ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DO PROFISSIONAL ARQUIVISTA E DA ÁREA DA ARQUIVOLOGIA NO CINEMA E NA TELEVISÃO

 

Eliezer Pires da Silva[1]

UNIRIO

eliezerpires@gmail.com

Barbara Kelly da Silva Oliveira[2]

UNIRIO

barbara.oliveira@edu.unirio.br

Johanna Gondar Hildenbrand[3]

UNIRIO

johannagondar@gmail.com

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Resumo

Análise da representação do profissional arquivista e da área da arquivologia no cinema e na televisão. Corpus de análise: Uma cidade sem passado (1990) de nacionalidade alemã e Legalidade (2019) filme nacional, e nas séries de tv estadunidenses: Brookyln nine-nine (2013) e Lemony Snicket: Desventuras em séries (2017) como a arquivologia e os arquivistas vem sendo retratados no cinema e na televisão. A escolha por obras que não fossem somente de origem estadunidense deve-se ao fato do cinema hollywoodiano tender a estereotipar suas personagens. A partir das análises podemos perceber que o arquivista, quando aparece, está sob a forma de guardião, e o arquivo parece ser tratado muitas vezes como uma biblioteca que guarda documentos, nos levando a pensar que o fazer arquivístico é associado pela sociedade, como o mesmo realizada em uma biblioteca. 

Palavras-chave: Arquivologia. Arquivista. Cinema. Filmes. Séries de TV.

ANALYSIS OF THE REPRESENTATION OF THE PROFESSIONAL ARCHIVIST AND THE ARCHIVORITY AREA IN CINEMA AND TELEVISION

Abstract

Analysis of the representation of the professional archivist and the area of archival science in cinema and television. Corpus of analysis: A city without a past (1990) of German nationality and Legalidade (2019) national film, and in the American TV series: Brookyln nine-nine (2013) and Lemony Snicket: Misfortunes in series (2017) as archival science and archivists have been portrayed in film and television. The choice for works that were not only of American origin is due to the fact that Hollywood cinema tends to stereotype its characters. From the analyzes we can see that the archivist, when he appears, is in the form of a guardian, and the archive seems to be treated many times as a library that keeps documents, leading us to think that the archival doing is associated by society, as the even performed in a library.

Keywords: Archival science. Archivist. Movie theater. Films. TV series

1 INTRODUÇÃO

Documentos e arquivos estão presentes na nossa vida do nosso nascimento à nossa morte, produzimos documentos o tempo todo. Os filmes se enquadram nessa produção, portanto, o mundo do cinema não poderia ser diferente, pois ao assistirmos filmes e séries com um olhar mais atento poderemos ver documentos, arquivos e com sorte até algum arquivista.

Desde seu surgimento, o cinema encanta e de certa forma instrui e influencia seu público. Para Charles Chaplin, célebre ator britânico da era do cinema mudo, “Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dele possa extrair a imaginação” (CHAPLIN, 2005). Trazendo esse pensamento para a atualidade, que vive um crescente aumento do streaming, temos não só os filmes, mas as séries de TV como meios importantes para a formação de parte da nossa bagagem cultural, logo podemos refletir sobre questões como: até que ponto esse mundo do cinema e da TV realmente baseiam-se na realidade para composição das suas personagens, e como isso pode acabar gerando uma desinformação para os espectadores em geral.

Portanto, questionamentos sobre como o profissional arquivista e a Arquivologia são tratados pelo cinema e pela TV se fazem interessantes, afinal será que como os bibliotecários, o arquivista é representado de forma caricata pelo cinema? Ao ser representado dessa forma, a sociedade saberá realmente que este profissional não atua em porões, não se esconde atrás de pilhas de documentos, ou precisa ser agradado para que se consiga ter acesso a alguma informação?

Logo, nosso objetivo com este trabalho é identificar como a imagem do profissional arquivista e a área de Arquivologia, estão representadas em obras cinematográficas e televisivas, propondo assim recomendações.

 

2  CINEMA COMO REPRESENTAÇÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE

O século XIX foi marcado por invenções e descobertas científicas. No fim dele tivemos a revolução industrial, na qual as máquinas “dominavam” e estavam nas graças da burguesia.  Em 1895 nascia o cinema, uma forma de arte inovadora que conseguia reproduzir a vida em movimento por meio de imagens reais.

  Fruto da invenção dos irmãos Lumière, o Cinematógrapho, que segundo eles era um instrumento científico voltado somente para pesquisas, tinha como objetivo reproduzir o movimento e sem o menor futuro para o uso em espetáculos, acreditavam que mesmo levando o público ao divertimento, logo que passasse a novidade o interesse pelo mesmo acabaria.  Mal poderiam imaginar que até os dias atuais o cinema manteria a sua magia e encanto, emocionando o seu público e que chegaria a ser até uma ferramenta usada no ensino, visto que

[...] o cinema como espetáculo sempre foi um produto industrial e da modernidade: a primeira forma artística que não começou em uma etapa pré-industrial da sociedade, apresenta necessidades tecnológicas para sua existência e pode ser reproduzido em grande escala atingindo milhares de pessoas durante um mesmo período. (SERRATE; GEISE; CELESTINO, 2020, p.34)

 

O cinema possui um importante papel para a sociedade, já que esta forma de arte, independente do país onde vá ser exibida, contribui para o desenvolvimento social e cultural do mesmo (HILDEBRAND; FARIAS, 2020). Além de deslumbrar e de certa forma instruir, pode ser um transformador de sensibilidade, quando de certa forma influencia, ou é influenciado, expressando a sensibilidade de uma época enquanto acompanha as mudanças da sociedade.

