ECONOMIA SOLIDÁRIA E AS NOVAS EXIGÊNCIAS DO DIÁLOGO SOCIAL - 2023

Atilio Machado Peppe[1]

Superintendência Regional do Trabalho no Estado de São Paulo

atiliomp@uol.com.br

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Resumo

Luiz Inácio Lula da Silva e seus correligionários conquistam o terceiro mandato presidencial ao final de 2022 dentro de uma conjuntura sociopolítica nacional e internacional muito distinta dos mandatos anteriores da era lulopetista (2003 a 2016). Precisaram se associar com uma ampla aliança de forças democráticas heterogêneas para enfrentar a recente expansão mundial das autocracias de direita antidemocrática, que no Brasil tomou a forma do movimento populista autoritário do “bolsonarismo” em torno da figura histriônica do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. A vitória apertada contra o bolsonarismo obriga as forças democráticas, inclusive de esquerda, a rever profundamente seus hábitos de interação sociopolítica com as massas populares multifacetadas. Arriscam-se a repetir erros elitistas de distanciamento existencial e instrumentalização ideológica das massas, inclusive no campo do movimento de economia popular solidária. Precisam livrar-se do burocratismo autocentrado das estruturas político-institucionais, para estabelecer novas formas de diálogo social respeitoso, dinâmico e permanente com as sensibilidades e liames socioculturais das massas e movimentos sociais, inclusive do campo religioso em ascensão, o neopentecostalismo. Tais segmentos se mostram altamente vulneráveis aos tentáculos de forças retrógadas da direita, tão eficientes na manipulação espúria dos poderosos recursos comunicativos da era digital em expansão.

Palavras-chave: Democracias populares. Economia social. Diálogos.

Abstract

Luiz Inácio Lula da Silva and his coreligionists conquer the third presidential term with the elections of late 2022 within a national and international sociopolitical context very different from previous mandates of the Lulopetista era (2003 to 2016). They had to partner with a broad alliance of heterogeneous democratic forces to confront the recent global expansion of anti-democratic right-wing autocracies, which in Brazil took the form of the authoritarian populist movement of "bolsonarismo" around the histrionic figure of ex-President Jair Messias Bolsonaro. The narrow victory against bolsonarismo compels the democratic forces, including the left, to deeply review their habits of sociopolitical interaction with the multifaceted popular masses. They risk repeating the errors of existential distancing and ideological instrumentalization of the masses, including in the field of the solidarity popular economy movement. They need to get rid of self-centered bureaucratism of institutional powers, in order to establish new forms of constructive, dynamic and stable social dialogue with the sociocultural sensitivities and relationships of the masses and social movements, including the neopentecostal religious field. Such segments are highly vulnerable to the tentacles of retrograde forces from the right, so efficient in manipulating the powerful communicative resources of the expanding digital age.

Keywords: People's democracies. Social economy. Dialogues.

 

1 INTRODUÇÃO

Depois de lidarmos durante quatorze anos (de 2003 a 2016) na SRTb-SP (Superintendência Regional do Trabalho) com projetos da Economia Solidária e outras políticas de trabalho e renda no estado de São Paulo, a recriação da SENAES (Secretaria Nacional de Economia Popular Solidária) no âmbito do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), despertou-nos - a partir de recentes avaliações públicas do novo secretário da SENAES, Gilberto Carvalho -, para as perspectivas inovadoras de reorganização da área. Elas partem da longa experiência por ele liderada nas interações dos governos lulopetistas anteriores com a sociedade civil e os movimentos sociais populares. A presente reflexão pretende ser uma contribuição para o enriquecimento desse importante debate em curso.

Deparamo-nos, na Internet, com a significativa entrevista que o “República.org” (Instituto dedicado à melhoria da gestão de pessoas no serviço público para o fortalecimento da democracia brasileira) realizou com ele em 21 de novembro de 2002, logo após a conquista do 3º mandato presidencial de Lula. Título da entrevista: Gilberto Carvalho: sem dialogar com as massas, o risco é repetir 2013 e 2016. Significativa porque oferece uma das melhores avaliações críticas sobre os limites e erros cometidos durante a era dos governos lulopetistas (2003-2016) no tocante às práticas predominantes de relacionamento com a sociedade civil e com as massas populares do país.

Ademais, no dia 19/01/2022 o secretário participara de uma teleconferência transmitida pela TV Ecosol na Internet - Em diálogo com o Fórum Brasileiro de Economia Solidária - também repleta de significados. Revela que, até a sua participação na celebração do Natal 2021 dos catadores de recicláveis, ainda se encontrava dividido entre iniciar um novo trabalho formativo de novas lideranças políticas a partir da Fundação Perseu Abramo, do PT – Partido dos Trabalhadores e o convite para se tornar o novo secretário da SENAES. Depois de conversar com militantes da economia solidária sobre motivações profundas para o trabalho governamental de apoio à inclusão social dos pobres na cidadania plena, assistindo em casa amissa do Papa Francisco à véspera do Natal, firmou a decisão íntima de aceitar o desafio de assumir a direção da nova SENAES no MTE. Finalmente, as duas referidas manifestações de Gilberto Carvalho são complementadas pela palestra que proferiu em 25/01/23 no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, que o blogBrasil de Fato intitulou: Espero que tenhamos um governo pedagogo.

 

 

2 IDEAL DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL X TROPEÇOS DO LULOPETISMO

Na referida entrevista, Gilberto assegura que “neste terceiro mandato presidencial Lula faz questão de fazer um governo com forte participação social” (CARVALHO, 2023, grifo nosso). Claro que o propósito não foi estranho aos mandatos anteriores, afeitos a umgoverno poroso aberto para a sociedade. Porém, admite ele que, infelizmente, não se consolidou diálogo eficaz com a massa popular. Mesmo que economicamente beneficiada por muitas ações governamentais, a grande maioria dos cidadãos de baixa renda não desenvolveu uma consciência identificada com a orientação político-ideológica dos governos lulopetistas no tocante à democracia participativa. Esse distanciamento ficou patente ante as crises dos protestos sociais de 2013 e do impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Bandearam facilmente para as malhas da mentalidade predominante da classe média (individualismo, apreço à tendencia, sexismo, desprezo pelo pobre etc.), assim como para a disseminação exponencial das igrejas neopentecostais ao longo das periferias do país, mergulhados no contexto de tendencia informalidade tendencia, lideradas por arautos da prosperidade mercantilista e pela legião de influencers das redes sociais popularizadas.

