Karl Polanyi

capitalismos, mercados e emancipação[1]

Armando de Melo Lisboa [2]

Universidade Federal de Santa Catarina

amelolisboa@gmail.com

 

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Resumo

Neste breve ensaio apalparemos a crítica polanyana da teologia política maniqueia que domina a análise social moderna (tópico 1); seguida da apresentação do movimento pendular da grande transformação e dos erros e acertos polanyanos quanto ao porvenir (tópico 2); das suas sutis distinções entre mercados e capitalismos (tópico 3); da crítica da decisiva inflexão na economia política para a ascensão da sociedade de mercado (tópico 4); e, por fim, do seu juízo sobre os limites do conceito de classe na compreensão social (tópico 5).

Palavras-chave: Karl Polanyi. Capitalismo. Teologia política.

Karl Polanyi

capitalisms, markets and emancipation

Abstract

In this brief essay, we will probe Polany's critique of the Manichaean political theology that dominates modern social analysis (topic 1); followed by the presentation of the pendular movement of the great transformation and Polany's mistakes and successes regarding the future (topic 2); his subtle distinctions between markets and capitalisms (topic 3); from the critique of the decisive inflection in political economy towards the rise of market society (topic 4); and, finally, his judgment on the limits of the concept of class in social understanding (topic 5).

Keywords: Karl Polanyi. Capitalism. Political theology.

 

Retirando os véus dicotômicos e providenciais.

“As instituições humanas básicas detestam as motivações puras. Assim como o sustento do indivíduo e da família não costuma depender da motivação da fome, a instituição da família não se baseia na motivação sexual. (...) O sexo em si jamais produzirá nada melhor que um bordel. (...) Um sistema econômico que realmente dependesse da fome como sua mola mestra seria quase tão perverso quanto um sistema familiar baseado no mero desejo sexual” (POLANYI, 1947, p. 221).

Karl Polanyi (1886-1964) desnudou os “dogmas seculares” (POLANYI, 2012, p. 160) do “fervoroso credo do laissez-faire” – como “a crença no padrão-ouro tornou-se religião (...), um credo satânico” – usando e abusando de expressões como “danação eterna”; “violência demoníaca”; “guerra entre o céu e o inferno”; “moinho satânico”; “aceitação mística”; “perdição secular”; “alma”; “forças espirituais” ... Mais que um uso metafórico, tais categorias inserem-se num paradigma próprio de análise, de cunho teológico-político, que retoma a visão unificada das ciências morais e políticas dominante nas humanidades até princípios do século XIX, e que compreendia as sociedades “enquadradas num esquema de filosofia e teologia” (POLANYI, 2012, p. 154, 26, 4, 26, 35, 91, 107, 190, 91). Sua perspectiva, como veremos, configura uma potente bússola para a caminhada emancipatória de uma humanidade cada vez mais assombrada nos presentes e sinistros tempos.

“O homem foi forçado a resignar-se à perdição secular” (POLANYI, 2012, p. 91).

Explosão vulcânica das desigualdades. Recessão. Mudanças climáticas. Pandemias. Guerras. Com as forças elementais a nos invadirem neste início do século XXI, incertezas e desamparos crescentes impulsionam um novo “momento Polanyi”. A relevância deste húngaro, contudo, não se circunscreve apenas à sua original investigação das demandas por proteção frente às crises ameaçadoras, como quer Gerbaudo (2023).

A crucial e imprescindível contribuição de Karl Polanyi (KP) reside no desvendar da raiz dos nossos dilemas, a separação do político do econômico, nos legando uma matriz conceitual não dicotômica. Aquela clivagem, ao produzir “a liberdade à custa da justiça e da segurança (...), se revelou um perigo mortal para a substância da sociedade”, uma vez que liberdade e justiça, economia e política, perfazem um “fundo comum, cujos elementos não podem ser devidamente separados”. Como “os meios determinam os fins”, ancorar um mundo mais justo e seguro à custa de não salvaguardar o “direito à não conformidade” (POLANYI, 2012, p. 279, 281, 280), por exemplo, adultera e destrói o futuro almejado.

O fundamento do mercado como civilização reside na emergência da “sociedade econômica como algo separado do estado político”, a qual tem por “mentores intelectuais” as ciências humanas e sociais (POLANYI, 2012, p. 128, 132). Conforme KP, aqui o divisor de águas se põe na virada do século XVIII para o XIX[3],  quando “Ricardo e Hegel descobriram, a partir de ângulos opostos, a existência de uma sociedade que não estava sujeita às leis do estado, mas, ao contrário, sujeitava o estado às suas próprias leis” (POLANYI, 2012, p. 123).

Sob a sombra de Hegel, através da lei populacional de Malthus, da lei dos rendimentos decrescentes de Ricardo, ou da lei férrea dos salários de Marx, os pensadores oitocentistas, estabeleceram que “as leis do comércio eram as leis da natureza e, portanto, as leis de Deus”. De acordo com Polanyi, aqueles teóricos serão uma das vertentes da gênese espiritual da civilização do século XIX (POLANYI, 2012, p. 129, 90). “A descoberta da economia foi uma revelação assombrosa, que apressou em muito a transformação da sociedade e o estabelecimento de um sistema de mercado”, deslinda KP. Assim, ao tornarem-se “porta-vozes seculares da

providência divina que governava o mundo econômico” (POLANYI, 2012, p. 132, 124), aqueles pensadores forjaram um paradigma que sujeitou a condição humana a forças fora do nosso controle, expropriando a liberdade humana.

Apesar do esforço de Polanyi, em pleno século XXI ainda estamos, de modo geral, prisioneiros da teologia política hegeliana que enquadrou atemporalmente a história no perpétuo desdobramento dialético entre dois polos, despojando-a da imprevisibilidade e da liberdade criativa da ação humana, restringindo os horizontes... Segundo Hegel, a dialética do movimento-contramovimento da história arrasta os homens em seu fluxo irresistível.

Uma tradução desta visão dicotômica são os ciclos ideológicos pautados pela oposição entre a tese da liberdade e a da justiça, vista como sua antítese. Este horizonte cultiva a antinomia onde ideólogos de direita veneram o mercado (lócus da liberdade individualista), enquanto os de esquerda o abominam, enfatizando o agir do estado (lócus da justiça social). A cristalização destes paradigmas encastelados em posturas devotas é geradora de graves déficits cognitivos na compreensão não apenas do mercado (e do estado) mas da própria sociedade capitalista, antepondo incapacitantes viseiras limitadoras da imaginação, e, consequentemente, castrando os potenciais de renovação societária.

Ou seja, a intransitividade, a falta de abertura dialógica e reflexiva entre estas posições polares, aprisiona a humanidade num raciocínio binário, maniqueu e polarítico do “nós, os bons; eles, os maus”. E este bipolarismo nos empobrece exatamente num momento em que o clamor por segurança, cuidados e respostas pragmáticas e inovadoras é partilhado amplamente, definindo um horizonte metaideológico onde convergem as mais distintas forças sociais (ver tópico 5). Aquele maniqueísmo também nos apequena por ser incompatível com a presente era de interdependência cada vez maior, na qual avanços tecnológicos e compartilhamento de informações potencializam tremendas oportunidades de melhorias na vida de todos, além de capacitar as instituições e a cada pessoa para mais sabiamente responder aos gravíssimos desafios do Antropoceno.

