Cidades Criativas e suas Práticas Coprodutivas para a Inovação no Setor Público
Thiago Chagas de Almeida[1]
Universidade Federal de Viçosa
thiagoc-almeida@hotmail.com
Magnus Luiz Emmendoerfer[2]
Universidade Federal de Viçosa
magnus@ufv.br
_____________________________
Resumo
Considerando a capacidade das cidades criativas de interagir diferentes atores urbanos e coproduzir inovação com benefícios públicos, o presente artigo busca identificar as práticas coprodutivas dessas cidades voltadas à inovação no setor público. Isso foi investigado através de uma revisão sistemática da literatura, realizando uma metassíntese qualitativa dos estudos que permeiam o tema. A análise dos dados foi feita pela técnica análise de conteúdo do tipo temática. Por meio dela, identificou-se que a coprodução de inovação em cidades criativas pode ocorrer pela coanálise, cocriação, coimplementação e coavaliação. Dessa forma, este estudo avança na compreensão das características contextuais da gestão da coprodução (cidades criativas) e seus impactos (inovação), que é uma lacuna teórica. Já como contribuição à prática de gestão pública, os resultados desta pesquisa podem ajudar a estimular o fomento de ações coprodutivas que ocorrem em cidades criativas para gerar inovação, a partir da identificação das suas diferentes possibilidades.
Palavras-chave: cidades criativas; coprodução de serviços públicos; inovação no setor público.
CREATIVE CITIES AND THEIR CO-PRODUCTIVE PRACTICES FOR INNOVATION IN THE PUBLIC SECTOR
Abstract
Considering the capacity of creative cities to interact with different urban actors and co-produce innovation with public benefits, this article seeks to identify the co-productive practices of these cities aimed at innovation in the public sector. This was investigated through a systematic review of the literature, performing a qualitative meta-synthesis of the studies that permeate the topic. Data analysis was performed using thematic content analysis technique. Through it, it was identified that the co-production of innovation in creative cities can occur through co-analysis, co-creation, co-implementation and co-evaluation. In this way, this study advances in understanding the contextual characteristics of co-production management (creative cities) and its impacts (innovation), which is a theoretical gap. As a contribution to the practice of public management, the results of this research can help to stimulate the promotion of co-productive actions that occur in creative cities to generate innovation, from the identification of its different possibilities.
Keywords: creative cities; co-production of public services; innovation in the public sector.
1 INTRODUÇÃO
Dados os novos moldes da administração pública, em que se tem uma gestão mais horizontal e aberta à participação social, a construção dos serviços públicos estaria passando por um processo de transformação. Consequentemente, seu resultado não seria mais tão restrito à interferência Estado, mas oriundo da influência de múltiplos atores, tanto estatais como não estatais (Chaebo; Medeiros, 2017; Weaver, 2019).
Dessarte, a coprodução se revela como uma prática e abordagem teórica que reflete essa nova forma de fazer gestão pública, representando os momentos em que os cidadãos também atuam nos serviços públicos (Ostrom, 1996; Verschuere; Brandsen; Pestoff, 2012). Na gestão pública das cidades criativas a coprodução dos serviços públicos pode ser ainda mais evidente, tendo em vista o compromisso institucional que essas cidades assumem, de estimular uma cultura de criatividade pela integração de vários atores.
Tal compromisso é assumido no momento em que as cidades se associam a determinadas redes para adquirir a denominação de “criativas”. Atualmente, a principal rede de cidades criativas, e que foi utilizada de referência para este trabalho, é a da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). Essa rede estabelece como critério de participação, dentre outras coisas, que as cidades desenvolvam vínculos entre o governo e a sociedade civil para a cocriação de atividades culturais inovadoras (UNESCO, 2023).
Nesse sentido, as cidades criativas podem ser consideradas como cidades que, através de sua cultura, mobilizam a criatividade pela participação social (Depiné et al., 2018; Grodach, 2017), proporcionando assim um ambiente favorável à inovação (Landry, 2008). Dessa forma, observa-se que as cidades criativas têm toda uma predisposição a inovar no setor público pela coprodução. Vale destacar, que esta pesquisa entende que inovação no setor público é a aplicação de ideias novas que resultem em algum benefício para a sociedade (European Commission, 2013; Mulgan, 2007).
Além desse enfoque pelas cidades criativas, alguns autores já haviam identificado a capacidade da coprodução de gerar inovação no setor público e qualificar esse processo. Segundo Radnor et al. (2014), a coprodução proporciona a cocriação de ideias, que acaba resultando em ações inovadoras para o setor público. Emmendoerfer (2019) destacou que práticas coprodutivas trazem uma maior legitimidade à inovação no setor público, permitindo ouvir e atender os cidadãos e demais stakeholders.