Consideramos que toda essa guinada psicossocial das massas populares coincide, tragicamente, com o viés mercadológico e populista que capturou a implementação das políticas de inclusão social dos governos lulopetistas. Dentro delas, as exigências ético-políticas de transformação das relações e estruturas de desigualdade social foram abafadas pelo imediatismo da ascensão econômica dos despossuídos. A força avassaladora da cultura consumista dominante esterilizou ideais e práticas de solidariedade sociopolítica acalentadas por agentes humanistas do governo e da sociedade. Obviamente, esse tipo deviés econômico unilateral, que contaminou importantes políticas públicas dos governoslulopetistas, não contribuiu para com o processo de consolidação institucional do avanço popular de uma cidadania participativa e responsável pelo amadurecimento da democracia brasileira.

Acreditamos que nossa monografia de mestrado recentemente publicada, na forma de uma etnografia política atualizada sobre os primórdios, a ascensão e a profunda crise de 1985 a 1992, vivenciadas pelo significativo associativismo em rede da Favela Santa Marta (cidade do Rio de Janeiro), ajuda a iluminar essa perpétua discussão sobre o imperativo de respeito pela autonomia dos movimento populares em meio às suas necessárias parcerias com governos, sociedade civil e mercado.

Podemos considerar, ainda, que não menos nocivo que aquele viés economicista, foi o viés de algumas políticas públicas do lulopetismo – inclusive no campo da Economia Solidária - assaltadas por surtos de esquerdismo impositivo de alguns militantes. Tendência que privilegiou, algumas vezes, o vanguardismo e o voluntarismo autoritários em detrimento dos processos de diálogo interno permanente dos participantes e aliados e do respeito pelo amadurecimento progressivo das capacidades de compreensão e ação das pessoas e grupos.

Em contraste com os primeiros anos de estruturação do lulopetismo, quando a proximidade com as comunidades eclesiais de base da Igreja Católica e de movimentos populares, em luta contra a ditadura e pela melhoria de condições gerais de vida dos operários e de moradores de comunidades periféricas da cidade e do campo, tendo o Partido dos Trabalhadores (PT), com seus aliados partidários, sindicais, eclesiais e acadêmicos, conquistado o poder de unidades da Federação e da própria União, submergiu rapidamente com a maioria dos seus quadros ao processo de burocratização imposto pelo peso da política institucional.

Distanciam-se cada vez mais dos circuitos da política de base, a qual, por sua vez, sofre enorme refluxo com a redemocratização e suas políticas públicas comandadas verticalmente pelas instituições político-administrativas do Estado. Relativizam-se, cada vez mais, as lutas coletivas altruístas pela afirmação e expansão de direitos e deveres já consignados no corpo da Constituição de 88.

No lugar da expansão de comunidades eclesiais de base católicas, cada vez mais contidas pelo refluxo conservador de dirigentes eclesiásticos, proliferam rapidamente por todo o país articular o convívio religioso comunitário das famílias mais humildes com ajudas mútuas eficazes pela realização de aspirações e interesses privados, independente de políticas governamentais progressistas ou simplesmente utilizando-se delas. Pouco a pouco, guiadas pela sagacidade de seus pastores, fortes defensores da “teologia da prosperidade” (geralmente pervertida em ideologia) aprendem a canalizar seus interesses por intermédio de instâncias de poder, principalmente legislativo. Viraram as costas para partidos de esquerda, dando preferência a políticos de direita mais identificados com padres neoliberais de convivência, defesa das pautas de costumes e de benesses para suas pequenas igrejas independentes. Se até então as igrejas protestantes históricas ainda partilhavam com a Igreja Católica um esforço de renovação teológico-social progressista, essa superexpansão pulverizada de pequenas denominações pentecostais se consolida em cumplicidade com o caldo de cultura mais conservador, fundamentalista e pragmático das massas populares, terreno fértil de alianças com as políticas de direita.

Devemos ressaltar, ainda, que essa progressiva perda de comunicação assídua das instâncias lulopetistas com as massas populares e as classes médias inclusive, foi agravada por notórios erros estratégicos e desvios morais cometidos por pessoas e instâncias institucionais, incluídos episódios de incompetência e corrupção. A gravidade desses tropeços foi exacerbada pela rápida ascensão oportunista de uma direita autoritária que, mediante exímia manipulação irresponsável de redes sociais, potencializou arquétipos de medos e ódios das massas contra todos os adversários reputados como inimigos mortais de suas ideias e modos de vida deletérios. Esse movimento reacionário, tributário das piores tradições da direita radical, inclusive internacional (vide o movimento trumpista norte-americano) conseguiu extrair dos porões da mediocridade truculenta de nossa história a figura de Jair Bolsonaro e seus aliados. Foi a emergência de um improvável “líder popular” idolatrado por crescentes segmentos direitistas. Graças à ação coordenada das forças democráticas do país, foi derrotado ao final de 2022 por uma vitória apertada de Lula nas últimas eleições presidenciais.

Mesmo refugiado nos labirintos da “Disneylândia trumpista”, Bolsonaro deixa o legado de um imenso contingente de “bolsonaristas” militantes e enrustidos prontos a desferir novos golpes de desestabilização da democracia brasileira, a favor de aventuras autocráticas populistas. Daí a preocupação central deste terceiro mandato de Lula no sentido de corrigir os erros de governança e de comunicação eficaz com os governados para que não se repita, como tragédia, os desastres simbolizados pelos eventos políticos disruptivos de 2013 e 2016.