“Está em curso uma inegável mudança de época”, percebe Achille Mbembe, um dos mais argutos analistas contemporâneos. Além de considerar que no presente “a humanidade se tornou uma força geológica”, Mbembe também reflete sobre a hibridização crescente entre o humano e a máquina (transumanismo). A tecnologia, na época atual, “não é mais simplesmente um meio, uma ferramenta ou mesmo um fim. Ela se fez verbo e carne. É a figura epifânica da matéria viva, doravante economia, biologia e escatologia em simultâneo” (MBEMBE, p. 18, 13, 44).

Adotando estes pontos de partida, Mbembe prenuncia que nos aproximamos do “fim das dicotomias (...), [das] velhas oposições entre o mundo do espírito e da alma, e o mundo dos objetos”. Nestes novos tempos, “a lógica das oposições foi substituída pela das permutações, convergências e conversões múltiplas”. Contemporaneamente, “as clássicas dicotomias (...) material/imaterial, natural/artificial e fim/meio são profundamente questionadas”. Argumenta então “a favor de uma nova consciência planetária e da refundação de uma comunidade de seres humanos em solidariedade com todos os seres vivos”. Mas, reconhece que ela não advirá “sem luta”... (MBEMBE, p. 34, 12, 18-19).

Enquanto os tempos escatológicos não se completam, disputas e conflitos entre os diversos modos de habitar o mundo permanecerão, pois são inevitáveis e inerentes à vida social. Assim, sua resolução é mais alcançável quando regidos por polarizações flexíveis e centrípetas. Polarizações rígidas e centrífugas, ao invés de resolver conflitos, envenenam e exacerbam rivalidades, gerando desafeição [Segui a distinção entre polarizações centrífugas e centrípetas exposta por Abranches (2020)]. Ora, a desconstrução da vital empatia dilacera a capacidade política de enfrentar as urgências que pairam sobre a humanidade, agudizando-as ainda mais.

As posições extremadas fantasiam quimérica e distopicamente os processos históricos, como quando proclamam a disjunção entre estado e mercado, a qual inexiste: eles “cresceram juntos”. Demonstra extensamente Polanyi que a história revela uma constante intervenção para construir, aperfeiçoar e manter os mercados, os quais são frutos da ação deliberada do “deus ex machina do estado: “a introdução dos mercados livres, longe de abolir a necessidade de controle, regulamentação e intervenção, incrementou enormemente o seu alcance”. Se “a ação deliberada do estado nos séculos XV e XVI impingiu o sistema mercantil às cidades”, por sua vez a generalização mercantilista, constituindo progressivamente os mercados nacionais, unificou os “países fragmentados pelo particularismo feudal” (POLANYI, 2012, p. 73, 157, 69),  e reforçou a organização do estado centralizado.

O binarismo ideológico, além de historicamente impreciso e mistificador, é conceitualmente problemático especialmente por impedir a compreensão do próprio fenômeno do mercado, o qual frequentemente é confundido com capitalismo, como se sinônimos fossem. Embora mercados e capitalismo estejam umbilicalmente relacionados, estão longe de serem idênticos. Desvendar os mercados e suas ciladas e o capitalismo é, porventura, a mais seminal contribuição de Karl Polanyi.

A disjuntiva e dicotômica visão oculta que todos os sistemas econômicos se nutrem e são dirigidos “por motivações não econômicas” (POLANYI, 2012, p. 48), que as práticas econômicas são possíveis porque estão enraizadas em zonas não mercantilizadas e não contratuais, e que esforços para a universalizarem destroem estas bases. Na contramão da “embriaguez reducionista” da análise econômica ainda padrão, mais contemporaneamente Albert Hirschman, Amartya Sen, Jean Tirole e tantos, advertem que em muitos “setores importantes a economia corre efetivamente o risco de funcionar muito mal sem um mínimo de benevolencia” (HIRSCHMAN, p. 125). Como sem confiança entre as partes negócios não são eficazes, e diante da informação imperfeita vigente no mundo real, a deontologia profissional (códigos de ética), reabilitando a bondade, é uma condição essencial para o funcionamento do mercado, observou Kenneth Arrow (HIRSCHMAN, p. 126).

 KP classicamente descortinou a interface entre a produção econômica e a reprodução social/natural, onde aquela ocorre sob o pano de fundo não econômico desta; que “a vida num vazio cultural não é vida”. Aquela oposição ideológica pró-mercado e pró-governo esconde também que, em sociedades industriais complexas, “poder e valor econômico são um paradigma da realidade social; (...) é impossível a não cooperação entre eles” (POLANYI, 2012, p.  177, 283).

Colocando-se na contramão das ideologias imperantes que nos hipnotizam e esquartejam, fraticidamente, KP, ao final de AGT, argumenta que colocar-se “face a face com a realidade da sociedade” é inexorável e inescapável (POLANYI, 2012, p. 283). Expressando lapidarmente esta visão, vale citar Tony Judt: “o verdadeiro traço característico da vida moderna não é nem o indivíduo isolado, nem o Estado descontrolado. É aquilo que está entre os dois: a sociedade”[4]. O envenenamento ideológico nos cega seja para a importância da família e da comunidade, seja para “o papel central da empresa” (FLEURBAEY, p. 31)...

 

2 A grande transformação: erros e acertos de Polanyi.

“Quando os métodos da economia de mercado eram impostos a povos desamparados, sem medidas protetoras, como em regiões exóticas e semicoloniais, o sofrimento que ocorria era indescritível” (POLANYI, 2012, p. 237).

Em “A grande transformação” KP descreve um duplo movimento: o de desincrustação (desengate) da economia do cenário não econômico donde se insere e emerge; respondido pelo movimento de reincrustação que busca reinseri- la na gramática da vida. Este segundo momento é um “contramovimento protetor”, pois perfaz uma resposta da sociedade ao mercado autorregulável, cuja ação deletéria, descrita inúmeras vezes por KP, “teria destruído a sociedade” caso esta não reagisse. Isto o leva a chamá-lo de “moinho satânico” (POLANYI, 2012, p. 162, 35), pois dele advém ameaças

“pela exploração da força física do trabalhador, pela destruição da vida familiar, pela devastação das cercanias, pela poluição dos rios, pela deterioração dos padrões profissionais, pela desorganização dos costumes tradicionais e pela degradação geral da existência, inclusive a habitação e as artes ...” (POLANYI, 2012, p. 148).

