O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO DE PAUL SINGER

 

André Ricardo de Souza[1]

Universidade Federal de São Carlos

anrisouza@uol.com.br

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Resumo

O artigo aborda as ideias de Paul Singer relacionadas ao socialismo, algo que ele concebeu e vivenciou em sua vida militante como necessariamente democrático. São elencados aspectos concernentes de seus escritos, bem como seus ditos em diálogos decorrentes de amizade com o autor do texto, aulas de pós-graduação e reuniões de grupos de estudos de economia solidária na Universidade de São Paulo. O artigo, por fim, discute caminhos pensados por Singer e deduzidos a partir da elaboração intelectual dele para a edificação do socialismo democrático.

Palavras-chave: Paul Singer; Produção Intelectual e Militância; Superação do Capitalismo; Socialismo Democrático; Economia Solidária.

PAUL SINGER'S DEMOCRATIC SOCIALISM

Abstract

The article addresses Paul Singer's ideas related to socialism, something he conceived and experienced in his militant life as necessarily democratic. Aspects concerning his writings are listed, as well as his sayings in dialogues resulting from friendship with the author of the text, postgraduate classes and meetings of solidary economy study groups at the University of São Paulo. The article, finally, discusses ways thought by Singer and deduced from his intellectual elaboration for the construction of democratic socialism.
 

Keywords: Paul Singer; Intellectual Production and Militancy; Overcoming Capitalism; Democratic Socialism; Solidarity Economy.

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                         

1  INTRODUÇÃO

Este pequeno artigo discute alguns pontos do modo como Paul Singer pensou o socialismo democrático, algo central em determinados escritos dele e, mais ainda, em sua militância política exercida na universidade em movimentos, partidos de esquerda e órgãos de governo que ele conduziu. Decorre, em parte, do estudo de seus textos, da cooperação na organização com ele de um livro e de certa convivência que pude desfrutar no ambiente universitário e na privacidade de seu lar, sendo esta já na fase final da sua vida. Pouco depois de eu ter sido seu aluno na disciplina Economia I, enquanto eu cursava a graduação em ciências sociais na Universidade de São Paulo, iniciamos uma interlocução que prosseguiu no grupo de estudos de economia solidária, na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP-USP) e na disciplina de pós-graduação sobre esse tema que ele ministrou, anualmente, na Faculdade de Economia e Administração (FEA-USP), entre 1999 e 2002, renovando seu programa a cada ano. Tal disciplina propiciou que eu e o professor organizássemos o livro A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego (Contexto, 2000) e em decorrência dela - como homenagem a Singer - organizei com outros três colegas, que igualmente a cursaram, outra coletânea de textos intitulada Uma oura economia é possível: Paul Singer e a economia solidária (Contexto, 2003).

A reflexão documentada de Paul Singer quanto ao socialismo democrático teve início já em 1951, aos 19 anos de idade, quando ele publicou o artigo “Socialismo e democracia” na revista Dror, de judeus jovens de esquerda. No escrito, ele ressalta que era imprescindível usar a democracia para a busca de superação do capitalismo (Singer, 2022, p. 12). E a militância em prol de tal causa percorreu toda a vida desse militante intelectual falecido em 2018.

No presente artigo é abordada a importância da retomada do debate sobre essa temática - neste contexto de profunda desigualdade social e intenso desafio político de superar o neoliberalismo - bem como aspectos dos caminhos pensados por Paul Singer para o alcance gradual desse socialismo humanizado e participativo, algo que passa necessariamente pela democratização das organizações econômicas, com amplos desdobramentos sociais.  

 

2 DESAFIO E IMPORTÂNCIA DE RETOMAR O DEBATE SOBRE SOCIALISMO DEMOCRÁTICO

Após ser procurado por Luiz Inácio Lula da Silva, em 1999, para “retomar alguns debates fundamentais” (Silva, 2000, p. 5) o célebre professor de literatura da USP, Antonio Candido, aceitou o desafio lançado. Ele, junto com o então assessor de Lula no Instituto Cidadania, Paulo Vannuchi, bem como Paul Singer e o sociólogo, também uspiano, Francisco de Oliveira organizaram em parceria com a Fundação Perseu Abramo uma série de encontros do Seminário Socialismo e Democracia, ocorridos ao longo do ano seguinte. No primeiro deles Singer e o economista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo João Machado - que, humildemente, também havia sido aluno naquela disciplina de pós-graduação de economia solidária na USP - foram os expositores e, em decorrência, autores da primeira publicação gerada a partir do evento[2]. O economista da PUC chamou atenção para o papel que Singer exercia de renovar o debate socialista. Ressaltou ainda a fácil aceitação na esquerda das ideias contrárias ao socialismo, a necessidade de posicionamento crítico às históricas experiências socialistas e a distinção entre a chegada ao poder político e o alcance do socialismo (Machado, 2000, 51-64).

