Pontos de Economia Solidária e Cultura na Rede de Atenção Psicossocial

 “é possível fazer!”

Caroline Ballan[1]

Universidade de São Paulo

caroline.ballan@usp.br

Ana Luzia Laporte[2]

Universidade de São Paulo

laporte.analu@gmail.com

Paolo Marti Viola[3]

Universidade de São Paulo

paolo.viola@usp.br

Bernardo Parodi Svartman[4]

Universidade de São Paulo

bernardo@usp.br

Reinaldo Pacheco da Costa[5]

Universidade de São Paulo

rpcosta@usp.br

Ana Luisa Aranha e Silva[6]

Universidade de São Paulo

anaaranhaesilva@gmail.com

 

 

 

 

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Resumo

A reforma psiquiátrica brasileira tem origem na luta antimanicomial, com o objetivo da cidadania de direitos, participação e poder social das pessoas com problemas de saúde mental, estruturada na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde (SUS). Por compartilhar princípios, a Economia Solidária, com a iniciativa direta do Professor Paul Singer, aproximou-se e se integrou à reforma psiquiátrica antimanicomial, criticando relações tradicionais, determinadas pelo mercado, que excluem as diferenças e desabilidades, focam na produtividade cega e no lucro a todo custo. Nesse encontro, o trabalho deixa de ter o foco na segregação e nas desigualdades, passando à construção de laços sociais entre pessoas e territórios, em redes de pertencimento e apoio comunitário, por meio da geração de trabalho e renda. São apresentadas neste artigo, em forma de estudos de caso, duas iniciativas na cidade de São Paulo, que articulam Saúde Mental e Economia Solidária: O Ponto de Economia Solidária, Comércio Justo, Cooperativismo Social e Cultura do Butantã (Ponto Butantã) e o Ponto Benedito - Economia Solidária e Cultura (Ponto Benedito), para mostrar a possibilidade de avançar nas políticas e práticas que ampliam a autonomia e a contratualidade das pessoas trabalhadoras, do lugar de protagonismo de suas histórias. O respeito às diferenças, na perspectiva da equidade, é compreendido enquanto condição fundamental para aprofundar as relações democráticas e para a justiça social.

Palavras-chave: Saúde Mental. Economia Solidária. Política Pública. Direitos Humanos.

 

Solidarity Economy and Culture Points in the Psychosocial Care Network: "it can be done!"

 

Abstract

The Brazilian psychiatric reform originates from the antimanicomial struggle, with the objective of citizenship rights, participation and social power of people with mental health problems, structured in the Psychosocial Care Network of the Unified Health System (SUS). By sharing principles, the Solidarity Economy, with the direct initiative of Professor Paul Singer, has approached and integrated the antimanicomial psychiatric reform, criticizing traditional relations, determined by the market, which exclude the differences and disabilities, focusing on blind productivity and profit at all costs. In this integration, work ceases to focus on segregation and inequalities, moving on to the construction of social ties between people and territories, in networks of belonging and community support, through the generation of work and income. This article presents, in the form of case studies, two initiatives in the city of São Paulo, which articulate Mental Health and Solidarity Economy: The Solidarity Economy, Fair Trade, Social Cooperativism and Culture of Butantã (Ponto Butantã), and the Ponto Benedito - Solidarity Economy and Culture (Ponto Benedito), to show the possibility of progress in policies and practices that expand the autonomy and contractuality of working people, from the place of protagonism of their stories. Respect for differences, from the perspective of equity, is understood as a fundamental condition for deepening democratic relations and social justice.

Keywords: Mental Health. Solidarity Economy. Public Politics. Human Rights.

1 INTRODUÇÃO

A reforma psiquiátrica brasileira, a partir da década de 80, desenvolveu e implementou políticas e práticas de cuidado em liberdade, com a construção do modelo de atenção em saúde mental comunitário no Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de estratégias nos territórios de vida das pessoas, com implicações sobre os determinantes sociais de saúde, trabalho, alimentação, moradia, cultura, educação, no exercício da cidadania de direitos (BRASIL, 1988; 1990; 2001). Em consonância com o Estado Democrático de Direito, o campo da Saúde Mental no Brasil optou por desenvolver projetos de inclusão pelo trabalho associado e solidário, na perspectiva da Economia Solidária, contraposto à organização do trabalho capitalista que, por suas características intrínsecas, é competitivo e excludente. As experiências que integram os campos da Saúde Mental e da Economia Solidária reconhecem o Estado como ator estratégico nos processos de sustentação econômica, social e política (ARANHA E SILVA, 2012).

