas forças do capital, a política científica passou a significar um jogo de qualidade duvidosa, influenciado pelas forças do mercado e em prol da aniquilação das instituições públicas, numa corrida de atitudes insólitas e falta de planejamento, mostrando o país sem rumo, diante da complexidade sanitária, econômica e política, de modo especial neste momento, em que se enfrenta uma pandemia e quando não há garantia de um padrão de vida mínimo para superá-la de forma democrática e justa. Longe disso, os atuais índices revelam o país em situação precária diante de outras nações do mundo. Para melhorar os serviços de saúde, seria necessária, no mínimo, uma política emergencial consistente, não perceptível no horizonte próximo. Enquanto isso, mais de um terço do mundo respeita o terrível momento histórico de desaceleração da economia, como se uma providência estivesse tentando frear esse dinamismo compulsivo para a destruição. Inspiradora, nesse sentido, é a formulação de três diagnósticos descritos por Hartmut Rosa (2017, p. 23), sobre os efeitos problemáticos ou patológicos do capitalismo para a vida individual e social no ritmo de “aceleração” desenfreada das sociedades capitalistas: o diagnóstico da irracionalidade; o da destemporalização ou da depressão; e o da alienação.
Os representantes desse movimento predatório, aqui no Brasil, têm no atual governo um grupo de poder cuja mobilização concreta vem desrespeitando nossas instituições de ensino superior e de pesquisa. A partir de reformas institucionais, atingindo especialmente o CNPq e a FINEP como órgãos de fomento, o governo inicia a negociação da terceira fase do PADCT, comentada por Balbachevsky (2010, p. 68). Ao apontar a necessidade de renegociação, o autor indica a redefinição do projeto em prol de reformas capazes de atuar no lado da demanda por C&T, de adequação da estrutura de incentivos para o investimento do setor privado na área e melhorando a efetividade dos investimentos públicos. Ele descreve a longa negociação (quase três anos) da terceira fase do PADCT, para atingir um desenho institucional capaz de incorporar boa parte dos novos instrumentos no âmbito das agências executoras do programa: FINEP, CNPq e CAPES.
A crise revela ainda a subserviência do governo atendendo aos interesses do capital financeiro representado pelo sistema bancário internacional e os Estados Unidos. Já foram consumidos, pela gestão Guedes-Bolsonaro na economia, 50 bilhões de dólares, equivalendo a 15% das reservas cambiais acumuladas nos governos dos presidentes anteriores, cruciais para a solvência internacional do Brasil. Paralelamente, vão sendo desmontadas as cadeias produtivas e o capitalismo entra em crise. O mesmo capitalismo, capaz de convencer da necessidade de existirem os ricos, agora, para se manter vai precisar dos pobres, pois o consumo será menor. É de se questionar como será enfrentada a situação estimada pela Organização Internacional do Trabalho, apontando para os prejuízos bilionários sobre consumo e pobreza com base em cenários a partir do impacto da Covid-19 sobre o crescimento econômico global. Em previsão moderada, poderá haver 5,3 milhões de desempregados a mais no mundo. Na pior situação, o desemprego cresce 24,7 milhões. Em 2019, a OIT estimou haver 188 milhões de desempregados, globalmente (MOREIRA, 2020).
Mas se o enfrentamento da Covid-19 vem sendo ainda que precariamente conduzido, isso tem sido graças às instituições públicas de ensino e pesquisa, institutos e pesquisadores empenhados em seus papeis, malgrado a desvalorização de sua atuação e o não reconhecimento de seu trabalho.