Benjamim em seu ensaio “A obra de arte e sua reprodutibilidade técnica” ([1936]1987), nos leva a refletir sobre essa forma de influência que o cinema pode exercer sob seus espectadores. Ele tem o poder de agir no imaginário dos sujeitos, ou seja, em seus inconscientes, contribuindo para que, muitas vezes, a realidade e a ficção se sobreponham. Afinal de contas, “a promoção do sonho tem mesmo sido a razão de ser do cinema desde que apareceram as primeiras projeções; daí os aspectos que liga à psicanálise estarem sempre presentes na teoria e na prática do cinema.” (FERNANDES, p. 69, 2005), visto que cinema e psicanálise nasceram praticamente juntos, no final do século XIX.

Seguindo nosso raciocínio, podemos pensar que mesmo que o cinema tente muitas vezes expressar um mundo real, ou melhor, uma única realidade mostrada através da imagem, cada pessoa terá uma percepção diferente do mesmo filme, pois fatores como visão de mundo, subjetividade, ou conhecimento mais aprofundado sobre o tema abordado por determinado filme contribuirá com o entendimento final. Já que “no ato de ver e assimilar um filme, o público transforma-o, interpreta-o, em função de suas vivências, inquietações, aspirações, etc.” (BERNARDET, p. 20, 2017). Afinal o mundo imaginário de cada um é único.

No cinema hollywoodiano esse poder de influência pode ser visto mais claramente, já que não é feito para instruir seu público, e sim para vender sonhos, pois ele visa o consumismo. E faz isso por meio de roteiros simples, efeitos especiais cada vez mais complexos e personagens estereotipados facilmente reconhecidos pelo público.  A indústria hollywoodiana está preocupada com os produtos que vai lançar a partir do filme e não com o conteúdo do mesmo. Entretanto parece esquecer que,

Muitos outros filmes podem influenciar na relação e no entendimento das pessoas a partir do momento em que proporcionam uma aproximação com determinadas experiências que muitas vezes as pessoas não têm. Ou seja, o cinema inclui em determinada realidade quem não tem aquele tipo de experiência, e pode ajudar na auto-compreensão de quem tem. (ODERICH, BALDI, p.5, 2017)

Por ser um meio de comunicação em massa, o cinema não proporciona somente divertimento ou emoções variadas ao expectador, ele difunde informação, podendo “[...] ser utilizado para transmitir informações relevantes à sociedade ou para manipular informações e opiniões acerca de qualquer assunto”. (SILVA; BESSA; SILVA; SOUZA, 2014, p.16). No entanto, devemos ter a consciência crítica de que mesmo que se assemelhe a realidade, ele não é uma filmagem do real, “as imagens produzidas pelo cinema são imagens; não são verdades absolutas, embora se aproximem, através da apropriação de um sistema de significados próprios de uma determinada cultura, dos símbolos produzidos por esta mesma cultura.” (PIRES; SILVA, p. 612, 2014).  A construção da realidade do cinema é individual e única.

Na primeira década do século XX, o cinema começa a ser percebido como uma poderosa ferramenta auxiliar no ensino de História (RONCAGLIO, MANINI, 2016). O cinema documentário passa a ser um grande aliado na educação pela sua proximidade com a realidade. Nos anos 1960 e 1970 do mesmo século surge a televisão educativa, assim o cinema e a TV passam a ser percebidos como valiosas fontes para a compreensão dos costumes, comportamento, valores e ideias de uma sociedade dentro do contexto histórico em que está inserido. Dessa forma, por meio da análise fílmica o aluno é levado a refletir e levantar questionamentos, além de trocar impressões sobre o filme visto com os demais colegas.

Ainda hoje é comum vermos o cinema como ferramenta aliada no ensino, seja ele a nível escolar ou universitário, pois como a linguagem de hoje é cada vez mais visual, devido ao crescente uso das redes sociais, há cada vez menos interesse por parte dos alunos em ler textos escritos (RONCAGLIO; MANINI, 2016). Dessa forma a aplicação de filmes, documentários ou palestras disponíveis no Youtube são cada vez mais presentes nas salas de aula, visto que, mesmo que contada de forma ficcional, a narrativa quando mostra cenas relacionadas ao nosso cotidiano, ou que se aproximem da realidade, faz com que nos identifiquemos, pois 

 

 

A facilidade com a qual o cinema atinge o imaginário social demonstra sua efetiva potencialidade no contexto da aprendizagem. Não queremos com isso afirmar que o cinema representa a realidade ou pode substituir a história, mas que, para o senso comum, a linguagem cinematográfica produz um sentido narrativo de representações que mescla realidade e ficção, sem muito distanciamento. (PIRES; SILVA, p.610, 2014)

 

E isso se deve ao fato de podermos, de certa forma, reconhecer as nossas realidades cotidianas.

 Diante disso, podemos nos questionar, sobre os danos que as personagens caricatas e representações tão distantes da realidade, trariam para o processo de aprendizagem. Por exemplo, ao tratar dessa forma, profissões que não sejam tão “comuns”, ou cuja função não seja de fácil reconhecimento pela sociedade, isso pode acabar sendo prejudicial para a afirmação da identidade profissional. Se por exemplo, um ator estuda o comportamento de um médico, ou um policial, para vivenciar essas personagens de uma forma que sejam identificadas por seu público, por que ao interpretar um profissional de arquivo não podem fazer o mesmo? 

Desse modo, podemos citar o cinema independente, com filmes produzidos por produtoras independentes que tentam fugir do padrão comercial dos grandes estúdios de cinema. Esses filmes tentam atingir a sensibilidade do público, mostrando a ficção de uma forma mais próxima à realidade.

 

3 A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA ARQUIVOLOGIA E A IMAGEM DA PROFISSÃO DE ARQUIVISTA

Produzir e conservar documentos são atos indispensáveis para a sociedade e essas ações necessitam de técnicas que orientem e garantam que os documentos estejam disponíveis quando necessários, pois os

[…] arquivos funcionam como a memória dos produtores de documentos e da sociedade de forma geral. Tanto os produtores de documentos públicos quanto privados mantêm registros para lembrar ou para serem lembrados. Eles precisam de suas memórias individuais e organizacionais para que possam manter sua capacidade de ser entendidos e de documentar sua própria história. É importante para a sociedade que as organizações funcionem bem, que indivíduos e associações sejam responsáveis por seus atos, e que registros de valores culturais duradouros sejam preservados através do tempo.   (THOMASSEM, 2006, p. 7)

 

            Desse modo a Arquivologia segue se adaptando as exigências da sociedade, mudando seus paradigmas, mas sem deixar de considerar as funções sociais dos arquivos.

Segundo Bruno Delmas (2010) os arquivos possuem quatro importantes funções sociais:

- provar os direitos de seus detentores perante a justiça, dessa forma é fundamental que as informações dos documentos permaneçam íntegros;

- lembrar do que foi feito, como uma forma de preservar a memória, ou seja, a história de um povo ou de uma instituição;

- compreender, quando nos auxiliam no campo das ciências, visto que são uma fonte de conhecimento;

- identificar, que está relacionada à utilidade psicológica e moral de identidade. Já que os arquivos transmitem lembranças sociais, as memórias.

A antiga civilização grega já sabia da importância dos registros documentais, e provavelmente criaram o primeiro Arquivo pelo fato de terem se preocupado em conservar documentos de valor como: tratados, leis, minutas da assembléia popular e demais documentos oficiais, no templo da mãe dos deuses (SHELLENBERG, 2006). Porém, oficialmente a criação do primeiro Arquivo Nacional no mundo vem ocorrer somente no século XVIII na França.

Arquivos, assim como as bibliotecas e os museus, são vistos pela sociedade como lugares de memória. Dessa forma esses locais são criados numa tentativa de manter vivas as memórias sociais para que sejam arquivadas e transmitidas para gerações futuras, assim como, as experiências adquiridas pelos antigos. Já os Estados utilizam seus arquivos para existir. A evolução sofrida pela sociedade ao longo dos tempos fez com que a percepção do uso e valor dos Arquivos se modificasse sempre no intuito de melhor atender as necessidades sociais ou do próprio Estado. 

Shellenberg (2006) destaca quatro razões para que as instituições de arquivo público fossem criadas. A primeira e mais importante surgiu da necessidade em promover a eficiência governamental, a fim de que não fosse gerada produção excessiva e desnecessária de documentos, evitando assim o acúmulo de documentos e consequentemente a perda da informação. O segundo motivo está ligado a fins culturais, pois os documentos gerados durante as atividades governamentais são de interesse da sociedade logo são uma fonte de cultura, pois contam a história da nação.  O interesse pessoal foi a terceira razão, já que os documentos são a garantia para determinar direitos e privilégios adquiridos. Por fim, o quarto motivo, que seria de ordem oficial, pois os documentos recém-criados ou antigos são importantes e necessários às atividades governamentais, visto que neles consta toda a informação sobre suas atividades.        

Nem todo documento produzido por uma pessoa ou instituição, é um documento com valor arquivístico. Logo precisamos do auxílio de uma ciência que nos traga definições e que nos oriente como melhor proceder, evitando assim que grandes volumes de documentos se formem e nos leve a perda das informações que realmente nos importam. Diante dessa preocupação somente no fim do século XVIII em meio à revolução francesa, surge como uma disciplina auxiliar da História, a Arquivologia a nível científico.

Até hoje a comunidade arquivística não chegou a um consenso sobre a arquivística ser uma ciência, técnica ou disciplina.  Jardim ao defender as pesquisas na área de arquivologia, parte do pensamento dos estudiosos Heckhausen e Legendre para formular a definição do que seria uma disciplina:

Uma disciplina é uma atividade socialmente organizada, que pressupõe um discurso e uma prática que constitui um corpo de conhecimento envolvendo uma comunidade de especialistas dessa ciência. Supõe organizações científicas que reconhecem quem é ou não membro do corpo de cientistas, definem regras deontológicas e metodológicas. Uma disciplina científica pressupõe a existência de publicações especializadas, regras de qualidades para os trabalhos a serem publicados e apresentados nos congressos. (JARDIM, 2012 ,p. 139)

Dessa forma podemos considerar a Arquivologia como disciplina científica, tanto a nível internacional quanto nacional, já que “[...] se ocupa da teoria, da metodologia e da prática relativa aos arquivos, assim como se ocupa da sua natureza, suas funções e da especificidade de seus documentos/ informações.” (BELLOTTO, 2002, p.5). Enquanto área do conhecimento possui uma metodologia própria e específica: seu objeto de estudo é a informação contida nos documentos, ou seja, “os dados contidos nos documentos arquivísticos moldando-os e transformando-os em informação a fim de gerar conhecimento e desenvolvimento social” (ARAÚJO, 2015, p. 56).

Logo esta ciência não envolve somente o trabalho técnico, como muitos acreditam, ela necessita também de um envolvimento intelectual por parte de seus profissionais, que precisam ter conhecimentos em áreas do saber como: Direto, Administração, História, Diplomática, entre outras, pois a ciência arquivística é interdisciplinar.  Atualmente ter um conhecimento sobre Informática se faz extremamente importante, visto que, o desenvolvimento das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) faz com que mais uma vez a Arquivologia mude seus paradigmas, deixando de ver o documento de arquivo como um objeto físico estático e passando a entendê-lo como virtual e dinâmico.

Para que a Arquivologia deixe de ser vista somente sob seu olhar técnico, é necessário que haja um maior investimento no campo das pesquisas. Essas produções científicas obtidas são de fundamental importância para a renovação do saber arquivístico, pois como já foi dito esta é uma ciência que vive se reinventando e se adaptando às constantes mudanças tecnológicas.

Com todas essas mudanças sofridas ao longo dos tempos, as instituições de arquivo também precisam se adaptar para melhor atender as necessidades da sociedade e do Estado, com garantias de que o usuário tenha acesso à informação desejada quando necessário. Portanto, é pertinente fazermos uma aproximação das funções sociais da Arquivologia às funções arquivísticas, visto que estas últimas garantirão o bom desempenho das atividades tanto do profissional arquivista como da instituição de arquivo, e são ainda mais importantes nos dias de hoje, visto a fragilidade dos documentos digitais.  

Os arquivistas canadenses Carol Couture e Yves Rosseau determinaram como sendo sete as funções arquivísticas. Estas foram entendidas por eles como tarefas que devem ser desempenhadas pelo profissional de arquivo, e assim o possibilite realizar a gestão dos documentos institucionais de forma eficaz e eficiente: a produção/criação; avaliação, classificação, descrição, difusão, preservação e aquisição. (PEREIRA; PIRES, 2019)

Para que as funções sociais da arquivística sejam cumpridas junto à sociedade e ao Estado, se faz necessária a presença de um profissional arquivista. Entretanto, ao perguntarmos sobre quem seria o Arquivista, é comum ouvirmos perguntas como Arqui quem? ou Arqui o quê?,  ser confundido com os Bibliotecários, ou ser associado ao seu estereótipo de guardião de papéis velhos que trabalha em porões empoeirados, pois assim como a ciência arquivística, seu profissional também é pouco valorizado e reconhecido pela sociedade, que por falta desse conhecimento sobre seu valor social chega a achar desnecessária a existência de tal profissão, no entanto tal ideia não é cabível.

Uma profissão surge “[...] quando um trabalho passa a preencher as necessidades do grupo e a sociedade passa a exigir que essa atividade seja feita de modo a satisfazer a sua necessidade. ” (CAVALCANTE,  2016, p.18) Dessa forma, ao existirem problemas sociais que demandem de documentos que possam vir a garantir direitos, servir como prova, ou manter a memória, se faz necessária a presença de um profissional que atue de forma a garantir o acesso a essas informações quando necessárias.

Partindo do ponto de vista da sociologia das profissões, o filósofo francês Bruno Latour e o norte-americano Harild L. Wilensky apontam que, para que ocorra um processo de profissionalização de uma ocupação é necessária que esta passe por seis etapas:

 

             Eliminar amadores: representa a capacidade de a ocupação ser exercida em regime de tempo integral, excluindo assim os amadores.

             Formação padronizada: significa a padronização na formação e normatização na formação de novos profissionais, geralmente em nível universitário, em que é compartilhado um conhecimento exclusivo, que distingue a categoria profissional.

             Provar ao Estado: seria a capacidade de convencer e provar ao Estado que a atividade profissional de determinado grupo é imprescindível, de forma a garantir o monopólio de competência, com regulamentação da profissão.

             Normas éticas: seria um instrumento de auto-regulação, com o estabelecimento de um código de ética com garantia de expurgo dos amadores.

             Associações profissionais: se caracterizam por defender os interesses econômicos, pleitear melhores condições de trabalho e padronizar a conduta do grupo profissional, autorregulando os conflitos existentes dentro do mesmo e com grupos externos. Devem se empenhar na conquista de prestígio, reconhecimento e poder junto à sociedade em geral e ao Estado.

             Satisfazer a sociedade: está relacionado à veiculação do conhecimento em órgão de comunicação científica, de forma a atingir um público mais amplo, aumentando assim o interesse sobre a atividade profissional desenvolvida, criando um mercado de consumo (RINDOLPHI,, 2016, p.71).

De início o profissional arquivista era visto e considerado somente como um auxiliar dos historiadores, cuja função era ler, transcrever, catalogar e indexar os documentos, já que os arquivos eram vistos somente como um instrumento usado pelos historiadores para escrever a história das nações (RIBEIRO, 2005). No entanto com o grande volume documental produzido pelas administrações públicas, fez com que surgisse a necessidade da criação de novos métodos organizacionais, e dessa forma os Arquivistas deixam, ao menos deveriam, de ser vistos somente como auxiliares dos historiadores.

No Brasil esta profissão é regulamentada pela Lei Nº 6.546, de 4 de julho de 1978 e pelo Decreto 82.590 de 6 de novembro de 1978, que trazem as atribuições do profissional arquivista no âmbito de suas atividades. Para que seja considerado arquivista, se faz necessária a formação em arquivologia a nível superior, ou ter experiência reconhecida pelo Estado.

 

4 O ARQUIVISTA E A ARQUIVOLOGIA EM OBRAS CINEMATOGRÁFICAS E TELEVISIVAS

Decidimos analisar como a prática arquivística e o arquivista são retratados nas seguintes obras audiovisuais: um episódio das séries estadunidenses Brooklyn nine- nine (2013) e Lemony Snicket: Desventuras em séries (2017); no filme alemão Uma cidade sem passado (1990); e no filme nacional Legalidade (2019), que serão apresentadas logo abaixo na seção 4.1.

A escolha por filmes e séries de TV, não somente de origem estadunidense, se deu para que pudéssemos fazer um comparativo, e avaliar, se a forma caricata que Hollywood tende a atribuir a seus personagens está também representada no cinema de outras nacionalidades. Outro fator que influenciou a seleção das obras foi a existência de cenas dentro de Arquivos, a fim de que melhor pudéssemos analisar as práticas aplicadas no fazer arquivístico. Apesar das obras escolhidas serem ficcionais, o filme Legalidade (2019) chamou nossa atenção pelo fato de ter sido filmado dentro de um Arquivo real: o Arquivo Público do Rio Grande do Sul, o que influenciou fortemente para a escolha dele.

 

4.1 Análise fílmica

            Na série Brooklyn nine-nine (2013), uma comédia policial que gira em torno da equipe de detetives da fictícia 99ª unidade de delegacia do Departamento de Polícia de Nova York, no Brooklyn, logo em seu primeiro episódio vemos uma cena dentro do Arquivo da delegacia. Na cena em questão o detetive Jake Peralta (Andy Samberg) é enviado ao Arquivo a fim de investigar em casos antigos arquivados pistas que possam levar os detetives a um suspeito.

No entanto, a atitude de Peralta ao ser informado sobre ter que trabalhar no Arquivo nos dá a entender que este seria um local de castigo. Indo de encontro a um dos estereótipos atribuídos aos Arquivos, o que já era de se esperar em uma produção estadunidense. Outro estereótipo que fica evidenciado é o de esconderijo, como visto na fala do sargento Terry (Terry Crews), que define o Arquivo como um local seguro onde pode ficar longe dos perigos que o ofício de investigador traz. 

 As personagens não parecem ver a importância do Arquivo ou do profissional de arquivo, a ideia que a série nos passa é de que são os próprios policiais e detetives que cuidam da organização do mesmo, que não parece receber tratamento adequado essa ideia se reforça numa cena em que Jake diz: “Eu tava lendo uns arquivos, um deles estava literalmente numa teia de aranhas”, demonstrando que os documentos não recebem tratamento arquivístico adequado, logo não há ali um profissional a cuidar do Arquivo e isso se reforça ao vermos em várias cenas caixas e pilhas de pastas com documentos espalhadas não somente no espaço físico do Arquivo mas em diferentes locais da delegacia, incluindo a copa.

 Na cena em que Jake chega ao Arquivo fica claro o quanto ele o desvaloriza e também a ocupação nele, como quando diz: “Fala sério trabalhar no Arquivo? Por que temos um Arquivo? Já inventaram o computador não é? Eu to sonhando?”, dando a entender que trabalhar em um Arquivo seja algo insignificante e desnecessário.

 As falas de Peralta vão de encontro com o pensamento de muitas pessoas que não conhecem ou sabem da importância dos Arquivos, ou sequer sabem da existência de uma área que capacita profissionais para se ocuparem deles. Como se o fato de um documento nascer de forma digital tornasse desnecessário o tratamento arquivístico, no entanto mais do que nunca o profissional arquivista se faz necessário e deve atuar no papel de gestor, orientando como melhor proceder e mostrando a importância no cuidado com os documentos digitais, visto que, estes apresentam uma certa fragilidade, podendo facilmente sofrer alterações ou até serem perdidos.

Lemony Snicket: Desventuras em séries (2017), é uma série de tv, também estadunidense, baseada no romance infanto-juvenil de mesmo nome. Ela gira em torno das desventuras vividas pelos órfãos Baudelaire: Violet ( Mali Weissman), Klaus (Louis Hynes) e Sunny (Presley Smith), ocasionadas pelos planos do Conde Olaf (Neil Patrick Harris),  que com sua  trupe de artistas tenta por meio de planos mirabolantes a todo custo roubar a enorme herança  das crianças.

 No episódio a ser analisado vemos os irmãos mais uma vez em fuga do terrível conde. Eles acabam por se juntar a um grupo de voluntários que estão a caminho do Hospital Haimlich, onde acreditam ser um local seguro, visto que possui uma Biblioteca de Registros, o Arquivo do hospital, além de poderem encontrar respostas ao que seja VFD. Nos chama a atenção que este Arquivo não é de uso somente do hospital, já que recebe documentos do mundo inteiro, e de todos os tipos, tudo que seja considerado de valor é enviado para lá, e não há critério algum que avalie isso, parecendo um lugar onde as memórias são enviadas para serem preservadas, ou até um enorme cofre de segurança máxima.

O responsável pelo Arquivo, Hal (David Alan Grier), é um senhor de idade que diz não enxergar bem. Possui óculos com lentes ajustáveis, roupas cinza, parece ser uma pessoa solitária, que ama seu ofício, dorme cedo pois os documentos o esperam pela manhã e parece morar no hospital. A personagem tem o total estereótipo de guardião, para ele o Arquivo é um local sagrado e os documentos são os seus tesouros, tanto que carrega um molho de chaves apelidado por ele de chaves especiais.

Para Hal arquivar é a função mais importante do hospital, em algumas de suas falas como: “a papelada é o pilar do que fazemos aqui no Hospital Heimlich”; “É aqui que a papelada é deixada para viver para sempre, e sendo assim é o coração do hospital”, vemos o quanto ele valoriza os documentos. Entretanto, ele não parece agir dentro da ética arquivística, não gosta de dar acesso aos arquivos  pois não quer pessoas desagradáveis perto de seus preciosos arquivos, indo contra a principal função de um arquivista e tão pouco aplica técnicas que condizem com a realidade do ofício de arquivista. Outro estereótipo identificado é em relação ao acesso aos arquivos, que este envolveria muitos trâmites burocráticos.

O Arquivo que é formado por gaveteiros de metal, todos com trancas que vão até o teto dispostos por ordem alfabética em colunas, temos a sensação de estarmos em um labirinto, reforçando a ideia de que seja um local onde as coisas são escondidas e não arquivadas. Isso fica claro ao vermos Hal explicando às crianças seu método de classificação, que se assemelha mais a um jogo de adivinhação.

Mesmo com toda essa preocupação de Hal em manter o local em total segurança, não são vistas práticas ao nível de conservação e preservação. Toda a série tem um ar um tanto sombrio, e o episódio em questão é apresentado da mesma forma, desse modo o Arquivo parece uma caverna de tesouros e o arquivista é seu fiel guardião. 

O filme Legalidade (2019) -filme nacional- acontece em duas épocas: a primeira no ano de 1961, onde acompanhamos a renúncia de Jânio Quadros à presidência e o surgimento, no Rio Grande do Sul, do  movimento “Legalidade” liderado pelo então Governador Leonel Brizola (Leonardo  Machado), cujo objetivo era garantir a posse de João Goulart como presidente da república. Porém a chegada da misteriosa jornalista do The Washington Post, Cecília (Cléo Pires), muda o rumo da história. E paralelo a isso temos a Jornalista Blanca (Letícia Sabatella), filha de Cecília, já no ano de 2004 em busca de informações sobre sua mãe que havia desaparecido durante a ditadura militar.

Durante quase todo o filme vemos as personagens Blanca e Doris (Carla Cassapo) fazendo buscas em documentos, fotografias e jornais. Em algumas cenas elas parecem passear pelo Arquivo como se estivessem em uma Biblioteca. Talvez o Arquivo ser tratado dessa forma seja até por um reflexo de como a sociedade o vê, já que comumente vemos pessoas que acreditam que os Arquivos sejam um tipo de biblioteca responsável pela guarda de documentos. 

O filme comete algumas gafes no que diz respeito à conduta dentro de um Arquivo, tanto de pesquisador quanto de um profissional. A personagem Doris cuja função no Arquivo não fica clara, em uma das cenas entrega uma caixa a Blanca com jornais do ano de 1961, diz não poder ficar para ajudar devido ao horário, sai deixando a jornalista sozinha e não a orienta quanto a não poder riscar os jornais, ou a usar luvas para manuseá-los. Chama a atenção a personagem Blanca fazendo anotações usando uma caneta esferográfica, no que parece ser uma sala de consultas dentro do Arquivo, logo em seguida a vemos riscando um dos jornais com a caneta.

A liberdade com a qual as personagens transitam e vasculham as caixas no Arquivo, nos leva a refletir sobre a segurança do mesmo, já que o filme transmite ao espectador a ideia que qualquer pessoa pode andar livremente pelo Arquivo, e retirar das estantes as caixas que quiser. Do ponto de vista do fazer arquivístico isso pode gerar um enorme problema, pois caso algum documento seja guardado em uma caixa errada, este pode ficar de certa forma perdido, impossibilitando o acesso ao mesmo.

 Há ainda uma crítica de Blanca em relação aos documentos que são digitalizados e disponibilizados em plataformas on-line, dando a entender que os arquivistas ou responsáveis pelos Arquivos escolhem o que será ou não disponibilizado, ou que os documentos disponibilizados sofrem alguma alteração, dando a entender que não há ética ou critérios a serem seguidos e respeitados no fazer arquivístico

Uma cidade sem passado (1990), filme alemão baseado em fatos reais, conta a história da estudante alemã Sonja Rosenberger (Lena Stolze), que por incentivo de uma professora de sua escola aceita se inscrever em um concurso de redação promovido pelo presidente do país. O tema era: “Minha cidade durante o Terceiro Reich”. A moça sai em busca de fatos que pudessem lhe dar fundamentos para elaborar seu texto, além de pegar depoimentos de familiares e conhecidos, vai aos arquivos da igreja, da cidade e até no do jornal local. No entanto, uma série de empecilhos são colocados para  que a pesquisa não ocorra, pois alguns dos  cidadãos gostariam de manter em segredo o passado da cidade, visto que esta contribuiu para  a ascensão de Hitler. Depois de muitas ameaças, a protagonista consegue publicar um livro, fruto de anos de luta e pesquisa, expondo toda a verdade sobre sua cidade.

O filme aborda a questão do acesso a documentos sigilosos, um tema de certa forma delicado, ainda mais quando envolve documentos pessoais. A protagonista encontra muita dificuldade, chegando a sofrer atentados e ameaças de morte, em obter o acesso aos arquivos do ex- prefeito Zuntobel, mesmo em posse da autorização da família do mesmo para que tivesse total acesso aos seus arquivos.

Em relação ao responsável pelo Arquivo da cidade, este parece um fantoche pois não aparenta ter muita autonomia na tomada de decisões. Na tentativa de fazer Sonja desistir de sua pesquisa, pois tais documentos afetariam membros religiosos e políticos da cidade, o arquivista inventa várias desculpas como: os documentos estarem emprestados; serem muito frágeis devido a idade e por isso não podem ser manuseados; terem sido perdidos pelo excesso de burocracia institucional; e ainda usa o que o estatuto da cidade diz sobre o tempo de sigilo de documentos, este havia passado por uma alteração recente, fazendo com que Sonja mais uma vez entrasse com um processo contra a cidade.

A falta de ética desse profissional nos leva a vê-lo no estereótipo de guardião, mesmo que não seja de sua vontade própria impossibilitar o acesso aos documentos desejados. Ele tenta de todas as formas proteger a informação dos arquivos de Zuntobel, indo até mesmo contra a decisão tomada pela justiça. A forma como a personagem é representada neste filme que tem bases em fatos reais, pode ser ainda mais prejudicial à profissão de arquivista, pois aqueles que não conhecem a profissão podem acabar pensando que esta não tem normas éticas a serem seguidas, e que a função dos arquivistas seja esconder documentos e não garantir o acesso aos mesmos.

Sonja finalmente consegue acesso aos documentos, por meio de um responsável substituto pelo arquivo, este pede a ela a autorização por escrito da família do ex-prefeito e pede que ela assine um termo de responsabilidade. Os documentos estão num armário dentro da sala sigilosa, e parecem nunca ter saído de lá, pois o arquivista ao retirar a pasta do armário assopra a poeira na frente de Sonja, nos levando a pensar que práticas relacionadas à conservação e preservação não são adotadas ali.

  Apesar do arquivista pedir que Sonja preencha uma ficha com seus dados antes de lhe entregar o arquivo de Zuntobel, este não a orienta quanto a não serem permitidas cópias dos documentos, ou sequer a direciona a uma sala de consulta específica. A protagonista então faz cópias de alguns documentos mesmo com o aviso de “cópia proibida”, e não demonstra muito cuidado ao manusear os documentos, deixando inclusive algumas folhas caírem no chão, nos levando a reflexão de que se tais documentos eram tão importantes, ao entregá-los ao pesquisador a segurança dos mesmos ainda não deveria ser garantida? Dessa forma, o pesquisador deveria ser destinado a um local reservado para a consulta onde não houvesse a sua disposição uma copiadora ou ainda facilidade para que acabasse por desviar páginas do arquivo.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo com uma importante função social, a Arquivologia não parece ser valorizada pela sociedade que nem sequer parece fazer ideia da importância social dos arquivos. Diante de tais inquietações e tendo em vista que a ciência arquivística pode ser considerada relativamente nova e pouco conhecida pela sociedade, este trabalho buscou por meio de análises de filmes e séries de tv, perceber como o profissional arquivista e a ciência arquivística estão representados nestas obras audiovisuais, pois apesar de sabermos que o cinema não mostra a realidade, é sabido também que este atua na construção social de realidades, e quando apresentam algo que não condiz com sua realidade podemos acabar criando uma ideia equivocada sobre o tema em questão, ainda mais quando não possuímos um conhecimento mesmo que breve sobre o assunto que está sendo tratado. Desse modo, tentando fugir das personagens estereotipadas hollywoodianas, optamos por analisar também obras de outras nacionalidades.

A partir das análises podemos observar que quando o profissional de arquivo aparece no cinema estadunidense está sob forma estereotipada de guardião, geralmente é uma pessoa solitária, dedicada a proteger os documentos. Na série Lemony Snicket: Desventuras em série (2017) o arquivista é carregado de padrões estereotipados: um guardião numa caverna que protege como ele mesmo diz seus arquivos preciosos. Quando a figura do arquivista não aparece, caso da série Brooklyn nine-nine, percebemos que a presença do profissional de arquivo é considerada quase como desnecessária. Podemos associar isso ao fato da profissão ser vista somente sob o olhar técnico, levando a crença de que qualquer pessoa poderia assumir a função de arquivista.     

O arquivista no cinema alemão também parece agir como um guardião, apesar de não agir dessa maneira por sua vontade própria, pois parece alguém que somente segue ordens. Por se tratar de um filme com bases em fatos reais esperávamos que este se aproximasse mais da realidade profissional, entretanto, devemos considerar que o filme não é ambientado nos dias atuais. Mas a imagem que temos é de que os arquivos são locais onde obter uma informação é muito difícil, pois o excesso de burocracia acaba dificultando e os responsáveis por isso seriam os próprios arquivistas.

Apesar de ter sido filmado dentro de uma instituição arquivística real, o filme nacional, infelizmente não nos permitiu afirmar com certeza se a personagem Doris é de fato uma arquivista. Assim como na obra alemã a questão do acesso é abordada e percebemos uma crítica quanto aos documentos disponibilizados em plataformas on-line, pois em uma fala da personagem Blanca temos a sensação de que somente os documentos em papel são confiáveis, pois estão com todas as informações, e que os profissionais de arquivo escolhem o que disponibilizar ao público, como se quisessem esconder a verdade.

Quanto às práticas arquivísticas, podemos observar a presença de algumas funções arquivísticas, no entanto somente quem possui certo conhecimento arquivístico talvez seja capaz de identificá-las, mesmo assim podemos fazer mais suposições do que afirmações visto que geralmente não são apresentadas de forma explícita. Talvez a que seja de mais fácil reconhecimento seja a função relacionada ao acesso. Esta foi identificada em quase todas as obras, no entanto não parece ser vista sob sua importância social, uma vez que os documentos parecem ser somente guardados sem qualquer vislumbre de serem acessados. E é sabido que o arquivista além de preservar os documentos tem também como objetivo torná-los disponíveis para serem usados (Schellenberg, 2006). 

Outra questão observada nos filmes e séries é de que arquivos e bibliotecas sejam equivalentes, pois o Arquivo muitas vezes parece ser tratado como se fosse uma biblioteca de documentos. Isso se deve a práticas passadas onde bibliotecas recolhiam arquivos públicos, Schellenberg (2006) diz que esta prática deve ser lamentada mesmo as bibliotecas tendo prestado serviços de grande utilidade à cultura, pois um documento ao adquirir caráter arquivístico passa a ser de responsabilidade dos arquivistas. 

Dessa forma podemos considerar que falta instrução e conhecimento por parte dos envolvidos na criação dos filmes e séries de tv acerca da Arquivologia, para a construção das personagens que atuam como responsáveis pela instituição arquivística, e até mesmo quanto ao funcionamento de um Arquivo, o que afeta de maneira negativa na sua percepção social. Apesar de sabermos que se trata de uma obra ficcional, poderíamos ter uma proximidade com a realidade da ciência e da profissão, como podemos ver em profissionais de outras áreas, como por exemplo a medicina. Essa caracterização tão distante da realidade atual da arquivologia causa um certo prejuízo para sua identidade tanto profissional quanto científica, ainda mais quando é tão pouco conhecida pela sociedade.

Acreditamos que os responsáveis pela instituição arquivística, onde ocorreram filmagens do filme nacional, perderam a oportunidade de orientar os envolvidos na produção sobre o funcionamento de um Arquivo, mostrando um pouco da realidade da pesquisa em uma instituição arquivística.

 Dessa forma o cinema poderia ter sido usado para promover, de certa forma, a Arquivologia. E assim como um hospital é facilmente identificado por aqueles que assistem filmes e séries de tv, por ter certa proximidade com sua realidade, os Arquivos passariam a ser vistos sob outra óptica, fora dos muitos estereótipos atribuídos à arquivística. Seria uma forma de mostrar ao espectador a importância tanto dos arquivistas quanto do fazer arquivístico, já que muitos nem sabem da existência da Arquivologia.

Portanto, se a ciência arquivística almeja ter sua importância e seu profissional reconhecidos e valorizados pela sociedade, ela precisa se fazer vista, mostrando sua importância na preservação da memória e garantia de direitos por meio dos documentos. Visto que, ainda nos dias de hoje, “Arquivistas pensam-se neutros e passivos, sem poder. Os estereótipos negativos de arquivistas na ficção, filmes e novas mídias induzem à imagem de trabalhador erudito, mas inútil em porões escuros e misteriosos.” (JIMERSON, 2008, p. 36-37).

 Logo, cabe ao profissional arquivista mostrar que a visão que o cinema passa, de que: sejam guardiões de documentos; de que o arquivo seja um local de esconderijo; de que para ter acesso à algum documento o profissional de arquivo precisa receber um agrado; que a invenção do computador torna dispensável sua presença ou das práticas arquivísticas; dentre tantas outras ideias negativas acerca da profissão e área do saber, são erradas e desatualizadas.

Diante disso, a promoção de ações que mostrem isso à sociedade se faz importante e necessária. Estas ações podem ser realizadas dentro das universidades onde existam os cursos de arquivologia, ficando a encargo dos próprios alunos do curso que como futuros arquivistas já começariam a mostrar e reforçar seu valor e importância social. E quem sabe assim no futuro, tenhamos tanto Arquivologia quanto seu profissional representados no cinema e na tv mais próximos a sua realidade, como acontece com outras profissões e áreas do saber.

 

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[1] Arquivista (2006) e especialização em História do Brasil (2011) pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Ciência da Informação (2009) pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), no convênio estabelecido com a UFF. Doutor em Memória Social (2013) pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)..

[2]  Graduanda do curso de Arquivologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

[3] Pós-doutoranda em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro sendo bolsista do Programa Pós-doutorado Nota 10 FAPERJ. Doutora e mestre também em Memória Social pela UNIRIO. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Cinema pela PUC-RIO (2011).