E para que “direita” deixe de ser sinônimo de “bolsonarismo” e passe a ser apenas um conjunto de tendências minimamente civilizadas do espectro político nacional.

 

3 DESAFIO DA INTERAÇÃO EFICAZ COM AS MASSAS NEOPENTECOSTAIS

O restante daquela entrevista do novo secretário, conjugada com suas duas outras manifestações supracitadas, dedica-se à apresentação e avaliação de possíveis políticas e medidas eficazes de expansão e fortalecimento da economia solidária no país.

Um dos propósitos do novo governo eleito consiste em ajudar a encontrar uma respostapositiva para aquele desafio crucial levantado por Carvalho para o atual mandato de Lula:“qual a possibilidade de fazer surgir, estimular, no meio evangélico, correntesprogressistas” (CARVALHO, 2022, grifo nosso), especialmente entre as pequeñas igrejas neopentecostais que se espalham pelas periferias do país em vertiginosa expansão?

De nossa parte, mesmo acreditando que se trata de um desafio inarredável para aconsolidação de uma democracia popular progressista no Brasil contemporâneo, parece seruma possibilidade remota de sucesso enquanto as igrejas evangélicas em geral nãopassarem por uma profunda renovação interna semelhante à que o Concílio Vaticano II, anova teologia e o desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja desencadearam na IgrejaCatólica contemporânea, não obstante suas muitas tentações de retorno aoconservadorismo. É claro, porém, que essa evolução estrutural não avança prioritariamentepor decisões autoritativas e teóricas, mas depende essencialmente da disseminação deexperiências sócio-político-religiosas inovadoras na vida das comunidades eclesiais.

Qual será, por exemplo, a força atrativa de empreendimentos coletivos de economía solidária, tipo associações e cooperativas sobre cidadãos evangélicos que, inspirados natradição protestante, preferem meios de ascensão socioeconômica baseados nas formas deempreendedorismo individual-familiar. Sendo estes, basicamente, enraizados nas redescomunitárias internas de ajuda mútua de suas próprias igrejas, cada vez mais identificadas –em simbiose com o ambiente neoliberal hegemônico da sociedade - com mecanismosclientelísticos de utilização pragmática de benesses do sistema político local e nacional?

Acreditamos que o referido “pudor ético” de Lula quanto a táticas partidárias de penetrar nas igrejas para politizar a fé em função de angariar apoio político a facções e projetos de poder, é uma posição lúcida e coerente com a melhor teologia cristã de articulação autêntica entre fé e política. É preciso, sim, respeitar a legítima autonomia da fé, cujas exigencias ético-políticas devem pautar-se por uma leitura crítica esclarecida da realidade social, sem cooptação partidária de grupos religiosos e cultivando a liberdade individual de consciência dos fiéis. As ações sociopolíticas eventualmente assumidas por grupos eclesiais devem cultivar um caráter suprapartidário – sem dispensar opções político-partidária dos indivíduos. Precisam saber escolher os aliados políticos extra eclesiais diversos pela qualidade democrática e humanista de suas ideologias e práticas compatíveis com o Evangelho, e, não necessariamente, por suas preferências partidárias. Jamais por oportunismos autopromocionais de fiéis, lideranças e grupos eclesiais.

Evidencia-se, aqui, uma impotência inicial dos chamados Empreendimentos solidários. Defensores aguerridos desse caráter coletivo, tendem muitas vezes a rejeitar, como concessão espúria aos interesses do sistema capitalista, as demais formas de empreendimentos, tais como, empresas e individuais informais ou formais (tais como os MEIs). Talvez, sobretudo, devido à conceituação (ou ideologia) que alguns lhes atribuem dogmaticamente. Nisso contradizem, inclusive, a pluralidade de empreendimentos embrionários que constatamos nos mapeamentos da economia solidária (ecosol) em meados dos anos 2000, fenômeno para o qual o saudoso Prof. Paul Singer demonstrava notável receptividade adaptativa.

Constatava-se a existência de certos Empreendimentos familiares, empresariais e até organizações não governamentais, afeitos a alguns critérios essenciais da ecosol, tais como, autogestão, articulações em redes solidárias, formas de participação coletiva nos resultados e decisões, práticas de comércio justo e solidário etc. Ademais, pode-se pensar inclusive que é legítimo criar formas de sensibilidade e laços solidários com Empreendimentos individuais (informais e formais), baseados no fato que muitos empreendedores individuais não aderem a uma concorrência puramente predatória e têm necessidade de compartilhar intercambios de conhecimentos e recursos diversos, tais como, oportunidades de formação conjunta, de solidariedades setoriais, de cooperação técnica, comercial, patrimonial e financeira, compartilhamento de experiências via redes sociais, valorização de práticas artesanais e artísticas, inclusão social dos pobres pela via prioritária do trabalho etc. Por que a ecosol deveria rejeitar, a priori, a possível evolução solidária desses empreendimentos individuais ao longo do tempo? Claro que não estamos querendo prestigiar Empreendimentos individuais que defendam predominantemente os critérios individualistas que regem a economia capitalista dominante.

Afinal, “solidariedade” não é uma categoria unívoca de formatação da organização do trabalho das pessoas. É uma categoria multifacetada que abriga, conforme as circunstâncias, formas distintas de cooperação entre os empreendedores envolvidos. Tal alargamento do conceito de Empreendimento solidário talvez seja a atitude mais eficaz de abertura da ecosol para a pluralidade de formas organizativas do trabalho existentes na realidade socioeconômica multifacetada deste país. Essa economia solidária ressignificada deveria tornar-se mais atraente até mesmo para as massas populares neopentecostais em crescente expansão nas periferias, sempre que estiverem abertas para a convivência socioeconómica solidária.

