INTRODUÇÃO ECOLOGIA POLÍTICA, CONFLITO SOCIOAMBIENTAL E RESÍDUOS SÓLIDOS NA AMAZÔNIA

inovação sociopolítica como síntese das tensões no caso do Aterro Sanitário de Marituba

André Farias[1]

Universidade Federal do Pará

andrefarias@ufpa.br

Diana Dias[2]

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará

diana.luz@ifpa.edu.br

Ronaldo Mendes[3]

Universidade Federal do Pará

rmendes@ufpa.br

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Resumo

A questão dos resíduos sólidos se tornou uma problemática ambiental planetária. No Brasil e na Amazônia, só uma parte das cidades possui aterros sanitários como destinação final. Entretanto, muitos não seguem os preceitos ambientais preconizados na legislação, levando contaminação ambiental às comunidades que os rodeiam e produzindo conflitos. Nesse contexto, este trabalho objetiva compreender os conflitos socioambientais existentes entre o Aterro Sanitário de Marituba e a Comunidade Quilombola do Abacatal, bem como analisar as estratégias de resistência da comunidade como instrumento de inovação e colaboração para política ambiental. A metodologia parte da abordagem da ecologia política, utilizando o conceito de conflito socioambiental, consubstanciando em pesquisa qualitativa, com utilização de levantamento bibliográfico, análise documental e trabalho de campo. Foi verificado que o conflito socioambiental gerado pelo mau funcionamento do aterro sanitário foi predominante, demonstrando um tipo de desigualdade ambiental, onde a população tradicional quilombola e moradores pobres da periferia de |Marituba e Ananindeua sofrem os maiores danos e riscos sobre seu modo de vida. Além de identificar as formas de resistência e luta por justiça ambiental como processo inovador de melhoria na gestão de resíduos na Região Metropolitana de Belém (RMB).

Palavras-chave: conflitos socioambientais; resíduos sólidos; Quilombo do Abacatal; Região Metropolitana de Belém.

 

 

 

 

 

 

 

 

POLITICAL ECOLOGY, SOCIO-ENVIRONMENTAL CONFLICT AND SOLID WASTE IN AMAZONIA

socio-political innovation as a synthesis of tensions in the case of the Marituba landfill

 

Abstract

The issue of solid waste has become a planetary environmental problem. In Brazil and in the Amazon, only a part of the cities have sanitary landfills as final destination. However, many of them don’t follow the environmental rules recommended by the legislation, causing environmental pollution to the surrounding communities and generating conflicts. In this context, this work aims to understand the existing socio-environmental conflicts between the Marituba landfill and the quilombola community of Abacatal, as well as to analyze the community's resistance strategies as an instrument of innovation and cooperation for environmental policies. The methodology is based on the political ecology approach, using the concept of socio-environmental conflict, substantiated in qualitative research through a bibliographic survey, document analysis and field work. It was verified that the socio-environmental conflict generated by the malfunctioning of the landfill is predominant. It reveals a type of environmental inequality in which the traditional quilombola population and the poor residents of the suburbs of Marituba and Ananindeua suffer the greatest damage and risks to their way of life. In addition to identifying the forms of resistance and struggle for environmental justice as an innovative process to improve waste management in the Metropolitan Region of Belém (RMB).

Keywords: socio-environmental conflicts;  solid waste; Quilombo of Abacatal; Metropolitan Region of Belém.

 

1  INTRODUÇÃO

Em tempos de pandemia, guerras e crise ambiental, o modelo econômico de produção e consumo hegemônico continua baseado na exploração predatória de recursos naturais e produção de mercadorias, gerando resíduos em grandes proporções. No Brasil, a produção de resíduos sólidos aumenta de forma exponencial, razão pela qual estão sendo criados os aterros sanitários, os quais, conforme prevê a Lei n.º 12.305/2010 (Brasil, 2010), que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).

Na Amazônia, uma das formas de manifestação deste fenômeno é a presença de Grandes Projetos. A atuação predatória destes, corroborados pela gestão pública ineficiente, tem trazido consequências negativas à dinâmica rural e urbana, como a expressiva quantidade de resíduos gerados pelas atividades industriais, comerciais e domésticas. Portanto, a questão da destinação final tem se constituído num problema central, motivando diversas inovações e conflitos, como as produzidas pelo Grande Projeto Urbano (GPU) do Aterro Sanitário de Marituba (ASM), localizado na Região Metropolitana de Belém (RMB).

Nesse contexto, Marituba foi a cidade da RMB[4] escolhida para receber os resíduos sólidos da região e, com o fechamento do “Lixão do Aurá”, passou a sediar o Centro de Tratamento e Processamento de Resíduos (CTPR-Guamá), doravante denominado de Aterro Sanitário de Marituba (ASM). Este deveria se constituir numa inovação em termos de gestão ambiental. Contudo, produziu novas e contraditórias transformações ecológicas no espaço urbano. Seguindo nesta lógica, Silva, Mercante e Silva (2012, p. 87) afirmam que:

O processo de modernização, muitas vezes comandado por grandes empresários e ou/investidores locais ou regionais, tem promovido profundas alterações na dinâmica dos espaços urbanos ou rurais. Tais processos têm sido promovidos por uma política de incentivos aos grandes empreendimentos, os quais alteram a fisionomia das cidades, quer sejam pequenas, médias ou grandes.

Para a instalação deste GPU, foram desconsiderados muitos fatores. Em primeiro lugar, o local é próximo ao centro urbano da cidade, que está em expansão contínua; além disso, existe uma Unidade de Conservação (UC)[5] nas imediações e, principalmente, existe uma comunidade quilombola secular vivendo no local. Esta comunidade compõe o território quilombola do Abacatal, sofrendo os danos e riscos socioambientais, como a possível contaminação dos corpos hídricos e do ar (Bahia; Leal, 2018). Estes danos ambientais têm provocado tensões constantes. Assim, indaga-se, como problema científico a ser respondido pelo artigo: o conflito socioambiental no caso do Grande Projeto Urbano do Aterro Sanitário de Marituba pode ser considerado como processo inovador?

