SUSTENTABILIDADE DA PSICULTURA FAMILIAR NA AMAZÔNIA OCIDENTAL
análise do impacto do conhecimento local
Diego Cristóvão Alves de Souza Paes[1]
Instituto Federal do Rio Grande do Norte
Tânia Nunes da Silva[2]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
tania.silva@ufrgs
_____________________________
Resumo
A Revolução Verde levou abundância a produção de alimentos, não sem causar impactos ambientais e sociais. A substituição de fontes de conhecimento democráticas – conhecimento local – por insumos tecnológicos intensivos em capital aumentou a eficiência e a previsibilidade na produção agrícola. Contudo, fontes locais de conhecimento, que subsidiam a produção rural em pequena escala, permanecem. Este artigo se propõe a analisar os impactos do conhecimento local para o desenvolvimento sustentável, usando para isso a análise o caso dos piscicultores familiares do Vale do Jamari-RO. A região é caracterizada por significativa participação na emergência da piscicultura de peixes nativos no Brasil, crescendo exponencialmente na última década. Os dados foram coletados de fontes primárias, através da realização de entrevistas semiestruturadas com produtores e técnicos da região, de entrevistas abertas com diversos agentes da cadeia, além de visitas técnicas. A produção de peixes nativos ainda é relativamente recente e com baixa tecnologia produtiva, de forma que diversas tecnologias locais foram desenvolvidas através da experiência cotidiana e compartilhada entre os produtores. Dados levantados apontam que o conhecimento local impacta positivamente o desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que apresenta positivos reflexos à comunidade, com reduzido stress ao meio ambiente.
Palavras-chave: Piscicultura Familiar. Amazônia. Sustentabilidade. Conhecimento Local.
SUSTAINABILITY OF FAMILY PSICULTURE IN THE WESTERN AMAZON
analysis of the impact of local knowledge
Abstract
The Green Revolution has led to an abundancy in food production, however, not without social and environmental consequences. The substitution of more democratic sources of knowledge – local knowledge – by capital demanding agricultural technologies has led to an increase in efficiency and predictability in food production. However, local sources of knowledge that subsidize rural production in small scale still endure. This paper aims to analyze the impacts of local knowledge to sustainable development, analyzing the case of small fish farmers in the Vale do Jamari region in the western Amazon, in Brazil. The region is characterized by its sizable participation in the emergence of fish farming of native species in Brazil, with production growing exponentially in the last decade. Data was collected from primary sources through semi structured interviews with farmers and technicians within the region and open interviews with multiple stakeholders of the production chain, besides technical visits. Production of native fish species is still relatively recent and with low productive technology, in a way that multiple local technologies were developed through day to day experience and shared between farmers. Data points to the fact that local knowledge had positive impact in economic development, while presenting positive impacts to the community with reduced stress to the natural environment.
Keywords: Small Fish Farmers. Amazon. Sustainability. Local Knowledge.
1. INTRODUÇÃO
O processo de mudança tecnológica na produção alimentos no último século transformou a escassez de comida em escala global em abundância. Este processo, conhecido como Revolução Verde, foi realizado através da disseminação de maquinário, sementes selecionadas, agrotóxicos e adubo, e auxiliado pela emergência da assistência técnica no campo. Assim, visava a substituição de tecnologias tradicionais, dominadas pela comunidade, em favor de tecnologias baseadas em princípios científicos – mais eficientes e previsíveis. Esse movimento, contudo, também levou a uma série de dilemas ambientais, sociais e econômicos, de forma que a discussão da sustentabilidade da agricultura se tornou um tema de grande relevância.
Ainda assim, a existência de vácuos tecnológicos, seja devido ao alto custo ou pela indisponibilidade, faz com que o Conhecimento Local, que emerge a partir da experiência cotidiana de uma comunidade e é socialmente compartilhado, ainda seja utilizado como base para a garantia de meios de vida para milhões de pequenos produtores rurais.
O estudo aqui descrito investiga este tema na região do Vale do Jamari, no estado de Rondônia, que passou por uma grande transformação na última década com a rápida emergência da produção em cativeiro de espécies nativas de peixe. O crescimento da piscicultura na região foi de 629% no período de 2010-2016 e hoje gera R$ 200 milhões em faturamento bruto apenas na região, auxiliando na movimentação da economia local como um todo. Este é um número expressivo, ao considerarmos que o crescimento dessa cultura acontece em uma região com cerca de 220 mil habitantes, que estes resultados contam com a participação significativa de pequenos produtores rurais e que acontece em um cenário de baixo desenvolvimento tecnológico.
As espécies ali produzidas iniciaram seu processo de domesticação apenas na década de 1980 e a produção em cativeiro se tornou economicamente interessante apenas nos últimos dez anos. A ausência de um pacote tecnológico bem estabelecido, bem como a escassez de técnicos disponíveis na região, faz com que os pequenos piscicultores familiares dependam fortemente do aprendizado cotidiano e do Conhecimento Local compartilhado para o trabalho cotidiano na produção.
A discussão que este estudo se propõe é analisar os impactos do Conhecimento Local para o desenvolvimento sustentável da piscicultura de peixes nativos no Vale do Jamari. O estudo foi realizado com base em dados levantados de fontes primárias através de entrevistas semiestruturada e entrevistas abertas com piscicultores, técnicos e atores relevantes da cadeia, além de registros de observações em visitas técnicas e participação em eventos na região Dados secundários foram levantados junto à relatórios de análise da indústria.
Assim, este artigo analisa algumas das características desse desenvolvimento repentino da piscicultura na região, a importância do Conhecimento Local neste processo e quais os efeitos diretos e indiretos na economia, sociedade e ambiente regional. Faz isso partindo de uma perspectiva hierárquica dos três elementos da sustentabilidade conforme exposta por Flint (2010).
2 A REVOLUÇÃO VERDE E AS MUDANÇAS NA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
O Conhecimento Científico mudou a sociedade humana como um todo, e sua disseminação transformou a produção de alimentos em grande escala através do processo conhecido como “Revolução Verde”, que ocorreu no pós- Segunda Grande Guerra, e foi responsável pela difusão de práticas e técnicas agrícolas modernas (GÓMEZ et al, 2013). Sua intenção mais nobre, de aumentar a segurança alimentar e reduzir a fome e a pobreza em escala global podem ser declaradas como um sucesso relativo, mas não isento de outros efeitos que levassem à transformações nas sociedades rurais (DAWSON; MARTIN; SIKOR, 2016).
Assim, começaram a ser disseminadas a utilização de fertilizantes químicos e de variedades de sementes altamente produtivas. O incentivo à mecanização da agricultura também foi realizado, com novas máquinas substituindo uma produção intensiva em mão-de-obra para uma intensiva em capital. O trabalho de extensão rural, como é conhecido a disseminação de conhecimento e técnicas científicas e de melhores práticas para os produtores rurais foi o mecanismo utilizado para essa disseminação (KERR, 2012).
A Revolução Verde foi de grande importância no aumento da eficiência e produtividade no setor agrícola, incentivando o uso de práticas modernas no campo em substituição à métodos tradicionais de produção, observados como antiquados. Como resultado, a humanidade passou a produzir alimentos gerando abundância, de forma que a fome, hoje, não existe por conta de escassez, mas sim por diversos fatores econômicos, sociais e políticos que levam à desigualdade na distribuição (HOLT GIMENEZ, 2014). O aumento na produção ocorreu de forma inversa ao número de pessoas que produziam alimento, substituindo técnicas de produção intensivas em trabalho por técnicas intensivas em capital.
Esse conjunto de transformações leva a vários efeitos negativos diretos e indiretos. Sistemas ambientais foram severamente afetados graças à transformações na paisagem com a intensificação da produção; a introdução de defensivos agrícolas teve efeitos secundários indesejados na fauna e flora local; o excedente de irrigação carregando fertilizantes químicos para os cursos de água também ocasionou mudanças nesse ecossistema, como explosões de algas; a mecanização na produção teve o duplo efeito de reduzir a necessidade de mão de obra (a qual existia em abundância) e aumentar a de capital (disponibilizado através de bancos); o incentivo à monocultura levou à redução da produção para o autoconsumo e o incentivo à utilização de sementes selecionadas reduziu a variabilidade genética; evidências indicam que o acesso facilitado ao capital combinado com maior acesso ao conhecimento disseminado pelo extensionismo rural por parte dos grandes produtores aprofundou a concentração de terras no campo (CLEVELAND; SOLERI, 2009; GÓMEZ et al, 2013; KERR, 2012; PINGALI, 2012; SEBBY, 2010).
A queda no preço dos alimentos favoreceu a redução na pobreza; contudo, o emprego rural foi afetado de forma a criar rupturas em comunidades tradicionais (PINGALI, 2012). Pacotes tecnológicos não eram transferidos de forma igualitária e demandavam capital não disponível aos mais pobres. Todos esses fatores levaram ao aumento de uma população rural desempregada e subutilizada, que não conseguia ser reabsorvida pela economia não-agrícola nas comunidades de origem e favoreceu o processo de êxodo rural (PINGALI, 2012).
A realidade da produção de alimentos tornou-se, então, um modelo industrial (KERR, 2012). Favorece, assim, grandes empresas globais como a Monsanto, Bayer, BASF, John Deere, dentre outras, que passaram a controlar o desenvolvimento técnico e o fluxo de insumos agrícolas para os produtores (KERR, 2012; CLEVELAND; SOLERI, 2009). O desestimulo à utilização de técnicas tradicionais
O desestimulo à utilização de técnicas tradicionais aumenta a busca por insumos (semente, adubo ferramentas) industrializados, aumentando a dependência de produtores das empresas que a detém. Passam, assim, a depender delas para exercer suas atividades agrícolas (CLEVELAND; SOLERI, 2009). O resultado disso é a criação de uma tecnodependência na produção de alimentos, de conhecimento técnico/científico e de insumos industrializados que são produzidos fora do alcance das comunidades rurais, mas que são fundamentais na manutenção de seu meio de vida. O antigo sistema em que formas tradicionais de conhecimento associadas aos recursos e mão de obra disponíveis ditavam a produção de alimentos, foi substituída pelo conhecimento técnico/científico, recursos de origem industrial e capital.
3 CONHECIMENTO LOCAL E SUSTENTABILIDADE
Estas foram mudanças ocorridas pós-Segunda Grande Guerra e se hoje a realidade do campo é a do conhecimento científico ditando os meios de produção, conhecimento local ainda é utilizado em diferentes contextos para guiar a atividade agrícola. Essa produção se baseia em técnicas e tecnologias locais de produção, tradicionais, socialmente compartilhadas através de gerações, fazendo melhor uso dos recursos disponíveis. Esse conhecimento ainda é de fundamental importância na atividade rural, principalmente quando conhecimento técnico/científico existente não está disponível; seja pela sua inexistência, pelo alto custo ou outros fatores.
Para se referir a este tipo de conhecimento, diferentes autores irão utilizar diferentes termos e definições, que buscam ressaltar determinada característica, levando em consideração certos interesses e objetivos (ANTWEILER, 1998). Conhecimento Local (ANTWEILER, 1998; CLARK, 1994; FAO, 2004; MURDOCH; RAYMOND, 2010), Conhecimento Indígena (BANCO MUNDIAL, 2004; WARREN, 1991), Conhecimento Ecológico, Conhecimento Ambiental Indígena (ELLEN; HARRIS, 1996), Conhecimento Ecológico Indígena, Conhecimento Biocultural Indígena, Conhecimento Tradicional (SINGH; PRETTY; PILGRIM, 2010), Ciência Local (SILLITOE, 2009) e Conhecimento Camponês (‘farmer knowledge’) (SILLITOE, 2009), dentre (muitos) outros, são todas denominações utilizadas na discussão que engloba formas de conhecimento que derivam da prática, experiência, do cotidiano e da vivência que uma comunidade possui sob determinado território. Embora enriqueçam a literatura, não devem ser utilizados intercambiavelmente, de forma que a escolha do termo apresenta um caráter importante.
Aqui, buscamos explorar a discussão a partir da concepção de Conhecimento Local, entendendo-o como um conhecimento único, tácito ou explícito, não necessariamente codificado, desenvolvido ao longo do tempo através de processos informais de observação e experimentação, sendo disseminado através de processos sociais e articulado a um contexto social, político, ambiental, econômico e cultural que atua como referência para o cotidiano de uma comunidade.
A figura 1 abaixo estabelece as diferentes características desse tipo de conhecimento, de acordo com a literatura pertinente.
Quadro 1 – Principais Características do Conhecimento Local |
||||||||||||||
|
||||||||||||||
Fonte: figura elaborada pelo autor, 2017. |
Conhecimento Local possui características que o tornam intrinsecamente dinâmico, desenvolvido ao longo do tempo e em perpétua evolução (FAO, 2004). É importante notar que a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) não considera Conhecimento Local como de domínio único de grupos tribais ou habitantes originais de determinada área, ou mesmo à população rural. “Todas as comunidades possuem conhecimento local – rural ou urbana, sitiada ou nômade, com habitantes originais ou migrantes” (FAO, 2004, p. 1). É importante ter isso em mente, posto que o Conhecimento Local não é necessariamente conhecimento indígena, ou mesmo tradicional, forma como a ideia de formas locais de saberes também é tratada.
Conhecimento Local ainda existe como forma de conhecimento primário em diversas comunidades ao redor do mundo, capaz de guiar os aspectos de produção econômica e subsistência e diversos outros aspectos de uma sociedade (FAO, 2004; KOLAWOLE, 2013; SILLITOE, 2009; STONE; GLOVER, 2016).
Esta fonte de conhecimento é útil para a agricultura (seleção de colheitas, época de plantio, entressafra); cruzamento animal e medicina veterinária (estratégias de cruzamento, características e necessidades dos animais, uso de plantas medicinais); uso e gestão dos recursos naturais (conhecimento da gestão da fertilidade do solo e gestão sustentável de espécies animais); saúde (conhecimento de plantas medicinais para a saúde humana), desenvolvimento comunitário (compartilhamento de conhecimento comum reforça os laços dentro da comunidade e entre gerações) e; alívio da pobreza (estratégias de sobrevivência baseadas em recursos locais) (FAO, 2004).
Aqui encontramos um ponto de contato com a discussão anteriormente feita acerca da Revolução Verde: a tecnologia empregada no campo mostrou-se mais eficiente na produção de alimentos em massa, mas produzindo uma menor diversidade de produtos, substituindo insumos locais e mão de obra por insumos industrializados e capital e aumentando o impacto ambiental da produção agrícola. Nesse sentindo, o Conhecimento Local fomenta a produção em menor escala e mais diversa, com maior emprego de recursos disponíveis localmente e com base em um tipo de saber socialmente compartilhado, embora com maior nível de incerteza.
O retorno do reconhecimento do Conhecimento Local surge nos últimos vinte anos, percebido como um estoque de conhecimento profundamente contextualizado, holístico e sensível às características do meio em que está inserido, sendo culturalmente compatível, com mais fácil aceitação social, ambientalmente viável, e demandando para isso pouco capital, tecnologias apropriadas, e mão de obra intensiva (ANTWEILER, 1998; CLEVELAND; SOLERI, 2009). É também observado como uma forma de empoderar comunidades, através do fomento da sua independência produtiva e da valorização de seus saberes (ANTWEILER, 1998; CLEVELAND; SOLERI, 2009).
Com a emergência da discussão da sustentabilidade a partir dos anos 1980, essas características passam a ser valorizadas, e a viabilidade do Conhecimento Local como ferramenta para o desenvolvimento sustentável encontra consonância, promovendo tanto o benefício social (manutenção de comunidades, segurança alimentar), econômico (emprego no campo, autonomia financeira) quanto ambiental (diversidade biológica, preservação de ecossistemas).
Estas são as três dimensões consideradas o “tripé” da sustentabilidade, ou seja, hierarquicamente iguais e que, em conjunção, seriam os ideais da busca por Desenvolvimento Sustentável. Flint (2004), aponta que em sua forma mais simples, Desenvolvimento Sustentável deve reconhecer que o bem-estar da humanidade está limitado a capacidade de recursos do mundo e do nosso espaço geográfico. Simplesmente não podemos atingir qualidade de vida no longo prazo se excedermos a capacidade do planeta de prover recursos e absorver rejeitos (FLINT, 2010). Entretanto, para garantirmos equidade na distribuição de recursos de forma a atingir qualidade de vida para todos, precisamos de engajamento econômico. Sendo assim, temos uma direcionalidade da sustentabilidade: nossos desejos econômicos devem ficar submetidos a um imperativo ambiental de proteção da biosfera e de um imperativo de igualdade social, buscando a criação de igualdade a recursos que otimizem o bem-estar dos seres humanos (FLINT, 2010), como exposto na Figura 1.
Figura 1 – Relacionamentos Direcionais (hierárquicos) dos diferentes elementos que compõem as abordagens de Desenvolvimento Sustentável. |
|
Fonte: Adaptado de Flint, 2010. |
Desta forma, a visão da sustentabilidade enquanto formada por três dimensões se mantém, mas sob uma nova ótica. De acordo com o que podemos derivar da literatura (GIBSON, 2006; FLINT, 2010), um olhar sustentável, portanto, deve considerar as dinâmicas ambientais, sociais e econômicas, ao mesmo tempo em que leva em consideração um contexto e reconhece fatores espaciais e temporais.
Flint (2010), ressalta, ainda, que a sustentabilidade é melhor caracterizada por um programa de ação emergindo de valores básicos de uma população, das preocupações sobre as consequências do desenvolvimento passado e da compreensão científica dos resultados da negligência em longo prazo da degradação ambiental e social. Nessa perspectiva, há de se considerar que uma comunidade local se move em direção a uma sustentabilidade quando há uma compreensão da conexão entre as ações sociais, econômicas e ambientais e de suas consequências, de forma a tomar decisões com informações que levem a uma qualidade de vida para todos os seus habitantes.
4 MÉTODO
A pesquisa aqui descrita adotou o método do estudo de caso, analisando a piscicultura na região do Vale do Jamari no estado de Rondônia, como parte de um estudo em maior escala acerca da importância do Conhecimento Local para o desenvolvimento sustentável na região. A piscicultura no estado de Rondônia acompanha a tendência nacional e global de aumento, apresentando um crescimento de 681% em apenas seis anos, tornando esse estado o maior produtor de peixes nativos em cativeiro no Brasil. Este processo de crescimento ocorreu em uma indústria de baixa tecnologia, sem um pacote tecnológico estabelecido e com forte participação de pequenos produtores.
A região do Vale do Jamari é composta por 9 municípios e possui apenas 12% da população do estado, sendo responsável por 40% da produção de peixes em cativeiro de Rondônia, recebendo destaque em relatórios da Pesquisa da Pecuária Municipal pelo rápido desenvolvimento na produção (IBGE, 2016).
Foi realizado o processo de triangulação na coleta de dados, buscando ampla compreensão do tema. Dados primários foram coletados realizando entrevistas semiestruturadas com 16 produtores e 5 técnicos, além de entrevistas abertas (não-estruturadas) com 8 agentes da indústria: vendedores de ração, especialistas, atravessadores, gerentes de bancos de fomento, funcionários de frigoríficos, estudantes e professores de cursos técnicos em piscicultura na região. Também foram realizadas visitas técnicas a pisciculturas, lojas e fábricas de ração, além de participação em eventos e reuniões da indústria, com registro através de diário de campo, fotográfico e documental. Visitas a região ocorreram em dois períodos: maio/junho de 2016; outubro/novembro de 2016, com dados complementares coletados em março de 2017. Dados secundários foram levantados através da análise de relatórios da FAO, Ministério da Pesca e Aquicultura, IBGE, SEBRAE e EMATER acerca do desenvolvimento da piscicultura no Brasil e na região.
Quadro 2 – Organizações visitadas no Estado de Rondônia (maio/junho, outubro/novembro 2016). |
||||||||||||||||||||||||
|
||||||||||||||||||||||||
Fonte: Dados da pesquisa. |
Parte dos dados coletados almejaram a compreensão das técnicas e tecnologias disponíveis e aplicadas à produção, derivadas de conhecimento sancionado por técnicos e pesquisadores, buscando diferenciá-los daquelas que derivam de Conhecimentos Locais. Os Conhecimentos Locais utilizados ativamente pelos produtores entrevistados na piscicultura foram diferenciados entre diferentes categorias: i) Conhecimentos (conhecimento sobre características da produção e do peixe, não tecnificados); ii) Técnicas Locais; iii) Tecnologias Locais Improvisadas (Jugaad); iv) Tecnologias Locais Duráveis. Aqui, discutimos a importância delas em função do tripé da sustentabilidade na região: para a economia, o meio ambiente e a sociedade na região.
5 CARACTERIZAÇÃO DO CASO
A região do Vale do Jamari, em Rondônia possui uma população de 220 mil habitantes em seus 9 municípios, espalhados por um território equivalente a ¾ do estado do Rio de Janeiro (32 mil km²). A economia da região gira em torno da produção rural e sua população é composta principalmente por imigrantes das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, que lá chegaram graças ao plano de colonização da Amazônia durante o governo militar, entre as décadas de 1960-1980. Os colonos da Amazônia ajudaram no desenvolvimento do estado principalmente através da agricultura, sendo exigido a eles a derrubada de florestas e a implantação de monoculturas. Hoje o estado é proeminente principalmente na produção de carne bovina e leite, além de se destacar na produção de café, soja e cacau – e mais recentemente, peixe.
O Vale do Jamari é emblemático nesse movimento de desenvolvimento agrícola e o desempenho da agência do Banco da Amazônia (banco de fomento regional) na região é exemplo disso. Mesmo sendo um Banco que atende projetos em cidades como Manaus, com 2 milhões de habitantes, Belém, com 1,4 milhões e mesmo Porto Velho, capital de Rondônia, com 500 mil, a maior agência do BASA, em volume de empréstimos, é a da cidade de Ariquemes, maior cidade do Vale do Jamari, com 90 mil habitantes.
A piscicultura tem mudado a geografia da região. Os campos de pasto e outras monoculturas passaram a dividir espaço com tanques de água que têm peso significativo para a economia da região. A produção de peixes nativos em cativeiro emerge nos anos 1980 em Rondônia, mas é a partir da década de 2000 que começa a mostrar uma produção de alta rentabilidade – com margens de lucro líquidas de 80% nos primeiros anos. As altas margens levaram à adesão de novos produtores, com aumento de 1.942% nos produtores cadastrados entre 2010-2016, e um aumento na produção de peixes de 12 mil toneladas/ano para 87,5 mil toneladas/ano durante esse mesmo período em todo o estado – um crescimento de 629%.
Essa é uma indústria que gera cerca R$ 500 milhões de reais por ano ao estado apenas com a venda de peixe, desconsiderando a movimentação de outros elos da indústria, como insumos e mão de obra. A região do Vale do Jamari se destaca nesse cenário ao corresponder por 40% de toda a produção de peixe em Rondônia.
No Vale do Jamari, a produção cresceu através das espécies nativas da Amazônia, como Tambaqui, Pirarucu e Pintado. Espécies que ainda estão em processos iniciais de domesticação e cujo desenvolvimento tecnológico ainda está muito aquém das espécies mais produzidas e comercializadas globalmente. A primeira desova de peixes em cativeiro em Rondônia aconteceu apenas em 1988 e os trabalhos de melhoramento genético começaram apenas nos anos 2000. O advento de uma ração capaz de viabilizar o sabor do peixe em cativeiro começa a ser disseminada apenas na última década, o que coincidiu com o aumento da produção e abriu mercado para o produto.
A piscicultura global encontra-se em diferentes níveis de industrialização. Peixes como o Salmão e a Truta encontram alto nível de industrialismo, controlados por grandes corporações e alta tecnologia. Mesmo a Tilápia e o Pangasius do sudeste asiático encontram-se em avançado nível técnico, em termos de sanidade, reprodução, alimentação e engorda.
O mesmo não pode ser dito para as espécies nativas do Brasil. Embora estudos tenham sido desenvolvidos pela EMBRAPA, o nível técnico e tecnológico ainda é baixo, seguindo basicamente o modelo asiático milenar de tanques escavados e adubação, somados à alimentação com ração industrializada, monitoria das características da água e correção química. A oferta de assistência técnica também é baixa na região, com poucos especialistas na EMATER para atender milhares de pequenos produtores. Mesmo produtores dispostos a investir em tecnologia conseguem insumos apenas para analisar a qualidade da água – algo genérico a toda produção de peixes.
A piscicultura de peixes nativos na região atraiu muitos produtores da agricultura familiar pela possibilidade de otimização do uso do terreno disponível. Em um hectare de terra que seria possível produzir cerca de 400 kg de carne bovina (aprox. R$3.276), um piscicultor produz 8 toneladas de Tambaqui (cerca R$36 mil, bruto), peixe mais produzido na região. Hoje o maior produtor no Vale do Jamari possui 500 hectares de lâmina d’água (para uma produção estimada de 4 mil toneladas/ano), mas o produtor típico da região possui apenas 3,5 hectares (capaz de produzir 28 toneladas/ano).
Os números, à primeira vista, impressionam, posto que uma produção de 28 toneladas seria capaz de gerar aproximadamente R$126 mil de receita bruta por ano, em uma produção facilmente gerida apenas pelo pequeno produtor com auxílio de sua família. Contudo, aumentos médios de 72% no custo da ração, maior componente do custo da produção, reduziram as margens de lucro extraordinárias observadas anteriormente. Mesmo com essa adversidade, segundo os produtores familiares entrevistados, a margem hoje permanece em 30%, sendo um componente que contribuiu consideravelmente na renda da agricultura familiar dos piscicultores. E esta produção recebe apoio dos órgãos como os escritórios locais da EMATER e IBAMA e a Secretaria de Agricultura de Rondônia.
Isso é muito bem revelado através da convivência e das trocas realizadas com os produtores, que permanecem otimistas, mesmo com o aumento do seu maior insumo produtivo. A renda da piscicultura de peixes nativos serve para muitos como um complemento, seja à aposentadoria rural, gado de leite ou horticultura, de forma que os pequenos piscicultores do Vale do Jamari são unânimes em destacar a importância da piscicultura para a melhora no padrão de vida, mesmo em um cenário nacional de crise econômica.
6 CONHECIMENTO LOCAL E SUSTENTABILIDADE DA PISCICULTURA NO VALE DO JAMARI
O levantamento do conhecimento local no Vale do Jamari contabiliza, entre os piscicultores consultados, mais de 70 saberes, técnicas ou tecnologias, apreendidas através da experiência e observação, sendo descobertas a partir do cotidiano ou de trocas sociais (SILLITOE, 2009; CLARK, MURDOCH, 1994; ANTWEILER, 1998; KOLAWOLE, 2013). Destes, 25 manifestações eram compartilhadas entre dois ou mais piscicultores, comprovando aspecto social deste conhecimento.