Este artigo apresenta o encontro político e ideológico entre Saúde Mental (SM) e Economia Solidária (Ecosol) - a Rede de Saúde Mental e Economia Solidária -, como fundamento da associação entre SM e Ecosol; os dois casos - Ponto Butantã e Ponto Benedito; e algumas considerações para o futuro. A finalidade é contribuir com arranjos comunitários e institucionais para a formulação de políticas públicas de acesso e garantia dos direitos civis, políticos e sociais, para conjugar Estado e Sociedade em torno de um modelo de desenvolvimento solidário e sustentável.

 

2 SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA

A Economia Solidária fomenta a construção de empreendimentos econômicos coletivos e autogestionários (cooperativas, associações, grupos de produção e projetos de geração de renda), alternativos ao modo capitalista criador de exclusão social, adoecimentos laborais e a sua incessante produção de desigualdade e exploração, na qual o capital e o mercado determinam a conduta e a vida das pessoas (SANTOS et al., 2018; SINGER, 2008). No Brasil, a Economia Solidária nasceu como uma proposta de inclusão social que “proporciona que as relações sociais de produção não sejam de exploração, na qual o capital e o mercado determinam a conduta e a vida dos trabalhadores, mas sim do exercício do poder compartilhado, da cooperação e solidariedade” (SINGER, 2002; SINGER, 2011). Para tal, no conjunto de atividades econômicas, quatro características devem ser observadas e compreendidas como atributos, sempre e necessariamente presentes na perspectiva da Economia Solidária (BRASIL, 2010a):

1. Cooperação: existência de interesses e objetivos comuns, união dos esforços e capacidades, propriedade coletiva parcial ou total de bens, partilha dos resultados e responsabilidade solidária diante das dificuldades;

2. Autogestão: livre adesão dos trabalhadores às iniciativas econômicas pautadas pelo exercício de práticas participativas de autogestão nos processos de trabalho, nas definições estratégicas e cotidianas dos empreendimentos, na direção e coordenação das ações nos seus diversos graus e interesses; e a distribuição equitativa dos recursos produzidos;

3. Atividade Econômica: agregação de esforços, recursos e conhecimentos para viabilizar as iniciativas coletivas de produção, prestação de serviços, beneficiamento, crédito, comercialização e consumo;

4. Solidariedade: preocupação permanente com a justa distribuição dos resultados e a melhoria das condições de vida dos participantes. Comprometimento com o meio ambiente saudável e com a comunidade, com os movimentos emancipatórios e com o bem estar de trabalhadoras(es) e consumidoras(es) (BRASIL, 2010a).

De acordo com Singer (2002), vale pontuar:

A identidade, no campo ético, entre o campo da saúde mental e a economia solidária, frente ao desafio da inclusão das pessoas em desvantagem social no mundo do trabalho, por meio de processos produtivos e distributivos solidários, é evidente. Neste marco referencial a crítica à dura lógica capitalista de produção incessante de vitoriosos e derrotados é explícita. Como horizonte da Economia Solidária está a instauração da solidariedade como norma social e a construção de empreendimentos coletivos e autogestionários como resposta à exclusão do mercado capitalista (SINGER, 2002).

O diálogo entre a saúde mental e a economia solidária surgiu em 2004 a partir do Fórum Social Mundial. A 1ª Oficina Nacional de Experiências de Geração de Trabalho e Renda de Usuários de Serviços de Saúde Mental, promovida pela Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde, e pela então Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (SENAES-MTE), em 2004, deu origem a uma sequência de ações e regulamentações que possibilitaram a consolidação das experiências de geração de trabalho e renda incubadas nos serviços de saúde mental (BRASIL, 2004; 2005).

 O Grupo de Trabalho de Saúde Mental e Economia Solidária, instituído pela Portaria Interministerial MS/MTE nº 353 de 07 de março de 2005, propôs como necessária a pauta da formulação de políticas públicas destinadas a gerar oportunidades de arranjos econômicos solidários e cooperados de inclusão pelo trabalho (BRASIL, 2005a). Posteriormente, foi publicada a Portaria nº 1.169, de 07 de julho de 2005, destinando recursos federais para dar sequência às iniciativas de formação e capacitação de gestores, trabalhadores e usuários (BRASIL, 2005b) .