O artigo apresenta ineditismo e relevância tanto por considerar conflito socioambiental na perspectiva crítica da ecologia política como possível processo inovador, mas também pela contribuição na pesquisa qualitativa sobre questões ambientais, pois está consubstanciado em trabalho de campo junto à Comunidade Quilombola do Abacatal e ao Aterro Sanitário de Marituba, onde foram feitas observações, gravações de áudio e entrevistas semiestruturadas com o intuito de compreender tanto a manifestação do conflito, quanto sua essência. Para isso, foi imperiosa a participação nas passeatas e mobilizações, nas audiências públicas e nas reuniões do Movimento Social Fora Lixão, da Comissão Externa da Câmara e do Ministério Público de Marituba.

O desenvolvimento do artigo está dividido em duas partes principais, com exceção desta introdução e da conclusão. A primeira parte apresenta a ecologia política e o uso do conceito de conflito socioambiental como instrumentos de análise teórica. No segundo momento, é analisado o conflito socioambiental em suas diversas dimensões, buscando compreender a relação dos sujeitos envolvidos e como este processo pode se constituir em inovação e melhoramento da política pública de resíduos sólidos na RMB.

 

2  ECOLOGIA POLÍTICA E CONFLITO SOCIOAMBIENTAL: PARA COMPREENDER PROCESSOS DE INOVAÇÃO SOCIOPOLÍTICA

O artigo adota a abordagem da ecologia política e o conceito de conflito socioambiental como guia teórico, pois o campo da ecologia política analisa como as relações de poder promovem formas de desigualdade ambiental, refletindo-se em fardo desproporcional, em termos de danos e riscos ambientais, sobre os diversos grupos humanos. Essa distribuição ecológica assimétrica gera o conflito socioambiental, fazendo emergir novos processos de luta social que buscam a garantia de direitos (Martínez Alier, 2018).

Martínez Alier (2018) afirma que a ecologia política tem assumido como foco o estudo dos conflitos ecológicos distributivos, aqui denominados de conflitos socioambientais. Para o autor, a distribuição ecológica está relacionada:

Aos padrões sociais, espaciais e temporais de acesso aos benefícios obtidos dos recursos naturais e os serviços proporcionados pelo ambiente como um sistema de suporte da vida. Os determinantes da distribuição ecológica são em alguns casos naturais, como o clima, topografia, padrões pluviométricos, jazidas de minerais e a qualidade do solo. No entanto, também são claramente sociais, culturais, econômicos, políticos e tecnológicos (Martínez Alier, 2018, p. 113).

A Ecologia Política se diferencia de outras abordagens teóricas por ancorar seu objeto de estudo nas questões políticas relacionadas às estratégias de poder que transcendem o arcabouço puramente biológico (Leff, 2016). No caso do conflito socioambiental produzido pelo ASM, o grupo empresarial não sofre os danos e riscos, na mesma proporção, que os quilombolas e moradores da periferia de Marituba e Ananindeua, e os determinantes desta distribuição ecológica desigual são econômicos, políticos, tecnológicos e culturais.

A ecologia política tenta apontar caminhos para superar a crise ambiental, também expressa na questão dos resíduos sólidos, buscando novas formas não predatórias de se pensar o mundo (Leff, 2016). Partindo dessa premissa, Leff (2009, p. 42) pontua que:

A devastação dos recursos naturais e seus efeitos nos problemas ambientais globais (perdas de biodiversidade, desmatamento, contaminação da água e solo, erosão, desertificação e, inclusive, a contribuição da América Latina ao aquecimento global e diminuição da camada de ozônio), são em grande parte consequência dos padrões de industrialização, centralização econômica, concentração urbana, capitalização do campo, homogeneização do uso do solo e uso de fontes não renováveis de energia.

Assim, como síntese dos conflitos socioambientais pode emergir uma nova racionalidade ambiental, aqui compreendida como um processo inovador. Portanto, para Leff (2016, p. 246), “a ecologia política se estabelece como campo onde convergem o real, o simbólico e o imaginário; onde se hibridizam as ordens ecoculturais e tecno-econômicas na complexidade ambiental”.

No caso do conflito socioambiental produzido pelo ASM, as dimensões são econômicas, sociais e naturais, permeadas por uma relação dialética entre elas, podendo produzir efeitos inovadores na gestão de recursos naturais, pois, conforme a compreensão de conflitos socioambientais de Little (2001, p. 136), o processo é híbrido e dinâmico:

Disputas entre grupos sociais derivadas dos distintos tipos de relação que eles mantêm com seu meio natural. O conceito socioambiental engloba três dimensões básicas: o mundo biofísico e seus múltiplos ciclos naturais, o mundo humano e suas estruturas sociais, e o relacionamento dinâmico e interdependente entre esses dois mundos.

Em última instância o que está em disputa é uso e gestão do território. Contudo, em se tratando da questão da destinação final e tratamento dos resíduos sólidos, é necessário levantar a problemática do consumo, visto que está diretamente ligada à geração de resíduos. O consumo massivo, inerente ao modo de produção capitalista, tem gerado uma irrefutável pressão sobre os recursos naturais, os quais são finitos e têm sido explorados em ritmo cada vez mais acelerado desde a Revolução Industrial, até chegar à dinâmica atual da globalização.

Segundo Martínez Alier (2018), este crescimento exacerbado da economia tem impactado diretamente os ecossistemas e prejudicado a sua capacidade de resiliência, ou seja, o ritmo de exploração é maior do que a capacidade de reposição desses recursos, visto que a natureza tem a sua própria dinâmica ecofisiológica: ela não “trabalha” como uma linha de produção. Esse raciocínio serve também para os dejetos, rejeitos e resíduos.