Assim, é preciso responsabilizar o governo por suas ações predatórias, pois a quantidade de óbitos pela Covid-19, ainda que subnotificada, é alarmante, segundo dados diários, veiculados em meios de comunicação. Entretanto, o governo parece adotar o pensamento mágico em oposição à ciência, com total falta de conhecimento e credibilidade no saber científico, cuja principal consequência é o total abandono nos setores de ciência e saúde no Brasil, desde o impeachment da presidente Dilma. Embora a falta de investimento em saúde e educação sempre tenha sido um problema enfrentado pelo país, devido à correlação de forças muito complicada, ela nunca foi tão significativa quanto a partir do governo Temer, quando a situação se agravou, chegando ao auge no atual governo Bolsonaro, com uma destruição intencional das estruturas públicas. Apesar de todas as conquistas democráticas, a conquista do SUS vem sendo destruída dia a dia pelos sucessivos governos, facilitando as investidas da iniciativa privada, com a permissão da existência de um sistema complementar. Atualmente, o sistema púbico de saúde está sendo vítima de crescente privatização e desresponsabilização das gestões nos níveis municipal, estadual e federal, e que apesar disso, tem sido a salvação do país.
Participando da estrutura pública, nesta conjuntura crítica, as universidades públicas são responsáveis pela maior parte da pesquisa científica brasileira, promovendo o desenvolvimento econômico e social por meio da produção de conhecimentos. Recente pesquisa de Clarivate Analytics revela que, entre 2011 e 2016 o Brasil publicou mais de 250.000 artigos na base Web of Science, em todas as áreas do conhecimento, correspondendo à 13ª posição na produção científica global (mais de 190 países), sendo as de maior impacto a agricultura, medicina e saúde, física e ciência espacial, psiquiatria, e odontologia, com representação de todos os estados do país nessa produção, em nítida evolução relativa a períodos anteriores e destacando-se o papel preponderante desempenhado pelas universidades públicas, federais e estaduais, responsáveis por mais de 95% das publicações. (MOURA, 2019)
Somente as universidades federais conduzem 1.260 pesquisas sobre covid-19, segundo levantamento publicado em julho de 2020, quantidade bastante superior aos 823 contabilizados em maio do mesmo ano, salientando o protagonismo da ciência ao ganhar força durante a pandemia. Outra contribuição das universidades federais é referente ao tratamento de pacientes. O total de leitos próprios das instituições, somado ao de leitos viabilizados em parcerias para a construção e a operacionalização de hospitais de campanha, é de 2.502, sendo 656 de unidade de terapia intensiva (UTI). A formação de redes das universidades públicas com gestores locais tem sido estratégica para atender a população quanto às demandas da pandemia. Segundo o estudo, já foram firmadas 255 parcerias com prefeituras e 112 parcerias com governos estaduais. Também têm sido produzidos equipamentos de proteção individual (EPI) pelas comunidades acadêmicas e, segundo o balanço da Andifes, já são 251.034 protetores faciais, 103.848 máscaras de pano, 12,5 mil viseiras de proteção, 29 mil pares de luvas, 20,2 mil unidades diversas, 6,6 mil aventais, 2 mil capuzes e 10 mil toucas, que se somam a 300 sacos de lixo de 100 litros de capacidade, 227 sondas nasotraqueais, 1.028.108 litros de álcool gel e 915 mil litros de álcool líquido. O poder de mobilização das universidades também fica evidente nas campanhas educativas por elas promovidas, chegando a 1.226. (BOND, 2020).
Em outra pesquisa, com as universidades federais do país, 46 responderam a um estudo sobre as ações por elas realizadas para combater a Covid-19. Entre os resultados, destaca-se a disponibilização de 2.228 leitos normais em hospitais, 489 em UTIs; realização de 823 pesquisas e produção de quase 1 milhão de litros de álcool em gel para distribuição. Além de outras mais de cem ações para produção de EPIs e 341 ações solidárias, sendo 191 ações conjuntas com prefeituras. Os números foram apresentados no dia 11 de maio pelo Colégio de Gestores de Comunicação (Cogecom) da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) durante uma coletiva de imprensa realizada de forma remota quando foram anunciados os dados preliminares da pesquisa. Foi destacada a importância das universidades públicas em defesa da cidadania brasileira e o caráter fundamental da ciência para o enfrentamento da pandemia. Segundo os participantes, as universidades públicas são um patrimônio do conhecimento brasileiro e os resultados de seus estudos devem ser divulgados para todo o país, com destaque para seu trabalho neste momento de pandemia. Apesar disso, reconhecem a defasagem orçamentária que, se não houvesse, possibilitaria respostas mais efetivas.