Só que apesar desse potencial da coprodução para a promoção da inovação no setor público, que tende a ser mais aproveitado pelas cidades criativas, pouco se tem debatido sobre como essa relação se estabelece de maneira mais detalhada[3]. Em vista disso, o presente artigo buscou identificar as práticas coprodutivas em cidades criativas que implicam em inovação no setor público, partindo do seguinte questionamento: Quais ações coprodutivas em cidades criativas influenciam na inovação dos serviços públicos?
Para responder a essa questão, foi realizada uma revisão sistemática da literatura por uma metassíntese qualitativa. Segundo Alencar e Almouloud (2017), a metassíntese qualitativa é uma modalidade de revisão sistemática que permite que estudos primários sejam examinados com profundidade e relacionados pelas suas diferenças, semelhanças ou qualquer tipo de comparação. Já a análise de dados foi feita pela técnica análise de conteúdo do tipo temática, que identifica dos textos os núcleos de sentido que representam alguma coisa ao objetivo da pesquisa (Bardin, 2018).
Os núcleos de sentido foram organizados por códigos e categorias, que indicaram (por meio da análise dos dados) as práticas coprodutivas em cidades criativas que podem influenciar no processo de inovação do setor público. Destaca-se que essas práticas foram apresentadas por uma relação sequencial, sendo categorias definidas tanto com base no referencial teórico como nos próprios dados.
A partir dos seus resultados, esta pesquisa contribui para a compreensão de como a coprodução em cidades criativas pode implicar em inovação no setor público. Isso ajuda a avançar na lacuna teórica identificada por Gouveia Júnior, Bezerra e Cavalcante (2023), de que literatura precisa discutir mais a relação entre as características contextuais da gestão da coprodução (em cidades criativas) e seus impactos (inovação no setor público).
2 Cidades Criativas
O termo “cidade criativa” foi apresentado pela primeira vez no livro The Creative City, de Landry e Bianchini (1995). De acordo com Reis (2011), a cidade criativa é um modelo de organização urbana que surgiu meio à competitividade econômica de regiões dependentes da inovação (Reis, 2011). Nesse cenário, veio o entendimento de que quanto mais criativas forem as pessoas de um determinado local, mais pulsante seria sua economia.
Mas antes de se aprofundar na discussão sobre as cidades criativas, cabe compreender mais especificamente o que é criatividade. A criatividade é o ato de relacionar competências e habilidades para fazer algo novo, diferente do normal, como uma forma de qualificar o que já existe (Amabile, 2012).
É importante também deixar claro que a criatividade não deve ser confundida com a inovação. Isso porque, a criatividade é associada ao processo de desenvolver ideias que podem trazer mudanças positivas, enquanto a inovação está mais ligada à aplicação da ideia em si. Portanto, a criatividade seria um esforço precedente à inovação. Para Richards e Duif (2018), a criatividade – voltada ao desenvolvimento de um espaço – refere-se ao empenho de pensar em ações que tornem os lugares melhores.
Com base nessas concepções de criatividade, o que pode ser entendido como cidade criativa? Uma cidade que busca se modificar positivamente? Mudar positivamente não seria a intenção de toda ou qualquer cidade, então por que só algumas são classificadas como criativas? Para Lerner (2009), qualquer cidade pode vir a ser criativa, mas nem todas conseguem. Este autor acredita que o processo que leva as cidades a serem criativas surge de uma pretensão coletiva, que mobiliza forças para isso.
Tal processo iria em prol da qualidade de vida urbana, partindo de três princípios: sustentabilidade, mobilidade e solidariedade (Lerner, 2009). Outras questões destacadas pelo autor como a sociodiversidade (de rendas, idades, usos do espaço, etc.), identidade e sentimento de pertencimento da população com o ambiente, também seriam levadas em conta. Contudo, Lerner (2009) apontou que o elemento mais presente nas cidades criativas é a integração, seja ela entre as pessoas e as áreas, ambiente construído e natural e até entre diferentes camadas urbanas temporais (passado, presente e futuro).
Depiné et al. (2018) destacam que interação entre os setores público e privado é uma característica central das cidades criativas. Já Landry (2008) mostra que um aspecto comum das cidades criativas é a valorização da cultura local e o seu uso potencial para o desenvolvimento econômico. Em geral, essas cidades são lugares que incorporam e estimulam uma cultura de criatividade, de maneira com que todos os atores urbanos interessados atuem (Grodach, 2017; Landry, 2008).