Nesta conflituosa dinâmica do duplo movimento, o estado tem papel crucial, pois tanto impõe, paradoxalmente, o laissez-faire, garantindo-o e incrementando-o – fenômeno captado na sua lapidar sentença: “o laissez-faire foi planejado, o planejamento não” – quanto também desenvolveu uma legislação anti laissez- faire. Esta surge pragmática e espontaneamente do segundo movimento protetor frente às ameaças que o mito da economia de mercado acarretava aos “componentes humano e natural do tecido social”: “deixar o destino do solo e das pessoas por conta do mercado seria o mesmo que aniquilá-los”. A mesma ameaça também pairava sobre a empresa e os negócios: “se faziam necessários os bancos centrais e a gestão do sistema monetário (...) para manter [a organização produtiva] a salvo do perigo que envolvia a ficção da mercadoria aplicada ao dinheiro” (POLANYI, 2012, p. 158,  167, 146, 147).

As tensões resultantes deste movimento duplo e contraditorial – de “ampliação do mecanismo de mercado aos componentes da indústria, trabalho, terra e dinheiro”, transformando-os em “mercadorias fictícias”; e o de resistência e autodefesa espontânea – levaram à desintegração da “civilização de mercado” e à imposição do primado da sociedade (POLANYI, 2012, p. 81, 275).

A civilização de mercado, em sua breve existência no século XIX, pautada pela separação institucional da esfera política e da esfera econômica, implicava “a independência absoluta dos mercados às autoridades nacionais”. O mercado autorregulável, como um “gigantesco autômato”, se conduzia “pela atuação cega de instituições sem alma” (cuja expressão mais visível é o padrão-ouro). Ora, “o mecanismo de mercado não poderia funcionar, (...) seria ilusório esperar que os governos deixassem de proteger as vidas de seus povos por todos os meios ao seu alcance” (POLANYI, 2012, p. 239, 242, 254).

“Não foi por acidente” que as tensões demolidoras do automatismo da zona econômica se fizeram “acompanhar de guerras numa escala sem precedentes”. O crack de 1929 foi o golpe final de um sistema econômico internacional que já estava “em frangalhos”, com o funcionamento cada vez mais precário do padrão- ouro. O colapso do sistema impôs que o equilíbrio fosse “restaurado por meios políticos”. Assim, após 1930, três opções se apresentaram: “os regimes emergentes do fascismo, socialismo e do New Deal [os quais] eram semelhantes apenas no abandono dos princípios do laissez-faire” (POLANYI, 2012, p. 29, 240, 267).

Como a sociedade de mercado “se recusava a funcionar”, o socialismo seria uma possibilidade política. Todavia, KP praticamente descarta a reforma da economia capitalista pelos partidos socialistas na Europa Ocidental – era “difícil” (POLANYI, 2012, p. 262, 257).– uma vez que rompem com sua consolidada tradição de confiança absoluta no sistema de propriedade. Ainda que esta suspeita fosse

“injustificada, pois os partidos socialistas da classe trabalhadora como um todo estavam mais comprometidos com a reforma do capitalismo do que com sua derrubada revolucionária (...), um simples indício   nesse sentido seria suficiente para atirar os mercados numa confusão e começar um pânico universal” (POLANYI, 2012, p. 257).

Embora a experiência da Rússia soviética fosse “inaplicável aos países ocidentais”, sua simples existência provou ser uma “influência decisiva”, pois o “medo do bolchevismo” (POLANYI, 2012, p. 257, 209) alavancou o pêndulo político em direção da contrarrevolução fascista.

Tanto o socialismo quanto a reação fascista surgem como proteção contra as forças destrutivas do mercado. Eles se separam no momento em que o fascista abole a democracia liberal e “glorifica o poder” (POLANYI, 2012, p. 285), mantendo o capitalismo intacto; enquanto a solução socialista passa pela “abolição progressiva da propriedade privada dos meios de produção” (MENDELL; LEVIT, p. 37)

Diante do “perigo imediato para a sociedade” decorrente de uma “sociedade de mercado que se recusava a funcionar”, e do “medo” a possuir o povo, “a liderança seria entregue àqueles que oferecessem uma saída fácil, a qualquer preço. A época estava madura para a solução fascista”. Mais que um movimento político que respondeu aos impasses do capitalismo liberal e se propôs a impedir o socialismo, sacrificando a liberdade, o fascismo – ostentando “filosofias irracionais, estéticas raciais” e “crítica ao sistema partidário (...) e ao conjunto democrático vigente” – era “uma religião política a serviço de um processo degenerativo” (POLANYI, 2012, p. 262, 258, 260, 264).

Fascismo e socialismo sinalizavam, portanto, o fim do capitalismo liberal inventado no século XIX, expressavam a grande reviravolta política e uma ressocialização violenta da economia.

A medida em que o cenário dos anos 1930-1940 avançou – destacando-se o “desaparecimento ao mecanismo automático do padrão-ouro” (POLANYI, 2012, p. 278), o New Deal de Roosevelt, e os claros sinais de derrota do nazismo quando finalizava sua obra magna em 1944, contexto no qual desponta a conferência de Bretton Woods – um otimismo excessivo possuiu KP, o qual vislumbrou a transcendência democrática do pernicioso e utópico dogma do mercado autorregulável:

 

“testemunhamos agora um desenvolvimento em que o sistema econômico deixa de organizar a lei da sociedade e se garante o primado da sociedade sobre este sistema. (...) se pode ver a emergência de pedras fundamentais de um Novo Mundo, a partir das ruínas do Velho: colaboração econômica dos governos e a liberdade de organizar à vontade a vida nacional” (POLANYI, 2012, p. 275, 278).

A “Grande Transformação” é a denominação da ascensão e queda da “civilização de mercado” esculpida em sua obra magna. Um “obituário prematuro”, avaliam Mendell e Levitt (2012, p. 44).

Como é sabido, Polanyi precipitou-se, pois a regulação keynesiana e o welfare state não representaram o fim definitivo da utopia liberal. Hodiernamente, o moinho satânico voltou a operar a todo vapor ... As razões do erro de KP foram de duas ordens. Primeiro, subestimou um dos aspectos do liberalismo que ele mesmo descreveu, que é o do intervencionismo do Estado corretor das próprias imperfeições do mercado. Apesar de ter demonstrado que o liberalismo econômico não se confunde com o laissez-faire (POLANYI, 2012, p. 166), indicando inúmeros casos em que, de forma constante, o Estado agiu para manter o mercado, presuntantemente não vislumbrou neste intervencionismo o risco de aprumar o moinho do mercado para triturar vidas novamente.

KP também subestimou o inexorável dilema advindo da complexidade da liberdade na sociedade industrial-moderna, tão profundamente por ele desvendado. Esta impõe a regulação, a qual “tanto amplia como restringe a liberdade”. Como o equilíbrio entre “liberdades perdidas e recuperadas” nem sempre é perfeitamente visível, ressentimentos sempre serão gerados, pois elas não afetam a todos equitativamente. Isto dá margem para, ciclicamente, denunciar a liberdade que a regulação cria “como não liberdade”; se descrever a justiça e o bem estar que ela oferece como “camuflagem da escravidão”; ou a protestar “contra os déficits orçamentários ameaçadores” da segurança da moeda (POLANYI, 2012, p. 279, 282, 249).

Fascinado com seu genial e descortinador painel, Polanyi comete um erro típico de wishful thinking. Imbuído da “fé profética” (POLANYI, 2012, p. 188) de Owen, seu construto teórico carregou nas tintas teológico-políticas, de modo que ele “se quis profeta”, alfinetam Dardot e Laval (2016: 67) ...

KP pode ter fracassado quanto a previsão sobre a ultrapassagem do liberalismo radical. Mas, como sua visão das lutas não se restringiu aos conflitos de classe definidas conforme seu lugar no sistema produtivo (ver tópico 5), discerniu um horizonte onde lutas ecológicas e sociais estão amalgamadas, politizando as questões planetárias – “terra e trabalho não são separados (...), a vida e a natureza formam um todo articulado” (POLANYI, 2012, p. 199)  – no que anteviu, com precisão, o cenário geo-social do início do século XXI.

Polanyi chamou a atenção que o avanço do capitalismo industrial-urbano degradou as populações agrícolas, o que ergueu, em resposta, um contramovimento protecionista ligado às classes fundiárias. Ocorre que, para o “credo progressista”, a comoditização do solo e a “liquidação do feudalismo” era vista de forma axiomática, levando-os a concluir ser inevitável a destruição das comunidades rurais. Como a luta por preservar o vínculo ao solo era considerada sinal de retrocesso e uma afronta à modernização, “o socialismo revolucionário estigmatizou o campesinato do mundo como massa indiscriminada de reacionários”. Esta desconsideração das lutas de proteção dos vínculos territoriais catapultou-as, por abandono, para as mãos conservadoras e fascistas, abrindo uma clivagem entre “as alas do movimento protecionista” (POLANYI, 2012, p. 200, 203-204, 212).

Esta trágica clivagem se arraiga na concepção dicotômica da natureza, onde sua “função econômica” é apartada da sua condição de habitat. Ao não comungar com esta cisão, Polanyi rompeu com o consenso então dominante:

“A função econômica é apenas uma entre as muitas funções vitais da terra. Esta dá estabilidade à vida do homem; é o local da sua habitação, é a condição da sua segurança física” (POLANYI, 2012, p. 199).

Por nunca fantasiar a separação entre o humano e o natural, KP ultrapassou de longe a dicotômica – e hoje bizarra – posição política que antepunha as questões sociais às questões ambientais e que tanto dificultou a conexão entre estas diferentes lutas na virada do século XX ao XXI, paralisando o avanço civilizacional.

 

3 Mercados e capitalismos.

“O mercado financeiro governa através do pânico” (POLANYI, 2012, p. 252).

Ainda que “no cerne da transformação estava o fracasso da utopia do mercado” (POLANYI, 2012, p. 241), Polanyi ressalva que

“o fim da sociedade de mercado não significa, de forma alguma, a ausência de mercados. Estes continuam, de várias maneiras, a garantir a liberdade do consumidor, a indicar a mudança da demanda, a influenciar a renda dos produtores e a servir como instrumento de contabilização” (POLANYI, 2012, p. 277).

Ao desconstruir a ideologia dos mercados autorreguláveis, KP não escorregou na casca-de-banana de rejeitar in totum o fenômeno dos mercados. Neste aspecto, ao fugir dos extremos da mercadofilia e da mercadofobia, ele se diferencia tanto das ortodoxas abordagens socialistas quanto do rígido liberalismo, perfilando próximo do liberalismo-social.

Partindo do que revela a “moderna pesquisa”, indica que, historicamente, mercados “são locais de encontro” entre compradores e vendedores que nunca foram “essencialmente competitivos”, pois seu padrão possui uma “natureza limitada e não expansiva”. Todavia, “cada uma dessas afirmativas choca-se com algum pressuposto axiomático dos economistas clássicos”. Estes, pressupondo a “propensão do indivíduo à permuta”, adotaram o mito de que a transformação da “engrenagem de mercados num sistema autorregulável de tremendo poder” decorreu da “tendência inerente” deles “em direção à excrescência” (POLANYI, 2012, p. 61, 60).

Como “a história econômica ortodoxa se baseou numa perspectiva imensamente exagerada do significado dos mercados”, não se compreendeu que aquela grande transformação resultou do “efeito de estimulantes altamente artificiais administrados ao corpo social” (POLANYI, 2012, p. 61, 60).

E, acentua Polanyi, dois artifícios foram centrais. O primeiro, visto no tópico anterior, foi a atuação do “deus ex machina da intervenção estatal” (POLANYI, 2012, p. 67).

O outro artifício, que será abordado no próximo tópico, são as “grosseiras ficções” da filosofia econômica, as quais permitiram a “pronta aceitação mística das consequências sociais do progresso econômico, quaisquer que elas fossem”. O estabelecimento da economia de mercado não pode ser inteiramente apreendido sem se compreender o impacto daquela “fé cega [que] havia se apossado da mentalidade das pessoas” (POLANYI, 2012, p. 79, 35, 82).

Mercados sempre foram “acessórios da vida econômica”, e, a partir do final da Idade Média, “importantes para a vida das comunidades”. Mas, permaneceram como “aspecto acessório” enquanto “o sistema econômico estava submerso em relações sociais” e regulado pela autoridade social ((POLANYI, 2012, p. 73, 66, 71). Até a Revolução Industrial, portanto, inexistia o grande mercado autorregulável, e o princípio da permuta coexistia com os princípios da reciprocidade, da domesticidade e da redistribuição. Estes princípios se conjugavam e direcionavam o uso social das riquezas acumuladas e das energias comuns das sociedades, gerando uma pluralidade de modos de organizar a economia e investir/dissipar o excedente coletivo.

Para além das múltiplas “economias”, KP também demonstrou a presença de diferentes tipos de “mercados”. A pioneira distinção polanyana entre “mercadorias reais e genuínas” (aquelas que de fato foram produzidas para venda) e “mercadorias fictícias”, legitima “a ampliação da organização do mercado em relação às mercadorias genuínas”, desde que “acompanhada pela sua restrição às mercadorias fictícias” (POLANYI, 2012, p. 82).

Mercados, portanto, e seus constrangimentos, são inerentes à complexa sociedade industrial, são “materializações do significado e do propósito humano” (POLANYI, 2012, p. 279). Assim, mesmo elucidando, como poucos, seus quase indecifráveis mecanismos financeiros e políticos, KP indicou que mercados transcendem sua rasante dimensão hidráulica. Ainda que seu pulsar expresse aspectos quantitativos e formais, passíveis de serem tratados por linguagem técnica e matemática, eles não representam o essencial. Reduzi-los a fina camada de superfície das regras frias do jogo olvida a percepção da dimensão humana dos mesmos, conduzidos por agentes diversos, com razões e afetos incertos e cambiantes, castrando suas potencialidades futuras. Para além dos seus atributos instrumentais, eles também pertencem ao mundo dos símbolos e da linguagem, ao mundo do espírito e da alma.

Decorre aqui que KP compreendeu os mercados como um fenômeno da ordem moral: deles herdamos “elevados valores (...) [que] devemos tentar manter, por todos os meios ao nosso alcance”. Deles provieram “as liberdades civis, a empresa privada e o sistema salarial [que] se mesclaram num padrão de vida que favoreceu a liberdade moral e a independência de pensamento.” Assim, reafirmando que “não é digna de ser chamada de livre qualquer sociedade construída sobre outros fundamentos”, denuncia o fracasso socialista: “foi em vão que os socialistas prometeram um reino da liberdade, pois os meios determinam os fins” (POLANYI, 2012, p. 278-279, 281).

De mais a mais, com seu já clássico conceito de “incrustação”, KP diferenciou ainda mercados enraizados, sujeitos ao controle social; dos desenraizados, os quais, liberados de controles extraeconômicos e governados internamente por oferta e demanda, estabelecem preços por autorregulação entre oferta e demanda.

É este último tipo, o “mercado desenraizado”, historicamente anômalo, produtor de “efeitos perniciosos”, que é específico ao capitalismo. Se esta forma de mercado não for regulada socialmente, ele se autorregula e, uma vez assegurada sua existência autônoma, impõe-se progressivamente a separação entre as esferas econômica e política, emergindo assim um sistema econômico apartado na sociedade. A força desta motivação monetária distinta, dissociada de propósitos maiores, fundada apenas no insaciável autointeresse maximizador de lucros de indivíduos isolados, ou no medo da fome, é tal que tende, “no prazo de uma geração”, a se generalizar e estruturar a vida social como um todo, engendrando a sociedade de mercado. “Uma economia de mercado só pode existir numa sociedade de mercado” (POLANYI, 2012, p. 82, 32, 77), arremata KP.

Cabe, enfim, ordenar e regular os mercados conforme os propósitos de cooperação que devem reger o mundo em-comum que habitamos, e não os deixar a mercê da fogueira dos caprichos privados de alguns.

Conforme a subordinação dos mercados à sociedade democrática é assegurada e se derruba “o pernicioso dogma do século XIX da uniformidade necessária dos regimes nacionais”, habilita-se “a liberdade de organizar a vontade a vida nacional”. Assim, ao se tolerar que as “nações modelassem suas instituições internas de acordo com suas inclinações” (POLANYI, 2012, p. 278), a incrustação econômica aflorará em um amplo leque de combinações possíveis segundo os padrões culturais- institucionais vigentes em cada sociedade, gerando inúmeras variedades de capitalismo, algumas mais liberais, outras mais coordenadas.

 

 4 “A economia política e a descoberta da sociedade”[5].

“À medida que as leis que governavam uma economia de mercado iam sendo apreendidas, essas leis eram colocadas sob a autoridade da própria natureza. A lei dos rendimentos decrescentes foi uma lei de fisiologia da planta. A lei de população malthusiana refletiu a relação entre a fertilidade do homem e do solo. Em ambos os casos, as forças em jogo eram as forças da natureza” (POLANYI, 2012, p. 138).

Como vimos, a racionalização mecanicista do pensamento social, cristalizando-se através da economia política, foi um artifício filosófico-teológico fundamental para alavancar o sistema de mercado. Mas, o laissez-faire “não era mais que uma tendência espasmódica” até a virada do sec. XVIII ao XIX (POLANYI, 2012, p. 151)[6], vislumbra KP, quando  ocorre o “divisor de águas” do seu “estágio de crisálida”  (POLANYI, 2012, p. 121), para, enfim, se tornar o princípio organizador de um sistema de mercado.  Neste momento “os economistas abandonaram os fundamentos humanistas de Adam Smith” (POLANYI, 2012, p. 128)[7],  e tornaram-se “porta-vozes seculares da providência divina que governava o mundo econômico” ”  (POLANYI, 2012, p. 124). Registra Polanyi que Malthus principia a virada paradigmática da economia política”  (POLANYI, 2012, p. 134). Ele publica, em 1798, “Um ensaio sobre o princípio população na medida em que afeta o melhoramento do futuro da sociedade, com notas sobre as especulações de Mr. Godwin, Mr. Condorcet e outros escritores". O prefácio deste seu famoso livro abre com a sentença: “Este ensaio se originou de uma conversa com um amigo acerca do ensaio do Sr. Godwin” (1983, p. 273), referindo-se à obra “Justiça Política” (1793). Como é sabido, o livro de Godwin, por sua vez, é uma resposta a Edmond Burke, que, em “Reflexões sobre a Revolução Francesa” (1790), faz uma apaixonada acusação ao poder centralizado e arbitrário
fomentado pela Revolução. Assim, Malthus inicia o Capítulo 1 do seu “Ensaio sobre a população” falando do “tremendo fenômeno de horizonte político, a Revolução Francesa” (ibid., p. 279). Arremata então que o propósito do seu livro é demonstrar que “os venturosos aperfeiçoamentos” proclamados pelos defensores da perfectibilidade da sociedade encontram “grandes e insuperáveis dificuldades no seu caminho” (ibidem).

Malthus reage aos porta-vozes do aperfeiçoamento do homem, William Godwin e Marques de Condorcet (único dos filósofos das Luzes a viver – e de forma militante – a Revolução Francesa, que acabará vitimando-o...). O seu pessimismo encarna um profundo câmbio epistêmico, pois a economia política deixa de estar alinhada com a política da “grande sociedade” (expressão usual de Adam Smith em “A riqueza das nações”), voltada para o bem comum, focando-se cada vez mais no fomento do autointeresse.

Determinante, portanto, naquela mudança de atmosfera entre Smith e seus sucessores foi a Revolução Francesa, que tanto assustou as elites europeias a partir do findar do século XVIII, e que, segundo KP, partilhou “a paternidade espiritual da civilização do século XIX” (POLANYI, 2012, p. 90, grifo nosso).

A mudança paradigmática, que distinguirá progressivamente a economia da política, se entronca com o temor às revoluções da longa época da restauração pós-revolucionária. A reação contrarrevolucionária buscou refazer as amarras da superstição e do autoritarismo despótico desfeitas durante o século das Luzes. O “nascimento do credo liberal”67 demarca a reconstrução da economia política no âmbito da restauração, a qual, para impedir futuras rupturas, “pôs um fim à incredulidade do século XVIII”  (ROTHSCHILD, 2003, p. 272)[8].

Da própria Revolução emergirá, mostra Todorov, “a primeira religião política”. Através do terror jacobino, funda-se um novo culto, fundindo o poder temporal e espiritual e sacralizando o poder político “sob a forma do Estado, do Povo ou do Partido” (2008, p. 71-76). Como vimos, KP enquadra o fascismo como uma “religião política” (POLANYI, 2012, p. 259).

A economia política se torna então, sustenta KP, uma fé, restabelecida de forma secularizada. Neste mesmo embalo, Saint-Simon e Auguste Comte, herdeiros de Condorcet, com sua visão cientificista[9], otimista e providencial do progresso, criaram a religião da humanidade... Novas religiões seculares também se conformaram em torno da identidade nacional, agora reforçada pela segurança da superioridade racial, “novo pretexto para a desigualdade e a opressão”, escreveu Benjamin Constant em 1826 (ROTHSCHILD, 2003, p. 273)..

