MAIS NÁUFRAGOS DO QUE NAVEGANTES NOS OCEANOS DA INFORMAÇÃO
reflexões sobre bibliotecas digitais no contexto latino americano
Daniel Ramalho de Souza Pereira[1]
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
danielramalho@gmail.com
Carlos Alberto Ferreira[2]
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
carlos.cafe@unirio.br
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Resumo
Partindo da premissa de que as bibliotecas, no século XXI, já devem assumir como horizonte o modelo chamado híbrido, o que conjuga um ambiente físico com alguma presença de serviços digitais, o artigo busca refletir sobre algumas questões contemporâneas apontadas pelo campo da Ciência da Informação e a maneira como seus impactos podem vir a modelar o futuro da instituição biblioteca.
Palavras-chave: Biblioteconomia Digital; Bibliotecas; Informação; Recuperação da Informação.
MORE SHIPWRECKED THAN NAVIGANTS IN THE OCEANS OF INFORMATION
reflections on digital libraries in the latin american context
Abstract
Based on the premise that libraries, in the 21st century, should already take the so-called hybrid model as their horizon, which combines a physical environment with some presence of digital services, the article seeks to reflect on some contemporary issues raised by the field of Information Science and how its impacts can shape the future of the library institution.
Keywords: Digital Librarianship; Libraries; Information; Information Recovery.
1 A GUISA DE PREÂMBULO (OU COMO PUDEMOS PENSAR)
Setenta anos se passaram desde que a cultuada dissertação de mestrado Calvin Mooers no MIT cunhou o termo de recuperação de informação armazenada (retrieval of stored information), para indicar o processo de localização de uma informação cuja localização ou existência pregressa era, até então, desconhecida (MOOERS apud GARFIELD, 1997, tradução nossa). Conceito chave para alguma compreensão das aceleradas e complexas dinâmicas que consolidaram a sociedade da informação, cujas transformações na sua direção realizaram com muita rapidez e eficiência os processos de desregulamentação, de privatização e da ruptura do modelo de contrato social entre capital e trabalho característicos do capitalismo industrial (WERTHEIN, 2000, p.72).
Esse novo arranjo de sociedade, hiperconectada, tem a informação como seu subsídio fundamental (WERTHEIN, 2000), que vende-se muito bem, cada vez mais e em maior quantidade, onde o rápido consumo de produtos informacionais, surgido na esfera da produção e da troca no modelo mercantil, deu origem às denominadas indústrias de informação com seus produtos informacionais e a informatização como parte integrante dos processos (LE COADIC, 1994). Essas novas dinâmicas que se anunciavam, aceleradas, no contexto da globalização, levaram alguns autores a refletir sobre rupturas completas nos paradigmas estabelecidos, como exemplo no pensamento do sociólogo estadunidense Daniel Bell (1919-2011) que previu o advento de uma sociedade “pós-industrial” que se tornaria possível graças aos avanços na computação que estavam construindo pontes sólidas entre o corpo da teoria formal e as amplas bases de dados, emergindo assim uma economia de base informacional que, no limite, inaugurou um novo modelo de produção que seria capaz de extinguir o proletariado (BELL, 1977), pilares teóricos da teoria marxista.
Nas últimas décadas do século XX, previsões como as de Daniel Bell foram refutadas com veemência por pensadores e acadêmicos em todo o planeta. Como também foi bastante relativizada a ‘profecia’ de Vannevar Bush (1945), no artigo seminal dos estudos informacionais, As we may think, publicado na revista The Atlantic Weekly, que anteviu a ampla disseminação das tecnologias de comunicação e informação e seus impactos na vida humana, cuja frase final do texto - “or to lose hope as to the outcome” (BUSH, 1945) - que pode ser lida como um medo de perda por completo da esperança ou, quiçá, uma previsão que as máquinas assumiriam o controle, talvez escravizando os seres humanos, tal como no filme Terminator (O Exterminador do Futuro, 1987), tenha recebido traduções positivistas nos mais diversos idiomas, que relativiza o temor aparente do autor.