Do ponto de vista da formulação do marco jurídico, quatro encontros nacionais se destacam; um deles foi a Conferência Temática sobre Cooperativismo Social, realizada em maio de 2010, em Brasília, que construiu a pauta unificada das cooperativas sociais em consonância com a realidade socioeconômica e política brasileira. As sínteses foram pactuadas intersetorialmente e encaminhadas aos dois outros grandes fóruns dos movimentos organizados da saúde mental e economia solidária, a II Conferência Nacional de Economia Solidária (BRASIL, 2010a) e a IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial (BRASIL, 2010b) - com a compreensão que as ações destinadas ao desenvolvimento de habilidades, capacidades e talentos visam aumentar o potencial de renda de trabalhadoras(es) que usam os serviços de saúde mental por meio da inclusão produtiva. Nesse sentido, contou-se, também, com a II Oficina de Experiências de Geração de Trabalho e Renda de Saúde Mental, em 2011 (ARANHA E SILVA, 2012). Destaca-se, ainda, a participação da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde em espaços como o Comitê Gestor do Programa Nacional de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares - PRONINC.

Com a publicação da Portaria nº 3.088 do Ministério da Saúde, em dezembro de 2011 (republicada em maio de 2013), o direito ao trabalho das pessoas usuárias da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) passa a fazer parte do componente de reabilitação psicossocial no Eixo VII da RAPS. Este é composto por iniciativas de geração de trabalho e renda, menciona

[…] ações de caráter intersetorial, por meio da inclusão produtiva, formação e qualificação para o trabalho em iniciativas de geração de trabalho e renda/empreendimentos solidários/cooperativas sociais que articulam redes de saúde e de economia solidária com recursos disponíveis no território (BRASIL, 2011 - Art. 3º da Portaria nº 3.088). 

A Portaria torna legítimas inúmeras ações já desempenhadas no país, especialmente de e para grupos de pessoas usuárias dos serviços comunitários que realizam produção, comercialização e/ou prestação de serviços com finalidade de gerar renda para seus integrantes, incubados no interior de serviços de saúde com apoio e participação de profissionais.

            O decreto nº 8.163, de 20 de dezembro de 2013, instituiu o Programa Nacional de Apoio ao Associativismo e Cooperativismo Social - Pronacoop Social, e dá outras providências, marco importante para o avanço nas políticas públicas de saúde mental, economia solidária e cooperativismo social. Este foi revogado pelo decreto n° 10.087 de 2019 no contexto de graves retrocessos no estado democratico de direitos. Uma das características fundamentais dessas políticas é seu caráter intersetorial, que define, portanto, que esse tipo de política deve ser desenvolvido por diferentes órgãos públicos, abrangendo diversas áreas.

No caso da “Lei Paul Singer”,  Lei 17.587 de 26 de julho de 2021, que  criou o marco regulatório da economia solidária no município de São Paulo, há o destaque para esse caráter em dois artigos, no parágrafo VII do Art 6º e no parágrafo I do Art 17. O destaque nos artigos referidos anteriormente faz menção de que o Sistema Municipal de Economia Solidária deve ser regido pela: “promoção da intersetorialidade dos programas e ações governamentais e não governamentais, e da cooperação entre o setor público e as organizações da sociedade civil no desenvolvimento de atividades comuns de economia solidária” (SÃO PAULO, 2021).

A centralidade do fomento aos empreendimentos de economia solidária é compreendida, nessa perspectiva, como forma de inclusão social e como processo educativo, de construção de vínculos sociais e de uma cultura política baseada no fazer coletivo, no respeito e na valorização das diferenças, bem como no pertencimento e desenvolvimento territorial. A reflexão é sobre a necessidade de mudar o modelo econômico hegemônico, investir em ações que favoreçam a sustentabilidade e a melhoria da qualidade de vida das populações vulnerabilizadas (BRASIL, 2013). O trabalho solidário como direito, possibilita explorar novos itinerários e lugares na relação loucura e sociedade (BALLAN, 2010), além de investir na participação e poder contratual, na autonomia, nas redes e inclusão social (MAZARO et al., 2022).