Assim, KP critica o materialismo vulgar dos “pensadores do século XIX”, que, ao configurar a economia guiando-se por uma “racionalidade econômica”, submetiam a sociedade “a leis que não eram leis humanas”, pois seria regida por “leis inexoráveis da natureza” (POLANYI, 2012, p. 273, 274, 138, 140).

“Os estudiosos proclamavam, em uníssono, a descoberta de uma nova ciência que colocava além de qualquer dúvida as leis que governam o mundo dos homens. Em obediência a essas leis, a compaixão não habitava mais os corações” (POLANYI, 2012, p. 111) .

Através dos “mais esclarecidos”, a “aura materialista” do “novo conjunto de ideias [que] penetrou a nossa consciência” ganhou a “dignidade de uma religião secular”. Isto inclui “a economia marxista” e sua “tentativa malograda” (POLANYI, 2012, p. 82, 92, 111, 139) de parar o “moinho satânico” do mercado.

"Onde Ricardo e Marx tinham a mesma opinião, o século dezenove não conheceu a dúvida. Bismarck e Lassalle, John Stuart Mill e Henry George, Philip Snowden e Calvin Coolidge, Mises e Trotski aceitaram igualmente esta fé” (POLANYI, 2012, p. 26)

No “nascimento da civilização do século XIX” todos eles dividirão paternidade, juntamente com a Revolução Francesa. A descoberta das leis que governam uma sociedade complexa “chegou à nossa consciência através da economia política”, verdadeira “filosofia de danação secular” (POLANYI, 2012, p. 90, 91, 106) que forçou o homem a resignar-se à limitadas possibilidades.

Ora, a economia política consolidou-se no século XIX, quando a sociedade se organizou sob o pressuposto das motivações dos indivíduos serem determinadas pela satisfação das carências materiais. Ocorre que tal pressuposto é uma “peculiaridade da época”, e não um fenômeno universal (POLANYI, 2012, p. 172).

Sendo o mundo econômico, sob tal sinistro artifício, governado por leis naturais e não humanas, “nações e povos” perfazem um “gigantesco autômato”, são “apenas bonecos num espetáculo inteiramente fora do seu controle” (POLANYI, 2012, p. 239).

Apenas Owen reconheceu o fato das “possibilidades humanas serem limitadas não pelas leis do mercado, porém da própria sociedade”, levando a KP destacá-lo como “descobridor da sociedade”. Como não estamos manietados nem perdemos nossa ontológica liberdade, podemos “transcender os limites de uma sociedade de mercado e buscar soluções no futuro”, com possibilidades inéditas e sem precedentes “geradas pelo lazer e pela segurança” abrindo-se para todos. A cristalina rejeição de KP ao princípio do “lucro como força organizadora da sociedade”, portanto, perfaz um tributo à “perspicácia de Robert Owen” (POLANYI, 2012, p. 92, 141, 174, 281, 191, 145).

Todavia, a visão não economicista de Polanyi – “nenhum motivo especificamente humano é econômico”, célebre frase de Frank Knight que costumava citar – não o faz depreciar a engrenagem econômica, em especial a inerente ao relacionamento entre países. Pelo contrário. Não apenas salienta ao longo de toda a obra o decisivo papel do jogo financeiro internacional, desencadeando “terremotos econômicos” que afetam a vida de dezenas de milhões apenas na Europa (POLANYI, 2012, p. 274, 236); como também vislumbra que mesmo desmantelando a ficção da mercadoria e restaurando o primado da sociedade sobre o sistema econômico, este sistema não se liquefazerá.

A complexidade da sociedade industrial perdurará, mormente no intercâmbio entre as nações. A diferença com relação à vida internacional do século XIX, regida pela separação do político e do econômico, é que, no novo padrão, os governos fruirão de soberania e não se submeterão passivamente ao centro financeiro mundial regido pelo padrão-ouro. Não se trata de uma “soberania anarquista”, autárquica, mas de estabelecer uma cooperação federalista entre as nações. Salienta KP a importância do equilíbrio de poder na governança internacional: caminhar em direção a um futuro de paz e liberdade “dependerá do nosso sucesso em estabelecer uma ordem internacional” (POLANYI, 2012, p. 235, 278, 280).

 

5 “O interesse de classe e a mudança social”[10].

“Os perigos que ameaçam o homem e a natureza não podem ser separados simplesmente” (POLANYI, 2012, p. 212).

Após romper com o “preconceito economista” que restringe “os interesses dos grupos humanos a seus rendimentos monetários”, KP volta-se contra outras simplificações do paradigma econômico, especialmente sua “estreita teoria de classe”. Em verdade, Polanyi reconhece que “a ênfase sobre a classe é importante”, e, com maestria, discerne ao longo da obra o jogo entre as classes dentro de uma sociedade complexa. Mas também aponta, incisivamente, como o conceito de classe impede compreender a complexa sociedade como um todo, pois oferece “apenas uma explicação limitada para os movimentos da sociedade em longo prazo”. Registra, inclusive, alguns casos de “simbiose” benéfica a extratos distintos, que se acoplam “uns aos outros na sua luta pela sobrevivência” (POLANYI, 2012, p. 180, 173, 170, 148, 170, 29, 55). Significativamente, a palavra “simbiose” foi destacada por KP no “índice remissivo” de AGT.  .

A equívoca visão classista é ainda mais perigosa diante da separação das esferas econômica e política, condição em que “o trabalho se entrincheirou no parlamento” e “os capitalistas fizeram da indústria uma fortaleza para dirigir o país”. Assim, o “rotineiro conflito de interesses entre patrões e empregados assumiu um caráter sinistro”, foi “fonte de tensão demolidora” (POLANYI, 2012, p. 258, 240).

As tensões entre as classes deram origem a um “perigoso impasse” que transformou a crise do choque entre as forças do duplo movimento “numa catástrofe” (POLANYI, 2012, p. 149), colocando

“a própria sociedade em perigo pelo fato das partes rivais fazerem do governo e dos negócios, do estado e da indústria, respectivamente, os seus baluartes. Duas funções vitais da sociedade, a política e a econômica, estavam sendo usadas e abusadas como armas em uma luta por interesses seccionais. A crise fascista do século XX teve origem justamente nesse perigoso impasse” ” (POLANYI, 2012, p. 149).

Liberais e marxistas, “defendendo a perspectiva das classes em oposição, (...) quase obstruíram por completo uma visão geral da sociedade de mercado e a função do protecionismo em tal sociedade”  (POLANYI, 2012, p. 175).

Manejando dois princípios contraditórios, “habitação versus progresso”[11], KP elucida que a demanda por proteção (“habitação”) não pode ser reduzida a uma posição ideológica extrema, seja da esquerda ou da direita. A luta pelo habitat humano como um todo é tanto de trabalhadores quanto dos homens de negócio – “a finalidade do princípio da proteção social era preservar o homem e a natureza, além da organização produtiva” e ela decorre do movimento de contínua expansão do mercado, do “progresso econômico não regulado”. Este tipo de progresso se faz “à custa da desarticulação social” (POLANYI, 2012, p. 148, 36, 37), destrói o “tecido social”,

“ameaçando as defesas do país, depredando suas cidades, dizimando sua população, transformando seu solo sobrecarregado em poeira, atormentando seu povo e transformando-o de homens e mulheres decentes numa malta de mendigos” (POLANYI, 2012, p. 37)

O movimento protetor se organizou “não em torno de interesses de classe, mas em torno das substâncias sociais ameaçadas pelo mercado. (...) O que fez as coisas acontecerem foram os interesses da sociedade como um todo” (POLANYI, 2012, p. 181).