Talvez a explicação seja a de que muitas dessas traduções foram feitas nos anos 80/90, momento de um caráter extremamente tecnófilo, ambiente de grande entusiasmo com as possibilidades futuras de uma tecnologia que pavimentaria, como o título do livro de Bill Gates E (1995), A estrada para o Futuro, libertando os seres humanos das tarefas repetitivas para que pudéssemos nos dedicar ao ócio criativo, que o trabalho das pessoas na sociedade pós-industrial seria marcado pela união entre estudo e lazer, com fins de semanas de três ou quatro dias, como indicou um filósofo bastante popular à época.
No século XXI, a Ciência da Informação (CI), disciplina que fundou-se para investigar “as propriedades e o comportamento informacional, as forças que governam os fluxos de informação, e os significados do processamento da informação, visando à acessibilidade e a usabilidade ótima” (BORKO, 1968) se abre para a transdisciplinaridade, passando a se enxergar enquanto uma disciplina-protótipo que assume “de forma definitiva, tanto sua natureza de ciência social quanto sua postura de ciência pós-moderna” (WERSIG apud ARAÚJO, 2003). Para o Professor da UFMG, Carlos Alberto Ávila Araújo, um dos principais pensadores brasileiros do campo, a CI deve, hoje, se abrir enquanto um “espaço da convivência do diverso” (ARAUJO, 2014, p. 27) e também como “um campo com muita criatividade para a formulação de novos conceitos, muita agilidade para a compreensão de novos fenômenos e o desenho de novos âmbitos de pesquisa, além de fôlego para dialogar com as mais distintas áreas disciplinares” (ibid, p.28, grifos nossos).
Na segunda década do século XXI, convicções sobre efeitos positivos da tecnociência como Daniel Bell se revelaram otimistas. Na atualidade, o capitalismo assume uma forma do capitalismo de plataforma, onde os maiores players globais que não são mais indústrias de produção e, sim, corporações que controlam a vetorialização, ou seja, detém os algoritmos que, através da inteligência artificial, controlam e operam o vetor (COCCO, 2021) como Amazon, Uber, Airbnb, Amazon, Spotify e Netflix. Mega corporações que, com efeito, põe informações em movimento na velocidade de um clique. E, essa ruptura não se dá simplesmente pela emergência de novos modelos de negócios, da implantação de novas tecnologias sociais ou de novas formações e relações de infraestrutura e logística. Ela também causa um alargamento do fosso informacional, onde a grande maioria das pessoas do planeta se encontra do ‘outro lado do abismo’, ou servindo de cobaias para o aprendizado de máquina, consumidores programados pelos algoritmos ou fazem parte das três bilhões de pessoas excluídas, os náufragos, que não tem acesso à grande rede.
Essa revolução é todo um core, a consolidação do ‘choque do futuro’ em novas formas de organização que consolidam a economia informacional numa sociedade hiperconectada que funciona 24 horas nos sete dias da semana, de trocas instantâneas em rede na chamada ‘Era da Informação’ (TOFLER, 1968; BELL, 1977; CASTELLS, 1995; 2007). Embora, como tenha demonstrado Armand Mattelard, essa denominação seja a gênese de um conceito que nos aponta para “uma denominação descontrolada” (MATTELARD, 2008).
A pandemia da COVID-19, depois de décadas de aceleração e de frenesi, acelerou os processos de choque, fragmentação e de isolamento relacionados à inevitável expansão das atividades e experiências na forma online e também acentuou o caráter mercantilista da acumulação, metamorfoseado de monetização na chamada Era da Informação.
Para alguns pensadores da atualidade como o filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, a dificuldade contemporânea de respirar é tanto literal quanto metafórica. Para Bifo, estamos vivendo o “curto-circuito” de uma época que, cada vez mais, precariza a vida humana e isso é decorrente, a um só tempo, da bancarrota dos regimes neoliberais e a enorme complexidade que vem atrelada a pandemia de um vírus, que é tanto um agente biológico quanto psíquico e atua como “recodificador” das nossas vidas (BERARDI, 2021). Um tempo onde a principal causa da angústia coletiva da atualidade reside, em essência, da primazia do lucro privado sobre o interesse social.