Se o fundamento de propagação da ecosol consiste na inclusão social dos pobres pela via do trabalho, potencializando as forças de coesão comunitária, ético-político-cultural, inerente à vida laboral responsável do ser humano, não é necessário aos militantes da ecosol, dos partidos políticos e grupos identitários que a apoiam invadir e instrumentalizar ideologicamente qualquer grupo eclesial, manipulando a singularidade transcendental de sua fé. Qualquer profissão de fé cristã (e até de outras tradições religiosas) que seja minimamente permeada pelos valores humanos substanciais, não terá como rejeitar oportunidades autênticas de integração socioeconômica e cultural propiciadas pelas vias do trabalho humano. Este é, por definição, um fenômeno coletivo de realização humana, mesmo quando circunstancialmente envelopado por formas individuais de organização.

Só um preconceito anticapitalista intransigente pode rejeitar essa plasticidade do mundo do trabalho. Acresce, ainda, que muitos respeitáveis estudiosos do capitalismo, reconhecem que na polimorfia das sociedades entranham-se formas ancestrais de mercado e de organização do trabalho, da produção e do consumo muito distintas do núcleo duro do capitalismo hegemônico. A propósito dessa discussão, ver os Capítulos 1 e 5 da nossa tese de doutorado recentemente publicada em torno de trabalho e tecnociência na ética filosófica contemporânea.[2]

 

4 EXIGÊNCIAS DE REORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL EFICAZ

Tem razão o secretário entrevistado quando ressalta que,

 

nós vamos ter que dar tratos à bola, diante da complexidade do desafio histórico que sacode o novo governo de coalização democrática liderado por Lula! Precisamos estar profundamente antenados ante experiências promissoras de transformação social democrática que florescem na América Latina, Espanha e outros países, que estejam contribuindo para ressignificar o conceito de “participação popular”. Já aprendemos que não é mais possível apostar numa participação dirigida pelo alto por hierarquias sociopolíticas: governos, partidos, ongs etc. Sem excluir o papel dessas instâncias, é preciso priorizar, o desenvolvimento contínuo de uma cultura política de cidadania participativa corresponsável pela consolidação da sociedade democrática madura. A saga contemporânea do drama social ensina que tal democracia é o único caminho civilizatório confiável capaz de neutralizar a expansão destrutiva da barbárie e das autocracias incrustadas nos esqueletos de democracias falidas. (CARVALHO, 2022, grifo nosso)

 

O entrevistado cita o exemplo dos comitês populares implementados durante mandatos anteriores do lulopetismo. Inspirados na capilaridade das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, constituíram pequenos grupos em várias localidades do país para analisar, à luz do Evangelho, a realidade segundo o velho método do Paulo Freire, educação a partir da luta e da vida política, visando articulação com a sociedade civil organizada. Agora, observa o secretário, temos clareza de que isso é insuficiente, porque precisamos penetrar mais a fundo nos tecidos da cultura popular para buscar formas de também seduzir, atrair e organizar as massas populares das periferias territoriais e existenciais, sobretudo a juventude, para além dos nossos modos tradicionais de fazer política.[3]

Talvez a ideia da necessidade de “conscientização” das massas populares, que Gilberto de Carvalho ainda evoca em suas falas, esteja em contradição com a mensagem inovadora que ele quer transmitir. A velha prática de “conscientização” é prisioneira da ação iluminista de um agente externo supostamente mais esclarecido que pretende incutir valores e atitudes na consciência entorpecida de pessoas alienadas por ideologias “erradas”. Sabemos, porém, que a intenção do secretário não é moldar consciências, mas provocá-las e ativá-las para que as próprias pessoas do povo, em parceria com outros atores, valorizem e potencializem o melhor de si e de suas ricas experiências de vida.

É certo que essa reorientação para uma estratégia de interação com a riqueza da cultura popular e, desde aí, com as consciências dos cidadãos, nunca foi uma competência típica dos governos, nem mesmo dos democráticos, cujos agentes em quase todasas suas esferas vinculam-se prioritariamente à máquina administrativa para governar e para implementar as políticas públicas pré-moldadas por cúpulas dirigentes, mesmo que às vezes partam das assembleias de consulta popular. Até nas instâncias de atendimento direto à população quase sempre prevalecem relações burocráticas impessoais. E Gilberto Carvalho conhece esses limites, conforme sua fala no Fórum Social Mundial de Porto Alegre.

O papel do governo não é dirigir o processo, mas estimular a amplificação dessa rede de interações e iniciativas de base, especialmente na parceria com os projetos de base dos movimentos sociais envolvidos com a vida cotidiana da população, que funcionem como fermento da massaque construa com o povo a mudança material de vida mas também a mudança cultural, política e ideológica. (CARVALHO, 2023,grifo nosso).

Construção coletiva que garanta a permanência dos avanços realizados, em contraposição às poderosas forças reacionárias e destrutivas que se expandiram no Brasil desses últimos anos de populismo autoritário.

Mais uma vez, vemos Gilberto Carvalho recorrer à força performativa de uma expressão muito cara à tradição evangelizadora do cristianismo, pela qual os cristãos são vocacionados a serem fermento na massa, sal da terra e luz do mundo. Não pela imposição de poderes econômicos, políticos, eclesiásticos, intelectuais e ideológicos, mas pela eficácia daquilo que a teologia denomina processo de “inculturação” não impositiva da fé e dos seus valores práticos de amor, justiça, esperança, paz etc. no coração das pessoas e da pluralidade cultural dos povos. As culturas não são/não devem ser estáticas, estão em contínua interação com outras culturas e em construção de identidade na transformação.