 

3 A REDE DE SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA E A REDINHA OESTE

A Rede de Saúde Mental e Economia Solidária[7] demonstra a possibilidade de criação de estratégias coletivas de produção, saberes, renda e cultura. Em 2009, com o primeiro Curso de Multiplicadores em Saúde Mental e Economia Solidária, e a primeira Feira de Saúde Mental e Economia Solidária na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), foi instituída a Rede de Saúde Mental e Economia Solidária (Rede), a partir da luta antimanicomial, sob a égide da Economia Solidária (ARANHA E SILVA, 2012).

A Rede se define como um coletivo de organizações da sociedade civil e de núcleos regionais de empreendimentos econômicos solidários, consolidando projetos de geração de trabalho e renda, constituídos por pessoas que são usuárias dos serviços comunitários de atenção à saúde mental no SUS, seus familiares e trabalhadores da RAPS, sob a forma de autogestão e livre associação, visando o protagonismo e autonomia das pessoas. Implementada na grande São Paulo, logo se expandiu para o interior, caracterizando uma Rede estadual; e, na atualidade, possui inserções nos estados do Paraná e Santa Catarina.

A Rede funciona de maneira autogestionária, seguindo os princípios da economia solidária, com reuniões mensais no formato de assembleias, realizadas com representantes dos núcleos produtivos. Além de reuniões mensais, existem as redinhas locais, criadas como forma de fortalecer as ações territoriais. A economia solidária é um marcador de identidade que fortalece esses coletivos em busca de novas formas de relação com o mundo do trabalho na luta antimanicomial. A Rede de Saúde Mental e Economia Solidária é resultado de uma articulação entre o sistema de saúde mental e a economia solidária, possuindo articulação no âmbito nacional, estadual, municipal e por região.

A Redinha Oeste de Saúde Mental e Economia Solidária, por sua vez, é vinculada à Rede Estadual e abriga Empreendimentos Econômicos Solidários (EESs), que funcionam por meio do trabalho de pessoas usuárias e profissionais dos pontos de cuidado da RAPS, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Centros de Convivência e Cooperativas (CECCOs). Dentro das Redinhas, existe uma articulação para a criação de estratégias coletivas de trabalho, geração de renda e cultura, a fim de fortalecer os empreendimentos.

Na Redinha Oeste do município de São Paulo, há mais de uma década, diversos EESs com essas características atuam nos setores de artesanato, cultura, alimentação, etc, incubados pela RAPS, com estrutura precária e longe de alcançar renda para seus integrantes. Esse  trabalho de incubação é realizado em parceria com a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP (ITCP-USP) e a Associação Vida em Ação (AVA).

A Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP (ITCP-USP) é um programa de extensão vinculado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo e realiza atividades formativas em Economia Solidária, focando o desenvolvimento territorial e a incubação de EES que atuam nas áreas da Agricultura Familiar, Saúde Mental, Alimentação e Segurança Alimentar e Nutricional, Resíduos e Artesanato. Foi criada em 1998, a partir da ideia da grande relevância da extensão universitária, para qualificar as atividades de ensino e pesquisa, reforçando a importância do papel social da universidade na construção com os grupos populares de respostas às desigualdades sociais que resultam da sociedade de classes. Dentre suas estratégias centrais está o fortalecimento de empreendimentos com interesse econômico que abrangem diversas atividades, voltadas à geração de renda, consumo, crédito e/ou finanças, que se proponham a trabalhar de forma democrática e autogestionária, na perspectiva da Economia Solidária. Vários professores importantes da instituição já trabalharam ou trabalham com projetos vinculados à ITCP, desenvolvendo a partir da interdisciplinaridade e em conjunto com alunos e funcionários, atividades de ensino, pesquisa e extensão.

A Associação Vida em Ação (AVA) é uma organização da sociedade civil, fundada em 2004 dentro do movimento da luta antimanicomial em São Paulo, no contexto do SUS, da Lei 10.2016 e da III Conferência Nacional de Saúde Mental. Ela tem como desafio incubar juridicamente Unidades e Núcleos Produtivos, cujas finalidades são defender o acesso e garantia aos Direitos Humanos, apoiar pessoas em vulnerabilidade social, econômica e cultural e fomentar ações de arte, cultura e inclusão no trabalho associado e solidário.