Quadro 3 – Conhecimentos locais desenvolvido pelos piscicultores familiares utilizados na produção |
||||||||
|
||||||||
Fonte: Dados de pesquisa. |
Essas técnicas, conforme relato dos produtores, apresentam pontos positivos e negativos. Não há sistematização e a replicação não é perfeita; não há fundamentação científica por trás das técnicas ou tecnologias, apenas o entendimento de que funciona em alguma medida e que torna a produção possível. Essas são características clássicas de uma forma local de fazer ciência e produzir conhecimento que gera retornos a uma comunidade, mesmo que falha, mas que possibilita uma atividade econômica por parte de pequenos produtores (ANTWEILER, 1998; CLEVELAND; SOLERI, 2009; KOLAWOLE, 2013; SILLITOE, 2009).
O compartilhamento social do conhecimento foi relatado e observado repetidas vezes durante a pesquisa. No caso de dúvidas cotidianas e quando um técnico da EMATER não está disponível, os principais consultados são os vizinhos percebidos como possuindo maior domínio sobre a produção. Isso acontece principalmente no caso de novos produtores ou em emergências. O conhecimento circula através de diversos cenários dentro do cotidiano de cada comunidade, através da cooperação e do trabalho conjunto, mas também através de igrejas, encontros no comércio ou mesmo encontros ocasionais. A informação, assim, circula de forma democrática entre os piscicultores. Contudo, é possível afirmar que as Tecnologias Apropriadas que emergem a partir do Conhecimento Local dos piscicultores são algo realmente viável e coerente com a sustentabilidade regional?
A pecuária, que é hoje a maior cultura no Vale do Jamari, é apontada como uma das grandes responsáveis pelo aumento do desmatamento na Amazônia. Assim, se faz necessário o aumento da produtividade por área de produção, o que significa, em sua essência, a otimização da produção de proteína animal por m² de área de floresta devastada. Neste sentido, a piscicultura agrega o benefício de se mostrar mais eficiente ao produzir vinte vezes mais proteína animal em um mesmo hectare, conforme previamente apontado. Isso também é acompanhado de uma rentabilidade muito maior por área devastada, o que levou originalmente os pequenos produtores a essa adesão: otimização do terreno disponível.
Em outros fatores como emissões de carbono e consumo de água, a piscicultura como um todo também possui impacto muito menor, emitindo cerca de um décimo da quantidade de carbono e consumindo um décimo da quantidade de água (SINTEF, 2009). Como pode ser observado durante as visitas técnicas, algo que foi confirmado pelos entrevistados, a expansão na construção de tanques para piscicultura tem ocorrido em áreas de pasto e sem gerar desmatamento em novas áreas, ou seja, a piscicultura tem roubado espaço do gado.
Outro fator que pode ser considerado, de modo geral, a favor do impacto ambiental do peixe nativo e dos piscicultores do Vale do Jamari é o fato de ter uma alta taxa de adesão ao licenciamento ambiental. Em Ariquemes, segundo o técnico da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, essa adesão é de cerca de 90%. Dos entrevistados, apenas um ainda estava em estágio final de certificação ambiental, enquanto os demais possuíam tais documentos em dia. O motivo para isso é basicamente instrumental; o licenciamento impede a venda dos produtos e empréstimos subsidiados, além de acarretar em pesadas multas.
Durante a coleta de dados não foi utilizado diretamente o termo Desenvolvimento Sustentável; não há um reconhecimento preciso do termo entre os piscicultores, de forma que uma pergunta direta acerca disso seria imprudente. Durante as entrevistas foi realizada, então, a busca de dados sobre as três dimensões que tomamos como base para a análise – as dimensões econômica, ambiental e social – como forma de compreendê-las dentro da lógica do trabalho.
Quanto a dimensão econômica, foi possível perceber que as Tecnologias Apropriadas desenvolvidas localmente servem como subsídios a uma produção sob a qual existem poucas técnicas estabelecidas e que funcionem em um ambiente tão peculiar, em que a piscicultura ainda encontra a melhor forma de produzir, enquanto não existe um pacote tecnológico estabelecido. Os piscicultores do Vale do Jamari não são plenamente autônomos e independentes aos seus próprios meios, uma vez que ainda precisam dos laboratórios de alevinagem, da ração e dos adubos industrializados, além do conhecimento de técnicos para projetos que irão lhes garantir financiamento. Também não são independentes de aconselhamento técnico.
Mas, concomitantemente, o Conhecimento Local dos produtores é o que possibilita a existência e a continuidade cotidiana da própria piscicultura a produtores que, de outra forma, não conseguiriam fazê-lo, provendo uma nova fonte de renda familiar. Não há assistência técnica disponível com fácil acesso, e as informações técnicas existentes foram classificadas por um dos técnicos entrevistados como insuficiente, dado o pouco número de estudos científicos sobre os peixes nativos da Amazônia. No entanto, ainda assim, o conhecimento compartilhado entre os piscicultores torna possível essa atividade econômica.
Necessitando menor espaço físico, a piscicultura nativa se encaixa no perfil dos agricultores familiares da região, mesmo que necessite de investimentos iniciais consideráveis. Contudo, o investimento em infraestrutura é viabilizado através do leque de recursos disponíveis aos produtores por meio de programas de fomentos e de subsídios – o PRONAF, principalmente. A piscicultura familiar existe e prolifera, uma vez que se encaixa nos recursos de capital, de trabalho e de conhecimento disponível aos produtores.
É difícil afirmar com precisão o ganho econômico dos produtores, simplesmente devido a uma falta geral de registro. Poucos possuem anotações acerca do rendimento de cada despesca ou os gastos com insumos - respondentes se basearam em estimativas. No entanto, há uma perspectiva positiva dos piscicultores familiares acerca da renda proporcionada, de forma que a realização de novos investimentos tem sido padrão na região. Os sequentes resultados positivos em cada temporada elevaram a qualidade de vida dos produtores – o que faz com que novos produtores adotem essa cultura.
Podemos exemplificar isso em números a partir do tamanho médio dos tanques de engorda dos produtores entrevistados (3 hectares) e com base na estimativa de adensamento de 2 mil peixes por hectare. Com um período de engorda médio de 8 meses, com menor adensamento, ao final de um período de engorda estes 3 hectares representam uma produção de 18 toneladas de peixe, totalizando R$72.000. Isso significa, em termos do “lucro” hoje estimado em 30%, que um piscicultor familiar consegue adicionar R$21.600 a sua renda a cada 8 meses. É importante ressaltar que este valor se soma a outras rendas do cotidiano dos produtores, como aposentadoria rural, leite, fruticultura, café, entre outros.