“Foram precisamente os interesses sociais, e não os econômicos, de diferentes segmentos da população, que se viram ameaçados pelo mercado, e pessoas pertencentes a vários estratos econômicos, inconscientemente, conjugaram forças para conjurar o perigo” (POLANYI, 2012, p. 173)

.

 

Não foram “interesses econômicos estreitos” que ancoraram normas sanitárias ou “leis relacionadas à habitação, às amenidades e às bibliotecas públicas (...). Tais medidas corresponderam simplesmente às necessidades de uma civilização industrial” (POLANYI, 2012, p. 172).

 

KP também insiste sobre a doutrina “equívoca da natureza essencialmente econômica dos interesses de classe”, os quais “são basicamente sociais”, pois se referem mais diretamente ao “status e segurança” (POLANYI, 2012, p. 171, 172):

“As oportunidades das classes em luta dependerão da sua habilidade em ganhar apoio fora da sua própria coletividade, e isso também dependerá da possibilidade de executarem as tarefas estabelecidas por interesses mais amplos do que o seu próprio. (...) Seu sucesso é determinado pela amplitude e variedade dos interesses a que ela possa servir, afora os seus. (...) Nenhuma classe brutalmente egoísta pode manter-se na liderança” (POLANYI, 2012, p. 170, 174, 175).

A cegueira do paradigma classista levou, ainda, a muitos não perceberem o inter- relacionamento central entre cultura e economia, que “o homem e a natureza são praticamente um na esfera cultural” (POLANYI, 2012, p. 181), e a desqualificar qualquer coisa para além da exploração.

Amparado na pesquisa antropológica, KP arremata que os objetivos pelos quais trabalhamos “são determinados culturalmente”. A mente economicista, todavia, se recusa a ver a força básica do elemento cultural. Sua “ênfase na exploração” obscurece “o tema ainda maior da degeneração cultural” (POLANYI, 2012, p. 177, 178).

“A força elementar do contato cultural” fica evidente quando KP analisa o “problema colonial”, obscurecido pelo “preconceito econômico”. Ao colocar “tão persistentemente a exploração à frente”, se “descreve mal uma situação” como a da Índia, por exemplo, onde “as três ou quatro grandes fomes que a dizimaram sob o governo britânico não foram consequência da exploração, mas simplesmente da nova organização do mercado que desmoronou a antiga aldeia” (POLANYI, 2012, p. 178, 179).

Em outros casos, foi “o oposto da exploração” que iniciou a desintegração social. “A concessão territorial feita em 1887 aos índios norte-americanos beneficiou-os individualmente. Entretanto, a medida quase destruiu” seus povos, não fosse o “retorno às possessões tribais” anos após, o que fez ressurgir suas comunidades. Neste caso, “não foi a melhoria econômica, mas a restauração social que fez o milagre” (POLANYI, 2012, p. 180).

Diante das “óbvias semelhanças”, KP traz ainda a analogia entre a “catástrofe” no mundo colonial de hoje com a ocorrida em “grande parte da sociedade branca nos primeiros dias do capitalismo”: “De fato, nem a degradação racial em algumas áreas coloniais de hoje, nem a desumanização análoga do povo trabalhador de um século atrás, eram econômicas na sua essência” (POLANYI, 2012, p. 180, 315).

O problema da exploração não é ignorado por KP: “É claro que o trabalhador era explorado em termos econômicos: ele não recebia em troca aquilo que lhe era devido.” Mas, “a despeito da exploração, financeiramente ele estava melhor do que antes” (POLANYI, 2012, p. 142, 42). A desolação e os horrores das cidades industriais inglesas surgidos com o advento da revolução industrial não eram decorrentes da exploração econômica, nem inexoráveis à sociedade moderna.

Todavia, crentes deste ônus, Malthus, Ricardo e Marx adotaram a “lei férrea dos salários” como “fundamento da nova ciência econômica”. “A causa primeira da degradação” “não é a exploração econômica, como se presume muitas vezes, mas a desintegração do ambiente cultural da vítima” – como as provocadas pela “armadilha mortal” da Speenhamland Law, cujos efeitos negativos reduziram pobres à indigentes – a qual leva à “perda do autorrespeito”. “Despojados da cobertura protetora das instituições culturais, os seres humanos sucumbiriam ...”. Organizar a sociedade “sob o princípio do ganho e do lucro” corrompe moralmente as populações, enfatiza Polanyi, degradando o “caráter humano”, transmutando “tanto o trabalhador como o capitalista (...) em seres rudes e brutais” (POLANYI, 2012, p. 135, 142, 107-109, 79, 142).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

6 Considerações finais

“Invocamos aqueles que acreditávamos ser os três fatos constitutivos da consciência do homem ocidental: o conhecimento da morte, o conhecimento daliberdade e o conhecimento da sociedade” (POLANYI, 2012, p. 284).

A perspectiva epistêmica de Polanyi reabilita a antiga expressão “ciências morais e políticas” vigente até o final do século XVIII[12], onde os pensamentos econômico, teológico, político e moral estão profundamente amalgamados. Esta visão culmina quando, nas conclusões de AGT, salienta que a mudança civilizatória da superação da sociedade de mercado encontra “o caminho bloqueado por um obstáculo moral” (POLANYI, 2012, p. 281).

Este arremate decorre da sua compreensão da caminhada da humanidade como um movimento rumo à liberdade, o que o aproxima de ser uma espécie de kantiano enrustido. Mas nosso húngaro não a vislumbra num cenário futuro de perfeição, pelo contrário. Nesta caminhada, dificuldades cada vez maiores se apresentam para a realização da liberdade, a qual, a cada patamar alargado alcançado, depara-se também com limites ainda mais elevados. “Parece que os próprios meios de manter a liberdade adulteram-na e a destroem”, constata. Como “não existe uma sociedade sem o poder e a compulsão (...), se a regulação é o único meio de difundir e fortalecer a liberdade numa sociedade complexa”, o inevitável constrangimento da mesma “tanto amplia como restringe a liberdade”.


Por mais forte que seja cada passo na sua direção, “sempre haverá um fortalecimento do poder no centro e, portanto, ameaça à liberdade” (POLANYI, 2012, p. 278, 282, 279, 280).

Mas a realidade do imperativo societário não impede “o renascimento da liberdade”, do mesmo modo como “a vida ressurge da resignação” da morte, pois existem dimensões que a transcendem – como “possuir uma alma”. A existência de dimensões que transcendem as realidades limitadoras “dá ao homem uma coragem indômita e forças” (POLANYI, 2012, p. 285) para permanecer lutando pela emancipação e melhoria.