Trata-se de uma mística evangélica (inspiração) altamente desafiante que move os melhores agentes do cristianismo a entrar na vida cotidiana das massas populares, compartilhando em pé de igualdade, gratuidade e solidariedade, projetos, buscas, trabalhos, sofrimentos, lutas, realizações de pessoas, famílias e coletivos diversos. Com efeito, é dificílimo transpor essa atitude evangélica para o mundo da política, quase sempre movido por interesses, pragmatismos e ideologias impositivas! Felizmente, os chamados “leigos” cristãos, depois do Concílio Vaticano II, não podem mais se acomodar a uma religiosidade omissa ou impositiva, ignorando o desafio de “sua vocação específica que os coloca no coração do mundo e à frente das mais variadas tarefas materiais” (SÃO PAULO VI, Papa, 1975). Impregnados pelos valores do Evangelho, os leigos devem penetrar nas entranhas do “vasto e complicado mundo da política, do social, da economia, mas também da cultura, das ciências e das artes” (SÃO PAULO VI, Papa, 1975), na condição de fermento na massa, naquela linha de uma fé operante inculturada, compartilhada com os outros dentro da vida concreta de cada dia.

Sim, talvez, um governo democrático progressista como o que acaba de se instalar no Brasil, talvez possa aprofundar sua capacidade de potencialização da boa vontade e do compromisso de transformação social junto a muitos cristãos impregnados por aquele tipo de fé esclarecida e operante, disposta a ajudar na construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária. Muitos deles já estão inseridos em movimentos sociais, órgãos governamentais e promoção de políticas públicas, sendo possível reconquistar muitos outros em função da causa.

Porém, perguntamo-nos: o que esperar da imensa massa de cidadãos cristãos acomodados de todas as denominações, cristãos fundamentalistas reacionários, de tantos não religiosos desinteressados pelo bem comum da sociedade?Como sensibilizar a experiência e a consciência desse contingente, sem imposição ideológica, com o senso de responsabilidade social e política pela construção de uma sociedade democrática sadia?

É nisso que faz todo sentido aquela proposta lançada no Fórum Social Mundial: precisamos construir daqui pra frente no país, “um governo pedagogo” (CARVALHO, 2023, grifo nosso) capaz de ajudar a revitalizar as melhores instâncias e práticas educativas disponíveis, inclusive aquelas dedicadas à educação popular. Acelerar, dessa forma, os processos educativos, com melhoria de qualidade, impregnação de valores humanistas e desenvolvimento de consciência crítica, capazes de transformar a cultura e a sociedade na direção dos direitos e deveres assegurados pela nossa Constituição de 1988 rumo a uma democracia substantiva cada vez mais consistente.

Durante nosso longo convívio com a economia solidária, sobretudo via FOPES – Fórum Paulista de Economia Solidária, na condição de gestor federal lotado na SRTE-SP, sempre defendemos a predominância do enfoque pedagógico no relacionamento dos governos e dos movimentos sociais com os agentes e segmentos da economia solidária. Consideramos inoportuna a ênfase de algumas lideranças voltadas para a cobrança de engajamento militante obrigatoriamente identificado com a ideologia de partidos da esquerda.

É preciso respeitar várias características da economia solidária real existente em nossos estados. Respeitar o lento processo de formação e amadurecimento da consciência política dos empreendedores, agentes das organizações de apoio, gestores públicos e parceiros externos. Respeitar a pluralidade de perfis ideológicos, partidários, educacionais, profissionais e religiosos das pessoas e organizações integrantes desses segmentos. Ter plena consciência de que a economia solidária está muito longe de ser a proposta hegemônica de organização sociopolítica-cultural do mundo e do Brasil, que depende enormemente do relacionamento maduro com os mercados, consumidores, instâncias empresariais, financeiras e políticas, centros de ciência, pesquisa e tecnologia do sistema socioeconômico hegemônico, para se fortalecer e colocar os produtos de seus empreendedores, sem abdicar de seus princípios.

É verdade que a economia solidária deve pautar seu desenvolvimento pelos valores de um horizonte ético exigente e transformador de realidades espúrias que caracterizam o sistema dominante. Porém, ela não é um projeto teórico acabado feito de dogmas sociológicos ou utópicos. É um projeto perfectível baseado em aprendizagem constante, que, para crescer, precisa estar aberta ao diálogo permanente com experiências salutares, conhecimentos e práticas distintas dela mesma que, obviamente, excluem os fascismos e a criminalidade.

Consequentemente, os agentes e as instâncias de organização da economia solidária não devem se tornar reféns das imposições de partidarismos políticos e de causas identitárias autorreferenciadas. Tais armadilhas sufocam a autonomia dos segmentos e do movimento de economia solidária, produzem dissenções internas inúteis, além de inviabilizar a construção de uma identidade flexível da economia solidária.

5 O PAPEL INTERACIONAL DA ECOSOL COM O MACROSISTEMA SOCIOECONÔMICO

É legítima a posição do novo contemporá da SENAES, durante sua recente fala dentro do Fórum Social Mundial de janeiro/23:

a economia solidária não pode ser reduzida a um mero “nicho” dentro do governo e na sociedade, um tipo de proposta, dentre outras, de organização autogestionária do trabalho e da economia, semelhante ao conceito corrente que se tem do cooperativismo. No bojo da “nova revolução econômica e do próprio capitalismo (...) a economia solidária tem que dar forma, consistência para um novo padrão de funcionamento econômico nacional”, propagando “novas formas de gestão coletiva do capital e dos meios de produção. (CARVALHO, 2023, grifo nosso).

 

A nosso ver, nada impede que pessoas e organizações de esquerda apostem na economia solidária como o caminho atual mais promissor de construção da macrossociedade propugnada por algumas vertentes do socialismo, entendendo-o como emancipação generalizada dos trabalhadores por intermédio da propriedade e gestão coletiva dos meios de produção.