Esse resultado econômico reverbera localmente de muitas formas. De acordo com relatos dos produtores, os recursos para o cotidiano da produção (adubo, ração e calcário, principalmente) e recursos para a construção de infraestrutura (aluguel de máquinas, tubos e encanamentos) são obtidos de fornecedores e lojas locais. Temos uma mudança de nível na movimentação econômica dessa piscicultura familiar: o efeito de estímulo à atividade econômica e de geração de empregos na região em que habitam.
E isso é facilmente sentido durante o período de convivência na região, pois encontram-se: diversas empresas de compra e venda de peixe; empresas especializadas no aluguel de maquinário ou mesmo na construção de tanques; revendedores de ração e outros insumos; fábricas de gelo; diaristas em busca de despesca, entre outros. Estas são empresas locais, estabelecidas na região e empregando localmente.
Embora a manutenção dos peixes seja um serviço cotidiano que pode ser executado pelo produtor com pouco auxílio, na despesca ou transferência de animais o número de pessoas necessárias aumenta. Não há uma equipe profissional a ser contratada e a aplicação de maquinário na despesca é algo largamente improvisado. É um trabalho manual, extenuante e que precisa ser feito com rapidez, para reduzir o stress aplicado aos animais.
Nesses casos, vizinhos, funcionários de outras fazendas, familiares e conhecidos participam e auxiliam uns aos outros em troca de alguma remuneração fixa (diária) ou simplesmente em troca da participação dos demais nos momentos de movimentação da sua própria produção – algo que irá variar dependendo de cada núcleo de produtores. Nos dois cenários, a remuneração adicional inclui alguns peixes e uma confraternização. O processo de união nos núcleos de produtores familiares é outro momento social na troca e compartilhamento de conhecimentos, mas mais do que isso: é um evento comunitário.
Foi observado uma importante função social em um erro na piscicultura familiar do Vale do Jamari. A falha em resolver o problema das espécies invasivas, como tilápia, traíra e lambari – espécies sem valor econômico para os piscicultores – resulta em tanques ainda cheios de peixes, após a despesca das espécies principais. Mas o resultado indireto desse erro é a distribuição de alimentos de forma gratuita para toda uma comunidade ao redor; há o reconhecimento do valor daquele alimento, mesmo que não seja financeiro.
Essa presunção acerca da distribuição de alimentos se torna um traço cultural a tal ponto que, no momento da despesca em propriedades em que foi aplicada uma técnica local de utilizar peixes carnívoros para a redução de pragas, existem relatos de membros da comunidade se decepcionando com a ausência de alimento extra.
Estas e outras coisas podem ser ditas sobre os impactos na dimensão social do Conhecimento Local na piscicultura da região. Por um lado, pode-se reforçar a importância do empoderamento da comunidade, valorizando os saberes e os recursos localmente disponíveis (ANTWEILER, 1998; CLEVELAND; SOLERI, 2009); há maior autonomia dos produtores e há o estabelecimento de pontes entre eles. Reflexos disso que podem ser apontados na região são justamente a comunhão e o trabalho coletivo nos momentos de necessidade, a troca de conhecimentos entre os produtores em uma lógica não de competitividade, mas de cooperação, e o compartilhamento de alimentos com a comunidade.
Outro efeito prático na sociedade local gerado a partir do aumento da renda é a geração de empregos rurais. As gerações mais novas na região procuram a cidade em busca de emprego, e é possível perceber, conforme relato do gerente da EMATER local, um envelhecimento das pessoas que habitam as propriedades rurais. O dinheiro que circula na piscicultura estimula, assim, a manutenção de famílias e de jovens na propriedade, de acordo com este entrevistado.
Como um todo, o Conhecimento Local compartilhado pela comunidade, e que lhes proporciona fontes de renda e subsistência, também lhes garante maior autonomia perante as grandes indústrias do complexo agroindustrial moderno. Mesmo que não sejam plenamente independentes, a eles é possível tocar diversos aspectos de sua produção a partir de sua própria fonte de técnicas e tecnologias.
Analisar a dimensão ambiental do Conhecimento Local, no caso da piscicultura do Vale, passa por uma compreensão das críticas à piscicultura em outros cenários, de onde podemos tirar evidências sobre os impactos dessa atividade. Produções muito intensivas na piscicultura são criticadas por levar ao excesso de nutrientes na água, causando uma série de problemas ao ambiente aquático; também podem potencializar, ou mesmo introduzir, patógenos em ecossistemas; inserir acidentalmente espécies invasivas; e introduzir antibióticos e inseticidas e outros produtos químicos diretamente nos cursos de água. São muitos os motivos que levaram a uma má reputação geral acerca da piscicultura.
De todos os impactos ambientais da piscicultura no Vale do Jamari, talvez o mais positivo seja a utilização de espécies nativas, próprias da região, plenamente adaptadas às variações climáticas, reduzindo o impacto das fugas. Isso, por si só, gera um benefício em relação à produção da tilápia, que hoje é uma espécie invasiva que afeta ecossistemas naturais em todo o país.
Isso não significa que a emergência da piscicultura não cause alterações no ecossistema local. As pisciculturas se baseiam, essencialmente, na criação de lagos artificiais, no desvio e no armazenamento da água de cursos hídricos. Não foram, contudo, encontrados registros de reclamações entre vizinhos, órgãos ou dentro das comunidades acerca da escassez de água proporcionada pela piscicultura.
Contudo, esses lagos artificiais atraem a fauna local, uma vez que pássaros e capivaras são figuras frequentes dentro dos tanques, algo que não levanta grande preocupação por parte dos piscicultores – não há preocupação com possíveis contaminações por parte de espécies silvestres, mas sabe-se que é possível. Contudo, algumas espécies de pássaro, jacarés e lontras podem causar perdas consideráveis.
Foi observado que isso leva a respostas algumas vezes violentas por parte dos piscicultores: aves são espantadas através de tiros de espingarda; jacarés são mortos e utilizados como alimento; lontras são enxotadas por cães ou caçadas. A maior parte dos piscicultores afirmou ter tido encontros com animais predadores em seus tanques.
O baixo nível de tecnologia existente, que abre espaço para o Conhecimento Local na região, acaba por reduzir, em muito, os impactos ambientais da produção de peixes em cativeiro, algo que muitos elementos da produção servem de evidência. No Vale do Jamari não são utilizados inseticidas na água, pois existem poucos inseticidas sancionados para o peixe e que não foram testados em espécies nativas. Não há conhecimento por parte de técnicos e piscicultores acerca deste uso, assim como não foram encontradas evidências de utilização ou recomendação; e o mesmo acontece com antibióticos. Isso não quer dizer que a piscicultura no Vale não é acometida por doenças. Mas as estratégias utilizadas passam, em sua maioria, pela articulação dos insumos localmente disponíveis e cuja utilização é sancionada pelos técnicos locais – sal, quantidades controladas de cal, renovação da água nos tanques, entre outros.