Nesta lógica, Cavalcanti (2012, p. 40) afirma que:

A economia moderna faz, na verdade, em última análise, é cavar um buraco eterno que não para de aumentar (extração de matéria e energia). Cumprido o processo do transumo, os recursos terão virado inevitavelmente dejetos – matéria neutra, detritos, poeira, cinzas, sucata, energia dissipada – que não servem para quase absolutamente nada. Amontoam-se formando um lixão, também eterno, que não para de crescer. Assim, a extração de recursos e a deposição de lixo deixam como legado uma pegada ecológica cada vez maior.

Há diversos danos socioambientais ocasionados pela disposição final inadequada dos resíduos sólidos (De La Torre, 2009), podendo ser agravados pela ineficiência, desvirtuamento ou desestruturação de políticas públicas, em particular em Estados conservadores e antidemocráticos, como recentemente foi percebido no Brasil, no período de 2017-2022 no caso da extinção do Ministério das Cidades e fragilidade da política ambiental urbana. Outrossim, em regiões como a Amazônia, historicamente subordinada e dirigida pelas oligarquias locais, a fragilidade da gestão pública ajustada à realidade local é acompanhada do distanciamento entre Estado e sociedade civil.

Estes danos ambientais, mediados por relações assimétricas de poder, produzem formas de resistência que conformam o campo da justiça ambiental.  O Movimento de Justiça Ambiental teve sua gênese a partir dos anos 1960 nos Estados Unidos, em decorrência das lutas das populações negras e mais pobres que tinham constantemente os seus direitos civis violados e que recebiam em seus territórios toda a sorte de rejeitos e lixos tóxicos. Nesse contexto, surgiu o termo denominado “Zona de Sacrifício”, que é utilizado para designar localidades em que se observa uma superposição de empreendimentos e instalações responsáveis por danos e riscos ambientais (Viégas, 2006). É possível conceber o território quilombola do Abacatal como uma zona de sacrifício?

Por outro lado, os resultados do conflito socioambiental, manifestado em formas de organização e mobilização da comunidade quilombola do Abacatal e do movimento Fora Lixão frente ao ASM, podem representar processos colaborativos e inovações sociopolíticas que ajudem na reformulação e fortalecimento da política ambiental ou até mesmo possibilitem reforçar identidades territoriais. O conflito socioambiental pode ser compreendido como elemento determinante de processos inovadores?

3  CONFLITO SOCIOAMBIENTAL E GESTÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS NA RMB: TERRITÓRIO EM DISPUTA, DIMENSÕES E PROCESSOS DE INOVAÇÃO SOCIOPOLÍTICA

Compreender o conflito ambiental como uma inovação sociopolítica significa assumir a dialética como um processo de aprendizagem. Entre a produção de resíduos e o descarte final, há níveis de consumo, desde os recursos naturais e incorporação do trabalho até o estilo de consumo e consciência ambiental. Isto implica problematizar a gestão dos resíduos sólidos no território e elucidar as dimensões do conflito.

 

3.1  USOS E DISPUTAS DO TERRITÓRIO: RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS DE PODER E DESIGUALDADE AMBIENTAL

O conflito socioambiental produzido por este GPU tem como pano de fundo a disputa pelo território e diferentes formas de uso dos recursos naturais, principalmente, terra e água, e destinação de resíduos, entre a planta industrial do ASM e a comunidade do território quilombola e moradores da periferia de Marituba. Portanto, como já apontado pela ecologia política, são “disputas entre grupos sociais derivadas dos distintos tipos de relação que eles mantêm com seu meio natural” (Little, 2001, p. 136).

Por sua vez, a comunidade quilombola do Abacatal está localizada em Ananindeua (PA), município estratégico e contíguo à Belém, capital do estado. O território quilombola do Abacatal é majoritariamente composto por mata secundária (Sirotheau, 2012). A Figura 1 apresenta o mapa de localização, com destaque para a Bacia Hidrográfica do rio Uriboquinha.

A Figura 2 apresenta a localização do aterro, o qual se encontra em meio a uma extensa área de floresta. Tal área se trata da Reserva da Vida Silvestre, modalidade de Unidade de Conservação.

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 1 – Mapa de localização da Comunidade Quilombola e Bacia Hidrográfica do rio Uriboquinha

Descrição: Mapa

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Elaborada no Laboratório de Análise Ambiental e Cartográfica (LARC), NUMA/UFPA.

Figura 2 – Central de Processamento e Tratamento de Resíduos Urbanos (CPTR) em Marituba, Estado do Pará

Descrição: Vista aérea de uma cidade

Descrição gerada automaticamente

Fonte: G1 PA (2019).

Assim, a distribuição ecológica de danos e riscos produz o conflito socioambiental analisado, que por sua vez possui várias dimensões (Martínez Alier, 2018), determinadas pela força do mercado, ao se apropriar dos recursos naturais e despejar resíduos tóxicos no território. Os riscos ambientais se expandem para toda a RMB, mas a contaminação dos recursos hídricos merece aprofundamento da pesquisa quanti e qualitativa. Entretanto, é possível afirmar que existe um nível de risco na contaminação das águas subterrâneas (Bahia; Leal, 2018) e efeitos negativos sobre a população local pelo contato com as águas superficiais, pois atingem os quilombolas que habitam na área contígua.

 

3.2  A DIMENSÃO DOS USOS DISTINTOS E CONTROLE SOBRE A TERRA

A comunidade quilombola do Abacatal vem resistindo há muito tempo contra os mais diversos tipos de ataques contra a posse de suas terras. Para que pudessem permanecer no território que lhes pertence de direito, ocorreram muitos conflitos com outros atores sociais interessados neste recurso. A ameaça sobre o modo de vida ancestral dos que lá habitam é histórica (Sousa, 2018). Segundo Soffiatti (2014, p. 17):

A partir de 1970 a valorização das terras no entorno do quilombo criou outras pressões que contribuíram para a degradação do território quilombola. O domínio das terras do Abacatal — pretendido por particulares e pelo Estado — tem razões econômicas associadas à expansão urbana da RMB: ao iniciar o século XX o quilombo possuía madeiras de interesse comercial, fontes de água e matas de várzea e igapó bem preservadas que tornaram seu território fonte de recursos para as populações que iniciavam a ocupação da região. Ao final do século XX, o espaço no entorno do quilombo tornou-se fonte para a construção civil e destino para detritos urbanos, orientação herdada do modo colonial de ocupar o território, desprezando e destruindo o patrimônio preexistente, de base natural, para incorporar recursos locais aos processos urbanos.