Ao discorrer sobre o que são cidades criativas, é necessário deixar claro como elas são identificadas. Atualmente, um dos principais mecanismos para essa identificação é a rede de cidades criativas da UNESCO. Essa rede, que já conta com 180 cidades, visa promover uma cooperação entre aquelas que acreditam que a criatividade é um recurso estratégico para o desenvolvimento urbano sustentável (UNESCO, 2023). Para participarem da rede, as cidades se comprometem a:
(...) compartilhar suas boas práticas e desenvolver vínculos que associem os setores público e privado e a sociedade civil a:
- Fortalecer a criação, produção, distribuição e difusão de atividades, bens e serviços culturais;
- Desenvolver polos de criatividade e inovação e aumentar as oportunidades disponíveis para criadores e profissionais do setor cultural;
- Melhorar o acesso e a participação na vida cultural, em particular para o benefício de grupos desfavorecidos e pessoas vulneráveis;
- Integrar totalmente a cultura e a criatividade em seus planos de desenvolvimento sustentável (UNESCO, 2023, p. 1, tradução nossa).
Destaca-se que essas cidades podem atuar nos campos criativos: da música; literatura; gastronomia; design; cinema; artes digitais; e artesanato e artes populares (UNESCO, 2023). A partir das concepções dos autores e dos critérios para a participação na rede da UNESCO, este trabalho define cidades criativas como: cidades que assumem um compromisso institucional de estimular uma cultura criativa em âmbito local, através da interação de distintos atores urbanos (do Estado, mercado e sociedade civil).
Percebe-se então, que as cidades criativas têm uma conexão direta com a coprodução de serviços públicos. Nas cidades criativas há maior incentivo à criatividade pela participação cidadã (Depiné et al., 2018; Grodach, 2017), proporcionando um ambiente que favorece a manifestação de ideias e soluções inovadoras (Landry, 2008). Assim, a inovação no setor público, seria uma decorrência do esforço criativo de múltiplos atores, mais articulados em cidades criativas.
3 Coprodução de Serviços Públicos
A discussão sobre coprodução dos serviços públicos começou no final da década de 1970, em um workshop que tratava da teoria e análise de políticas públicas, tendo como propositores do tema a autora Elinor Ostrom e seus demais colegas (Nabatchi; Sancino; Sicilia, 2017; Ostrom, 1996). Essa proposta buscava contrapor às teorias de governança urbana predominantes na época, que enfatizavam o desempenho de políticas mais centralizadoras (Ostrom, 1996).
Inicialmente, a coprodução foi considerada como uma abordagem teórica bem promissora. Porém, o interesse por ela reduziu ao longo dos anos, voltando a ganhar destaque somente nas últimas décadas (Chaebo; Medeiros, 2017; Nabatchi; Sancino; Sicilia, 2017). De acordo com Chaebo e Medeiros (2017), o estudo da coprodução vem crescendo pelos cidadãos serem cada vez mais protagonistas no desenvolvimento dos serviços públicos.
A coprodução mostra que os serviços públicos têm o Estado (podendo ser representado por professores, policiais, profissionais da saúde, etc.) como produtor regular e o os usuários como produtores mais irregulares (Ostrom, 1996). Verschuere, Brandsen e Pestoff (2012) indicam que a coprodução percebe os cidadãos como atores dos serviços públicos, revelando que esses serviços também recebem sua influência, não sendo apenas gerenciados pelo governo e entregues por profissionais burocratas. Para Osborne, Radnor e Strokosch (2016), a coprodução é qualquer envolvimento do usuário nos serviços públicos (voluntário e involuntário), seja no seu planejamento, gestão, entrega ou avaliação.
Além de ser associada à análise da produção dos serviços públicos, a coprodução é utilizada nos estudos das políticas públicas (Chaebo; Medeiros, 2017). Tal uso se fundamenta pelos serviços públicos serem representações concretas das políticas públicas. Segundo Moraes (1999), o termo “política” isoladamente – dentro da ideia de política pública – refere-se à direção ou sentido que os serviços públicos devem seguir. Já os serviços na lógica das políticas públicas, são as ações públicas que foram ou podem ser materialmente realizadas (Moraes, 1999).
Outros elementos da coprodução que devem ser mencionados, é quem são os coprodutores e a diferença da sua utilização como prática da abordagem teórica. Para demarcar o que este trabalho considera como coprodutores, foi utilizada uma definição de atores das políticas públicas ou serviços públicos. Atores das políticas públicas são quaisquer indivíduos, grupos ou organizações que de alguma forma interferem nos seus resultados (Secchi, 2013). Assim, pode-se dizer que os coprodutores são os atores dos serviços públicos, que influenciam na sua produção direta ou indiretamente.
No que tange à distinção da coprodução como prática da teoria, a primeira é basicamente a participação factual de múltiplos atores nos serviços públicos. De outro modo, a teoria da coprodução é uma lente explicativa que acredita que as políticas públicas são irrestritas ao Estado. Todavia, esses dois usos da coprodução são complementares, porque a abordagem teórica da coprodução só se justifica se ela acontece na prática.
A partir disso, este artigo analisa as considerações da literatura sobre as práticas coprodutivas, vindo então a justificar sua abordagem teórica. Mesmo investigando a coprodução por um contexto e impacto mais específico, nas cidades criativas e para a inovação, há alguns elementos gerais que servem de base para a análise dos dados.
O ciclo de políticas públicas pode figurar os momentos que a coprodução se manifesta nas cidades criativas. Segundo Frey (2000), o ciclo de políticas públicas tem como etapas básicas: a formulação, quando se discute e elabora as políticas públicas que serão realizadas; implementação, etapa de execução das políticas; e controle, que é a fase em que se confere se a execução ocorreu ou está ocorrendo conforme o esperado.
Nabatchi, Sancino e Sicilia (2017), tratando particularmente da coprodução, indicam que ela se manifesta no: co-commissioning (cocomissionamento), quando se identifica as prioridades e necessidades da comunidade; co-design (coprojeto), que é a etapa em que se elabora um plano do que deve ser feito para alcançar aquilo que se quer; co-delivery (coentrega), que é o período de execução do serviço; e co-assessment (coavaliação), quando se monitora e avalia os serviços públicos.
Diferente do ciclo básico de políticas públicas apresentado por Frey (2000), a tipologia de Nabatchi, Sancino e Sicilia (2017) indica momentos em que há interação entre o governo e os cidadãos, por isso o prefixo “co”. Apesar de ser bem ampla e destacar o caráter coprodutivo dos serviços públicos, as etapas apresentadas por Nabatchi, Sancino e Sicilia (2017) não conseguem revelar os momentos em que atores não estatais, junto com os estatais, implicam na inovação do setor público em cidades criativas.
Nota-se também que ainda que distintas, essas duas classificações, de práticas que constituem os serviços públicos, são similares. A formulação se relaciona ao co-commissioning e co-design, assim como a implementação se associa ao co-delivery e o controle ao co-assessment. Essas classificações, mesmo não sendo consideradas como categorias a serem identificadas nesta pesquisa, foram utilizadas de base para a análise dos dados.
4 Inovação no Setor Público
A inovação é um elemento fundamental para a economia e o progresso da sociedade (Cabral; Lebioda; Lemos, 2020). A inovação parte de uma proposta revolucionária ou modesta, que acarreta em uma novidade aplicável à organização (Schumpeter, 1982), podendo ela ser voltada à tecnologia, resultados econômicos, etc. (Simantob; Lippi, 2003).
Relacionado a isso, Furtado (2008) explica que a inovação tem como diretriz principal a ampliação das possibilidades e perspectivas humanas. Este autor também indica que a inovação, assim como a organização social, é resultante da criatividade humana. Isso favorece o entendimento do que é inovação no setor público, só que antes de apresentar esse conceito mais específico, cabe discorrer como ele surgiu.
Segundo Emmendoerfer (2019), a inovação no setor público começou a se tornar um tema de interesse internacional após do século XX, com o avanço de tecnologias de gestão que almejavam melhorar a administração pública. No século XXI, a inovação no setor público aparece como uma necessidade do governo em se adaptar às novas demandas da população cada dia mais conectada em rede, até mesmo em relação aos serviços e políticas públicas (Emmendoerfer, 2019).
De acordo com Cavalcante e Camões (2017), a inovação no setor público foi desenvolvida como resposta às constantes mudanças tecnológicas, econômicas, políticas e sociais. Tais mudanças estão atreladas à condição de um mundo cada vez interconectado, tanto pelas pessoas como pelas organizações, provocando contínuas transformações no modo de vida humano (Cavalcante; Camões, 2017).
Nesse contexto, a inovação no setor público surge para o governo buscar melhorar, continuamente, sua gestão em prol da população (Cavalcante; Cunha, 2017). Assim, a inovação no setor público pode ser considerada como: o uso de ideias novas, disruptivas ou incrementais, que sejam eficazes e gerem algum valor público (European Commission, 2013; Mulgan, 2007).
Com base nesse conceito que será utilizado no presente trabalho, qual seria o papel da coprodução para a inovação no setor público? A coprodução é considerada por alguns autores como uma prática que leva à inovação dos serviços públicos, principalmente pela criatividade decorrente da interação de diversos atores.
Steinmueller (2013) e Radnor et al. (2014), por exemplo, acreditam que, por reunir os conhecimentos e percepções de vários indivíduos e instituições, as práticas coprodutivas proporcionam um ambiente fértil à inovação. E como já mencionado no tópico anterior, essa relação pode ser ainda mais aparente nas cidades criativas, pelo seu compromisso institucional de envolver a população local no desenvolvimento de ações inovadoras, buscando esta pesquisa descrever tais práticas.
5 Procedimentos Metodológicos
Este trabalho realizou uma revisão sistemática da literatura, através da metassíntese qualitativa. A revisão sistemática é uma técnica de coleta de dados que realiza pesquisas bibliográficas mais amplas, investigando o que se sabe ou não a respeito de um assunto (Briner; Denyer, 2012). Já a metassíntese qualitativa é uma modalidade de revisão sistemática que busca sintetizar evidências qualitativas de pesquisa, a fim de compreender questões que precisam ser aprofundadas ou discutidas (Alencar; Almouloud, 2017).
Por meio desses procedimentos metodológicos, foram analisados trabalhos científicos que: tratam diretamente da relação entre coprodução em cidades criativas e inovação dos serviços públicos; estudaram apenas a coprodução em cidades criativas, sendo a inovação no setor público um resultado mais consequente dessa relação; e investigaram os efeitos de práticas produzidas por múltiplos atores (coprodução implícita) em cidades criativas para a inovação.
Foram selecionados somente os trabalhos publicados a partir de 2004, que é o ano de fundação da rede de cidades criativas da UNESCO e quando a discussão sobre o tema aumentou. Contudo, não houve restrição em relação à editora, à revista ou ao periódico do trabalho, pela pesquisa ter sido realizada em bases renomadas que asseguram critérios mínimos de qualidade, confirmados pela própria leitura. Analisou-se também tanto trabalhos teóricos como teórico-empíricos, com estudos voltados às cidades criativas de qualquer país. A análise desses distintos estudos foi possível por ser examinado um elemento universal das cidades criativas, que é a interação de diferentes atores (Landry, 2008).
A coleta dos dados foi feita nos sites Scopus e Web of Science, acessados pelo login da plataforma brasileira Periódicos CAPES, que permite a disponibilidade gratuita e completa dos textos desses indexadores. Após alguns testes para captar melhor a amplitude de textos da área, definiu-se os seguintes termos de pesquisa: “creative cities” and “co-production”; e “creative cities” and “actors”. A Tabela 1 a seguir mostra o número de trabalhos encontrados e selecionados em cada base por termos pesquisados:
Tabela 1 - Número de trabalhos encontrados e selecionados em cada base por termos pesquisados
TERMOS PESQUISADOS |
Scopus |
Web of Science |
||
Encontrados |
Selecionados |
Encontrados |
Selecionados |
|
“creative cities” and “co-production” |
9 |
1 |
5 |
0 |
“creative cities” and “actors” |
254 |
35 |
231 |
30 |
Fonte: Elaboração nossa a partir da pesquisa bibliográfica.
A pesquisa da Tabela 1 se voltou aos resumos, títulos e palavras-chaves dos trabalhos das bases. A seleção foi feita pela leitura dos resumos de todos os estudos encontrados, identificando se haveria ou não relação com o tema. Ressalta-se que alguns trabalhos se repetiram e considerando isso, selecionou-se ao todo 41. Após essa seleção, que ocorreu entre os dias 13/10/2021 e 20/10/2021, os textos foram lidos na íntegra e fichados para a então análise dos dados, operacionalizada pela técnica análise de conteúdo do tipo temática.
Essa técnica captura dos registros dos dados – que no caso são os textos – os núcleos de sentido que indicam alguma coisa ao que se quer estudar (Bardin, 2018). Os núcleos de sentido foram ordenados por códigos e categorias. Os códigos são os trechos dos trabalhos relevantes para o objetivo da pesquisa e os as categorias são agrupamentos desses códigos de acordo com seus significados comuns (Bardin, 2018).
Cabe mencionar que na análise de conteúdo qualitativa o importante não é frequência que os códigos e categorias aparecem, mas o que eles revelam face às pretensões da pesquisa (Bardin, 2018). Destaca-se também que as categorias deste artigo foram oriundas tanto da própria análise dos dados, como de classificações apresentadas no referencial teórico: co-commissioning; co-design; co-delivery; co-assessment; formulação; implementação; e controle. O Quadro 1 apresenta o protocolo da pesquisa, com etapas referentes a coleta e a análise da literatura revisada.
Quadro 1 - Protocolo da pesquisa
ETAPAS |
AÇÕES |
1ª |
A partir dos seus objetivos, definiu-se que a pesquisa se direcionaria aos trabalhos que: tratam diretamente da relação entre coprodução em cidades criativas e inovação dos serviços públicos; estudaram apenas a coprodução em cidades criativas, sendo a inovação no setor público um resultado mais consequente dessa relação; e investigaram os efeitos de práticas produzidas por múltiplos atores (coprodução implícita) em cidades criativas para a inovação. |
2ª |
Após a delimitação dos critérios de seleção, foram feitos diferentes testes para a escolha dos termos de pesquisa, que foram: “creative cities” and “co-production”; e “creative cities” and “actors”. Optou-se por utilizar sempre a palavra “creative cities”, porque é um tema central do trabalho e que se trata de uma expressão mais específica, sem sinônimos. O termo “innovation” não foi adicionado com os outros dois por restringir os resultados e implicitamente já ser associado às cidades criativas. Os termos “co-production” e “actors” foram utilizados com “creative cities”, captando mais amplamente os textos que estudaram a coprodução de serviços públicos (implícita ou explicitamente) |
3ª |
A terceira etapa foi a leitura do resumo de todos os trabalhos encontrados (conforme a Tabela 1), selecionando apenas aqueles que tratassem dos assuntos definidos na primeira etapa. Ao final da leitura dos resumos, foram selecionados 41 trabalhos. |
4ª |
Posteriormente à seleção, os 41 trabalhos foram lidos integralmente. Nesta etapa foram captados os códigos analíticos, que seriam os núcleos de sentido que indicam as práticas coprodutivas em cidades criativas que influenciam na inovação no setor público. Com isso, foram identicados códigos (relacionados às presensões desta pesquisa) de 21 estudos dos 41 selecionados para a análise. |
5ª |
A quinta e última etapa foi a da categorização dos dados, que uniu os códigos de acordo com seus significados comuns. Tal processo resultou na identificação de quatro práticas coprodutivas em cidades criativas que influenciam na inovação no setor público, tendo elas uma relação sequencial: coanálise, cocriação, coimplementação e coavaliação. |
Fonte: Elaboração nossa.
6 Apresentação e Discussão dos Resultados
Este tópico apresenta e discute os resultados da revisão sistemática, indicando categorias que representam as práticas coprodutivas em cidades criativas que interferem no processo de inovação do setor público. As categorias são fundamentadas por meio dos códigos dos 21 trabalhos que apresentaram considerações associadas à proposta desta pesquisa. O Quadro 2 mostra os trabalhos codificados em ordem cronológica decrescente por linha.
Quadro 2 - Trabalhos codificados na revisão da literatura
Héraud (2021) |
Campos e Sequeira (2020) |
Redondo (2020) |
Carrascal et al. (2019) |
Junqueira e Anjos (2019) |
Ríos (2019) |
Lucia e Trunfio (2018) |
Astuti et al. (2017) |
D'Ovidio e Cossu (2017) |
Jesus (2017) |
Copercini (2016) |
Belando (2015) |
García, Eizaquirre e Pradel (2015) |
Grodach (2012) |
Lazzeretti, Capone e Cinti (2011) |
Lloyd (2011) |
Redaelli (2011) |
Atkinson e Easthope (2009) |
Catungal e Leslie (2009) |
Atkinson e Easthope (2008) |
Zimmerman (2008) |
Fonte: Elaboração nossa a partir da pesquisa bibliográfica.
A Figura 1 sintetiza os resultados da revisão da literatura, mostrando as manifestações da coprodução em cidades criativas para a inovação no setor público:
Figura 1 - Práticas da coprodução em cidades criativas que influenciam na inovação do setor público
Fonte: Elaboração nossa a partir da pesquisa bibliográfica.
É possível notar, pela Figura 1, que quatro práticas coprodutivas são realizadas em cidades criativas para impactar na inovação do setor público: a coanálise; a cocriação; a coimplementação e a coavaliação. Apesar de tais práticas terem uma relação sequencial, nem sempre todas ocorrem em uma única cidade criativa. Em muitos estudos da revisão sistemática apenas uma ou duas dessas práticas foram reveladas, como em Andres e Golubchikov (2016) e Atkinson e Easthope (2009).
Em vista disso, a Figura 1 apresenta setas tracejadas ligando as quatro práticas coprodutivas, representando que a aparição de todas e a consequente transitoriedade entre elas pode ocorrer ou não. Destaca-se também que a existência de ao menos uma dessas práticas em cidades criativas já caracteriza a interferência de atores não estatais na inovação do setor público. Em tese, pelo compromisso institucional que essas cidades assumem ao participar da rede da UNESCO, algum tipo de coprodução com impacto inovador deve acontecer. Nos próximos quatro subtópicos, cada prática coprodutiva identificada (categoria) é discutida mais a fundo pelos seus códigos.
6.1 Coanálise
A coanálise é quando tanto os atores estatais como os não estatais analisam o que deve ser inovado nas cidades criativas, seja através do reconhecimento de um problema social ou simplesmente pela consideração de que algo pode ser melhorado. Referente a isso, Astuti et al. (2017) trazem que nas cidades criativas a comunidade local precisa colaborar para a identificação dos problemas locais. Para estes autores, é importante que as cidades criativas tenham modelos mais integrados para superar os impasses, através da inter-relação e colaboração da sociedade. Astuti et al. (2017) mostram que esse modelo de planejamento participativo integrado é essencial para que a cidade estudada consiga se desenvolver criativamente.
Já Carrascal et al. (2019) revelam que a coanálise é evidente no seu caso investigado. Estes autores destacaram que há uma plataforma que capta a experiência e percepções de diferentes atores locais sobre um determinado serviço público, havendo assim o debate do que deve ser incrementado.
Lazzeretti, Capone e Cinti (2011), investigando a cidade criativa da arte de Florença, na Itália, constataram que lá o processo criativo foi focado nos usuários dos serviços, tendo eles sido responsáveis por identificar problemas e até propor soluções. Esse processo favoreceu um movimento contínuo de geração de ideias e inovação no setor da arte, com a contribuição de diferentes atores, como artistas, empresas, institutos de pesquisas e as próprias organizações públicas (Lazzeretti; Capone; Cinti, 2011).
A pesquisa de Grodach (2012) revelou que a idade de Austin, nos Estados Unidos da América (EUA), depois que se tornou criativa se abriu mais à participação social, passando a inserir os cidadãos na definição de prioridades do deveria ser melhorado no local. Os trabalhos de Copercini (2016) e Lloyd (2011) também verificaram que as cidades criativas oportunizam a interação de diferentes agentes urbanos (públicos e privados) para identificação dos problemas e potenciais do local, ainda que essa não seja uma prática harmônica, mas conflituosa politicamente.
Percebe-se então, através desses trabalhos, que a coanálise é uma prática coprodutiva esperada e presente nas cidades criativas. Por meio dela, atores não estatais influenciam na inovação dos serviços públicos, refletindo e apontando o que deve ser melhorado no ambiente local.
6.2 Cocriação
A cocriação seria a fase posterior à coanálise. Nessa, mais do que perceber o que precisa ou pode ser aperfeiçoado, os atores não estatais participam da elaboração das ações a serem realizadas nas cidades criativas. É basicamente a formulação de estratégias inovadoras. No estudo de Zimmerman (2008), foi identificado que múltiplos atores da cidade atuam na formulação de estratégias do seu planejamento urbano. Lazzeretti, Capone e Cinti (2011) são outros autores que verificam a contribuição de atores não governamentais na proposição de soluções.
Atkinson e Easthope (2009) também perceberam que cidadãos locais atuam no desenvolvimento de programas e políticas para estimular o crescimento econômico de cidades criativas. Segundo Lucia e Trunfio (2018), a elaboração de estratégias em cidades criativas deve ser orientada para envolver a comunidade local e assim, pensar em um futuro urbano sustentável. De acordo com estas autoras, a inclusão social é um elemento chave para transformar as cidades em efetivamente criativas e promover uma cultura inovadora.
García, Eizaquirre e Pradel (2015), do mesmo modo, defendem a institucionalização de práticas que envolvam os cidadãos na criação de projetos urbanos. Dessa maneira, será possível atingir resultados socialmente inovadores a longo prazo (García; Eizaquirre; Pradel, 2015). Atkinson e Easthope (2008), Catungal e Leslie (2009) e Redondo (2020) são outros autores que identificaram ou ressaltaram a capacidade das cidades criativas de envolver atores não estatais na elaboração de medidas inovadoras. Com base nesses estudos, pode-se indicar que a cocriação é uma prática que ocorre em cidades criativas e que interfere diretamente na inovação de serviços públicos.
6.3 Coimplementação
A terceira categoria da revisão sistemática foi a coimplementação. A coimplementação é quando múltiplos atores executam as estratégias inovadoras em cidades criativas. Belando (2015) indicou em seu estudo que a prestação de serviços ocorreu tanto pelo setor público, como pelo privado. Esta autora, analisando a cidade de Barcelona, na Espanha, destacou que os serviços culturais locais foram implementados por diversas organizações sociais, através de parcerias público-privadas.
Junqueira e Anjos (2019), investigando uma cidade criativa da gastronomia (Florianópolis, no Brasil), identificaram a capacidade de vendedores locais contribuírem para inovação gastronômica ao participarem da cadeia produtiva dos alimentos. Nesse sentido, ao utilizarem as receitas dos novos pratos característicos da cidade, eles estariam ajudando a desenvolver o turismo local pela implementação de uma inovação gastronômica com benefícios públicos. Jesus (2017) também destacou que nas cidades criativas as medidas inovadoras podem ser implementadas por múltiplos atores, citando o exemplo de eventos esportivos e culturais.
