Gerencialismo
análise exploratória de textos recuperados da biblioteca Scielo.org
Marcio Antonio Bastos Amato[1]
Universidade Federal Fluminense - UFF
amato.marcio@gmail.com
Danielle Ribeiro de Moraes[2]
Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ
danielle.moraes@fiocruz.br
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Resumo
Palavras-chave: Gerencialismo. Administração Pública.
MANAGEREALISM:
an exploratory analysis of texts recovered from Scielo.org library
Abstract
New Public Management brought progressive changes in work organization and managerial practices have been increasingly common. We performed an exploratory analysis based on bibliographic searches on managerialism carried out in the Scielo.org virtual library. We present the search strategies used and the analysis of 82 published texts. Although belonging to different fields and areas of knowledge, it is clear that managerialism has been portrayed by most authors not only as a managerial model. Most of the texts operate in a critical register on repercussions of managerial practices, pointing managerialism as a central mode of operation of neoliberalism, as well as relate it to processes of work precariousness and management fragmentation.
Keywords: Managerialism. Public Administration.
1 INTRODUÇÃO
Identificado como um dos pilares da Nova Gestão Pública, o gerencialismo é considerado por diversos autores como uma ideia-força do capitalismo neoliberal. Ele é definido por Oliveira, Silva e Bruni (2012) como um modelo gerencial que emerge diante da crise econômica global ocorrida na década de 1970 e que teve por consequência as reformas de Estado, iniciadas nos países centrais.
O modelo do gerencialismo foi inicialmente inspirado na experiência britânica que remonta ao governo de Margareth Thatcher, fortemente voltada à redução de custos estatais, à ampliação da eficiência e da produtividade dos serviços públicos, diante de um cenário de restrição orçamentária. Com o tempo, outras versões deste modelo gerencial foram surgindo e se espraiando, adotando outros modos de operação, como o de foco na lógica estratégica e o de accountability (OLIVEIRA; SILVA; BRUNI, 2012; AMBROSIO, 2013).
O gerencialismo está ancorado no pressuposto de que o aparato estatal não daria mais conta de arcar com sua dimensão econômica, social e administrativa. Tornada um dado natural, essa premissa é, para alguns autores, base para o surgimento de uma ideologia (GAULEJAC, 2009; NEWMAN; CLARKE, 2012) ou de uma racionalidade (DARDOT; LAVAL, 2016), operando segundo uma lógica gerencial que extrapola as organizações e constituirá novas subjetividades, funcionando sob a principal metáfora da sociedade atual: a empresa.
Vivemos tempos em que tanto dados macroeconômicos globais, quanto análises geopolíticas indicam o aprofundamento da financeirização, o caráter universalizante e a despolitização dos modelos de gestão, ao passo em que há aumento da circulação de capital estatal comodificado, dando forte apoio à esfera bélico-empresarial (ROBERTS; SECOR; SPARKE, 2003; GREWAL, 2022). Nesse processo, o termo gerencialismo tem sido usado tanto para se remeter a um modelo gerencial (como em OLIVEIRA; SILVA; BRUNI, 2012; BRESSER-PEREIRA, 2021), quanto para denominar um conjunto de repercussões do modelo gerencial hegemônico sobre o mundo do trabalho, de modo geral, e sobre as formas de operar as políticas públicas, especificamente (KLICAUER, 2015; CASTIEL; XAVIER; MORAES, 2016).
A pertinência deste tema se coloca, frente ao campo da administração pública, pelas lutas no interior deste campo. Para uma vertente teórica crítica, a visão gerencialista implica no entendimento e funcionamento do Estado como empresa (NEWMAN e CLARKE, 2012). Esse fenômeno vem se refletindo em questões sobre os processos e a gestão do trabalho em áreas da administração pública ligadas ao sistema de proteção social, distanciando-se de premissas fundamentais do campo, como a de gerir da melhor maneira o bem público.
O presente trabalho objetiva mapear e explorar criticamente a literatura científica sobre gerencialismo. Para este artigo, elegemos a biblioteca virtual Scielo.org e explicitamos os motivos dessa escolha na seção seguinte.
2 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Esta pesquisa se iniciou no segundo semestre de 2020, tendo sido composta por sucessivas buscas sistemáticas na biblioteca eletrônica Scielo.org, acerca da temática do gerencialismo. Essas aproximações sucessivas de dada base de recuperação inspiram-se na perspectiva arqueológica utilizada nos trabalhos de Moraes, Castiel e Ribeiro (2015), Andrade (2018), e Soares, Oliveira e Moraes (2022). Nessas revisões, cujos temas versavam respectivamente sobre - o discurso médico e uso de esteroides anabolizantes; práticas corporais no Sistema Único de Saúde (SUS); e agroecologia e saúde coletiva -, a autoria buscou não apenas descrever as recorrências, permanências ou dissonâncias dos argumentos presentes na literatura científica, mas sustentar o estranhamento da produção de seus próprios campos, e ancorar suas leituras num ponto de partida epistemológico baseado nos estudos sociais da ciência e nos saberes localizados (HARAWAY, 1995).
O presente artigo se junta a esse esforço de análise sobre a literatura científica, desta vez focando nas fontes recuperadas a partir da biblioteca eletrônica Scielo.org. Esta biblioteca foi selecionada levando-se em conta seu alcance e uso corrente nos circuitos acadêmicos brasileiros, seja pelo acesso gratuito aos textos completos, seja pela amplitude de áreas de conhecimento afeitas ao campo da administração pública.
Como se verá, optamos por usar também o termo de busca “managerialism”, que é a versão para língua inglesa da palavra “gerencialismo”. Esta foi uma opção para aumentar a abrangência da busca, na medida que na biblioteca Scielo.org todos os artigos necessitam ter um resumo em inglês. Após as buscas, mantivemos os textos em idiomas de menor barreira linguística entre leitores brasileiros, como português e espanhol. A opção pelos textos dessa biblioteca e por esses idiomas destina-se a circunscrever nossas análises sobre aqueles que, em geral, circulam mais facilmente e são mais amplamente consumidos nos circuitos acadêmicos (MORAES, 2015). Para isso, utilizamos o termo “gerencialismo”, entendendo-o com suficiência semântica à definição de um modelo gerencial, mas também ao entrelaçamento entre as práticas gerenciais correntes e racionalidade neoliberal (CASTIEL; XAVIER; MORAES, 2016). Ao procurar por esse termo, tencionamos analisar um corpus pertencente a uma vertente analítica mais crítica ou problematizadora dessa racionalidade.
Após os exercícios iniciais de aproximação com a biblioteca virtual e a literatura acerca da temática, procedeu-se a duas buscas distintas em janeiro de 2023, cujas estratégias apresentamos sinteticamente na Figura 1.
Figura 1 - Fluxo das Estratégias de Busca Bibliográfica.
Fonte: Elaboração própria.
A primeira busca utilizou o termo "managerialism", obtendo-se 81 referências; foram excluídas 5 duplicidades, perfazendo 76 referências. A segunda busca usou o termo “gerencialismo” e obteve 76 referências e, excluindo-se 7 duplicidades, perfez 69 referências. O próximo passo foi verificar as redundâncias entre os resultados de ambas as buscas. Assim, das 69 referências obtidas na segunda busca, verificamos que 50 já constavam na busca 1. Do mesmo modo, as 19 referências restantes foram juntadas às 76 referências iniciais [Merge em Figura 1], totalizando 95 referências. Não foram definidos filtros de busca na interface padrão do Scielo.org. Dos 95 textos, recuperamos 60 em português, 22 em espanhol, 12 em inglês e 1 em africâner. Conforme mencionado, foram excluídos da análise aqueles em inglês e em africâner, restando 82 artigos selecionados.
Foi construído um arquivo digital que serviu como banco de dados orientador para as análises. Os resultados de ambas as buscas foram nele introduzidos e planificados no Software Excel v.2016. Lançamos mão das ferramentas de seleção por meio de filtros que compunham categorizadores, entre eles: título, língua de publicação, ano, autoria, temática principal, periódico, seção. Foi realizada análise dos resumos (quando disponíveis), seguida de uma leitura flutuante dos corpos dos textos, de modo a organizar outras categorias que pudessem auxiliar na discussão, como as problemáticas abordadas, entre elas: precarização, privatização, metrificação do trabalho e da gestão, subfinanciamento, produtivismo acadêmico.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Verificamos que os registros de publicações ocorreram no intervalo entre os anos de 2003 a 2022. No Gráfico 1 vemos uma tendência de aumento de publicações sobre o tema, chegando a 30 artigos no quinquênio 2015-2019 e atingindo 18 artigos sobre o tema apenas no último triênio (2020-2022). Há de se ter cautela ao analisarmos a deflexão na distribuição temporal, posto que possa ter havido um possível deslocamento temático para análises sobre as repercussões, em diferentes áreas, da emergência sanitária por Covid-19. Porém, considerando que o último intervalo temporal ainda não está fechado, além das possíveis inclusões a posteriori pelas editorias, é plausível que este cômputo possa aumentar para o último intervalo. De todo modo, podemos verificar uma emergência da temática nas últimas duas décadas, que se dá justamente pari passu ao aprofundamento das reformas de Estado na América Latina e a intensificação de sua lógica gerencial neoliberal, conforme apontou Campos (2017).
Gráfico 1 - Distribuição Temporal das Referências Recuperadas
Fonte: Elaboração própria.
Artigos são o principal formato de publicação, representando 80 entre as 82 referências recuperadas. Além disso, obtivemos 1 resenha de livro e 1 carta aos editores. Quando levamos em conta de onde parte essa produção, verificamos a seguinte distribuição dos países, segundo a afiliação institucional do primeiro autor: o Brasil detém a maioria das publicações, com 56 textos de instituições brasileiras; a seguir, temos o Chile, com 7 textos recuperados. E, então: 5 de Portugal; 4 da Argentina; 4 da Espanha; 2 da Colômbia; 2 da Inglaterra; 1 do México e 1 do Uruguai. Há predominância das produções brasileiras sobre o tema, provavelmente seguindo a tendência global do Brasil em termos de números de publicações nesta biblioteca virtual. No entanto, é importante lembrar que todos os países com publicação no tema são loci de modos de operação do neoliberalismo, alguns deles com expressiva redução nos sistemas de proteção social (DIEHL; MENDES, 2020).
A partir dos enunciados da autoria, identificamos diferentes posicionamentos sobre o gerencialismo e suas práticas de gestão, que organizamos no Gráfico 2.
Gráfico 2 - Referências segundo Posicionamento frente ao Gerencialismo
Fonte: Elaboração própria.
A maior parte dos textos opera a partir de um registro crítico e, nomeadamente, questionam o arcabouço teórico e as práticas gerencialistas como possibilidade para as organizações e a sociedade. Esses textos de registro crítico somam 72 dentre as 82 referências recuperadas. Verificamos também referências que defendiam o gerencialismo como forma eficaz de se pensar a gestão, apontando para a esperança de melhorias sociais por meio do triunfo gerencialista, e a esta defesa nomeamos de triunfalista: essas somaram 2 dentre as 82 referências recuperadas. Houve ainda um terceiro grupo de textos, alguns deles de ensaios teóricos, que transita por exercícios descritivos sem, no entanto, deixar óbvia a posição da autoria sobre o gerencialismo. Outra opção para inserção neste grupo foi de investigações cujas análises não se ativeram ao debate em torno do gerencialismo, mesmo quando o termo figurava entre as palavras-chave. A esses textos nomeamos com a palavra descritivo: eles somaram 7. Identificamos ainda uma quarta possibilidade, qual seja, uma produção que se constitui num estudo epistemológico que encerra o gerencialismo entre três grandes vertentes contribuintes para o campo da Administração Política (SANTOS, 2003). A ele nomeamos epistemológico.
Os 82 textos foram ainda classificados segundo suas principais temáticas, conforme apresentado na Tabela 1.
Tabela 1 - Distribuição dos Textos por suas Principais Temáticas
Temáticas |
N |
Educação |
29 |
Saúde |
14 |
Racionalidade gerencial |
10 |
Gestão Pública |
11 |
Segurança Pública |
6 |
Organizações e neoliberalismo |
3 |
Produção de subjetividades |
2 |
Assistência Social |
2 |
Hospitalidade Profissional |
1 |
Participação social |
1 |
Gestão Ordinária |
1 |
Organização partidária |
1 |
Epistemologia |
1 |
Total |
82 |
Fonte: Elaboração própria.
A leitura realizada para identificarmos quais eram as temáticas centrais dos textos permitiu compreender que há uma polissemia abrigada sob os usos do termo “gerencialismo”, ora definindo o modelo gerencial dominante, ora denotando uma pejoração que se refere às consequências negativas deste modelo. Isso provavelmente advém da multiplicidade de áreas de conhecimento representadas no corpus de análise, que se relaciona com a dinâmica no interior de diferentes campos científicos. Com efeito, há periódicos que contemplam desde campos como os de educação e saúde coletiva, até aqueles de escopo mais sociológico, de psicologia social, e mesmo os reconhecidos no campo da administração.
De toda feita, uma primeira mirada sobre a Tabela 1 indica um fenômeno importante no interior do corpus: a preponderância de análises provenientes de áreas da administração pública, quais sejam: educação, saúde, assistência social e segurança pública. Somadas, elas chegam a compor 62,2% das 82 publicações recuperadas, como se vê no Gráfico 3.
Gráfico 3. Proporção das Temáticas sobre Áreas da Administração Pública
Fonte: Elaboração Própria
É relevante mencionar que, dentre os 51 textos que têm centralidade nos temas de educação, saúde, assistência social e segurança pública, 49 foram classificados como operando no registro crítico em relação ao gerencialismo, à exceção de 2 sobre segurança pública, que foram identificados como descritivos. Esses 49 textos de vertente crítica centram seus esforços de investigação na identificação e nas análises a respeito de repercussões das políticas públicas orientadas e materializadas segundo uma hegemonia gerencialista.
Essas autorias estão voltadas sobretudo a refletir sobre questões que emanam do cotidiano da implementação das políticas, vistas nas percepções e nas contribuições para a pesquisa de atores que se ocupam da operação de serviços públicos. Assim, mais do que estudos teóricos, essas construções textuais acadêmicas fundamentam-se nos efeitos da gestão derivada do modelo gerencialista, focado na hipervalorização do desempenho e numa análise de custos apartada da materialidade das condições de existência desses atores e usuários dos serviços. A maior parte dos artigos indica que o modo de operar a gestão dos processos contribui para fragmentar o trabalho, aprofundando a sua precariedade e alienando os sujeitos - trabalhadores e usuários de serviços.
Essas questões são apresentadas de diferentes maneiras, mas algumas problemáticas são recorrentes, tais como: os processos de privatização no que é fundamentalmente função pública; a valorização da metrificação do trabalho e da gestão e o incentivo por perseguir metas e indicadores definidos por operadores externos à realidade dos serviços. Esse aspecto atrapalha tanto a visão sistêmica, quanto obstaculiza a participação de todos os atores no sentido de definirem prioridades para as políticas públicas a partir das necessidades sociais.
Na abordagem das problemáticas, ocorre o entrelaçamento entre precarização, privatização e metrificação do trabalho como características emergentes da análises, seja do cotidiano do trabalho, seja de como a ideologia gerencialista toma corpo sob outros aspectos, aí incluída a produção de subjetividade gerencial/neoliberal. A precarização do trabalho surge como um aspecto central do gerencialismo que tem se relacionado à hipervalorização das métricas, cuja persecução se torna o sentido do trabalho em si. Especificamente nos textos que tematizam áreas da administração pública (mas não somente neles), aponta-se que essas práticas esvaziam a produção de sentidos do trabalho pelos trabalhadores, e acontecem lado a lado com o aprofundamento da precarização das condições e vínculos trabalhistas. Isso se dá como indica o uso do termo “uberização” no serviço público, na análise emblemática de Venco (2019).
Como mencionado, o aspecto de precarização aparece ladeado de um segundo, o da privatização. Enunciada em 8 artigos, a privatização é caracterizada neste subgrupo de textos como diferentes modos de deslocamento de formas gerenciais, afeitas às empresas privadas, para a esfera pública. Chama a atenção o artigo, bastante representativo deste fenômeno, de Peroni e Oliveira (2020) sobre uma fundação de direito privado que funciona como think tank neoliberal, formando desde quadros do parlamento brasileiro, até propulsionando o que se poderia entender como uma doutrina gerencialista para a gestão de escolas públicas brasileiras de educação básica.
Considerando a predominância de publicações de primeiro autor brasileiro, destaca-se a presença de descrições críticas sobre os modos de materialização das políticas nos serviços de educação, saúde e segurança pública. Apesar da conjuntura de restrição orçamentária progressiva para esses setores, eles ainda encerram uma parte considerável de destinações orçamentárias estatais porque dizem respeito a condições básicas de existência humana e de reprodução social. Por meio da ideologia gestionária, esses setores vêm enfrentando expressivas mudanças no trabalho, por um lado, ao mesmo tempo em que passam a se apresentar como complexos produtivos passíveis de mercadorização e exploração como produtos a serem vendidos para não mais seus usuários, mas para seus clientes. A partir da leitura do corpus, deduzimos que, sob o signo do gerencialismo e, consequentemente, da despolitização, a produção de iniquidades poderia ser ironicamente vista apenas como um desvio a ser ajustado, quando e se houver políticas de compliance voltadas a isso.
Percebemos ainda, entre as problemáticas abordadas, que mesmo a produção de conhecimento aparece colonizada pela ideologia gerencial. Em um esforço de reflexividade, destacam-se também trabalhos advindos das áreas de educação e saúde sobre o produtivismo acadêmico, expresso como uma repercussão de modelos avaliativos gerencialistas que incorrem para precarização e produção de iniquidades também na arena de ciência, tecnologia e inovação.
Coerentes com as críticas apontadas pelos textos que enunciam temáticas sobre saúde, educação, assistência social e segurança pública, 5 entre os 11 os artigos classificados na temática de gestão pública operam sob um registro crítico ao gerencialismo. Esses, junto aos artigos sobre Teoria das Organizações, sinalizam a inter-relação entre neoliberalismo e gerencialismo, apresentando as análises principalmente sob a forma de estudos teóricos. Um outro grupo que tematiza gestão pública, composto por 4 artigos, se orienta ou por descrições sobre modelos de gestão, apresentando o gerencialismo como um desses modelos, ou bem apenas o menciona, cotejando-o ao modelo em tela no texto.
Como mencionado, no conjunto de referências que recuperamos houve ainda 2 textos, ambos tematizando gestão pública e defendendo o modelo gerencialista, seguindo o arcabouço teórico que o constituiu há quase trinta anos. São atualizações e propostas de ajuste em algumas de suas características, respaldadas pelo argumento da busca por eficiência, que, no interior desses dois textos, acaba por produzir o apagamento da ideia do subfinanciamento de políticas públicas. Podemos dizer que o discurso gerencialista presente nesses artigos apresenta a racionalização de custos estatais como parte de um código de boas práticas gerenciais, num rol moralizante de condutas para operar as atividades voltadas às ações do Estado. Em nossa análise, nessa retórica há uma falsa simetria entre gestão pública e gestão privada.
Essa falsa simetria é também identificada na maior parte dos estudos provindos do campo da Administração. Neles, as autorias apresentam críticas ao gerencialismo por meio da identificação de seus limites como modelo gerencial dominante. Nesse sentido, ainda que não se pautem por material empírico (como nos artigos de temáticas de educação e saúde, por exemplo), os textos da Administração advogam que as práticas gerenciais não devem se apoiar apenas na supremacia racional, imposta pelo gerencialismo. Dois exemplos importantes são os artigos que versam sobre gestão ordinária e sobre hospitalidade profissional. Para os autores, o modelo gerencialista secundariza a dimensão relacional da gestão e, assim, não seria aplicável a esses campos, justamente por desmerecer a perspectiva cultural, que não deve ser abordada de forma redutora e utilitarista. Em seu lugar, uma mirada sobre a dimensão cultural e das relações sociais, em sua interface com a gestão, precisa ser feita de modo a abordar a complexidade desses fenômenos.
Em outras palavras, ao examinarmos a maioria da produção científica que tem o termo “gerencialismo” ao menos mencionado no corpo do texto, independendo da temática ou do campo de conhecimento, percebe-se que as autorias apontam que receitas gerenciais universalizantes não parecem funcionar para fenômenos complexos. Além disso, há um grupo de artigos que indicam o gerencialismo como um conjunto de práticas fortemente arraigadas na atualidade, que orienta não apenas dimensões gerenciais dos processos, mas também opera como uma ideologia. Isto é, algo que orienta a priori tanto a gestão de organizações, quanto a gestão da própria vida.
Esse grupo de textos trabalha com a temática de racionalidade gerencial, que também foi expressiva no corpus analisado, perfazendo 10 entre os 82. Cabe destacar que, ao identificarmos as temáticas como as dispomos na Tabela 1, o esforço foi de atribuir aquela de maior centralidade a uma determinada referência. Não significa dizer que artigos que versam sobre as outras temáticas, e especificamente os de registro crítico, não se apoiem em referencial teórico que se articula com a racionalidade gerencial. Ao contrário, a ideia de que há um a priori moral e ideológico que ordena o modelo gerencial no neoliberalismo é compartilhada pela maior parte dos textos que classificamos como de registro crítico, e pela totalidade dos textos que mencionam o gerencialismo nos temas de saúde e educação.
Podemos afirmar que tanto os artigos sobre racionalidade gerencial, quanto aqueles sobre produção de subjetividades se apoiam em uma literatura que estuda o neoliberalismo, apresentando-o não apenas como a atual forma do modo de produção, com repercussões geopolíticas e macroeconômicas. Há uma outra dimensão explorada na tradição teórica que embasa boa parte do corpus aqui analisado, que é a influência do neoliberalismo na constituição de uma subjetividade neoliberal, aos moldes do que apresentam Gaulejac (2007) e Dardot e Laval (2016).
Por sua vez, a construção de sujeitos neoliberais se ancora fortemente na valorização do desempenho individual como uma chave de leitura para a atualidade. Um véu gestionário ordena o mundo e a relação homem-natureza, não apenas estabelecendo a necessidade de perseguir metas e indicadores para a melhoria dos processos organizacionais. A ideia de produtividade, preferencialmente metrificada, orienta o cotidiano das pessoas, tornando-se central nas relações sociais e na forma de organizar a vida. No neoliberalismo, o lucro ou o “melhor proveito” empresarial avançou não só para a relação estado-governo-sociedade, mas também para as temporalidades e singularidades, cada vez mais marcadas pelo empreendedorismo de si (DARDOT; LAVAL, 2016; CASTIEL; XAVIER; MORAES, 2016).
A produção desse sujeito neoliberal leva à naturalização justamente dos efeitos do gerencialismo, descritos no grupo de textos que identificamos operar num registro crítico. Com isso, os processos de precarização do trabalho e da vida, a hipermetrificação, a lógica privatista, a competição e o produtivismo se tornam não apenas algo da ordem natural, mas organizam a cultura e a ética em uma sociedade cada vez mais injusta. Como apontam Borges, Cappelle e Campos (2019), a cultura do management funciona como uma espécie de sequestro da subjetividade, emperrando o delineamento de produções voltadas à resolução de problemas coletivos.
4 CONCLUSÃO
A Nova Gestão Pública foi constituída como resposta a uma crise global do capitalismo, que se deu a partir dos anos de 1970. Propunha ao Estado mimetizar a lógica empresarial, visando eficiência e, consequentemente, produzindo mais com menos. Décadas depois, suas práticas gerencialistas evocam um modo de operar o neoliberalismo, tanto na definição dos processos gerenciais, quanto na construção de subjetividades neoliberais.
No corpus analisado, que se constituiu da totalidade de textos recuperados da biblioteca Scielo.org a partir da existência do termo “gerencialismo”, o sentido que este toma diz muito mais das repercussões de práticas e políticas de lógica gerencial, do que a mera nomeação de apenas um modelo gerencial, ainda que dominante. Isso vai ao encontro de autores que identificam o gerencialismo como dimensão material do neoliberalismo que se dá no dia a dia das organizações, ao mesmo tempo em que se constitui como um sistema de valores próprio e que atualmente vem pautando a produção de sujeitos gerenciais-neoliberais. Essas subjetividades emergem da despolitização e norteiam-se pela hipervalorização da performance. Como consequência, temos a naturalização da precariedade e das iniquidades que se colocam no cerne do modo de funcionamento do gerencialismo.
Na literatura analisada, o ideário de racionalização e eficiência por meio, sobretudo, da metrificação do trabalho e da vida acaba por emperrar abordagens mais abrangentes das necessidades sociais e de pautas locais, seja do público para o qual essas práticas são pensadas, seja pelos trabalhadores que estão na operação das políticas e da administração pública. Apesar de haver leituras que entendem que se trata de uma questão de um “ajuste dentro do ajuste”, propugnando uma visão triunfalista do gerencialismo, esta visão responde por uma parca minoria de produções.
A maior parte da literatura científica a respeito do gerencialismo ancora-se num acúmulo de análises, inclusive de base empírica, que indicam o modo de operação gerencialista como de ordem estrutural. Inclusive, esse se confunde muitas vezes com o próprio modo de produção capitalista atual. Isso aponta para uma indissociabilidade entre neoliberalismo e gerencialismo. Nessa direção, a maior parte dos autores imputa que a alienação do trabalho e a perpetuação de iniquidades sociais são por esse modelo gerencial alimentadas, relacionando-se com a expressiva concentração de renda na circulação do capital e apartando-se das necessidades sociais da maioria da população.
Além disso, a análise dessa literatura aponta para uma visão fragmentada da gestão e dos processos, na medida em que a visão empresarial desloca interesses privados para as políticas estatais - com a ideia de lucratividade muitas vezes se contrapondo à manutenção de direitos, incluindo os sociais. Cabe, assim, um fazer científico problematizador dessa realidade neoliberal, apoiado em análises críticas do discurso que a sustenta.
Nessa direção e inspirados pela grande parte da massa textual sobre a qual nos debruçamos nos últimos anos, destacamos um exemplo singelo, presente nessa literatura. Visto como grande “vício” a ser combatido na retórica moralizante do gerencialismo, o patrimonialismo tende a ser representado apenas como um problema de gestão pública, porém talvez sua manifestação principal seja a condução de políticas estatais que visam o beneficiamento do setor privado, como é o caso das renúncias fiscais e a atual gestão da dívida pública, que, de modo pouco transparente, vem consumindo mais de 40% do orçamento brasileiro.
Para futuros estudos, cumpre aprofundar as análises sobre os modos de operação do discurso neoliberal que se apoia no gerencialismo. É interessante também ampliar a análise para outras bases de referências bibliográficas, cotejando os resultados aqui encontrados com bases e bibliotecas de escopo diverso, além de realizar a análise de textos recuperados em outros idiomas. De todo modo, a metodologia aqui utilizada se mostrou útil para mapear e entender em que registros operam os usos de termos de pesquisa, somando-se aos exemplos de outros estudos aqui mencionados.
REFERÊNCIAS
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