Após séculos de luta, somente em 2 de dezembro de 2008 é que a comunidade conseguiu a titulação de suas terras. Houve, assim, o que Little (2001) denominou de dimensão jurídica do conflito em torno do controle dos recursos naturais, expressa por meio das disputas do controle formal sobre os recursos. Agora a luta é contra a apropriação privada do mercado imobiliário e, principalmente, pelo ASM na expansão das células de “tratamento”.

Por sua vez, o uso da terra pelos quilombolas está associado ao plantio de hortas e espécies frutíferas, criação de pequenos animais e plantação de mandioca para a produção de farinha. Este uso ainda guarda elementos rituais e religiosos de respeito à resiliência do meio ambiente. Portanto, enquanto a empresa disputa a posse da terra para implementar seu empreendimento financeiro, a comunidade quilombola trabalha a terra como elemento natural intrínseco à conservação e à vida. A racionalidade ambiental se confronta com a racionalidade econômica em concepções, práticas e usos diferenciados da terra.

 

 

 

3.3  A DIMENSÃO DA DISTRIBUIÇÃO DESIGUAL DOS DANOS E RISCOS AMBIENTAIS

A dimensão do conflito produzida pelos danos e riscos socioambientais é determinante no estágio atual, principalmente pelo deslocamento do local da destinação final dos resíduos de Ananindeua para Marituba. Anteriormente na RMB, houve uma luta constante contra o funcionamento do Lixão do Aurá, em Ananindeua. No ano de 2009, o Ministério Público, após pressões da sociedade, solicitou ao Instituto Evandro Chagas um estudo para avaliar os impactos causados às comunidades circunvizinhas ao empreendimento; os resultados apontaram para a total ausência de regulamentação por parte do Estado e a ocorrência de mudanças ambientais e econômicas significativas provocadas pelo Lixão (Soffiatti, 2014).

A degradação dos ecossistemas é vinculada aos processos de contaminação dos recursos naturais tanto pelo Lixão do Aurá, quanto pelo ASM, evidenciando que, para os moradores, ambos empreendimentos são vistos como Lixões e causariam danos:

O Lixão de Marituba tá sendo pior pra gente que o Lixão do Aurá, porque no Lixão do Aurá nós só fomos sentir as consequências em vinte anos praticamente, mas aqui no de Marituba em três anos já tá desse jeito: insuportável de viver! (Moradora 1, 2020, grifo nosso).

A gente não foi a favor da instalação do Aterro, porque a gente já tinha sofrido muito com o Lixão do Aurá e a gente sabia que o de Marituba seria a mesma coisa, que não ía funcionar como Aterro e sim como Lixão, como tá acontecendo (Moradora 2, 2020).

De acordo com Sousa (2018), os problemas enfrentados pela comunidade são inúmeros:

Os impactos que são direcionados dentro do quilombo atingem diretamente população, primeiro com a abertura de estradas que termina dentro da comunidade. No percurso da via de acesso, existem vários “curvões”, resultado das atividades de mineração para extrair areia e argila, causando perda de cobertura vegetal e prejudicando os lençóis freáticos da população. Outra realidade muito presente é a violência que causa grande complexidade na vida da comunidade, tudo isso aumentou pelo número de condomínios no entorno do quilombo. Entretanto, além da violência existe também um outro agravante que é a poluição do rio Uriboquinha, que segundo os moradores locais poluem o rio, uma vez que não há nenhum tipo de tratamento, o lixo ao céu aberto e a tubulação visível, causando danos a população e ao meio ambiente (Sousa, 2018, p. 24).

Assim, os fatores da desigualdade ambiental são vários. As causas de contaminação do meio ambiente são muitas e geram impactos negativos diferenciados nas populações do ambiente onde ocorre (Little, 2001).  Contudo, o fator determinante de danos e riscos tem sido o mau funcionamento do ASM.

Em conjunto com a população e as entidades sociais, como a Associação de Moradores e Produtores de Abacatal e Aurá (AMPQUA), produziu-se um Protocolo de Consulta. De acordo com Sousa (2018, p. 23), esse documento foi “aprovado em assembleia geral no dia 10 de julho de 2017. Este recurso foi baseado na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que assegura o direito de serem consultados previamente”, representando uma grande conquista da comunidade, que se esforçou por vários meses para elaborá-lo. Neste trecho do Protocolo, a insatisfação com o Aterro Sanitário é latente:

Vivíamos em paz, mas eis que chega o “progresso”, a urbanização que exclui, e com isso sofremos toda sorte de mazelas e de ameaças à nossa comunidade. Nossas terras já foram invadidas, vendidas e nossas casas derrubadas. Lutamos, resistimos, vencemos. Agora nossos igarapés e o ar que respiramos estão poluídos pelo aterro sanitário (que pra nós é um lixão) e pelo despejo de esgotos de condomínios. Na estrada que dá acesso à nossa comunidade retiram aterro e depositam lixo às suas margens. Estamos resistindo e não iremos ser derrotados (AMPQUA, 2017, p. 2, grifo nosso).