A AVA pauta-se em acompanhar experiências de inclusão social pelo trabalho e cultura; contribui para aprimorar políticas públicas emancipatórias e atividades de educação e pesquisa em saúde mental, economia solidária e cooperativismo social. Tem como função social fortalecer as Unidades e Núcleos Produtivos na perspectiva da coesão social, protagonismo produtivo, emancipação e sustentabilidade econômica (AVA, 2017). Associações similares, fora da institucionalidade pública, como a AVA, são mensageiras, vozes dos micro processos relacionais sociais, onde parte da luta antimanicomial acontece, na ruptura de processos de invalidação, discriminação e estigmatização social.

 

4 PONTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA E CULTURA

Os (dois) Pontos de Economia Solidária e Cultura são apresentados a seguir como duas iniciativas na cidade de São Paulo, que articulam Saúde Mental e Economia Solidária: O Ponto de Economia Solidária, Comércio Justo, Cooperativismo Social e Cultura do Butantã (Ponto Butantã), e o Ponto Benedito - Economia Solidária e Cultura (Ponto Benedito), para apresentar possível avançar nas políticas e práticas que ampliam a autonomia e a contratualidade das pessoas, pelo acesso ao direito ao trabalho solidário.

Experiências fundamentadas a efetivar o citado Eixo VII da RAPS no território oeste do município de São Paulo, fruto de mais de 10 anos de estruturação de experiências de inclusão pelo trabalho e ampliação de redes de pertencimento, desenvolvidas a partir dos serviços comunitários de saúde mental e organizados na Redinha Oeste. São duas experiências que se viabilizaram a partir da cooperação técnica entre a Coordenadoria Regional de Saúde Oeste do município de São Paulo e a Associação Vida em Ação.

Desde 2012, a Redinha Oeste vem propondo fortalecer as trocas de experiências entre os EESs, nas suas formas de gestão e organização do processo de trabalho, com ênfase maior na participação nas reuniões/assembléias. No entanto, a inclusão pelo trabalho exige ações intersetoriais, que possibilitem reinventar redes de suporte social para além dos pontos de cuidado da RAPS. O respeito às diferenças, na perspectiva da equidade, é compreendido enquanto condição fundamental para aprofundar as relações democráticas e para a justiça social.

 

4.1 PONTO BUTANTÃ

O primeiro caso apresentado é o Ponto de Economia Solidária, Comércio Justo, Cooperativismo Social e Cultura do Butantã (Ponto Butantã), um equipamento público componente da RAPS Oeste da cidade de São Paulo, situado na Av. Corifeu de Azevedo Marques 250, no bairro do Butantã em São Paulo. Foi implantado em março de 2016, por meio da portaria n° 1707 de 20 de setembro de 2016, com a missão de promover a inclusão, pelo trabalho, de pessoas com problemas de saúde mental e necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas (SMS/SÃO PAULO, 2016).

Mas esta história tem início em 2013, quando a Redinha conquistou um imóvel cedido pela Prefeitura Regional do Butantã para construir estratégias fora do âmbito dos serviços de saúde em uma perspectiva intersetorial e intersecretarial. O pedido de cessão para a Secretaria de Saúde do Município de São Paulo foi feito para implantar um espaço com enfoque interinstitucional, em rede. Desde antes da entrega das chaves em 2015, a Redinha Oeste construiu esse projeto coletivamente em discussões mensais. A criação e implantação do Ponto Butantã, na sua fase de estruturação, tem como exemplo algumas experiências, tais como Casa do Saci (São Paulo), Projeto Tear (Guarulhos), Armazém das Oficinas (Campinas) e Suricato (Belo Horizonte).

Em parceria com instituições de ensino e pesquisa, principalmente a Universidade de São Paulo com a ITCP-USP, o Ponto Butantã produz e compartilha conhecimento associado com o avanço das práticas e políticas de saúde mental, economia solidária e cooperativismo social, orientado pelos princípios de autogestão, trabalho decente, cadeias produtivas livres de escravidão e exploração, respeito ao meio ambiente e cooperação social.