Não obstante, pensamos que reconhecer a alta relevância socioeconômica da economia solidária enquanto talé mais apropriado do que certos discursos militantes do ciclo anterior da economia solidária brasileira, colocando-a como alternativa absoluta à economia capitalista, que um verdadeiro governo de esquerda deveria implantar como eixo da política econômica do país!Vale dizer, decretar uma espécie de abolição antecipada da economia capitalista hegemônica. Agora, felizmente, Gilberto Carvalho dá uma impostação mais equilibrada e processual a essa questão, no sentido de que a economia solidária pode ajudar a dar “consistência para um novo padrão de funcionamento econômico nacional”. Isto é, “a economia solidária é ponta de lança nesse processo” de construção de um novo modelo de desenvolvimento nacional, porque “ela tem a possibilidade de antecipar valores vitais, práticos, que nós esperamos viver em uma nova sociedade, mas já podemos viver hoje, sabendo que uma sociedade futura ou se constrói a partir de agora ou não se constrói” (CARVALHO, 2023). Dessa forma, nenhum militante estará obrigado a apostar que a economia solidária é a antessala inevitável do socialismo.

Seria, então, possível afirmar que essa “nova sociedade futura” será a sociedade correspondente a algum projeto não só anticapitalista, mas declaradamente socialista? Sim, é possível, porém, incorre-se dessa forma precipitada numa utopia temerária, tanto quanto a utopia neoliberal do capitalismo triunfante, ao sabor do gosto ideológico de cada pessoa ou grupo. A rigor, a mutação civilizacional que o mundo está vivendo nas últimas décadas, contempo gigantesco muito maior e mais complexo do que qualquer revolução, não tem como adivinhar o(s) desenho(s) de sociedade(s) concreta(s) que emergirão no futuro da humanidade. Tal é um dos eixos centrais de nossa recente tese doutoral inspirada na obra filosófica do jesuíta Henrique Carlos de Lima Vaz.Por isso, essa construção civilizacional necessita, mais do que nunca, de embriões de experiências societárias consistentes, inovadoras e inspiradoras para a efetivação progressiva desse imenso processo incremental de transformação civilizatória possível. Elas propiciam um eficaz processo educativo de base na formação de cidadãos responsáveis e participativos na construção do bem comum.

A visão humanista da transformação social, fundada na essencial indeterminação da história e da liberdade humana, não pode ostentar nenhuma presciência sobre a configuração estrutural das futuras sociedades humanas, salvo a discussão permanente em torno dos legítimos valores operantes da práxis. Trata-se de um processo aberto de invenção da vida social pelas liberdades humanas inter-relacionadas na caminhada histórica. Por isso mesmo incompatível com qualquer utopismo premonitório, ideológico e/ou prometeico. (PEPPE, 2021, p. 232)

Acreditamos que a melhor forma de expressar o futuro concreto desse processo se expressa adequadamente não na imagem utópica de algum macrosistema socioeconômico futuro, que é impossível adivinhar, mas na perspectiva de um consenso factível em torno dohorizonte ético pluriversal dialógico, o qual consiste na aspiração humana profunda deconstrução coletiva de sociedades do bem viver fundadas na vivência concreta de valores humanistas consistentes. Na ótica desse avanço civilizatório incremental rumo a sociedades mais justas, livres e solidárias podemos, sem dúvida, reconhecer a força performativa das autênticas experiências de economia solidária. Muitas delas, a nosso ver, constituem as novas comunidades éticas contemporâneas que caracterizamos como comunidades ético-político-laborais (com a sigla CEPOLs). São fenômenos societais decisivos de transformação humanizadora e democrática da civilização tecnocientífica, cujo estudo aprofundamos na referida obra filosófica.

O desenvolvimento da noção de comunidades ético-político-laborais (CEPOLs) constitui o principal aporte de nosso estudo na atualização do conceito central da ética de Lima Vaz e de sua filosofia política e laboral, que é a noção de comunidade ética. Ele a define “como aquela na qual é reconhecida a primazia social e jurídica da liberdade para o bem e na qual a consciência moral dos indivíduos está presente de modo eficaz na constituição e na vida deuma consciência moral social.” (PEPPE, 2021, p. 53). Com o advento da idade Contemporânea, os arranjos societais que sustentavam as comunidades éticas tradicionais foram perdendo sua efetividade. Em seu lugar, passaram a eclodir “novos arranjos societais nas múltiplas área de atividade humana e organizações (tais como empresas, sindicatos, empreendimentos produtivos, associações profissionais, órgãos públicos, escolas etc.) intimamente relacionadas com o mundo do trabalho”(PEPPE, 2021, p. 53), dando lugar ao que denominamos comunidades ético-político-laborais (CEPOLs). “É a vida ética, como existência ética concreta do indivíduo e da comunidade, que dinamiza o progresso da liberdade pela livre adesão ao Bem na construção desse novo estilo de comunidades éticas (as CEPOLs)”(PEPPE, 2021, p. 251).Confrontam energicamente a crescente sabotagem civilizacional perpetrada pela ideologia do individualismo atomista que pervade toda a cultura contemporânea. Múltiplos perfis de CEPOLs que emergem no interior das organizações sociais que lhe dão suporte, “comportam o cultivo de laços comunitários capazes de potencializar esforços de humanização do trabalho e da tecnociência, dentre outras virtualidades”(PEPPE, 2021, p. 251), aptas a promover a construção de macrossociedades do bem viver. Consideramos que muitos entes sociais integrantes da economia solidária (associações produtivas, cooperativas etc.) também se tornaram capazes de constituir em seu bojo comunidades ético-político-laborais autênticas e transformadoras.

Parece-nos que é a partir dessas promissoras experiências históricas densas de sentido, aliadas a outras iniciativas legítimas de ação social, que se alargam as condições objetivas para micro e macrotransformações positivas (...). Tudo isso promana de um potencial de desenvolvimento histórico identificável na estrutura antropológica da pessoa humana como ser-com-os-outros-no-mundo dotada de liberdade racional ampla para questionar o dado, elaborar saídas sociopolíticas, econômicas e culturais alternativas na construção de formas mais consistentes de convívio social.” (PEPPE, 2021, p. 131-174, 233).

Reforçando essa percepção ético-filosófica quanto à contribuição da economia solidária no processo de construção duradoura de sociedades do bem viver, devemos ter bem presente a modesta dimensão organizacional dos Empreendimentos e redes concretas da economia solidária no Brasil e em outros países. Apesar de suas fecundas sementes práticas e teóricas de renovação profunda das entranhas de cada macrossociedade, a economia solidária concreta representa um segmento pequeno e frágil de vida socioeconômica autogestionária mergulhada no turvo oceano dos sistemas socioeconômicos hegemonizados por relações sociais capitalistas ou de coletivismos autocráticos.

Apesar dos heroicos esforços internos dos segmentos da economia solidária para cultivar relações sociais e socioeconômicas construtivas entre seus próprios atores, práticas e instrumentos coletivos diferenciados (tipo redes intraempreendimentos, finanças e moedas comunitárias, comércio justo e solidário, ações ecologicamente sustentáveis etc.), não se pode negar que na luta pela sobrevivência cotidiana da maioria dos Empreendimentos solidários e das organizações de seus apoiadores, eles são obrigados a interagir intensivamente com os mercados da economia capitalista, desde os circuitos de produção até os de comercialização e consumo. Quem pode negar que a maioria dos consumidores dos produtos dos empreendimentos solidários pertence às classes médias, cuja renda depende – mesmo que a contragosto para muitos – de sua profunda inserção existencial nos meandros da macrossociedade capitalista? Seríamos, então, obrigados a viver um eterno sentimento de culpa ou de instrumentalização por essas supostas interações “promíscuas”?

Trata-se nada menos do duro contexto mundial de globalização financeirizada e excludente dos mais vulneráveis que, inclusive, destrói as bases da livre concorrência razoável entre os agentes econômicos que, historicamente, moldaram as versões de desenvolvimento de um capitalismo mais produtivo e distribuidor de riqueza, tal como nas experiências avançadas de países social-democratas. Em contraposição, nos últimos trinta anos coexistimos com uma globalização profundamente moldada pela predominância do direito absoluto de propriedade privada, pela lei férrea de maximização dos lucros a todo custo e o império de um estilo de vida cada vez mais individualista e hedonista, no qual a luta fratricida por interesses particularistas obstrui cada vez mais as propostas de bem viver baseadas em cooperação, frugalidade e fraternidade comunitária.

Nesse contexto problemático, apostar nos princípios e valores da economia solidária, é remar contra a correnteza em águas tempestuosas. Exige enorme integridade ética, fibra, desprendimento, coragem, esperança e perseverança dos atores da economia solidárias e outras experiências similares, com suas frágeis associações, cooperativas, entidades de apoio e órgão públicos locais aliados.

A predominância de empreendimentos de pequeno porte inseridos nos segmentos sociais de baixa renda, com utilização ainda reduzida de recursos tecnológicos nos processos produtivos e comerciais, tem representado uma séria limitação estrutural para a relevância tecnoeconômica da economia solidária. (PEPPE, 2021, p 211)

É no bojo dessa luta insana pela humanização da vida que sobressai a sabedoria do enfoque interacional que já fora antevisto pela SENAES orientada pela equipe do saudoso Paul Singer. O novo secretário nacional da SENAES traduz tal enfoque do potencial construtivo da revolução tecnocientífica mundial em cursoque se tornou a força modeladora mais determinante do futuro da humanidade e das sociedade[4].

Apesar das modestas formas de organização da economia solidária real estarem muito aquém dos circuitos decisórios, dos processos e artefatos tecnocientíficos configuradores da vida contemporânea em quase todos os níveis, os atores pessoais e coletivos conscientes da economia solidária não podem e não querem se contentar com “as sobras”, as migalhas dessa mutação tecnocientífica irresistível do mundo. Por essa razão, Gilberto Carvalho ressalta que a interação da economia solidária com a inovação, a pesquisa científica e a produção dos artefatos tecnocientíficos são pontos chaves para o desenvolvimento de uma economia solidária relevante. Daí que a necessidade de alianças com as universidades e todo o setor de pesquisa é fundamental. Precisamos de tecnologia de ponta. (2023). Precisamente no sentido da linha avançada da vertente cada vez mais debatida sobre as possibilidades de apropriação adequada dos avanços da tecnociência pelos atores e circuitos da economia popular solidária.

Alguns estudiosos ressaltam a necessidade de acelerar a construção de uma “tecnociência social e/ou solidária”. (DAGNINO, 2019, p. 161). Aí está outro desafio titânico que se impõe aos atores da economia solidária, em sua grande maioria pertencentes às camadas populares, com todas as vulnerabilidades econômicas, sociais e educacionais típicas desta sociedade estruturalmente desigual e empobrecida.

É preciso reconhecer que dentro da plêiade de organizações voltadas para o desenvolvimento das tecnociências participam universidade, C&Ts, órgãos estatais, entidades privadas e tantas outras que abrangem milhões de cidadãos trabalhadores. Como vimos (...), eles, mesmo sem ser necessariamente oriundos de classes subalternas das sociedades, também são, em boa parte, dotados de senso crítico, liberdade, responsabilidade, profissionalismo e capacidade de fomentar condutas, procedimentos e redes de relações cooperativas suficientemente autônomas face aos comandos ideológicos produtivistas daquelas poderosas corporações dominantes.

Devemos, portanto, mobilizar a disponibilidade real de inúmeros trabalhadores do conhecimento capazes, em articulação com suas organizações de trabalho, para influir e redirecionar muitos processos em espírito de solidariedade com maiorias e minorias desfavorecidas, pessoas e comunidades excluídas dos circuitos mundiais de controle elitista e tecnocrático das tecnociências. Não fossem essas brechas de avanços civilizacionais compartilháveis entre todos os segmentos dos macrossistemas socioeconômicos, já deveríamos ter fechado as portas da civilização e decretado sua falência definitiva! (PEPPE, 2021, p. 214).