 Aqui os danos e riscos estão associados à contaminação hídrica e poluição do ar, pois o regime de ventos leva o odor pútrido das células de tratamento para o quilombo, conforme atesta uma quilombola:

Eu tenho certeza que tá poluindo, principalmente o ar, meu Deus eu fico aqui pensado o que será de mim? eu não sinto vontade de comer, cada dia eu tô emagrecendo, e eu tenho o estômago sensível, aí eu não posso sentir coisa de fedor, tem gente que aguenta, mas eu não, eu baldio, então quando é de manhã tem dia que eu não tomo café e meu netinho diz – vó, toma café, por que tu tá vomitando vovó? Aí eu digo – É por causa do fedor do Lixão meu filho. Aí ele diz - Fecha o nariz vovó! Então é horrível, o fedor é insuportável, eu mesmo principalmente sinceramente tenho passado muito mal, até problema de canseira que eu não tinha, eu tenho hoje em dia, as crianças, coceira, problema de asma, de eu ficar cansada, então tudo foi por causa desse Lixão! (Moradora 3, 2020, grifo nosso)

Os resíduos também são despejados no igarapé Uriboquinha, que antes servia a comunidade em usos produtivos, domésticos, práticas de lazer e rituais religiosos e agora gera preocupação e medo, conforme depoimentos dos moradores:

Eu nunca fui a favor da instalação do Aterro Sanitário e não conheço uma pessoa aqui que tenha sido a favor desse Lixão, porque pra nós não é um Aterro é um Lixão e eu fui contra por que ele foi instalado próximo do Igarapé Uriboquinha né! que é um igarapé que desagua no rio Guamá e passa por dentro da comunidade e que é o único ponto de lazer que a comunidade tem. Os nossos jovens, as nossas crianças, é ainda o único lugar que elas podem se divertir né! E depois da instalação do Aterro, as pessoas ficaram preocupadas em frequentar o igarapé, algumas pessoas ficaram com medo de pescar também, por que além do ponto de lazer da comunidade é o único lugar que as pessoas pescavam, tiravam o seu alimento né! Aí depois do Lixão, a maioria das pessoas ficou com medo (Moradora 4, 2020, grifo nosso).

 

3.4  A DIMENSÃO DA INSTITUCIONALIDADE E DA POLÍTICA: EMPRESA, ESTADO E SOCIEDADE

O conflito socioambiental colocou frente a frente o proprietário do GPU, instituições do Estado e grupos e movimentos sociais. Este processo é contraditório, apontando de um lado problemas de funcionamento do grande projeto e negligência do Estado, mas de outro lado ações colaborativas entre a comunidade quilombola, movimento social e setores do judiciário, conformado numa relação colaborativa e inovadora no campo da justiça ambiental. 

A instalação do ASM foi marcada por diversas contradições, desde a realização das Audiências Públicas até o Processo de Licenciamento Ambiental realizado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS-PA). Para a implantação do aterro, foram realizadas um total de 6 (seis) audiências públicas com os municípios pertencentes à Região Metropolitana, os quais seriam afetados diretamente pelo Aterro.

No entanto, alguns moradores do Abacatal afirmam que não foram informados sobre estas audiências; os que participaram, por sua vez, afirmam que a apresentação do Projeto pela empresa Guamá Tratamento de Resíduos[6] foi muito convidativa e que os representantes do empreendimento atestaram que não iriam causar impactos ambientais por ser um Aterro Sanitário e não um Lixão. Além disso, foi garantido aos moradores que as empresas responsáveis tinham experiência e respeito pelo meio ambiente; no entanto, Bonfim (2017, p. 8) afirma que:

Levou-se em consideração apenas o que os municípios indiretamente atingidos preferiam, pois foram desprezadas informações contidas no Estudo de Impacto Ambiental – EIA, consequentemente as repercussões negativas que o aterro sanitário poderia provocar, em especial, ao município e à população maritubense.

O processo de licença também é motivo de questionamentos, principalmente pelos integrantes do movimento Fora Lixão: por que se permitiu a instalação de um aterro tão próximo a um centro urbano? A comunidade do Abacatal não foi levada em consideração quando da escolha do local? Desconsiderou-se, ainda, a Reserva da Vida Silvestre, UC vizinha ao empreendimento? Assim, procurou-se o representante da SEMAS-PA, órgão que expediu as licenças necessárias para o funcionamento do empreendimento, questionando como se deu o processo de Licenciamento Ambiental do Aterro Sanitário de Marituba. Como resposta, a Semas declarou que:

O Aterro Sanitário foi licenciado, onde todo o rito de licenciamento foi cumprido, ele passou por um licenciamento onde se viu o raio de implantação desse aterro sanitário, se ele podia ser implantado ou naquela região ou não, os órgãos intervenientes como o Comando aéreo pela questão do Aeroporto, então a Guamá possuiu na época a anuência desse órgão, o Comaer [...] na época também tiveram as Audiências Públicas, nas Audiências Públicas tiveram as contribuições para as condicionantes de Licença, houve também apreciação pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente, o COEMA, não existia o Ideflor e também não existia o Plano Diretor da Revis da Amazônia, então ele pode ser implantado naquela área (Representante da SEMAS-PA, 2019, grifo nosso).

Além de evidenciar uma análise normativa com ênfase no rito processual, estas informações são contraditas pelo Movimento Fora Lixão ao levantar dúvidas sobre o processo, afirmando que o licenciamento foi fraudulento e apresentou irregularidades. Ainda nesta ocasião, foi solicitado a um integrante do Fórum Permanente Fora Lixão (FPFL) que ele explicasse o motivo dessa afirmação, ao que explanou que:

São inúmeras as denúncias, mas existe uma ação popular que tramita na comarca de Marituba onde a Procuradora Geral na época que deu a Certidão de Uso e Ocupação do solo, onde está o empreendimento, não poderia ter feito isso. Porque pela Lei Orgânica do Município, emitir essa Certidão seria ato exclusivo do Prefeito, que na época era o Bertoldo Colto, então essa Certidão é uma premissa, ou seja, começa por ela o Licenciamento, então ela foi apresentada cerca de dois anos depois do início do Processo de Licenciamento na SEMAS, tendo uma Licença prévia já emitida mesmo com a falta desse documento que era fundamental [...] a outra foi que a Licença de Operação foi dada sem o empreendimento está instalado. Então foi permitido que funcionasse um Aterro Sanitário sem saber o que ele iria fazer com o chorume, que seria produzido e isso tá claro, houve denúncia e houve manifestação do secretário da época, que não era necessário a instalação das máquinas de osmose naquele momento, porque a produção seria insignificante de chorume e hoje nós temos 200 milhões de litros de chorume acumulados e fora que o Aterro está localizado na área de amortecimento da Revis (Representante do FPFL, 2019, grifo nosso).