Para Paul Singer a possível e perene passagem do capitalismo para o socialismo foi um constante tema de reflexão aprofundada, rejeitando, desde sempre, alternativas antidemocráticas, consideradas por ele, em si mesmas, paradoxais. A ideia marxiana da “ditadura revolucionária do proletariado” (Marx, 2012) era por ele enfaticamente rejeitada, não só por uma questão de princípio, mas também por entendê-la como um caminho simplesmente ineficaz. Isto porque, a seu ver, a conquista do socialismo autêntico e efetivo não decorre de processo rápido, próprio de revolução política - ou eleição, evidentemente - mas sim de um processo lento e inerente a uma “revolução social” (Singer, 1998). Voltarei, mais adiante, a esse ponto.

O professor de economia da USP foi, desde bastante jovem, um crítico convicto do modelo de pensamento e de militância política que vislumbra a conquista e preservação do socialismo a partir de procedimentos violentos, autoritários, verticalizados e altamente centralizados. Tal crítica se fez presente também na análise, a partir de parâmetros econômicos, do governo soviético, modelo que se generalizou nos demais países geridos conforme o princípio do “partido único” e pela diretriz do “socialismo real” ou “científico” em intolerante contraposição à do chamado socialismo utópico (Buber, 1945). Ao longo do tempo, o governo centralmente planejado e conduzido, e a estatização quase absoluta se mostraram economicamente inviáveis e politicamente rejeitados, dadas as práticas opressivas e de cerceamento da liberdade de expressão.

Singer destaca o fato de ter sido somente no seu último ano de vida (1923) que Wladimir Lenin reconheceu, em um artigo publicado, o equívoco que havia sido entregar a direção das fábricas russas a indivíduos ex-capitalistas e especialistas técnicos, em detrimento de sindicalistas e dos operários mais experientes das fábricas, contando com a participação dos demais, formando cooperativas (Singer, 2000, p. 20-23). Tal análise e crítica o professor faria também em relação ao Chile do breve governo socialista, entre 1970 e 1973, de Salvador Allende (Singer, 2018, p. 75-76).

Era preciso, portanto, reavaliar criticamente e de modo detido a maneria como o socialismo foi compreendido, buscado e erroneamente vivido nos países sob a liderança da então União Soviética. Tratava-se de um desafio, eminentemente, teórico este de, a partir de bases firmes, “repensar o socialismo” (Singer, 1998). A partir de tal reflexão madura se faz possível a  sólida busca do socialismo, que, conforme reiterava Singer, não é verdadeiro sem democr

acia, enfatizando que esta não poderia ser apenas política e formal, mas, precisaria ser também econômica e social.

 

3 CAMINHOS PARA A CONQUISTA DO SOCIALISMO

Nessa chave teórica da imprescindível conexão profunda entre socialismo e democracia, em termos, não apenas políticos, mas necessariamente econômicos também, é que se pode abordar as maneiras através das quais Paul Singer vislumbrou a busca do socialismo. Pensava ele que o Estado prossegue tendo fundamental importância, sendo um poderoso, porém insuficiente indutor de tal busca, dado o inescapável papel exercido pelas organizações da sociedade civil, quando participativamente conduzidas. Nesta perspectiva, a edificação socialista e democrática, de fato, apenas pode ocorrer se feita, gradualmente, de baixo para cima, na sociedade, mediante o convencimento e a livre adesão das pessoas.

A partir da constatação feita em relação às experiências dos países que seguiram o modelo soviético, Singer afirmava categoricamente que o socialismo democrático não resultaria tão somente da conquista de governos de países, mas sim da combinação de robustas políticas públicas nacionais com a imprescindível articulação dos trabalhadores em suas organizações, inclusive e necessariamente as econômicas, conduzidas por eles próprios, ou seja, autogeridas. Esta é a alma da economia solidária, tão valorizada por ele, que recupera princípios do pioneiro cooperativismo europeu do século XIX (Singer, 1998, p. 99-105).