Prestes a completar 50 anos de existência, os pensadores da Ciência da Informação no Brasil tem se dedicado a traçar linhas de força, algumas delas foram apresentadas pelo Professor titular da UFRJ, Giuseppe Cocco (2021), no curso Informação, Algorítmicos e Inteligência Artificial, ministrado à distância na Escola de Verão do IBICT:
I. Inteligência Artificial (IA), nascida com a questão teórica, “Podem as máquinas pensar?” de Alan Turing (1950), se encaminha para um evento singular, um fenômeno análogo a um buraco negro que engole toda a matéria ao seu redor, momento em que a IA conseguirá se automatizar completamente da subordinação ao operador humano, passando a se auto-programar, de maneira incessante;
II. Aceleração Algorítmica, ligada a emergência da nova potência capitalista mundial, a China, determina um câmbio da economia que vai além de um novo modelo de capitalismo, que efetivamente inaugura um novo modo de produção, chamado de vetorialismo, onde o interesse não é mais pela posse dos meios de produção mas sim a monetização do vetor; e
III. Sociedade Pólen, centrada no princípio de freemium, onde redes sociais não cobram dos usuários para utilizá-las mas também não os remuneram pelos conteúdos produzidos, transformando seus usuários em produtos cujos dados são vendidos às corporações, em um processo de monetização, crucial para o debate sobre o fenômeno da desinformação em suas diversas variantes. (COCCO, 2021) .
Diante desse quadro, agravado pela pandemia, em que é difícil até mesmo respirar, o acesso a tecnologia se tornam imperativo categórico que implica, em mão contrária, numa ferramenta de exclusão social de uma sociedade que cada vez mais se ‘poliniza’, nos parece urgente refletir de que forma as bibliotecas, instituições seculares, podem atuar no sentido de manterem sua relevância em questões como o atendimento às necessidades informacionais, contribuir para reduzir o abismo digital aberto pelo acesso à tecnologia e no letramento informacional dos seus usuários. É isso que tentaremos empreender.
2 DESEJO, NECESSIDADE E VONTADE (DE INFORMAÇÃO)
Claire Guinchat e Michel Menou em 1988, na obra exemplar chamada Introdução geral às ciências e técnicas da informação e documentação, publicada pela UNESCO com o IBICT (1994) com o intuito de reduzir o déficit de informação dos países em desenvolvimento e também apoiar a implantação de estruturas eficazes de biblioteconomia e documentação que era (e ainda é) bastante dificultada pela insuficiência de recursos humanos e tecnológicos, deixaram questões em aberto para o devir. Em uma delas, perguntaram:
Em um futuro mais longínquo, o armazenamento dos documentos irá também desaparecer. O armazenamento já está sendo executado em algumas bibliotecas, por robôs, simplificando, desta forma, as pesquisas e a comunicação de documentos. O pessoal de execução será, dentro de pouco tempo, substituído pela máquina. Entretanto, a máquina que cria novos processos, novas técnicas e novas possibilidades, será também a fonte de novas profissões? (GUINCHAT; MENOU, 1994, p. 514, grifo nosso)
Na atualidade, a questão deixada talvez ecoe mais. Como profissionais de informação, estaremos lidando de maneira adequada, se apropriando das TICs e utilizando-as como ferramentas de disseminação de informação e de afirmação profissional? Ou estaríamos deixando o campo ‘aberto’ para que profissionais de tecnologia assumirem a dianteira?
Vamos a um exemplo: Guinchat e Menou fazem uma distinção entre duas categorias dos usuários, usuários finais e usuários intermediários. Intermediários é a posição em que os autores posicionam os profissionais de documentação e informação que atuam como mediadores de informação no atendimento às necessidades informacionais dos usuários finais. No texto, os autores já apresentam preocupações sobre as formas como a automação, especialmente em questões que tangem os processos de recuperação da informação, vai interferir nesses serviços e impactar o trabalho.
Quatro décadas depois da publicação da primeira edição, a velocidade de varredura de informações pelas máquinas que se tornou possível no século XXI, nos aponta que não havia exagero no questionamento de Guinchat e Menou. Com a emergência de sistemas altamente complexos de recuperação de informações que tem no Google seu maior expoente, só rivalizado, talvez, pelo chinês Baidu, sistemas monstruosos de recuperação, que partem de consultas em linguagem natural e são capazes de fazer a varredura de 100 bilhões de linhas de texto por segundo, gerando uma quantidade insana de dados (MANOVICH, 2018), todos os processos listados na figura foram convertidos na temporalidade e ao alcance de um clique. E, isso, talvez não seja tão positivo e fortuito como o otimismo da perspectiva tecnófila que imperava em fins do séc. XX nos apontava.
Para os nativos digitais, nascidos após a Internet, essas constatações talvez não sejam capazes de causar assombro, mas para pessoas do século passado parecem assombrosas. É nobre e altruísta a definição enraizada nos estudos informacionais que afirma que um sistema de informação precisa atender às necessidades dos usuários, mas hoje, talvez, pareça uma definição inocente. Quem vigia as ações (recomendações) dos novos usuários intermediários, os algoritmos, que trabalham sem regulação, movidos pela intenção de gerar monetização por meio da vetorialização? Quem pode garantir que as informações recuperadas em consultas nos monstruosos sistemas não seguem simplesmente uma lógica de oferta, demanda e consumo, atuando até mesmo para criar desejos, induzindo necessidades, nos novos modos de produção e circulação da informação-mercadoria? Será que essa infinidade de informações recuperadas realmente ampliam a capacidade humana de reflexão, reforçam valores como democracia e inclusão, apoiando o desenvolvimento dos sujeitos ou será que, em sentido contrário, obstruem a visão, atrofiam o pensamento humano, programando os indivíduos para um caminhar sonâmbulo, com os olhares vidrados pelos rolamentos infinitos de imagens em seus dispositivos, em direção ao abismo? Sobre isso encontramos algumas pistas no livro 24/7 Capitalismo Tardio e o Fim do Sono do filósofo e historiador da arte Jonathan Crary (2016), que aponta que a forma tardia do capitalista demanda atenção incessante:
As mudanças recentes mais importantes dizem menos respeito às formas mecanizadas de visualização do que à desintegração da capacidade humana de ver, em especial da habilidade de associar identificação visual a avaliações éticas e sociais. Com uma oferta infinita e perpetuamente disponível de solicitações e atrações, o 24/7 incapacita a visão, por meio de processos de homogeneização, redundância e aceleração. Apesar das afirmações em contrário, assistimos à diminuição das capacidades mentais e perceptivas em vez de sua expansão e modulação. (CRARY, 2016, p. 27)
Nesse contexto, na aceleração da sociedade pós-industrial parece que o desafio maior que se coloca aos profissionais de informação passa por manter a relevância profissional. Como, há muito, já haviam proposto Guinchat e Menou:
Bloqueados há muito tempo entre a velha imagem do “copiador de fichas" e o novo conceito do especialista da informação, os profissionais de informação sofrem com uma imagem ultrapassada da sua atividade. As novas tecnologias e as transformações sociais podem lhes dar nova identidade e nova imagem social. Estão surgindo novas profissões: administradores de bases de dados, mediadores, gerentes de informação, agentes de contato ou information brokers, entre outras. Todas estas novas atividades refletem, pelo seu nome, o dinamismo de uma única profissão: a profissão de especialista em transferência de informação. (GUINCHAT; MENOU, 1994, p. 517, grifos dos autores)
Quantificar e medir a maneira como a web promoveu a mudança radical na recuperação da Informação, deslocando para o usuário a função outrora realizada por especialistas, ainda se mantém como questão em aberto. Através de quais teorias poderíamos navegar na tentativa de explicar esse fenômeno? Talvez uma premissa útil possa ser encontrada em um livro clássico, pois o caráter místico escondido na forma aparente da forma da mercadoria-informação, que agora é virtual, desmaterializada, globalmente acessível, reprodutível ao infinito, que tende à eternização das imagens e dos documentos, ainda está para ser destrinchado, e isso nos aponta para uma ciência pós-moderna que traga outras disciplinas ao debate, eminentemente plural, considerando que não existe fazer científico isento, e assuma o ponto de vista da condição latino-americana do dominado:
O caráter místico da mercadoria não resulta, portanto, de seu valor de uso. Tampouco resulta do conteúdo das determinações de valor, pois, em primeiro lugar, por mais distintos que possam ser os trabalhos úteis ou as atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles constituem funções do organismo humano e que cada uma dessas funções, seja qual for seu conteúdo e sua forma, é essencialmente dispêndio de cérebro, nervos, músculos e órgãos sensoriais humanos etc. (MARX, 2017, p. 146, grifo nosso).
E, isso, parece estar acontecendo em algumas abordagens contemporâneas da CI que assumem o caráter holístico da informação, o caráter dinâmico dos seus sistemas, a noção de entropia, tomando emprestadas noções da biologia e da mecânica quântica a fim de tentar resvalar nos problemas surgidos dos novos fenômenos informacionais (COCCO, 2021). Nesse sentido, a atuação e a ação cultural bibliotecária parece estar sofrendo um processo de metamorfose, propondo iniciativas e ações que estão ressignificando até o próprio conceito de biblioteca. Conforme sinalizado por Melot (2019), já que, para esse autor, o nosso mundo hoje se tornou uma imensa “plenetoteca”, dessa maneira, a biblioteca se torna “um microcosmo: até ele modela o mundo” Melot (2019), o que impõe ao bibliotecário a condição de arquiteto de um edifício de areia informacional.
3 MAIS NÁUFRAGOS DO QUE NAVEGANTES NOS OCEANOS DA INFORMAÇÃO
Uma questão teórica apresentada pelo Grupo de Pesquisa SocioInfo da UNIRIO e que levou a nos refletir e trouxe resultados, sob certo sentido, surpreendentes: “Quais buscadores, além do Google, vocês costumam usar?” Abriu espaço para uma discussão profícua sobre os conceitos navegadores, buscadores e bases de dados. Desta forma são apresentadas alternativas com o DuckDuckgo. Mas, acabou que nos deixou com mais questionamentos ainda.
Será mesmo que conseguimos, ou conseguiremos um dia, ir além do Google? Em uma Universidade com letra maiúscula, que se dedica ao ensino, a pesquisa e a extensão, dos pressupostos de democrática, pública, inclusiva e diversidade, que, por restrições financeiras transpôs suas salas de aula para ambiente de produção acadêmico de ferramentas Google em versões gratuitas, transformando a sua comunidade em cobaias fornecedores de dados para experimentos das máquinas inteligências artificiais que vão aprendendo o ensino remoto, suscetível e vítimas de ataques hackers, com apagamentos como e-mails de confirmação de classe não recebidos pelos estudantes, não estaríamos mais próximos da outra margem do rio, do terço da população mundial excluídos do acesso à Internet? E não isso implicaria no reconhecimento de que estamos muito aquém do Google? De que somos seus funcionários, precarizados, não remunerados, alimentando com nossos dados, aulas síncronas e assíncronas e trabalhos, as suas máquinas de aprender?
Que conhecendo o processo de comunicação, não estaríamos nos esquecendo de refletir sobre a importância dos princípios de liberdade de escolha e da incerteza, que foram basilares para o pensamento de Claude Shannon e Warren Weaver sobre a Teoria Matemática da Comunicação? Nos termos dos autores em tradução nossa:
A informação é, devemos constantemente lembrar, uma medida da própria liberdade de escolha na seleção de uma mensagem. Quanto maior essa liberdade de escolha e, portanto, maior a informação, maior é a incerteza de que a mensagem realmente selecionada é alguma em particular. Assim, maior liberdade de escolha, maior incerteza, maior informação andam de mãos dadas (WEAVER, 1949, p. 8, grifos nossos).
Daí a importância de conhecer as gerações dos Sistemas de Recuperação de Informação. Quiçá, perceber a necessidade de escrever uma história social dessas. Que tinha em sua primeira geração, metadados com interfaces baseadas em comandos, usuários especializados e um número limitado de sistemas. Na segunda, predominavam os textos integrais, de interfaces com menus e comandos, com o acesso previsto aos usuários comuns e com os sistemas em linha. Na terceira geração, a da contemporaneidade, é a geração Multimídia, com interfaces gráficas, de foco no usuário final, com armazenamento em redes e ênfase nos pacotes de produtos. O big data entra em cena, assim como as reflexões sobre visualização da informação. Interessante refletir que essa evolução não decretou a extinção das etapas anteriores e sim, seus aprimoramentos.
Talvez aqui, esbarremos com a dificuldade do encontro de teorias que deem conta dessa transformação nos fundamentos conceituais, mudanças que são, em certo sentido, ontológicas desses novos Sistemas de Informação que trabalham com informações do tipo multimídia que vão além dos textos e abarcam vídeos, imagens de síntese, documentos de áudio (como os podcasts). Essa evolução marca uma metamorfose e cria um problema categórico para o ensino de Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia - as ciências que, por excelência, lidam com a Informação - pois faz-se imperativo que haja uma ampliação no conceito de documento, o objeto empírico dessas disciplinas.
A professora titular da UNIRIO Vera Dodebei, ao observar que na pós-modernidade ocorre uma “metavalorização do documento” quando a sociedade o eleva à condição de patrimônio cultural, no sentido de ampla apropriação das tradições, traz ao debate a noção de cultura digital, perguntando até se essa não seria capaz de compreender um novo sentido (processo) como também novo significado (produto) que a idéia de documento possa ter para uma memória social digital:
De todo modo, o valor patrimonial designado aos objetos indicados como memória parece ganhar supremacia ao valor documental, pelo caráter coletivo da herança social. As “nuvens” de memórias virtuais e suas linguagens são, pela própria constituição do conhecimento que emerge da grande rede social, coletivas, interativas e processuais. E nesse sentido, o significado que a ideia de documento possa ter para a memória digital é, certamente, representado pela circunstancialidade e temporalidade do valor de memória social atribuído a determinado objeto. (DODEBEI, 2011)
Dodebei termina as análises do artigo anotando que “patrimônio digital” ainda é um conceito que mantém em aberto e, a partir dos trabalhos do grupo Fórum Brasileiro de Cultura Digital elenca cinco questões que merecem atenção nessa transformação da sociedade analógica para a sociedade digital:
1) Salvaguardar ainda a produção intelectual armazenada nas memórias documentárias? 2) Fazer os patrimônios digitais conversarem entre si? 3) Considerar a leitura hipertextual dos recursos organizados em páginas, sites e portais na web? 4) Indexar e recuperar os recursos informacionais com auxílio de programas lógicos e manter arquivos reprodutíveis? 5) Proteger ou Disseminar (como forma de preservação dinâmica) as memórias que circulam na web? (DODEBEI, 2011)
Com as interrogações da Professora Dodebei, que, acreditamos, podem ser úteis para dialogar com as questões teóricas sobre o futuro das bibliotecas, já que refletem as formas de consumo dessa cultura digital emergente, acelerada, fragmentária, com suas barreiras de paywalls, que envolvem questões como pirataria, reprodutibilidade infinita, e são, necessariamente, atravessadas pela centralidade da recuperação de informação.
Com esse panorama, buscaremos refletir sobre algumas iniciativas que estão sendo utilizadas por bibliotecas no cenário de convergência digital, abarcando esses novos formatos e o conceito de patrimônio digital.