Alguns produtores afirmaram recorrer a tratamentos não sancionados (no caso de vermífugos), que garantem resolver o problema encontrado. Esse é um aspecto negativo, uma vez que não há garantia de segurança desse procedimento – isso nos lembra que há espaço para o questionamento das práticas baseadas em Conhecimento Local, que não podem ser, necessariamente, assumidas como sustentáveis (MURDOCH; CLARK, 1994). A vermifugação não sancionada é um problema sério para o meio ambiente e para o consumo humano. Esse é um conhecimento, mesmo não sendo seguro para a saúde humana, que foi introduzido por técnicos em cursos de capacitação, embora seja recriminado pelos especialistas entrevistados.
Quadro 4 – Resumo dos impactos do conhecimento local na sustentabilidade da atividade da piscicultura nativa em Rondônia |
||||||||||||||||
|
||||||||||||||||
Fonte: Dados de pesquisa |
Outro problema ambiental grave, tradicionalmente associado à piscicultura de forma geral à questão do excesso de nutrientes na água, é reduzida no Vale do Jamari devido a baixa densidade de peixes nos tanques dos piscicultores familiares. Enquanto a cultura do salmão trabalha com 8-20 quilos de peixe por metro cúbico (m3), os piscicultores do Vale do Jamari que trabalham com maiores densidades estocam 0,5 quilo por m3. Uma técnica local para redução no custo de ração e melhoria na qualidade da água prevê o adensamento com 0,3 quilo por m3.Essa diferença é muito significativa no impacto nos nutrientes da produção, pois quando escoados em grandes concentrações podem causar sérios problemas aos ecossistemas naturais – grande parte da água que sai dos tanques volta diretamente para os corpos hídricos da região.
Mesmo com baixa densidade, o ideal seria realizar a decantação da água que sai dos tanques antes do retorno para os corpos hídricos. No entanto, são poucos os piscicultores que realizam a decantação de água, pois não é algo exigido na legislação sobre a piscicultura para pequenas propriedades. É exigido dos piscicultores apenas que realizem avaliações periódicas da qualidade da água nos corpos hídricos que servem a propriedade, de forma a possibilitar a renovação das licenças. Nenhum piscicultor entrevistado encontrou dificuldades nesse processo de renovação, indicando ainda baixo impacto da produção.
Isto é, contudo, um retrato momentâneo. Maiores oscilações no preço da ração ou dos alevinos, sem que seja encontrada alternativa para os produtores, pode tirar a rentabilidade dos piscicultores familiares. Principalmente, avanços tecnológicos que fiquem fora do alcance (seja devido ao custo ou à escala) dos pequenos produtores podem inviabilizar o custo de suas produções, privilegiando os ganhos em escala dos grandes produtores. Estes são cenários hipotéticos, mas não impossíveis. Fato é que ainda não há grande diferença tecnológica entre grandes e pequenos piscicultores no Vale do Jamari, mesmo que grandes produtores possuam Engenheiros de Pesca 24 horas por dia monitorando a produção e pequenos acompanhem sozinhos, utilizando para isso o Conhecimento Local.
Mas há considerável diferença em termos de poder de investimento e escalas na produção, de forma que um pacote tecnológico de alto custo pode modificar todo este cenário – reduzindo as altas margens em função de ganhos de escala, concentrando a produção em menor número de grandes piscicultores e aumentando o stress ambiental devido à produção mais intensiva e utilizando insumos diversos de maior impacto ambiental. Este foi o processo que aconteceu com o salmão, que hoje encontra a produção concentrada nas mãos de poucas grandes e médias empresas capazes de investir na tecnologia necessária para tornar o produto competitivo – um projeto de jaulas de salmão da Marine Harvest, maior empresa global desse produto, tem o custo estimado de R$ 11 milhões de reais, para uma vida útil de até 10 anos, com alta capacidade produtiva.
Enquanto isso, no Vale do Jamari, grandes produtores gastam R$40 mil em um hectare de tanque escavado, para uma produção média de 8-12 toneladas/ano. Ao mesmo tempo, piscicultores familiares da região gastam cerca de R$25 mil para um hectare de tanque escavado, com a mesma capacidade de produção.
As Tecnologias Apropriadas fazem uso de recursos disponíveis aos produtores dentro de sua própria região, o que inclui, além de matéria prima, seu próprio conhecimento. Tornaram-se, através da busca por solucionar problemas em seu dia a dia, detentores de um conhecimento único acerca da piscicultura de peixes nativos. Estes são conhecimentos que emergem imbricados na cultura local, sendo facilmente incorporados e disseminados dentro de uma sociedade.
Não há um cálculo realizado para que esses conhecimentos sejam sustentáveis – a discussão acerca de Desenvolvimento Sustentável não é algo que faz parte do cotidiano dessas comunidades. Mas isso não significa que, mesmo que inadvertidamente, os piscicultores do Vale do Jamari, após profunda transformação no meio ambiente local, não tenham encontrado uma forma de associar ganhos econômicos e sociais através de uma cultura que privilegia o ecossistema nativo e do qual seu próprio conhecimento é parte fundamental.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É impossível voltar atrás no processo iniciado pela Revolução Verde e a tendência é de contínuas descobertas e transformações nas tecnologias e técnicas aplicadas à produção de alimentos. Isso é um processo importante e vital, considerando o contínuo aumento na demanda global por alimento. Contudo, o que o caso da piscicultura no Vale do Jamari nos mostra é um retrato da evolução de conhecimentos que acontece em grande parte de forma autônoma, mostrando como é possível atingir um rápido desenvolvimento produtivo e um interessante retorno econômico para pequenos produtores, com positivos impactos sociais e atenuados impactos ambientais.
No contexto atual é possível observar um cenário em que grandes e pequenos produtores encontram-se nivelados em relação à tecnologia disponível, e que pequenos produtores familiares, trabalhando sozinhos ou com ajuda de vizinhos, são capazes de gerir sua produção com sucesso.
A utilização de técnicas e tecnologias locais não apresentam a mesma eficiência que aquelas geradas por Conhecimento Científico, mas isso não significa que não funcionem e que não sejam capazes de gerar retornos à comunidade. Acima de tudo, são ferramentas apropriadas às condições encontradas e muito mais democráticas, não são apenas de domínio público, mas são literalmente dominadas pelo público, pois é neste universo em que fazem sentido e que evoluem, se transformam; novas descobertas, novas observações, novas conclusões etc. Tentativa e erro e acaso são as principais formas de evolução do Conhecimento Local, assim tem sido no Vale do Jamari e é assim que os piscicultores familiares desenvolveram sua caixa de ferramentas para o cotidiano.