A economia solidária é algo a que Paul Singer dedicou intensamente as três últimas décadas de sua vida, atuando como professor na USP, proferindo palestras e participando de atividades várias, bem como publicando trabalhos importantes a respeito (Singer, 2002 e 2018) e conduzindo a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, durante os governos Lula e Dilma Rousseff, entre 2003 e 2016. O conjunto de iniciativas coletivistas de produção, comércio, consumo, poupança e crédito é pautado por princípios igualitários e democráticos, abrangendo cooperativas, empresas recuperadas ou em reabilitação de processos falimentares, pequenos empreendimentos associativos (pré-cooperativas), bancos comunitários e associações locais de troca de mercadorias e serviços mediante o uso de uma moeda social própria (Singer; Souza, 2000; Cattani, 2003; Souza; Lussi; Zanin, 2020).

 No pensamento de Singer (1998, p. 122), a cooperativa autogestionária constitui um “implante socialista” na sociedade capitalista. Trata-se de algo que, necessariamente, atua no mercado, mas tem uma lógica e uma organização interna, que se pode dizer, contrárias à capitalista[3]. Ele elaborou tal conceito vislumbrando o modo como o socialismo democrático poderia ser construído, aos poucos, nos poros ou interstícios do capitalismo, algo, que, evidentemente, ganha escopo através do apoio concreto e robusto do poder público em âmbitos: federal, estadual e municipal. Em suas aulas, costumava apontar como outro exemplo de implante socialista o orçamento participativo. Experiência genuinamente nascida no Brasil, ganhando visibilidade, a partir de 1989, especificamente na cidade de Porto Alegre, então administrada por Olívio Dutra, do PT (Dutra; Benevides, 2001; Santos, 2002; Oliveira, 2016). De Porto Alegre a experiência do orçamento participativo se espraiou para algumas outras grandes cidades brasileiras, que também contavam com governos progressistas[4] e, principalmente, para cerca de mil e quinhentos municípios de outros países, abrangendo as Américas e a Europa, com destaque para os territórios que compõem o Reino Unido (Bateman, 2019).

Nas aulas de economia solidária de Paul Singer na USP, ele ressaltava que a busca do socialismo deveria passar, necessariamente, pela democratização das organizações não apenas econômicas, mas de várias outras dimensões da vida em sociedade. Isso, evidentemente, diz respeito à disposição participativa e à capacidade comunicativa (Habermas, 1994) dos integrantes delas na busca da profunda prática democrática. Foi com essa perspectiva que ele pensou a formação de “parlamentos econômicos”, que seriam instituições nas quais governos, empresas e trabalhadores pudessem propor e debater planos e propostas, buscando um denominador comum (Singer, 2000). Isso lembrou, de alguma maneira, a experiência, também brasileira, da câmera setorial automotiva, que envolveu, entre 1991 e 1993, empresas, governos: federal e estadual, e o Sindicato dos Metalúrgicos dos ABC Paulista  (Martin, 1996; André Singer, 2022, p. 19). Embora o uspiano professor de economia não tenha feito tal registro em publicações, pode-se dizer - a partir das suas ricas aulas proferidas - que a proposta de câmeras setoriais também constitui um exemplo de implante socialista.

Seguindo essa mesma lógica podem ser elencadas algumas outras práticas, experiências e propostas que apontam, de algum modo, para a edificação do socialismo democrático, dado o fato de ensejarem a fundamental democratização (distribuição concreta) de recursos públicos em prol das pessoas necessitadas. Queria aqui chamar atenção para a histórica bandeira da reforma agrária, corajosamente empunhada no Brasil pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a renda básica da cidadania, que tem como grande defensor no país o amigo de Paul Singer e também economista, Eduardo Suplicy (2013).

A busca dessa forma elevada de socialismo passa verdadeiramente pela democratização do funcionamento das instâncias de Estado e dos órgãos governamentais, algo que implica na recriação, diversificação e robusto fortalecimento institucional dos conselhos responsáveis por proposição e acompanhamento de políticas públicas, compostos por representantes da sociedade civil organizada. Envolve necessariamente também a criação, ampliação e o aprofundamento dos processos de funcionamento de conferências e consultas populares sobre políticas que ditam os rumos da vida em sociedade.

Por fim, cabe destacar o potencial e o papel da economia solidária na construção do socialismo democrático. Isso diz respeito, em primeiro lugar, à formação do máximo de empreendimentos econômicos desse tipo, ou seja, pautados pelos princípios da autogestão. Tal processo pode se dar através da recuperação, ampliação e fortalecimento - mediante políticas públicas condizentes - das organizações da sociedade civil voltadas para essa prática, algo que abrange: universitárias incubadoras de cooperativas populares; entidades ligadas a sindicatos e instituições religiosas, além de comprometidas organizações não governamentais.