 

É no plano “moral ou religioso”, aduz, na resignação à impossibilidade do advento do paraíso, conjugada com a fidelidade a “criar uma liberdade mais ampla pra todos”, que reside “a chave para o problema da liberdade”. Critica então, com destaque, a insuficiência da compreensão cristã que a limitou à ética individualista, inadequada para a “vivência numa sociedade industrial” (POLANYI, 2012, p. 278, 285, 284).

Tais conclusões não se confundem com desvios moralistas, pois insistentemente KP refutou modelos simplistas do comportamento humano. Para ele, as motivações humanas sempre são complexas, irredutíveis a uma única e pura motivação: “a história não é modelada por qualquer fator único”, insistia (ver epígrafe inicial). Como os fenômenos sociais são frutos de múltiplas causas e do permanente tensionamento, querer elevar um único fator à justificativa do comportamento social, maximizando-o, produzirá ímpetos extremos e deformadores, como ocorrido no século XIX, quando surge a “civilização econômica” (POLANYI, 2012, p. 241, 31). No núcleo da sua visão está a ideia de que na ordem econômica coexistem os princípios da reciprocidade, redistribuição, domesticidade e permuta; que ao produzir e transacionar perseguimos múltiplos interesses, seja riqueza, vingança, poder, medos, caprichos ou mesmo um mundo melhor.

Sua sistematização holística e substantiva demonstra quão móveis são, no mundo industrial, as fronteiras entre o econômico e o político, razão e sentimentos. Assim, busca evitar a distinção entre cultura e economia política, natureza e sociedade. Mas, não deriva para um organicismo vulgar e evolucionista, ou mesmo visões puramente normativas e idealísticas que minimizam ou removem as rusgas que impedem o acorde perfeito de uma totalidade harmoniosa, e que configuram pontos de vistas incapazes de enfrentar a vontade de poder tecnicista desenfreada.

Ao contrário, sua ancoragem histórica não elimina os antagonismos e barreiras que constantemente se interpõem no processo social e que dificultam, bloqueiam e ameaçam a própria continuidade da vida. Polanyi, ao pôr “o dedo na ferida das tensões e contradições que estão no âmago do mundo moderno”111, nos capacita para melhor enfrentá-las, possibilitando assim proteger e até alargar as liberdades.

KP constrói um marco conceitual onde “pessoas” são agentes na dinâmica econômica, rompendo com o típico raciocínio abstrato e cada vez mais exotérico vigente nos ramos dominantes da teoria econômica e social. Para tal, recorre extensivamente à antropologia, imortalizando-se como um dos clássicos do ramo da antropologia econômica. A envergadura de sua teorização edificou pontes imprescindíveis entre as principais tradições de interpretação social, haja visto que o debate sobre austeridade hoje em curso, bem como o retorno das hostes fascistas, repete quase que literalmente o script desenhado por Polanyi há quase um século.

A concepção polanyana move-se do campo economicista (regido apenas pela lógica da maximização do valor) para o do lugar onde a produção encontra a reprodução, a economia encontra a política, a sociedade encontra a natureza. As tensões entre produção e reprodução, entre economia e política, humano e não humano que afloram nestes locais transcendem as lutas de classe, não sendo a elas secundárias. Tais contradições, denominadas de “polanyanas” ou “lutas de fronteira” por Nancy Fraser, perfazem o cerne do horizonte dos conflitos contemporâneas e perfilam na linha de frente das atuais estratégias emancipatórias.

 

REFERÊNCIAS

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[1]Uma versão preliminar deste ensaio foi apresentada em conferência proferida no GESPET/UFERSA (Universidade Federal Rural do Semiárido, Mossoró/RN) em 07 dez 2022.

[2]Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (1979), mestrado em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (1988) e doutorado em Sociologia Econômica pela Universidade Técnica de Lisboa (2004). Atualmente é professor Associado I da Universidade Federal de Santa Catarina 1.

[3] Emma Rothschild (p. 41), em meticulosa investigação, corrobora que até o final do século XVIII, “’estado’ e ‘mercado’ ainda não eram compreendidos como dois domínios impositivos e competitivos da sociedade, e eram, na verdade, interdependentes”. 

[4] T. Judt, p. 345. Na mesma direção, Edward Luttwak profere: “Para mim, eficiência de mercado é coisa que só devemos praticar na medida exata de nossa necessidade. Porque tudo o que valorizamos nesta vida se situa no reino da ineficiência – amor, família, vínculos, comunidade, cultura, velhos hábitos e sapatos velhos” (apud Meaney).  

[5] Título do cap. 10 de AGT.  

[6] Meticulosamente, KP distingue que até meados do século XVIII, seja com Hume, Quesnay, Helvetius e outros, a “aplicação de leis newtonianas à sociedade foram apenas metafóricas (...). Nenhuma incursão no reino dos fatos fisiológicos poderia confundir a teologia quanto às raízes espirituais da comunidade humana”. Predominava então a percepção de que “a dignidade de um homem é a de um ser moral” (p. 124-6).  

[7] KP, em geral, louvou o “grande senso de realismo” de Adam Smith, comungando profundamente com sua visão da riqueza como “apenas um aspecto da vida da comunidade, a cujas finalidades ela permanecia subordinada”. Mas isto não o impediu de pontuar críticas aos limites antropológicos de sua “grande obra”: “As sugestões de Adam Smith sobre a psicologia do homem primitivo eram tão falsas como as de Rousseau sobre a psicologia política do selvagem". Ressalva, contudo, que “nenhuma leitura errada do passado foi tão profética do futuro” (p. 123; 46)... 

[8] Rothschild narra, com brilhantismo, como a economia política, após a Revolução Francesa, “foi uma parte do extenso processo de restauração” (p. 271). Ecoando esta alquimia sombria, pioneira e classicamente denunciada como dismal science por Thomas Carlyle, em outros ensaios (como, por exemplo, em 2014, e 2016) também discuti o quanto o pensamento econômico visou restabelecer ordens transcendentes e constringir o autogoverno dos homens. 

[9] O cientificismo, esclarece Todorov, professa “que o mundo é inteiramente passível de conhecimento”, e que o único caminho para alça-lo é a fé na ciência. Contudo, salienta que, “desvio das Luzes, o cientificismo é seu inimigo, não seu avatar”. Outros representantes das Luzes combateram a ilusão cientificista, “como Vico, que afirmava que o conhecimento pelo mito e pela poesia convinha mais a algumas matérias do que aquele que se apoia na razão abstrata” (2008, p. 88; 43; 92). 

[10] Subtítulo do cap. 13 de AGT. Republicado em 1968 na coletânea “Primitive, archaic and modern economies”, e inserido na edição brasileira de “A subsistência do homem”.  

[11] Título do capítulo 3 de AGT.  

[12] Todorov desvenda que a alteração terminológica de “ciências morais e políticas” para “ciências sociais e humanas” dá-se “exatamente na época da Revolução Francesa”. Salienta que esta substituição se deve a busca de “libertar o estudo do homem e da sociedade de toda a tentação normativa” (1992, p. 7), equalizando-o com o método das ciências naturais.