O processo de tomada de decisões acerca das estratégias e funcionamento do Ponto é coletivo, com espaços de gestão compartilhados a partir de assembleias semanais e reuniões mensais do Conselho Gestor. As assembleias são instâncias colegiadas de representação dos vários segmentos sociais participantes que também possuem a missão de avaliar e propor diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis locais, municipais, estaduais e nacional dentro do SUS.

Com vistas à territorialização, o Ponto Butantã fomenta o acesso à cultura e ao trabalho como direito, em parceria com coletivos, movimentos sociais, universidades e comunidade. Para a organização coletiva do trabalho, são reservadas às segundas-feiras, nas quais são realizadas atividades que visam a autogestão nos processos, com reuniões dos empreendimentos e assembleia geral para conversas, planejamento, avaliação, definição de escalas, e outras pautas de interesse e necessidades.

O Ponto Butantã é uma tecnologia de inclusão social por meio do trabalho solidário e do resgate e estímulo à criação de territórios culturais, institucionalizado juridicamente pela AVA. É um locus de livre circulação, proposto como equipamento público, com foco na economia solidária, como escolha ética e responsável, capaz de interferir nas dinâmicas urbanas com instrumentos e intervenções de transformação da vida comunitária.

 

4.2 PONTO BENEDITO

O segundo caso destacado é o Ponto Benedito - Economia Solidária e Cultura (Ponto Benedito), localizado na Praça Benedito Calixto 112, no bairro de Pinheiros, cidade de São Paulo. Este foi inaugurado em 15 de setembro de 2016 e é fruto do compromisso pela ocupação democrática do espaço público, entre a Secretaria de Saúde do Município de São Paulo, a Universidade de São Paulo e a Associação Vida em Ação (AVA).

O Ponto Benedito atua na perspectiva do direito ao trabalho, fomentando ações de inclusão social, cultural e econômica de pessoas que vivem em desvantagem social por meio da organização do trabalho solidário e cooperado. Em sua sede foi constituída uma Loja Social - instalada na Sala Professor Paul Singer - onde são comercializados produtos das Unidades e Núcleos Produtivos vinculados ao Eixo VII da RAPS, organizados pela Rede de Saúde Mental e Economia Solidária.

Esse equipamento é gerido por 11 pessoas que organizam as atividades do cotidiano em reuniões semanais, com mandato deliberativo segundo os eixos administrativos: Cotidiano da Loja (estoques, controle da posse da chave) e Organização e limpeza do espaço e Atendimento ao cliente. Há também uma Curadoria de Produtos que seleciona e forma os preços dos produtos/itens para a loja e contatos com Unidades e Núcleos Produtivos da Rede. O grupo de gestão contábil controla o fluxo de caixa, organiza a distribuição da renda e os registros, juridicamente incubado pela AVA.

 

5 CONCLUSÃO

Os dois casos apresentados são interferências inovadoras que contribuem com o avanço no cuidado em liberdade, comunitário, territorial, intersetorial e multidisciplinar no SUS; são experiências com potencial para serem multiplicadas no município de São Paulo e nas Redes de Atenção Psicossocial pelo Brasil. Cria-se jurisprudência no caminho da prática em redes intersetoriais, de novas tecnologias sociais que efetivam direitos humanos às pessoas em vulnerabilidades. O compromisso é desenvolver esse conhecimento por meio da experiência prática para contribuir na formulação de políticas públicas de acesso e garantia de direitos na reforma psiquiátrica antimanicomial brasileira.

Destaca-se o fato de que a etapa de votação popular do Projeto de Lei Orçamentária Anual - PLOA 2021 - decidiu apoiar o projeto de criação de novos Pontinhos de Economia Solidária e Cultura na cidade, evidenciando o reconhecimento popular dessa iniciativa. A proposta foi eleita entre as cinco prioridades da Região do Butantã no processo participativo. Essa votação revela o acolhimento e a vontade da população de apoiar e fazer crescer esses projetos.

Os Pontinhos são estratégias territoriais de geração de trabalho e renda na perspectiva do desenvolvimento sustentável. Sua implementação está prevista na constituição do Sistema Municipal de Economia Solidária, no parágrafo VII, do artigo 19 da Lei Paul Singer/, Lei 17.587 de 26 de julho de 2021. Sobre a efetivação dessa política, esses estudos de casos apresentados podem contribuir com a regulamentação, fase em que se encontra. O Estado ainda não executou a proposta, e a sociedade civil organizada em rede buscou aproximar pessoas, práticas e teorias em um processo dialógico, com a garantia do lugar de gestão aos coletivos, para apresentar e debater os desafios das suas experiências - o que incentiva a releitura do seu próprio processo e possibilita avanços.