As universidades públicas paulistas – USP, Unicamp, Unesp, Unifesp, UFABC e UFSCar, totalmente empenhadas no combate ao novo coronavírus e à doença covid-19, participam de esforço conjunto e trabalho intenso na assistência de saúde à população; na pesquisa direcionada para o desenvolvimento de testes, vacinas e tratamentos; e na divulgação para a sociedade de dados precisos e informações esclarecedoras sobre a pandemia e seu agente causador. Foi e tem sido uma reação dinâmica, para atender às necessidades da sociedade. Aos primeiros sinais da emergência, as seis instituições criaram comitês internos para planejar como cada uma delas efetivaria ações de combate ao do vírus no país. O principal ponto a unir as diferentes estratégias institucionais foi a defesa do isolamento social, medida indispensável para conter o avanço da doença, segundo a maioria das entidades médicas, sanitárias e científicas do País e do mundo. (MATHEUS et al., 2020)
A CoronaWiki é uma iniciativa do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e tecnologia - IBICT, em parceria com pesquisadores e profissionais de ciência da informação e de ciências da saúde de diversas instituições brasileiras. Funciona como espaço de registro, compartilhamento e discussão das iniciativas para controle da pandemia da Covid-19, com foco especial em ações da estratégia de saúde da família e em ações comunitárias (CoronaWiki, 2020).
Apesar do desempenho das instituições públicas, persiste o ânimo privatista da política dominante, expressa em cortes de verbas, de bolsas de pesquisa e de outras modalidades de estímulo. Milhares de pesquisadores deixam de contar com condições de seguir e aprimorar o trabalho, atrasando projetos de pesquisa importantes para o país e para a humanidade. Em abril de 2020, o governo excluiu um quarto das cerca de 25.000 bolsas de iniciação científica ativas, dentre as quais, todas aquelas destinadas a estudantes de cursos de humanas do edital.
Os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2018) foram responsáveis por avanços significativos no sistema universitário público brasileiro, em especial as universidades, conforme pesquisa de Souza (2018, p. 51-52), ao descrever a inversão de recursos consideráveis na educação superior nesse período, razão da excelência e superioridade das instituições públicas em relação às privadas, em oferta formativa, infraestrutura, qualidade de ensino e de pesquisa, adquirindo prestígio e reconhecimento em toda América Latina. O nível de pós-graduação cresceu de modo articulado e planejado. A expansão e a qualidade do sistema universitário brasileiro também se devem ao financiamento público contínuo e à institucionalização de um processo de avaliação sistemática, segundo a autora.
Entretanto, esses projetos e ações concretas e convergentes foram todos sendo enfraquecidos, a partir do governo Temer e, mais intensamente, com Bolsonaro que, desde o início do seu governo, em 2019, vem atacando a ciência e a universidade pública com cortes, retenções de recursos e falsas acusações contra as instituições e os profissionais da ciência e da educação.
Vale a pena também resgatar que o governo federal, o centrão e a direita votaram a favor da PEC 95, do congelamento de gastos com saúde. Além disso, retiraram a obrigatoriedade de investir 30% dos royalties do petróleo da Petrobrás exclusivamente na saúde, projeto que foi aprovado no governo Dilma e derrubado no governo Temer. Como este, outros acontecimentos acumulam-se, sem que os interessados e as vítimas de suas consequências tomem consciência deles, por falta de estruturas e estratégias informacionais necessárias à ação concreta.