O uso dessa caixa de ferramentas aponta, hoje, para algo sustentável, especialmente ao analisarmos as características da produção que predomina na região, a pecuária. Otimiza a produção de alimentos por área, adaptado aos recursos de pequenos proprietários (capital, tecnologia, terra e mão de obra) com impactos positivos à sociedade local através da distribuição de alimento e geração de empregos no campo, além de fomentar a cooperação entre produtores.
Contudo, há dificuldade de declarar isso de fato como algo sustentável, ao considerarmos que possíveis oscilações no preço do produto e dos insumos, ou transformações tecnológicas, podem modificar o cenário observado. Mas é possível perceber é que o Conhecimento Local aplicado à piscicultura do Vale do Jamari proporciona ganhos econômicos aos produtores a partir do privilégio de recursos locais, com positivos retornos à sociedade local, enquanto, em virtude de sua própria configuração, apresenta reduzidos impactos ao meio ambiente – embora tudo isso se baseie em um equilíbrio frágil.
REFERÊNCIAS
ANTWEILER, C. Local Knowledge and Local Knowing. Anthropos, v. 93, p. 469-494, 1998.
BANCO MUNDIAL. Indigenous Knowledge: local pathways to global development. World Bank, 2004.
BRASIL. Agricultura Familiar Produz 70% dos Alimentos Consumidos por Brasileiro. Portal Brasil, 2016. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2015/07/agricultura-familiar-produz-70-dos-alimentos-consumidos-por-brasileiro. Acesso em: 03 mar. 2017.
CLEVELAND, David A.; SOLERI, Daniela. Farmer Knowledge and Scientist Knowledge in Sustainable Agricultural Development: Ontology, Epistemology and Praxis. In: SILLITOE, Paul (ed). Local Science vs. Global Science Approaches to Indigenous Knowledge in International Development. New York: Berghan Books, 2009.
DAWSON, Neil; MARTIN, Adrian; SIKOR, Thomas. Green Revolution in Sub-Saharan Africa: Implications of Imposed Innovation for the Wellbeing of Rural Smallholders. World Development, v. 78, p. 204-2018, 2016.
diversity: learning from tribal communities for sustainable development in northeast India. Journal of Environmental Planning and Management, v. 53, n. 4, 2010.
ELLEN, R.; HARRIS, H. Concepts of Indigenous environmental knowledge in scientific and development studies literature: a critical assessment. Amsterdam: Harwood Academic East-West Environmental Linkages Network Workshop. Canterbury, May. 1996.
FAO. What is Local Knowledge? Building on Gender, Agrobiodiversity and Local Knowledge. Rome: Food and Agriculture Organization, 2004.
FARMER, B. H. Perspectives on the “Green Revolution” in South Asia. Modern Asian Studies, n.1, v. 20, p. 175-199, 1986.
FLINT, R. Warren. Seeking Resiliency in the Development of Sustainable Communities. Human Ecology Review, v. 17, n. 1, p. 44-57, 2010.
FLINT, Warren. Sustainable Development: What does sustainability mean to individuals in the conduct of their lives and businesses. In: MUDACUMURA, G. M.; SHAMSUL HAGUE, M. S. (eds.), Handbook of Development Policy Studies. New York: Marcel Dekker, 2004.
GIBSON, Robert B. Beyond the Pillars: sustainability assessment as framework for effective integration of social, economic and ecological considerations in significant decision-making. Journal of Environmental Assessment Policy and Management, v. 8, n. 3, p. 259-280, 2006.
GÓMEZ, Miguel et al. Post-Green Revolution food systems and the triple burden of malnutrion. FAO Working Papers, ago. 2013. Disponível em: http://www.fao.org/fileadmin/templates/esa/Papers_and_documents/WP_13-02_Gomez_et_al.pdf. Access in: 12 nov. 2016.
HOLT-GIMÉNEZ, Eric; ALTIERI, Miguel, A. Agroecology, Food Sovereignty and the New Green Revolution. Agroecology and Sustainable Food Systems, v. 37, n.1, p. 90-102, 2013.
IBGE. Produção da Pecuária Municipal 2015. Rio de Janeiro: IBGE, 2016. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/84/ppm_2015_v43_br.pdf. Acesso em: 06 mar. 2016.
KOLAWOLE, Oluwatoyin D. Soils, science and the politics of knowledge: How african smallholder farmes are framed and situated in the global debate on integrated soil fertility management. Land Use Policy, n. 30, p. 470-484, 2013.
MURDOCH, Jonathan; CLARK, Judy. Sustainable Knowledge. Geoforum, v. 25, n. 2, p. 115-132, 1994.
PINGALI, P. l. Green Revolution: Impacts, limits and the path ahead. Proc Natl Acd Scie, v. 109, n. 31, jul. p. 12302-12308, 2012.
SEBBY, Kathryn. The Green Revolution of the 1960s and Its impacts on Small Farmers in India. Theses (Bachelor of Arts and Sciences) – Universidade de Nebraska at Lincoln, Nebraska, 2010.
SILLITOE, Paul (ed). Local Science vs. Global Science: Approaches to Indigenous Knowledge in International Development. New York: Berghan Books, 2009.
SINGH, R.; PRETTY, J.; PILGRIM, S. Traditional Knowledge and biocultural
SINTEF FISHERIES AND AQUACULTURE REPORT. Carbon footprint and energy use of Norwegian seafood products. Noruega: SINTEF, 2009. (SFH80 A096068 – Open Report). Available at: https://www.sintef.no/globalassets/upload/fiskeri_og_havbruk/fiskeriteknologi/filer-fra-erik-skontorp-hognes/carbon-footprint-and-energy-use-of-norwegian-seafood-products-final-report-04_12_09.pdf. Access in: 12 May 2020.
STONE, Glenn D.; GLOVER, Dominic. Disembedding grain: Golden Rice, the Green Revolution, and heirloom seeds in the Philippines. Agriculture and Human Values, v. 34, n. 1, p. 87-102, 2016.
WARBURTON, Hillary; MARTIN; Adrienne. Local People’s Knowledge in Natural Resources Research. Socio-economic Methodologies for Natural Resources Research. Chatham: Natural Resources Institute, 1999.
WARREN, D. M. Using Indigenous Knowledge in Agricultural Development. Washington, D.C.: The World Bank, c1991. (World Bank Discussion Papers No. 127).
YANOW, Dvora. Translating Local Knowledge at Organizational Peripheries. British Journal of Management, v. 15, Suppl. 1, p. S9-S25, 2004.
[1] Doutor em Administração pela URGS, Professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte e da Universidade Maurício de Nassau, Natal.
[2] Doutora em Sociologia pela USP; Professora Titular da URGS, Professora do Programa de Pós-graduação em Administração da URGS, bolsista de produtividade do CNPq.