Ríos (2019) observou que na cidade criativa de Guadalajara, no México, há uma interação complexa entre instituições e cidadãos para a execução de projetos inovadores. Segundo Héraud (2021), nas cidades criativas pode existir estruturas de governança que faz com que atores não governamentais implementem medidas inovadoras. Nota-se, portanto, que a implementação dos serviços públicos é uma prática que pode ocorrer em cidades criativas por meio da coprodução.
6.4 Coavaliação
Por fim, a coavaliação é quando tanto o governo como atores privados verificam se o que foi planejado está sendo realizado ou se concretizou ao final da execução. Campos e Sequeira (2020) identificaram na cidade estudada uma plataforma que permite comentários avaliativos de usuários dos serviços públicos. Belando (2015) evidenciou, no seu caso estudado, a existência de mecanismos estáveis (conselhos gestores e comissão) que propiciam o controle, por parte da sociedade civil, dos serviços que são prestados na cidade.
Já Redaelli (2011) observou na cidade criativa de Columbus, nos EUA, que diferentes setores da sociedade civil se unem para avaliar o potencial criativo da cidade. O que motivou esta avaliação foi a consideração dos atores locais de que a criatividade é uma qualidade que valoriza o lugar (Redaelli, 2011).
D'Ovidio e Cossu (2017) mostraram um exemplo de avalição – por parte de grupos sociais – da produção serviços públicos das cidades criativas, em que eles reivindicaram uma maior participação do setor artístico local na governança urbana. A partir desses códigos analíticos, pode-se indicar que a avaliação dos serviços públicos e da criatividade em si da cidade se associam também à avaliação de medidas inovadoras, bastando apenas elas acontecerem.
6 Considerações Finais
A principal conclusão deste trabalho é de revelar que diferentes práticas coprodutivas ocorrem no processo de inovação do setor público em cidades criativas, tendo elas uma relação sequencial. Pondera-se que a presente pesquisa não indica que a coprodução de serviços públicos só acontece em cidades criativas, nem mesmo que a inovação só pode ser gerada coletivamente nesses lugares. O que esta pesquisa faz é retratar quais práticas coprodutivas das cidades criativas influenciam no processo de inovação.
Nesse sentido, o framework da Figura 1 não deve ser interpretada como um modelo que explica que suas quatro práticas acontecem em todas as cidades criativas, mas sim como um esquema ou mapa conceitual. Este framework tem que ser compreendido como algo que mostra que, a partir dos estudos da literatura revisada, a coprodução se manifestou nas cidades criativas – simultânea ou isoladamente – pela coanálise, cocriação, coimplementação e coavaliação.
Logo, este trabalho se limita a uma análise da literatura, não sendo feito um estudo de caso ou multicasos para investigar sua problemática. Dessa forma, sugere-se que pesquisas empíricas sejam realizadas futuramente para verificar se as práticas do framework da Figura 1 acontecem em cidades criativas específicas. Apesar da referida limitação, o presente artigo traz contribuições importantes para a teoria e a prática da administração pública.
Os resultados discutidos aqui podem servir para embasar investigações sobre interferências mais peculiares de atores não estatais no processo de inovação no setor público, ou seja, em determinadas manifestações da coprodução. Ademais, suas categorias abrem espaço para novas discussões teóricas e avançam no entendimento da relação entre as características contextuais da gestão da coprodução (cidades criativas) e seus impactos (inovação), que segundo Gouveia Júnior, Bezerra e Cavalcante (2023) é algo que a literatura precisa explorar mais.
Como contribuições práticas, este trabalho serve para mostrar as ações coprodutivas que podem ser realizadas em cidades criativas. Com base nisso, gestores públicos conseguiriam pensar em medidas que desenvolvam ainda mais a coprodução, reforçando assim o compromisso institucional das cidades criativas: de promover a criatividade e a inovação pela sua cultura e atores sociais.
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[1] Graduado em Administração Pública pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Mestre em Administração pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutorando em Administração pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Gestão e Desenvolvimento de Territórios Criativos (GDTeC).
[2] Doutor em Ciências Humanas: Sociologia e Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-Doutorado em Administração Pública, Turismo e Empreendedorismo pelas Universidades do Minho, Algarve e Évora. Pós-Doutorado em Políticas Públicas pelas Universidades de Tilburg e Breda. Professor do Programa de Pós-Graduação em Administração Pública na Universidade Federal de Viçosa (UFV). Professor do Programa de Pós-Graduação em Turismo e Patrimônio na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Líder do Grupo de Pesquisa em Gestão e Desenvolvimento de Territórios Criativos (GDTeC/UFV). Coordenador Geral da Cátedra UNESCO em Economia Criativa e Políticas Públicas.
[3] Consideração feita a partir da análise dos dados da revisão da literatura.