4 TRAVESSIAS E APRENDIZADOS OU CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
A chamada de web 2.0 e porque não a web 3.0, nos apresenta cenário extremamente desafiador para o futuro das bibliotecas. Inúmeras iniciativas têm surgido e fazem uso mais da criatividade do que de aparatos tecnológicos para atuar no sentido de realçar a importância institucional, de atuar no atendimento às necessidades de informação, que cada vez mais, estão se mostrando dinâmicas e altamente mutáveis, abarcando as novas formas de produção, as diferentes tipologias desses documentos, o imperativo decorrente do desenvolvimento de ferramentas para trabalhar com as enormes bases de dados em lotes de informações, o big data. Todas essas novas frentes impactam os usuários e estão, sob certo sentido, constantemente ressignificando o conceito de necessidade informacional.
Novas tecnologias surgem a todo tempo e, cada vez mais, estamos a caminho da realização do sonho de Alexandre, de uma biblioteca que reúna todo o conhecimento do mundo. Mas entendendo aqui que o próprio conceito de biblioteca já encontra metamorfoseado para o ambiente digital. Sobre isso, afirma Luis Fernando Sayão (2008):
Os conceitos subjacentes à ideia de biblioteca digital - tecnologias abertas, interoperabilidade e recursos distribuídos - sugerem que a biblioteca universal é algo possível, sem que seja necessário que todas as informações estejam reunidas em um único lugar. (SAYÃO, 2008, p.4, grifo nosso)
Sayão toca num elemento que, de certa maneira, aponta para as metamorfoses que a nova realidade existencial, de consumo e de trabalho já abarcam. A biblioteca total, do conto de Borges, é uma superestrutura fragmentária e conectada em rede. O conhecimento não está mais pendurado nas estantes mas nas interseções dos infinitos nós das redes que intercomunicam os repositórios. E, mais uma vez, as questões da encontrabilidade, da interoperabilidade e da recuperação da informação são um imperativo categórico. Diante da iminência de dispormos de todo o conhecimento registrado do mundo, recuperar informações de maneira qualificada é essencial.
Nesse sentido, surgem alguns conceitos como repositórios digitais, ecologia da informação, curadoria digital para apontar para métodos, ferramentas e tecnologias que já vem sendo apropriada por bibliotecários em todo o planeta. Mais do que disponibilizar e catalogar, esses repositórios da comunidade da Biblioteconomia e da CI, apresenta possibilidades de trabalho no sentido de gerar funcionalidades aos sistemas o que, grosso modo, aponta menos para programação e mais para temas como vocabulário controlado:
A comunidade de Biblioteconomia e Ciência da Informação visualiza a biblioteca digital menos como um sistema de computação – uma máquina – e mais como uma instituição; como uma extensão lógica do que as bibliotecas vêm fazendo desde os tempos imemoriais, ou seja, adquirindo, organizando e disseminando conhecimento usando as tecnologias correntes. O que o bibliotecário deseja é a ampliação dos recursos e dos serviços disponíveis e também a audiência das bibliotecas. (SAYÃO, 2008, p. 23)
As bibliotecas digitais surgem como “resposta lógica” (SAYÃO, 2008), sobretudo no planejamento de políticas públicas como a alternativa de redução do fosso digital e para superação da desigualdade informacional, situação que permeia a realidade latino americana. Promover a inclusão digital, oportunizando ambiente para acesso a serviços de cidadania, atuar no auxílio à busca de emprego, à formação continuada e, principalmente para a inclusão digital nos parece o caminho a ser trilhado. A ação cultural (FLUSSER, 1983), expressão consagrada para demarcar o trabalho de bibliotecários, parece estar se reconfigurando em ação cultural em ambiente digital. As bibliotecas digitais e os repositórios, no contexto da Pandemia da Covid-19 já se tornaram próxima extensão da sala de aula, extendendo uma simbiose advinda da relação presencial de estudo. Esses são alguns desafios para a Biblioteca do futuro. Ou talvez, que já estejam colocados esperando uma ação bibliotecária para resolver essas necessidades.
Desta forma, parafraseando Eduardo Galeano, o desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes, ou então em Fernando Pessoa, Navegar é preciso, mas viver não é preciso.
REFERÊNCIAS
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