Para que a economia solidária se desenvolva é imprescindível haver fartas e favoráveis linhas de crédito para seus empreendimentos, oferecidas por bancos públicos, que, aliás, precisarão deixar de funcionar, na prática (em grande medida) como bancos privados, conforme a lógica do mercado de crédito. Isto, evidentemente, decorre de firmes: decisão e vontade políticas. Em consonância com isso será muito importante avançar na linha da democratização das finanças no país através de mudanças legislativas e de políticas voltadas à ampliação e ao fortalecimento de cooperativas de crédito e bancos comunitários (Segundo; Magalhães, 2009; Magri et al, 2010). Cabe lembrar que estes são responsáveis por moedas sociais que circulam em suas respectivas cidades e regiões, assim como pelo recebimento de contas de consumidores (como água e luz) e pela operação, na ponta, de programas de transferência de renda, algo que ocorre no município fluminense de Maricá, por exemplo, e que pode se espalhar nacionalmente.

Outras duas medidas para o desenvolvimento da economia solidária merecem ser aqui mencionadas. A primeira diz respeito à priorização real das compras públicas - por parte de governos: municipais, estaduais e o federal - de mercadorias e serviços produzidos por empreendimentos econômicos autogestionários (Dagnino, 2020). Isto, evidentemente, passa por efetivas mudanças legislativas e normativas, bem como pelo efetivo compromisso dos mandatários de cargos executivos e de inúmeros gestores públicos atuantes nos três níveis de governo do país. Já a segunda se refere ao estímulo concreto, também da parte de governos, para que tais empreendimentos autogestionários, atuantes em vários ramos, se articulam não apenas de maneira política, mas também econômica, de modo a constituírem entre si, nos diferentes ramos em que atuam, uma robusta intercoperação econômica (Souza; Augusto Júnior, 2020, p. 17-18).

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos através deste modesto artigo que Paul Singer, desde sua juventude, concebeu o socialismo como algo indissociável da democracia, entendendo ele não ser possível chamar de ‘socialismo real’ aquele que não foi e não é democrático. Isto porque, conforme seus escritos, suas colocações verbais não publicadas em textos (sobremaneira em suas aulas) e a sua práxis, a democracia aprofundada é o que, necessariamente, qualifica a proposta e a prática do socialismo.

Singer analisou e discorreu sobre os equívocos políticos e econômicos da experiência socialista conduzida e liderada, no mundo, pela antiga União Soviética. Chamou atenção para o fato de seu primeiro líder, Lênin, ter reconhecido, já no final da vida, o equívoco quanto à prescrição do modo como as empresas daquele país, no pós-revolução de 1917, deveriam ser geridas, porém, infelizmente, não tendo mais tempo nem forças para implementar a necessária correção de rumo. Lamentavelmente, o padrão verticalizado não participativo, tanto da administração pública quanto da gestão das empresas e instituições, se generalizou nos demais países, sendo entendido como experiência concreta do “socialismo real” e mantido à custa de medidas autoritárias e repressivas.

O dedicado professor de economia uspiano se contrapôs, ao longo da sua vida, à disseminada concepção equivocada - e ainda bastante arraigada - de socialismo. Fez tal reflexão, com destaque, a partir do significado histórico da economia solidária, enquanto parte da revolução social lenta rumo ao socialismo democrático (Singer, 1998). O empreendimento de economia solidária é, como ele próprio dizia, um implante socialista, tal como outros (discutidos um pouco neste artigo) presente na sociedade capitalista, mas em relação antagônica com ela. Paul Singer tinha firme a ideia que seu grande amigo Antonio Candido (2000, p. 10) apontou, qual seja: a de ser o socialismo democrático uma “bussola ideológica” pela qual os governos populares de esquerda devem realmente se orientar. Que isso venha a ocorrer, firme e decididamente.

 

REFERÊNCIAS

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[1]Doutor em sociologia pela USP e professor adjunto de sociologia do Departamento de Sociologia da UFSCar

[2] Tive o privilégio de presenciar tal encontro na Sede Nacional do Partido dos Trabalhadores, em São Paulo, que contou com comentários, também registrados na publicação, de: Aldo Fornazieri, Eduardo Suplicy, Max Altman, Arlindo Chinaglia, Fernando Haddad, Lula, e José Genoíno.

[3] Ao lado do empreendimento de economia solidária, Paul Singer (1998, p. 121), apontou como exemplo de implante socialista o seguro social público, que foi uma conquista história dos sindicatos europeus.

[4] Por ordem decrescente de população eis os maiores municípios brasileiros que tiveram tal experiência: Recife, Belém, Belo Horizonte, Guarulhos, São Bernardo do Campo, Aracaju, Blumenau, Olinda, Vitória da Conquista e Santo André.