Ao discutirem os processos e dinâmicas informacionais em torno da emergência global de saúde pública pela pandemia de COVID-19, com ênfase nas manifestações de desinformação ao redor da origem do vírus, da medida de isolamento social e dos tratamentos, Lima et al (2020) adotam como alicerces teóricos os conceitos de desordem informacional, desinformação, assimetria de informações e validação discursiva. Os autores concluem que a pandemia está ensinando sobre a relação entre informação científica e política, o que está muito além de uma atualização do conflito entre doxa e episteme, entre opinião e verdade.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para compreender o papel das políticas públicas nessa conjuntura, não foi suficiente um quadro conceitual e as informações sobre o processo de aparentes mudanças de política ao longo desse período. Essas mudanças não parecem resultar da convergência de esforços dos grupos ou movimentos de coalização social, cultural ou econômica em contraposição, a partir das crises, mas do voluntarismo e prepotência na interação estratégica de atores limitados e sem poder decisório como ocorreu com as mudanças de ministros e as precipitações em decisões açodadas, acompanhadas de declarações autoritárias e carentes de argumentos válidos. Dentro da comunidade política, envolviam mais a competição pelo poder do que esforços para desenvolver meios científicos como enfrentamento de problemas.
Afortunadamente e, como ironia do destino, a tentativa de privatizar o SUS e destruir outras estruturas estatais de saúde, ensino e pesquisa, entre elas a Fiocruz e as universidades públicas, foi, até aqui, infrutífera. Ameaçadas em diversos momentos, agora elas são alvos de atenção e elogios da comunidade internacional, além de tábuas de salvação de um governo privatista, pois não fosse a atuação de seus pesquisadores e profissionais, o Brasil estaria em situação consideravelmente pior. O enfrentamento à Covid-19 só tem sido possível graças a essas e outras instituições públicas de ensino e pesquisa, institutos e pesquisadores, empenhados em seus estudos e serviços de apoio. Entretanto, essas e outras instituições de ensino e pesquisa sobrevivem heroicamente, reagindo à política desrespeitosa e ao não reconhecimento dos resultados de seus estudos, especialmente de parte do governo federal, cuja postura é pautada no desrespeito às instituições e à pesquisa por elas desenvolvidas, na demissão de pesquisadores respeitados mundialmente, na restrição de recursos, de materiais necessários e de bolsas de estudos, em ações reiteradamente privatistas.
É possível evidenciar como as relações entre o governo e as instituições públicas têm sido conflitantes. Enquanto os ideólogos liberais, tais como ervas daninhas da política dominante, visam a concretização dos planos de redução e privatização dos gastos públicos, em prol de um estado mínimo, reiteram-se os ataques, por meios legítimos e não legítimos, como as chamadas fake news às instituições públicas de ensino e pesquisa. Malgrado a mobilização e lutas expressivas e históricas de pesquisadores em movimentos sociais, associações e sindicatos, os dois últimos governos têm desestabilizado e limitado projetos e ações institucionais. Na atual conjuntura, entretanto, mais do que nunca o Brasil está utilizando e precisando das instituições político-científicas para o desenvolvimento das ações dos agentes científicos.
Percebe-se que, historicamente, os esforços realizados pelas instituições públicas têm sido revertidos em prol da população, enquanto em outros países, como os Estados Unidos, os custos de consulta médica, tratamento e internação são arcados pelos que podem, sem opção de gratuidade. Assim, a política para fortalecer e apoiar o SUS é vital. Embora vítima do descaso dos governos pós-golpe e com todos os problemas já conhecidos, o Sistema tem salvado vidas, com diagnósticos rápidos e precisos. No atual contexto, de capitalismo perverso, quando aliado a uma política intimidatória do conhecimento científico e do pensamento crítico, dos movimentos sociais e das ações coletivas, o fortalecimento das estruturas públicas de informação, educação e saúde é crucial.
A atuação em defesa dos órgãos públicos, como o SUS, as universidades e as instituições de pesquisa, frequentemente ameaçados pela política do estado mínimo, requer ampla articulação de forças na luta democrática por um modelo de desenvolvimento em prol da plena efetivação dos projetos sociais, pois eles têm servido de pilares da concretização dos direitos, da justiça e do bem-estar social. Se apenas o serviço público salvará o país dessa pandemia, mais do que uma questão ou uma hipótese, temos um desafio, um chamamento à crítica, à responsabilidade e ao respeito às coisas e às causas públicas.
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[1] Pesquisadora do CNPq. Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e Pós-doutora pela Universidad Autonóma de Madrid. Professora Titular aposentada do Departamento de Ciência e Gestão da Informação da Universidade Federal do Paraná. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba.