GOVERNANÇA DA ÁGUA NA AMAZÔNIA PARAENSE
uma análise no uso da outorga de direito de uso dos recursos hídricos
Paulo Cesar Chagas Maia[1]
Secretaria de Estado de Meio Ambiente
Mário Vasconcellos Sobrinho[2]
Núcleo de Meio Ambiente / Universidade Federal do Pará
Ronaldo Lopes Rodrigues Mendes[3]
Núcleo de Meio Ambiente / Universidade Federal do Pará
rirmendes@yahoo.com.br
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Resumo
O artigo analisa como a outorga é um relevante instrumento de tomada de decisões no processo de governança institucional dos territórios de água. No contexto de transformações sociais e institucionais, enfatiza-se seu uso, tipologia e finalidade no território do estado do Pará, por região hidrográfica. Teoricamente a pesquisa foi delineada sob as literaturas de governança da água, gestão integrada de recursos hídricos e outorga de direito de recursos hídricos. Metodologicamente, o trabalho se voltou para um estudo de caso com uma abordagem de caráter qualitativa e quantitativa. Foi realizada uma análise documental nos textos produzidos pelos gestores da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS), tais como: relatórios de gestão ambiental, listagem estadual das outorgas e Plano Estadual de Recursos Hídricos (produtos e diagnósticos), acessados por meio do Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Estado do Pará (SEGRH) e Sistema Estadual de Informações sobre Recursos Hídricos do Pará (SEIRH/PA). Conclui-se que a outorga é um relevante instrumento legal para conservação do meio ambiente, pois seu uso limita, valora e racionaliza o uso sustentável da água no território e traz grandes benefícios para os empreendimentos e a gestão pública ambiental local. Por meio, desse instrumento foi possível identificar e espacializar o quantitativo dos grandes empreendimentos que mais usam a outorga no estado, tendo destaque para perfurações de águas subterrâneas, disciplinando a sua regulação nas regiões hidrográficas, subsidiando o processo de governança, planejamento e gestão dos territórios de água.
Palavras-chave: Governança da Água. Gestão de Recursos Hídricos. Outorga de Direito.
WATER GOVERNANCE IN THE AMAZON OF PARAENSE:
an analysis of the use of the right to use water resources
Abstract
The paper analyses how the grant (outorga) is a relevant tool for decision-making in the institutional process of water territories’ governance. In the context of social and institutional transformations, the water’s use, typology and purpose are emphasized by hydrographic region in Pará state. Theoretically, the research took into account the literatures of water governance, integrated water resources management and water resources right granting. Methodologically, the research was based on a quantitative and qualitative case study. A documental analysis was carried out on the texts produced by the Secretary of State for the Environment and Sustainability (SEMAS), particularly environmental management reports, state list of grants and State Water Resources Plan (products and diagnostics), accessed from the Pará State Water Resources Management System (SEGRH) and the Pará State Water Resources Information System (SEIRH/PA). The paper shows that the grant (outorga) is a relevant legal tool for environmental conservation. Accordingly, its use limits, values and rationalizes the sustainable water’s use in the territory and brings great benefits to the enterprises and local environmental public management. Through this instrument, it was possible to identify and spatialize the number of large enterprises that most use the grant in the state, with emphasis on groundwater drilling, disciplining its regulation in the hydrographic regions, subsidizing the process of governance, planning and management of territories of water.
Key-words: Water Governance. Water Resources Management. Grant of Right.
1 INTRODUÇÃO
É incontestável afirmar que a água é um bem comum fundamental para a sobrevivência humana e, na Amazônia, isso assume, igualmente, um importante papel para reprodução social e cultural. No entanto, dentro do sistema econômico predominante, a água tem sido principalmente tratada como um recurso para reprodução do capital. Em face dessas múltiplas interpretações e formas de uso e apropriação, emerge a necessidade da governança desse imensurável bem.
Isso posto, a governança da água surge para remediar os desafios do uso, de regulação e alocação, principalmente para mediar os conflitos pelo uso da água na Amazônia paraense.
Nos últimos anos, houve o surgimento e a evolução de diversas vertentes e tipos de governança, em especial a ambiental, mais especificamente a vertente da água. Nessa senda, a governança da água como temática ambiental vem igualmente ganhando destaque no trabalho das agências e organizações internacionais. Assim, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Water Governance Facility consideram a governança da água uma das áreas mais críticas para o desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos e dos serviços relacionados à água.
A governança da água pode ser pensada seguindo os importantes instrumentos previstos na PNRH e a PERH que visam auxiliar o gerenciamento integral desses recursos bem como dar suporte aos princípios da Gestão Integrada de Recursos Hídricos (GIRH). Para isso, mostra-se necessário a construção social e coletiva da PERH no estado do Pará e as relações dos principais atores envolvidos nesse processo. A justificativa de realizar este estudo sobre a governança das águas surge como um mecanismo importante na mediação, monitoramento e avaliação dos conflitos da água no território da Amazônia paraense com a proposta de gestão da água integradora, participativa e descentralizada.
A implementação da PERH é importante para que a gestão integrada dos recursos hídricos possa ocorrer de maneira descentralizada, atendendo todos os setores e atores estratégicos que exijam água para suas atividades econômicas ou o abastecimento humano. Nesse sentido, é de extrema importância o engajamento da sociedade e dos usuários, principalmente por meio de comitês e conselhos, a fim de que as tomadas de decisão não fiquem apenas centralizadas nos órgãos públicos, mas que todos consigam contribuir para legitimar as decisões e agir de forma a garantir um futuro sustentável do ponto de vista dos recursos hídricos (PARÁ, 2021).
Dessa forma, essa política possui importantes instrumentos de gestão dos recursos hídricos que, quando bem implementados, possibilitam disciplinar o controle e o uso da água em uma região com o intuito de minimizar os conflitos, além de ter a possibilidade de organizar, monitorar e compartilhar as informações hídricas para os tomadores de decisão e para a sociedade.
A governança da água no estado do Pará é marcada pela fragilidade institucional em relação a conservação da água, pois o Estado não desenvolve práticas efetivas de gestão dos usos dos recursos hídricos, prevalecendo uma ineficiente estrutura de gestão com a não implementação de todos os instrumentos de planejamento e controle da água. Entretanto, podemos afirmar que a crise hídrica na Amazônia paraense é de natureza institucional e estrutural, mais propriamente uma crise de gestão integrada centralizada, observada principalmente na precariedade dos serviços de acesso à água potável e de saneamento ambiental por parte da população, além da contaminação de corpos hídricos (QUADROS; COUTINHO, 2014).
A situação atual dos instrumentos de recursos hídricos no estado do Pará apresenta-se da seguinte maneira, conforme Pará (2021): a) O Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH) está elaborado com seus produtos e diagnósticos; b) O enquadramento das águas ainda não foi implementado; c) a outorga de direito de uso dos recursos hídricos encontra-se regulamentada e implementada; d) o instrumento de cobrança ainda não está ocorrendo e não está implementado; e) a compensação aos municípios ainda não se encontra regulamentada; f) o Sistema Estadual de Informações sobre Recursos Hídricos (SEIRH) encontra-se em vigor, porém desatualizado; g) a capacitação, o desenvolvimento tecnológico e a educação ambiental encontram-se regulamentados e em vigor.
Os modelos de governança estão intrinsecamente relacionados com as estruturas formais de gestão já existentes no Brasil e, consequentemente, na Amazônia. Essas estruturas estão conformadas sob o âmbito de políticas nacionais e estaduais de gestão das águas e/ou do conjunto dos recursos hídricos e dos instrumentos delas decorrentes.
Dentre outros, a outorga é um importante instrumento legal de gestão para conservação das águas, pois sua utilização regula, valora e racionaliza o uso sustentável das águas nos territórios, possibilitando uma divisão mais justa e equilibrada da água. Por meio da outorga, é possível assegurar legalmente um esquema de alocação individual e coletiva, controle e monitoramento quali-quantitativo das águas entre os diferentes usuários.
A experiência brasileira já demonstrou que a introdução do regime de outorga em algumas regiões foi extremamente útil para promover a atenuação, quando não a completa erradicação de conflitos entre usuários competidores pelo uso da água (MACHADO, 2004). Entre os instrumentos de gestão estabelecidos na lei de recursos hídricos, é o que lida mais diretamente com a alocação e regulação da água em bacias hidrográficas. Todavia, há de se destacar que os múltiplos usos das águas traz o entendimento de que a gestão deva ocorrer de forma integrada e participativa.
A governança da água no estado do Pará necessita de meios que auxiliem a implementação dos instrumentos da PERH, em especial, a outorga que é um procedimento regulatório administrativo que permite a identificação dos principais usos, conflitos e potencialidades de cada região. E dessa forma, avançar no processo de regulação da água compatível com a realidade diferenciada de suas regiões hidrográficas.
Neste sentido, a gestão do instrumento de outorga se mostra necessária no estado do Pará, pois através deste é possível assegurar legalmente um esquema de alocação, controle e monitoramento quali-quantitativo da água entre os diferentes usuários, resolvendo ou atenuando fortemente os conflitos existentes entre os usuários competidores (grandes empreendimentos) e assegurando as bases para o desenvolvimento sustentável (SANTOS; LIMA; LIMA, 2007). Esse instrumento, é capaz de colocar em evidência os principais empreendimentos que utilizam a água para a produção econômica e também para o abastecimento humano da sociedade.
Assim, baseado nessas reflexões e fenômenos particulares, é que se pode chegar à compreensão de um problema mais geral de pesquisa com o seguinte questionamento: como ocorre a contribuição da outorga de direito de uso de recursos hídricos para os setores econômicos (grandes empreendimentos) na Amazônia paraense?
Nesse sentido, o artigo tem como objetivo analisar como a outorga pode ser relevante para que os gestores públicos e atores sociais possam tomar decisões no processo de governança institucional dos territórios de água nesse novo contexto de transformações sociais e institucionais, enfatizando, no território paraense, seu uso, tipologia e finalidade por região hidrográfica.
2 REFLETINDO SOBRE À GOVERNANÇA DA ÁGUA
O termo governança vem passando por muitas transformações ao longo do tempo no cenário local, regional e global. Inicialmente, a sua expressão surgiu a partir de reflexões conduzidas principalmente pelo Banco Mundial tendo em vista aprofundar o conhecimento das condições que garantem um estado eficiente. Gomides (2009, p.176) afirma que governança é a “capacidade das sociedades humanas para se dotarem de sistemas de representação, de instituições e processos, de corpos sociais, para elas mesmas se gerirem, em movimento voluntário”.
Jacobi, Fracalanza e Silva-Sanchéz (2015, p. 63) comentam que o conceito de governança associa à implementação socialmente aceitável de políticas públicas, novos atores sociais na construção de agendas participativas de modo que a gestão passa a considerar novas relações entre sociedade, estado, agentes econômicos, direito, instituições, políticas e ações governamentais.
Segundo Gomides (2009, p.184), há no cenário acadêmico diversos tipos de governança, pois seu conceito é muito difuso, podendo ser aplicado tanto em métodos de gestão de empresa (governança corporativa), em meios de suborno e corrupção de funcionários públicos (governança pública), em dinâmicas urbanas (governança urbana) como em meios de preservação do meio ambiente (governança ambiental).
Nesse estudo, será explorado a definição de governança ambiental da água. A governança ambiental surge a partir de meados da década de 1980 e refere-se a formas de governar os recursos naturais envolvendo diferentes atores – governo, empresariado e o espectro ampliado da sociedade civil. Neste viés, surge um estimulante espaço para repensar as formas inovadoras de gestão, na medida em que fazem parte do sistema de governança: o elemento político, que consiste em balancear os vários interesses e realidades políticas; o fator credibilidade, instrumentos que apoiem as políticas, que façam com que a população identifique nas ações e decisões políticas a solução de seus problemas; e a dimensão ambiental (JACOBI; FRACALANZA; SILVA-SANCHÉZ, 2015).
A governança ambiental pode ser definida como conjunto de processos regulatórios, mecanismos e organizações através dos quais os atores políticos influenciam as ações e resultados ambientais envolvendo múltiplos seguimentos da sociedade como as instituições governamentais, comunidades, empresas e a sociedade civil organizada. Esse conceito está alinhado à acordos, negociação, participação, parceria, sociedade civil organizada, descentralização (maior interação entre os diversos níveis e atores sociais envolvidos (AGRAWAL; LEMOS, 2006).
Neste cenário ambiental, há o surgimento e evolução de diversas vertentes e tipos de governança do meio ambiente, mais especificamente a governança da água ou governança dos recursos hídricos. O conceito de governança da água, tal como a governança em geral, ainda está evoluindo. Ele desponta como uma oportunidade de construção de novos moldes para o exercício da gestão local e da gestão nas demais escalas e níveis. Assim, noções relacionadas à governança – sistemas, mecanismos, processos e instituições – por um lado, são combinadas com o desenvolvimento e gestão das águas e, do outro, para elaborar um conceito de governança da água (LAUTZE et al., 2011).
A governança da água é o mecanismo pelo qual se poderá determinar a equidade e a eficiência na alocação e distribuição dos recursos e serviços hídricos, bem como contribuirá para o balanço do uso da água entre as atividades socioeconômicas e ecossistêmicas. Para tanto, faz-se necessário que a governança seja aberta e transparente, inclusiva e comunicativa, coerente e integrada, equitativa e ética, eficiente, responsável e sustentável com o objetivo de promover a responsabilidade coletiva e integrada de todos os atores (WGF, 2015).
Na visão de Campos e Fracalanza (2010), a governança da água refere-se a um processo em que novos caminhos, teóricos e práticos, são propostos e adotados visando estabelecer uma relação alternativa entre o nível governamental e as demandas sociais e gerir os diferentes interesses existentes.
ANA (2011) define governança da água como sistemas políticos, sociais, econômicos e administrativos, desenvolvidos para alocação e gestão de recursos hídricos e para implementação de soluções para melhoramento da qualidade da água. Ela engloba “os mecanismos, processos e instituições, por meio dos quais todas as partes interessadas, inclusive cidadãos e grupos de interesse, articulam suas prioridades, exercem seus direitos legais, cumprem suas obrigações e mediam suas diferenças”. A governança da água inclui, em particular, acordos internacionais sobre a água e a legislação nacional (normas de qualidade da água), a implementação de políticas e as instituições associadas (monitoramento e aplicação de normas) e a participação da sociedade civil e do setor privado (ANA, 2011).
A governança da água reflete-se para a inovação das instituições por meio de uma gestão coletiva de suas ações e diretrizes locais, tendo os elementos considerados base para uma boa governança dos recursos hídricos, onde a inovação deve ser pensada a partir de três dimensões: mudanças na regra do jogo, descentralização das ações e foco nos desafios locais. Nesse sentido, as organizações e indivíduos locais poderiam fazer acordos de compromisso, primando por uma governança do bem (OSTROM, 1990, 1999).
Nesse caminho, deve-se considerar a governança da água como um meio para alcançar um fim e não como um fim em si mesmo, ou seja, é um conjunto de regras políticas, institucionais e administrativas, além de práticas e processos (formais e informais) por meio dos quais as decisões são tomadas e implementadas, as partes interessadas articulam os seus interesses e têm as suas preocupações consideradas, e os decisores são responsabilizados pelos procedimentos e resultados da gestão da água (OCDE, 2015b).
3 A OUTORGA DE DIREITO DOS RECURSOS HÍDRICOS
O termo “outorga” derivado de outorgar (dar consentimento), vem do latim popular auctorisare (autorizar), é tido na significação jurídica como consentimento, a autorização, a concessão ou o poder (ANA, 2013). Assim, a outorga não implica alienação parcial das águas que são inalienáveis, mas o simples direito de uso. Ela resume no fato da administração pública atribuir a disposição de certa quantidade de água bruta a pedido de um interessado para finalidade específica no ato de atribuição (SOUZA et al., 2006).
Adicionalmente, a outorga traz a possibilidade de organizar e compartilhar as informações hídricas para os tomadores de decisão e para a sociedade em geral. Granziera (2006, p. 179) define outorga como um “instrumento através do qual o poder outorgante atribui ao interessado, público ou privado, o direito de utilizar privativamente o recurso hídrico”.
Outorga é o ato administrativo mediante o qual o poder público outorgante (União, Estado ou Distrito Federal) faculta ao outorgado (requerente) o direito de uso de recursos hídricos, por prazo determinado, nos termos e nas condições expressas no respectivo ato administrativo. Trata-se de uma autorização de uso da água que, não obstante o seu caráter administrativo, depende de uma série de análises técnicas realizadas pelos órgãos gestores de recursos hídricos (ANA, 2019).
Nessa perspectiva, a outorga tem por objetivo a garantia do exercício dos direitos de acesso à água e o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água. Em outras palavras, trata-se de uma garantia do poder público de que o volume ou vazão outorgados estão reservados para uso do requerente e não serão alocados a terceiros, conferindo segurança ao investimento a ser feito.
Portanto, trata-se de um instrumento que tem uma dupla finalidade: por um lado, dar garantia ao usuário de que a vazão/volume outorgados não serão alocados a terceiros e, portanto, conferir segurança jurídica ao empreendedor e, tudo isso, permitindo à administração pública gerenciar a forma como o bem público é usado, com o conhecimento dos usuários, aplicação de prioridades de uso e articulação com outros instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH). (ANA, 2019).
Esse instrumento de controle e coordenação possibilita a gestão descentralizada e participativa, sendo ainda um documento que assegurará o direito de uso das águas. Por meio dela, o poder público cede ao interessado o direito de utilizar privativamente os recursos hídricos de certo manancial por prazo e pretensões anteriormente acordados (ANA, 2013). Entre os instrumentos de gestão estabelecidos na lei de recursos hídricos, é o que lida mais diretamente com a alocação de água em bacias hidrográficas.
Machado (2004, p. 147) corrobora que a outorga deve ser vista como um instrumento de alocação de água entre os mais diversos usos dentro de uma bacia hidrográfica. Essa alocação (distribuição) de água deve buscar os seguintes objetivos mínimos: atendimento das necessidades ambientais, econômicas e sociais, redução ou eliminação dos conflitos entre os usuários da água e possibilidade de que as demandas futuras possam ser atendidas.
A outorga garante ao usuário o direito do uso da água condicionado à disponibilidade hídrica e à preservação dos usos múltiplos. Uma vez emitida pelo poder outorgante, a outorga protege o usuário contra o uso predador de outros usuários que não possuem outorga (KELMAM, 1997).
4 MATERIAIS E MÉTODOS
4.1 ÁREA DE ESTUDO
Na Amazônia Legal, o Pará sinaliza o início da gestão do território por meio das bacias hidrográficas, as quais passam a ser unidades básicas de planejamento e, neste estudo, são consideradas como territórios de água. A gestão desses territórios envolve a participação do poder público, dos usuários e das comunidades que, para efetiva tomada de decisão, devem estar informados sobre a realidade hídrica da bacia em que atuarão de modo que possam exercer com autonomia o seu papel nas ações relacionadas à descentralização da gestão da água.
A importância de se reconhecer a função de analisar uma bacia hidrográfica remete necessariamente ao uso do solo de sua área, incluindo subsolo, relevo, fauna, flora, que tem nos leitos fluviais seu elemento integrador. E, que deve ser avaliado à luz da capacidade de reposição hídrica. Como o uso do solo é socialmente definido, não há como fugir à dimensão política. Portanto, a gestão da bacia hidrográfica exige a cooperação dentro de sua abrangência de todas as partes interessadas, tanto Estado como dos usuários locais (FRACALANZA, 2009). Assim, as bacias hidrográficas são constituídas pelas vertentes e pela rede de rios principais, afluentes e subafluentes, cujo conjunto forma uma rede de drenagem, ou seja, uma bacia hidrográfica que se constitui no conjunto de terras delimitadas pelos divisores de água e drenadas por um rio principal, seus afluentes e subafluentes.
As regiões hidrográficas do estado do Pará foram definidas através da Resolução nº 04/2008, do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH). Para isto, foram considerados os limites geográficos e as características de homogeneidade de aspectos geofisiográficos, dos ecossistemas e socioeconômicos (PARÁ, 2021). A região hidrográfica, segundo a ANA (2019), é “o espaço territorial brasileiro compreendido por uma bacia, grupo de bacias ou sub-bacias hidrográficas contíguas, com características naturais, sociais e econômicas homogêneas ou similares, com vistas a orientar o planejamento e gerenciamento dos recursos hídricos”.
A gestão da água, no estado do Pará, necessita de meios que auxiliem a implementação dos instrumentos da PERH bem como na identificação dos principais usos, conflitos e potencialidades de cada região. Com base nas informações coletadas e descritas é traçado um perfil de demandas e necessidade de respostas considerando as 7 (sete) regiões hidrográficas do estado. Dessa forma, o estado divide-se em sete regiões denominadas de Macrorregiões Hidrográficas (MRH) que são: Costa Atlântica-Nordeste, Xingu, Portel-Marajó, Tapajós, Baixo Amazonas, Calha Norte e Tocantins-Araguaia.
No mapa 1, é representado espacialmente as sete Regiões Hidrográficas do Estado do Pará com seus limites estaduais.
Mapa 1- Regiões Hidrográficas do Estado do Pará |
Fonte: Elaboração autores, 2022 |
4.2 DESCRIÇÃO METODOLÓGICA
A pesquisa sugerida se voltou para um estudo de caso com uma abordagem de caráter qualitativa e quantitativa, em que serão priorizados os conhecimentos sobre o tema, a explicação da realidade e a descrição do fenômeno estudado, primando por uma análise de cunho documental e socioambiental.
No primeiro momento, foi feita uma revisão de literatura baseado nos acervos de instituições públicas e privadas com a finalidade de localizar trabalhos em livros, dissertações, teses, periódicos, anais, páginas eletrônicas, legislações hídricas e artigos científicos já publicados sobre a governança da água, gestão integrada e a outorga de direito de uso da água. Nessa linha de orientação, sustenta Farias Filho e Arruda Filho (2013, p. 64) que esse tipo de pesquisa “propicia a evolução conceitual e metodológica que pode ter ocorrido com os estudos já realizados, tratando de uma pesquisa cujas fontes de dados e informações são exclusivamente a bibliográfica publicada sobre o tema”.
Nessa esteira, também foi realizada uma análise documental (pesquisa documental) nos documentos produzidos pelos gestores do órgão da Semas no estado do Pará, tais como: Relatórios de gestão ambiental, Listagem Estadual das Outorgas e Plano Estadual de Recursos Hídricos (produtos e diagnósticos), principalmente acessando por meio do Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Estado do Pará (SEGRH) e o Sistema Estadual de Informações Sobre Recursos Hídricos do Pará (SEIRH/PA).
A coleta de dados se deu por meio de visitas periódicas na Secretaria Adjunta de Gestão Recursos Hídricos e Clima (SAGRH), da SEMAS/PA com a finalidade de coletar informações relevantes para o desenvolvimento do objeto de estudo da pesquisa e do reconhecimento da área. Conforme visto, a intenção da pesquisa é coletar dados e informações que identifiquem os principais problemas ambientais enfrentados pelo órgão em relação a governança da água, estudando o acesso, o fluxo e uso dos instrumentos informacionais segundo a PERH, principalmente em relação aos instrumentos normativos, especificamente a da outorga que é o objeto empírico da pesquisa.
5 RESULTADOS E DISCUSSÃO
5.1 APLICAÇÃO DO INSTRUMENTO DA OUTORGA DE DIREITO DE USO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO PARÁ
O órgão gestor de recursos hídricos do estado do Pará é a SEMAS, com a missão institucional de promover a gestão ambiental integrada, compartilhada e eficiente, compatível com o desenvolvimento sustentável, assegurando a preservação, a conservação do meio ambiente e a melhoria da qualidade de vida. É responsável pela elaboração, acompanhamento e avaliação técnica de políticas, diretrizes e normas de gerenciamento para os recursos hídricos do estado (PARÁ, 2021).
Na SEMAS, mais especificamente na Diretoria de Recursos Hídricos (DIREH), na Gerência de Outorga (GEOUT), encontram-se, respectivamente, os responsáveis pela emissão de outorga e pela gestão.
A gestão do instrumento de outorga se mostra necessária no estado do Pará, pois por meio deste é possível assegurar legalmente um esquema de alocação, controle e monitoramento quali-quantitativo da água entre os diferentes usuários, resolvendo ou atenuando fortemente os conflitos existentes entre os usuários competidores e assegurando as bases para o desenvolvimento sustentável (SANTOS, LIMA e LIMA, 2007).
É obrigatória a solicitação de outorga quando há derivação ou captação de parcela de água existente em um corpo hídrico (captação superficial) para consumo final ou quando utiliza água de poço (captação subterrânea) para utilização na agricultura, indústria e mineração; lançamento de efluentes em um corpo hídrico; outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água; e qualquer obra ou serviço de interferência hídrica, que possam influenciar o regime hídrico que alterem a quantidade e ou a qualidade da água (PARÁ, 2010).
5.1.1 A dimensão legal
Os pedidos de outorga devem obedecer aos instrumentos legais cabíveis que complementam a Lei Estadual nº 6.381/2001, sejam as resoluções do CERH bem como as instruções normativas estabelecidas pela SEMAS.
O início do processo do que viria a ser a outorga hídrica no estado do Pará data do final do ano de 2005, por meio do Núcleo de Hidrometeorologia (NMH), que foi uma divisão da extinta Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente (SECTAM) e se propunha a realizar estudos com vistas a construir um sistema de monitoramento e gerenciamento dos recursos hídricos (SANTOS, LIMA E LIMA, 2007; SILVA JUNIOR, 2008).
A Outorga está disciplinada na Lei Federal nº 9.433, de 08 de janeiro de 1997, na Lei Estadual nº 6.381, de 25 de julho de 2001, na Resolução do Conselho Estadual de Recursos Hídricos nº 3, de 03 de setembro de 2008, e na Instrução Normativa da SEMA nº 31, de 07 de outubro de 2009. Então, juridicamente a outorga iniciou o seu processo de implementação no estado do Pará no ano de 2008, ou seja, é um instrumento com amplo amparo legal e que dá ao outorgado plenas garantias de direito de acesso e de uso de recursos hídricos.
5.1.2 O processo de pedido de outorga
Atualmente, os processos de pedido de outorga no estado do Pará vêm ocorrendo de duas formas, sendo elas: através do protocolo diretamente na SEMAS e nas unidades regionais da Secretaria. Já as declarações de dispensa de outorga e autorização para perfuração de poços estão sendo solicitadas via Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Pará (SIGERH/PA). Após o protocolo do pedido, este perpassa por várias etapas até que ocorra efetivamente a emissão do título, tipos de uso (tipologia) e o usuário tenha autorização para fazer o uso dos recursos hídricos ou reserve a vazão ou tenha sua autorização para perfuração de poço. Além de passar por uma análise técnica criteriosa dos mananciais ou dos corpos hídricos em uso, conforme a resolução n 10/2010 do CERH.
Os usuários da água que devem solicitar a outorga são: os agricultores, pecuaristas, empresas agrícolas, associações, cooperativas, aquicultores, empresas e indústrias em geral, ANEEL para o caso de DRDH e qualquer outro usuário de água bruta superficial e subterrânea ou que faz ou pretenda fazer obra hidráulica (PARÁ, 2010).
No fluxograma 1, é apresentado o passo a passo para a obtenção de outorga de direito de uso de recursos hídricos no estado do Pará.
Fluxograma 1- Passo a passo para obtenção da outorga de direito de recursos hídricos |
Fonte: PARÁ, 2010 |
Neste sentido, segundo o Manual para Usuários de Outorga, elaborado pela SEMAS, há vários critérios e procedimentos para se obter a outorga de uso da água, que é dividido em fases, tais como (PARÁ, 2010): identificar se a outorga é necessária, identificar o corpo Hídrico e o seu domínio, solicitar outorga para o uso de recursos hídricos (documentos administrativos obrigatórios e necessários) e pagamento pela solicitação da outorga. Por fim, para os rios de domínio do Estado do Pará, os custos administrativos da outorga deverão ser ressarcidos pelo requerente de acordo com a Resolução Estadual de Meio Ambiente nº 44, de 22/08/2006.
5.1.3 Síntese da situação dos processos de outorga, no período 2008 a 2021, no Pará
Durante o estudo, foram identificados todos os processos de pedidos de outorga por tipologia subterrânea e superficial, mas também, aqueles efetivamente autorizados e deferidos pela SEMAS/PA, no período de 2008 a 2021, a partir dos dados disponibilizados pelo SEIRH/PA. No gráfico 1, é demonstrado a evolução dos protocolos de pedidos de outorga no período de 2008 a 2021 no estado do Pará (PARÁ, 2021).
Gráfico 1– Protocolos de processos de pedido de outorga no período de 2008 a 2021 |
Fonte: Elaboração autores, 2022 |
Observa-se, portanto, que esta reflexão contribui significativamente para a avaliação dos processos de outorga no estado do Pará, pois nos anos de 2008 à 2021 foram analisados um total de 14.395 processos de pedido de outorga com destaque para os anos de 2018 e 2021 em que foram protocolados processos, sendo que 86 do tipo de lançamento, 763 do tipo superficial e 2.785 do tipo subterrânea. Esse estudo mostra que esse quantitativo ainda representa uma proporção substanciada das interferências e usos de água realizados no estado (PARÁ, 2020). Segundo Cirilo e Almeida (2019, p. 122) a outorga de direito de uso dos recursos hídricos é o instrumento mais utilizado e desenvolvido na gestão integrada dos recursos hídricos na Amazônia paraense. Além do que confirmar o pensamento dos autores Silva Júnior e Monteiro, 2011 que previam o crescimento das solicitações da outorga no estado do Pará pelos usuários (grandes empreendimentos) da água.
5.1.4 Síntese dos empreendimentos que solicitam a outorga na Amazônia parense no período de 2008 a 2021
Nessa síntese é mostrado o quantitativo dos quinze principais empreendimentos que solicitaram a outorga período de 2008 a 2021 segundo a finalidade de uso principal de maior vazão outorgada, tendo destaque para os seguintes usos: industrial (uso no processo produtivo), pesquisa mineral, contenção de rejeitos de mineração, barramento (regularização de vazão), abastecimento público ou humano (ingestão e higiene) e irrigação. Tiveram destaque as empresas da Vale S.A (Projeto Ferro Carajás, Mina Níquel Onça Puma) com 408 outorgas, Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa) com 391 outorgas, Associação de Desenvolvimento Agrícola Interestadual (ADAI) com 174 outorgas e a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Obras do Pará (SEDOP) com 128 outorgas. No gráfico 2 é demonstrado a evolução dos quantitativo dos quinze principais empreendimentos que solicitaram a outorga período de 2008 a 2021.
Gráfico 2 - Evolução dos quantitativo dos quinze principais empreendimentos que solicitaram a outorga período de 2008 a 2021. |
Fonte: Elaboração autores, 2022 |
4.1.5 A distribuição socioespacial das outorgas deferidas nas regiões hidrográficas
Verifica-se na distribuição espacial das outorgas deferidas nas regiões hidrográficas uma concentração maior nas regiões Costa Atlântico-Nordeste com 9.816 processos outorgados e Tocantins-Araguaia com 3.473 processos outorgados. Nessas duas regiões, há o destaque para perfurações de poços de água subterrânea, devido a acentuada ação antrópica do homem com grandes empreendimentos sobre os recursos naturais na Amazônia, usando os territórios de água para as seguintes atividades econômicas: mineração, indústria, agricultura, irrigação e geração de energia elétrica. Isso é confirmado nos estudos de Lima (2005), Santos (2008) e Cirilo e Almeida (2019). No mapa 2 é representado espacialmente o quantitativo das outorgas deferidas por região hidrográfica no estado do Pará no período de 2008 a 2021.
Mapa 2 – Distribuição espacial das outorgas deferidas nas Regiões Hidrográficas do estado do Pará |
Fonte: Elaboração própria, 2022 |
5 CONCLUSÃO
A outorga do uso da água é um instrumento essencial ao gerenciamento dos recursos hídricos, pois ela pode apresentar aspectos técnicos, legais, territoriais e econômicos que bem articulados colaboram para o sucesso da implementação de um sistema racionalizado de uso dos mananciais e de uma bacia hidrográfica (SILVA JÚNIOR e MONTEIRO, 2004). É um instrumento normativo que possibilita produzir efeitos positivos em favor dos usuários da água, do poder público e para a sociedade civil organizada.
A organização, o acesso e a sistematização da outorga possibilitarão aos gestores públicos e atores sociais identificarem, antecipadamente, os impactos que poderão ser causados ao meio ambiente, elaborando estratégias para controlar, monitorar, operar e fiscalizar constantemente os problemas ambientais causados pela ação do homem sobre os recursos hídricos.
Nessa senda, percebe-se que a outorga é um relevante instrumento legal para conservação do meio ambiente, pois o seu uso limita, valora e racionaliza o uso sustentável da água no território, trazendo grandes benefícios para os empreendimentos e a gestão pública ambiental. Entretanto, o gestor público ambiental e os atores sociais precisam tomar decisões e, por isso, devem organizar e sistematizar todos os pontos de uso de água nas bacias e regiões hidrográficas por meio das outorgas, a fim de atender ao usuário e subsidiar o processo de planejamento e gestão dos territórios de água.
Dentre outros, a outorga é um importante instrumento legal de gestão para conservação das águas. Por meio da outorga, é possível assegurar legalmente um esquema de alocação individual e coletiva, controle e monitoramento quali-quantitativo das águas entre os diferentes usuários, possibilitando uma divisão mais justa e equilibrada da água.
Dessa forma, a governança da água por meio da implementação da outorga coloca à ordem no uso dos recursos hídricos, trazendo uma certa tranquilidade aos usuários locais da água, pois estes, uma vez possuidores dos direitos de uso, poderão realizar seus investimentos em um ambiente mais organizado e, por isso, inibidor de conflitos.
Em relação aos aspectos administrativos da outorga é importante sistematizá-las, ou seja, é necessário detalhar o que está sendo solicitado pelo usuário, em basicamente três grupos de informação: categoria de uso, modalidade de uso (captação da água, obras hidráulicas, execução de serviços e travessia) e finalidade de uso (irrigação, indústria, aquicultura, criação de animais, saneamento etc.).
É possível indicar que as informações levantadas neste estudo sobre as outorgas de direito de uso de recursos hídricos bem como as informações provenientes da implementação dos demais instrumentos de controle do uso desses recursos podem contribuir nos processos decisórios para a gestão dos territórios de água e de suas bacias hidrográficas no estado do Pará. Dessa forma, o conhecimento acerca das informações hídricas pode auxiliar na realização de escolhas autônomas e criativas, em direção às novas formas de uso de recursos hídricos e à sustentabilidade socioambiental.
Por fim, a outorga de direito de uso da água funciona como um elemento disciplinador de suporte aos processos decisoriais na gestão do território da água, pois garante disciplinar o controle e o uso da água em uma região, evitando ou diminuindo conflitos adjacentes entre os diversos usuários, salvaguardando um efetivo exercício do direito de acesso a esse recurso, capacitando o uso da água nas bacias hidrográficas do estado do Pará.
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[1] Bibliotecário e geógrafo. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia (PPEGDAM/NUMA/UFPA). Técnico em gestão Pública da Secretaria de Estado e de Meio Ambiente (SEMAS/PA).
[2] Economista. Pós-doutor em Gestão Pública e Governo pela EAESP da Fundação Getúlio Vargas (FGV). É economista da Universidade Federal do Pará, professor Programa de Pós-graduação em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local do Núcleo de Meio Ambiente da UFPA (NUMA/UFPA).
[3] Geólogo. Doutor em Desenvolvimento Socioambiental, sempre pela Universidade Federal do Pará (UFPA). É professor do Núcleo de Meio Ambiente (NUMA) da UFPA.