A parceria entre o Ponto Butantã, a Associação Vida em Ação, a Associação Espaço Cultural Cachoeiras, a Associação Sociedade Alternativa e o Sesc Pinheiros tem como objetivo fortalecer ações realizadas por organizações não governamentais, coletivos e indivíduos engajados para transformar positivamente territórios e comunidades, e contribuir com a formulação de práticas e políticas que garantam e efetivem direitos.

De forma colaborativa, pretende-se constituir espaços de diálogos que apontem soluções para aprimorar as políticas intersetoriais de direito ao trabalho para as pessoas em vulnerabilidade social. Além disso, o trabalho se apresenta como possibilidade de investir em estratégias conjuntas de fortalecimento das associações e cooperativas locais, com ações comunitárias voltadas para o bem comum, para a geração de renda, para difusão de princípios e práticas ligadas ao desenvolvimento sustentável e, particularmente, à saúde mental e à economia solidária.


 

REFERÊNCIAS

ARANHA E SILVA A. L. A construção de um projeto de extensão universitária no contexto das políticas públicas: saúde mental e economia solidária. [livre docência]. 2012. Disponível em:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/7/tde-23112012-092937/pt-br.ph. Acesso em 20 mar. 2023.

ASSOCIAÇÃO VIDA EM AÇÃO - AVA. Estatuto. 2017.  Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1VH4GuXmBKsUM4RwGI-2Kt400e0uxfvP9/view. Acesso em 20 mar. 2023.

BALLAN, C. O livro das receitas d ́o bar Bibitantã: conquistas e desafios na construção de um empreendimento  econômico  solidário  na  rede  pública  de  atenção  à  saúde  mental  no  município de São Paulo (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2010. Recuperado  de  https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/7/7134/tde-11082010-094922/pt-br.php. Acesso em 20 mar. 2023.

BRASIL. Constituição Federativa do Brasil de 1988. Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 20 mar. 2023.

BRASIL. Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. Ministério da Saúde. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em 20 mar. 2023.

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SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Saúde. Portaria n° 1707, de 20 de setembro de 2016. Ponto de Comércio Justo, Economia Solidária e Cultura do Butantã.  Disponível em: http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/portaria-secretaria-municipal-da-saude-1707-de-20-de-setembro-de-2016. Acesso em 20 mar. 2023.

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[1] Enfermeira, doutoranda em Saúde Mental e Direitos Humanos pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), conselheira gestora na Associação Vida em Ação e no Ponto de Ecosol e Cultura Butantã.

[2] Formada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), mestra e doutoranda na Faculdade de Educação da mesma universidade, conselheira gestora no Ponto de Ecosol e Cultura Butantã, integrante do Núcleo de Economia Solidária da USP e da Feira Agroecológica e Cultural de Mulheres no Butantã.

[3] Bacharel em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalha como educador social. Atualmente é Técnico em Extensão na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP e se dedica à pesquisa em Geografia, com ênfase em temas relacionados à segurança alimentar e abastecimento de alimentos.

[4] Professor de Psicologia Social e de Psicologia Comunitária no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Membro do conselho acadêmico da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP (ITCP-USP). Possui mestrado(2004) e doutorado(2010) em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de São Paulo.

[5] Engenheiro Mecânico - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS; 1975); M.Sc. Engenharia de Transportes - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ; 1983); PhD Engenharia de Produção. Professor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica - Universidade de São Paulo (USP; 1998). Coordenador Acadêmico da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP (2010).

[6] Graduada em Enfermagem pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/Campinas) (1980) com Habilitação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (1981) e Especialização pelo Departamento de Enfermagem da Escola Paulista de Medicina (1982/83). Psicodramatista (1988) pela Sociedade de Psicodrama de São Paulo. Mestre em Enfermagem em Saúde Coletiva (1997), Doutora (2003) e Livre Docente (2012) pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP). Presidenta da Associação Vida em Ação.

[7] O endereço eletrônico da Rede de Saúde Mental e Economia Solidária é  http://saudeecosol.org/.