Por isso, rejeitar profissionais de classe média e suas instituições detentoras de saberes avançados moldados pelas competências tecnocientíficas, por conta de anacrônicos preconceitos de classe e de identitarismos autocentrados, seria uma prática suicida para as pretensões de viabilidade e relevância social, política, econômica e cultura da economia solidária no contexto do mundo tecnizado. Ela se condenaria à sobrevivência medíocre nos guetos de uma economia artesanal subterrânea totalmente subalternizada, sem nenhuma capacidade de inspirar os caminhos vindouros do bem viver, especialmente da juventude, nas sociedades tecnocientíficas. Com efeito, nem mesmo os povos originários do território brasileiro, com todo respeito que se deve nutrir pela preservação de seus valores culturais, poderiam deixar de se ressignificar por meio de um longo processo de saudável inculturação com os demais atores das sociedades contemporâneas.

6 CONCLUSÃO

Considerando que este esforço de reflexão sobre a economia solidária e as novas exigências de diálogo social que se impõe a todos os seus agentes, que o Governo Lula atual e a nova SENAES estão pautados por uma busca tateante de novas perspectivas cheia de incertezas, questionamentos e indicações de novos desafios e possibilidades, parece mais coerente chamar este fechamento do artigo com a ideia de “inconclusões”. Estamos diante de um novíssimo e desafiante desafio que ultrapassa de longe os limites de nossas experiências pregressas e exigem de todos nós um gigantesco esforço de compreensão e prospecção. Portanto, nossas reflexões não passam de uma modesta contribuição na correnteza desse imenso fluxo de consultas, pesquisas e discussões que os atores da economia solidária e outras políticas públicas sustentadas na eficácia de mecanismos intensivos de participação social popular, estão levando a efeito em todos os cantos do país.

Esperamos que tanto esforço de correções de rotas e ressignificações de conceitos e práticas, feitos com sincero desejo de acertar, consigam de fato recalibrar as nossas cabeças e renovar as energias de nossos corações para traçarmos com sabedoria as novas trajetórias de serviço à reconstrução e aperfeiçoamento do Estado democrático de direito brasileiro e das instâncias democrático-participativas da sociedade. Então nossas melhores esperanças poderão, progressivamente, tornar-se realidade na medida da autenticidade de nossos compromissos com a construção coletiva das sonhadas sociedades do bem viver!

 

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Gilberto. Em diálogo com o Fórum Brasileiro de Economia Solidária. YouTube: @tvecosol.Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T14K2Zza6LQ. Acesso em: 19 jan. 2023.

CARVALHO, Gilberto.. Espero que tenhamos um governo pedagogo. Site Brasil de fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/01/25/gilberto-carvalho-espero-que-tenhamos-um-governo-pedagogo. Acesso em: 25 jan. 2023.

CARVALHO, Gilberto.. Sem dialogar com as massas, o risco é repetir 2013 e 2016. [Entrevista cedida a] Wilson Dias. Publica. Disponível em: https://apublica.org/2022/11/gilberto-carvalho-sem-dialogar-com-as-massas-o-risco-e-repetir-2013-e-2016/. Acesso em: 21 nov. 2022.

DAGNINO, Renato. Tecnociência solidária: um manual estratégico. 2. ed. Marília: Lutas Anticapitalistas, 2019. 161 p.

PEPPE, Atilio Machado. Associativismo em rede na Favela Santa Marta (RJ). 2003.Dissertação (Mestrado emCiência Política) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. 268 p.

PEPPE, Atilio Machado.. Mutação civilizacional em curso. In: PEPPE, Atilio Machado. Trabalho e tecnociência na ética filosófica contemporânea: o legado de Lima Vaz. São Leopoldo: Unisinos, 2021. p. 216-247.

PEPPE, Atilio Machado.. Trabalho e tecnociência na ética filosófica de Henrique Cláudio de Lima Vaz. 2020. Tese (Doutorado em Filosofia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020. 272 p.

SÃO PAULO VI, Papa. Exortação apostólica Evangelli nuntandi. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 1975. 57 p.



[1] Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação da PUC-SP e mestre em Ciência Política pela FFLCH da USP. Foi pesquisador do centro João XXIII de Ação e Investigação Social/IBRADES. Professor de ciência política na PUC-Rio e agente animador do movimento social de favelados do Rio de Janeiro.

 

[2] PEPPE, Atilio Machado. Trabalho e tecnociência na ética filosófica de Henrique Cláudio de Lima Vaz. 2020. Tese (Doutorado em Filosofia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020. 272 p.

[3] Vários outros exemplos de iniciativas e mecanismos de revitalização das políticas públicas sociais, incluindo a de economia solidária, aparecem na sequência da entrevista citada. Vamos apenas registrar nesta nota, tendo em vista a possibilidade de ulterior abordagem desses temas. A saber: possível ampliação da experiência da anterior Secretaria de Governo com o chamado RECID – Rede de Educação Cidadã; estreitamento da interrelação do Governo com os movimentos sociais de diversas áreas críticas da sociedade: movimentos ambientais, MST, saúde, educação, direitos humanos, mulheres, indígenas, povos da floresta, quilombolas, ribeirinhos, comunidades eclesiais ligadas às igrejas pentecostais e de outras denominações etc.; formulação de uma nova política de comunicação, sobretudo no universo da Internet, voltada para a educação popular de massas; melhoria da comunicação e da educação cidadã da juventude, inclusive a universitária; trabalho intenso de comunicação responsável por meio do complexo universo das redes sociais, no aprofundamento da educação e do debate democrático. Temos que focar nesse projeto de educação e comunicação popular. A meu ver, é dele que depende a democracia e a evolução das lutas sociais.

[4]A dimensão crucial da expansão vertiginosa da tecnociência no mundo contemporâneo é aprofundada no capítulo 3 de nossa obra, intitulado “Supremacia problemática da tecnociência”. (PEPPE, 2021, p. 96-130).