Soma-se às denúncias do Movimento Fora Lixão, os autos de infração da própria SEMAS-PA (PARÁ, 2018). Em 2014, a empresa recebeu o auto de infração n.º 7129/2014, que deu origem ao Processo n.º 0008812-63.2017.8.14.0133, junto ao Ministério Público do Estado do Pará (MPPA). Nos autos consta que:

No dia 14/10/2014, foi lavrado o primeiro auto de infração, 7129/2014 GEFLOR, em desfavor da GUAMA LTDA, por ter desmatado sem autorização do órgão ambiental a quantia de 0,53 ha de área, em área de reserva legal, onde há o relevante interesse ambiental de preservar, sendo que a área desmatada trata-se de corredor criado da área de atividade do aterro sanitário até as margens do Igarapé "Pau Grande" para lançamento de efluentes, com a instalação do sistema de drenagem pluvial, não autorizado pela SEMAS PA, ainda antes do início da operação do CPTR - Marituba, crime este que foi objeto de denúncia pelo MINISTÉRIO PÚBLICO perante esta Vara Criminal, sob o número 0008812-63.2017.8.14.0133, onde foi imputado aos acusados a prática dos crimes descritos nos arts. 60 e 68 da Lei 9.605/98 (MPPA, 2019, grifo nosso).

Além deste, a empresa foi autuada mais de 40 (quarenta) vezes pelo Órgão Ambiental Estadual, somente entre os anos de 2014 e 2017. Assim, questionou-se o representante da SEMAS-PA sobre essa quantidade de Auto de Infrações vinculadas à empresa Guamá e sobre o não cumprimento das condicionantes da Licença Ambiental. À época, o representante confirmou os fatos com a seguinte declaração:

Ao todo nós temos em torno de 40 Notificações e 40 Autos de Infração e os principais pontos que não foram atendidos das condicionantes foram: cobertura dos resíduos; compactação deficiente dos resíduos para que eles não ocupassem uma área grande e isso se faz através dos equipamentos; o não tratamento do chorume pelas ETS que lá estavam, que é um sistema de osmose reversa, lançamento indevido do chorume, que seria o efluente nas canaletas (Representante da SEMAS-PA, 2019, grifo nosso).

            No ano de 2017, o Movimento Fora Lixão encontrava-se organizado e em plena mobilização, já contando com vários membros e reuniões semanais a depender da pauta. Além disso, faziam mobilizações, principalmente, por meio de passeatas e fechamento da BR-316. Ainda neste período, segundo Peixoto, Conceição e Moraes (2020, p. 10):

Em 22 de março de 2017, Dia Mundial da Água, mobilizados através de chamadas pelos bairros com a ajuda da Igreja Católica, especificamente a paróquia Menino Deus, além de outros canais de divulgação, o movimento reuniu cerca de 50 mil pessoas nas proximidades da Br 316, Km 17. O movimento ganhou repercussão com essa manifestação, e reforçou ainda mais sua agenda de reivindicações e exigências de penalizações aos responsáveis, empresa e governantes. Os principais processos judiciais ajuizados contra a empresa REVITA são acionados pelo Ministério Público Estadual, e o posicionamento dos órgãos públicos municipais e estaduais responsáveis pela questão ambiental é exigido nesse momento. 

Nesse período foi divulgado um estudo realizado pelo Instituto Evandro Chagas (IEC) que encontrou metais como alumínio, ferro, chumbo e mercúrio na região do empreendimento em níveis acima do que é permitido pela legislação brasileira. As amostras estudadas foram coletadas entre o segundo semestre de 2017 e o primeiro semestre de 2018 em nove comunidades próximas ao aterro sanitário de Marituba, as quais estariam expostas a contaminantes metálicos encontrados na poeira domiciliar, nos solos subsuperficiais e nas águas subterrâneas e/ou da rede alternativa de abastecimento. O Relatório Técnico-Científico do IEC, de 2018, aponta o risco à saúde humana pela exposição a contaminantes gerados pela Central de Processamento e Tratamento de Resíduos de Marituba:

Nas águas usadas para consumo humano em seis comunidades com maior proximidade da CPTR (Santa Lucia I, Santa Lúcia II, Albatroz I, Albatroz II, Campina Verde, São João), foram encontrados níveis de alumínio, ferro, chumbo e mercúrio acima dos valores máximos permitidos na legislação brasileira. [...] Na poeira domiciliar, em pelo menos uma das residências das comunidades localizadas neste primeiro raio de abrangência, foram encontrados níveis alterados de chumbo, bário, cobalto, cobre e manganês quando comparados aos valores norteados para áreas não expostas a esses contaminantes. Esses resultados são indicativos de maior exposição ambiental a esses contaminantes a partir das poeiras domiciliares de residências localizadas em áreas mais próximas à CPTR. [...] Já nos solos sub-superficiais dos quintais das residências da comunidade Santa Lúcia II, os resultados alterados de cobre indicam que esta área pode estar ambientalmente mais exposta a contaminantes metálicos entre as nove avaliadas (Dias, 2019, grifo nosso).

Outrossim, em 2017, a Polícia Civil do Pará (PC-PA) e o MPPA realizaram a Operação Gramacho na Região Metropolitana de Belém, com o objetivo de combater crimes ambientais no Aterro Sanitário de Marituba. Foram cumpridos 5 (cinco) mandados de condução coercitiva, 3 (três) de prisão preventiva, 16 (dezesseis) de busca e apreensão, além de mandados para proibição de contratar com o poder público, de ausentar-se do país e de garantir o funcionamento do aterro. Durante as investigações, a Polícia Civil apurou que, no mês de janeiro de 2017, por não ter mais lagoas para armazenamento de chorume, a empresa despejou o líquido bruto no solo sem impermeabilização, conduzindo o poluente diretamente para o Igarapé Pau Grande, situado em grande parte no interior do Refúgio da Vida Silvestre, Unidade de Conservação de proteção integral. Nessa ocasião, foram bloqueados mais de 54 milhões de reais das empresas Guamá Tratamento de Resíduos, Solvi Participações e Revita Engenharia (G1 PA, 2019).

Nota-se, portanto, que as denúncias, processos administrativos e policiais, além da observação in loco e entrevistas confirmam os danos e riscos socioambientais provocados pelo ASM. Estes danos e riscos vão de encontro ao que preconiza a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), conforme Lei 12.305/2010: “Art. 6º. São princípios da PNRS: I - a prevenção e a precaução; IV - o desenvolvimento sustentável” (Brasil, 2010). Como esta política está vinculada à Política Nacional de Meio Ambiente e o preceito constitucional da gestão ambiental compartilhada, o Estado brasileiro tem responsabilidade sobre o conflito socioambiental estabelecido no caso do ASM.

Houve ainda contaminação ambiental do município vizinho de Benevides. O fato ocorreu em novembro de 2018, na zona rural de Benevides, onde empresas terceirizadas responsáveis pelo transporte do chorume de Marituba até Pernambuco despejaram o líquido tóxico em Benevides após o caminhão-tanque carregado com o material apresentar vazamento. Segundo o MPPA, após o descarte, o Secretário de Meio Ambiente de Marituba foi comunicado pelo dono do terreno onde ocorreu a poluição; no entanto, ao invés de comunicar as autoridades, ele repassou a informação à Guamá Tratamento de Resíduos, que enviou uma equipe de funcionários ao local para coordenar o trabalho emergencial de retirada do chorume com diversos maquinários sem a presença dos órgãos ambientais. Na ocasião, rasparam o solo onde ocorreu a poluição (G1 PA, 2019).

Com o passar do tempo, o volume de resíduos foi crescendo exponencialmente. Somado ao aumento do chorume, o odor fétido passou a incomodar diariamente a população, principalmente nos períodos chuvosos e de baixas temperaturas; por conta disso, a pressão popular foi se tornando cada vez mais expressiva no sentido de exigir o fechamento do empreendimento. Assim, as denúncias realizadas pelo Movimento Fora Lixão e pela Comunidade do Abacatal foram ganhando forma e materialidade.

O conflito socioambiental em foco tem uma dimensão da distribuição ecológica desigual por processos de contaminação, como Little (2001) pontuou como àqueles relativos à degradação dos ecossistemas, vinculada aos processos de contaminação e esgotamento.

O derramamento de chorume denunciado, desde o início do funcionamento do ASM, pelos integrantes do Fora Lixão e da comunidade quilombola do Abacatal, também foi constatado pelo Ministério Público, o qual atestou que houve vazamento nos dias 20, 21, 23 e 27 de fevereiro de 2020, que foram levados ao conhecimento da SEMAS-PA somente neste último dia. O MPPA também verificou que houve lançamento de efluentes (chorume) diretamente no solo, devido ao transbordamento da Lagoa 2 e da Lagoa adicional 9 (Dias, 2019). Assim, este incidente foi alvo de uma recomendação (Inquérito Civil 002235-025/2020, 5ª PJ Marituba) pela Promotoria de Justiça de Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo de Marituba (MPPA, 2020).

Com a crescente rejeição da população e a grande repercussão nas mídias sociais e meios de comunicação, a empresa Guamá Tratamento de Resíduos anunciou, em 2019, o esgotamento da vida útil do aterro e impossibilidade de prosseguimento de suas atividades a partir de 31 de maio deste mesmo ano, segundo ofício 260/2019, enviado ao Governador do Pará e ao Secretário de Meio Ambiente, alegando os seguintes motivos:

I – Inviabilidade, preço inadequado que não cobre sequer os custos de suas atividades, segundo estudo da FGV;

II – Inadimplência costumaz dos municípios de Belém e Ananindeua; e 

III – Falta de autorização ambiental para realizar as obras preparatórias necessárias (Guamá [...], 2019).

Compreende-se na leitura crítica do documento que a mensagem é muito mais um pedido de reajuste do valor, cobrança financeira dos municípios e licença ambiental para o governo estadual, do que um anúncio de fechamento. O que parece ter sido a avaliação correta, pois a empresa prorrogou as suas atividades, conseguiu um valor mais vantajoso na tonelada de resíduo e prosseguiu funcionando normalmente até os dias atuais.

Assim, as atitudes da empresa em questão, elencadas nesta pesquisa, desmentem o que está anunciado em sua página na internet, na parte de Responsabilidade Social:

Por meio do Instituto Solví, desenvolvemos ações que envolvem empresa e comunidade para em parceria construir um ambiente melhor. Acreditamos que cada um, colaborador da empresa ou não, tem a responsabilidade na preservação do meio ambiente e desenvolvimento sustentável da sociedade. Assim colaboramos para a capacitação e o crescimento das pessoas e comunidades onde atuamos (Guamá [...], 2021, grifo nosso).

         Após a análise das práticas da empresa, constatou-se que a responsabilidade ambiental, diferentemente do alardeado em seu site institucional, não condiz com a sua atuação no Aterro Sanitário de Marituba. Ao contrário, como fora exposto, o rastro deixado pela Guamá Tratamento de Resíduos ao meio ambiente é de danos e riscos socioambientais. Além disso, é descabida a alegação de crescimento das pessoas e comunidades onde atua, tendo em vista que a população de Marituba e as comunidades do entorno, principalmente a Comunidade do Abacatal, foram, desde o início, contrárias à permanência das atividades da empresa e negligenciadas pelo GPU.

Apesar do exposto, recentemente, foi realizado um acordo proposto pela SEMAS-PA e Procuradoria Geral do Pará, entre os municípios de Ananindeua e Belém e a empresa Guamá Tratamento de Resíduos, homologado pelo desembargador Luiz Gonzaga da Costa Neto, do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA). O referido acordo prorrogou as atividades do aterro até 31 de agosto de 2023 (G1 PA, 2021). Ainda que a Prefeitura de Marituba tenha se posicionado contrária a esta proposta, o acordo foi aprovado. Entretanto, a inovação colaborativa na relação entre sociedade e Estado, por meio do conflito socioambiental e mediações parece indicar uma tendência.

 

4 CONCLUSÃO

         A ecologia política, com a utilização do conceito de conflito socioambiental, demonstrou vigor teórico para a análise crítica do caso do Aterro Sanitário de Marituba, pois o processo da luta ambiental foi compreendido em suas contradições, seja pela distribuição desigual dos riscos e danos ambientais, seja pela atuação de diferentes grupos em relações assimétricas de poder, se deu em meio a disputas econômicas e políticas que pouco consideraram a população residente no local. A empresa Guamá Tratamentos de Resíduos é a maior responsável pelos processos de contaminação e poluição, e juntamente com o Estado detêm maior poder econômico e político.

         O artigo assim o demonstrou analisando a forma de implantação do GPU, que ora privilegiava o interesse econômico do mercado, ora as “facilidades” do Estado em todos os níveis. Desde a falta de instrumentos eficazes de implantação da PNRS, até a “conivência” do governo estadual em liberar a implantação do GPU sem o cumprimento dos processos do licenciamento ambiental, particularmente quanto à oitiva das comunidades e o monitoramento e fiscalizados acerca dos danos e riscos do empreendimento. A atuação do governo do Pará relacionado à gestão dos resíduos sólidos também é algo passível de críticas, pois, de acordo com o que preconiza o art. 16 da PNRS (Brasil, 2010), é dever dos estados elaborar o Plano Estadual de Resíduos Sólidos, bem como mediar os conflitos existentes entre os municípios para que haja uma saída adequada para a gestão e destinação dos resíduos. No entanto, o que se percebe é uma falta de articulação política e poucas ações efetivas para a resolução do problema.

         Os municípios, como entes federados e responsáveis pela gestão ambiental compartilhada, demonstraram sua completa inépcia no trato da política de recursos sólidos, vistos aqui apenas no caso da destinação e tratamento final, ficando quase sempre a reboque dos acontecimentos ou colabores da empresa, como dito na licença de Marituba ou no caso do aviso à Guamá Tratamentos do despejo irregular de chorume em Benevides.

Em termos sociais e políticos no caso do conflito socioambiental produzido pelo ASM, o diferencial ocorreu pela atuação da comunidade quilombola do Abacatal em aliança com o Movimento Fora Lixão. As práticas de denúncias, ocupação de rodovias e enfrentamentos, juntamente aos mecanismos organizativos e de mobilização permitiram articular a luta social com setores técnico-científicos, como o Instituto Evandro Chagas e do sistema judiciário, como o Ministério Público, levando a luta para o campo da justiça ambiental. Portanto, o conflito socioambiental como instrumento de inovação e colaboração tencionou para que o GPU sofresse uma série de mudanças e adequações. Mesmo que ainda insuficientes para o território quilombola e grupos sociais despossuídos das periferias da RMB.

         A pandemia de Covid-19, para além dos efeitos na saúde, trouxe vários prejuízos econômicos para os quilombolas do Abacatal no que se refere à venda de produtos da agricultura familiar, pois, com o isolamento dos consumidores, houve uma baixa significativa na saída desses elementos, o que aumentou mais ainda a vulnerabilidade socioeconômica desses produtores. Entretanto, parece ter influenciado também a dinâmica da luta ambiental, podendo apontar perda do processo colaborativo e inovador em termos de monitoramento e avaliação da política dos resíduos sólidos.

         O próximo período, com o controle da pandemia e a continuidade do funcionamento do GPU do Aterro Sanitário de Marituba, demonstrará se o processo iniciado pelo conflito socioambiental poderá luzes sobre a disputa territorial, desigualdade ambiental e riscos como processo virtuoso ou vicioso da gestão de resíduos sólidos na RMB. Assim, é necessário manter uma agenda de pesquisa permanente sobre a relação entre conflito socioambiental, território e resíduos sólidos.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Doutor em Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão dos Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia (PPGEDAM) do Núcleo de Meio Ambiente (NUMA) da Universidade Federal do Pará (UFPA).

[2] Mestre em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia pela Universidade Federal do Pará. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA).

[3] Doutor em Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão dos Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia (PPGEDAM) do Núcleo de Meio Ambiente (NUMA) da Universidade Federal do Pará (UFPA).

[4] Marituba tem uma população de aproximadamente 136 mil habitantes, no contexto de uma população total de 2,3 milhões de habitantes da Região Metropolitana de Belém. Trata-se, também, de um dos municípios com maior índice de habitações precárias e assentamentos urbanos subnormais do Brasil (IBGE, 2022).

[5] Trata-se do Refúgio de Vida Silvestre Metrópole da Amazônia, criado pelo Decreto n. 2.211, de 30 de março de 2010, e localizado na Região Metropolitana de Belém. Sua área, de 6.367.27 hectares (63,67 km²), corresponde à propriedade particular da antiga Fábrica Pirelli.

[6] A empresa Guamá Tratamentos de Resíduos pertence ao grupo Solvi, com atuação em diversos Estados no Brasil e na América Latina.