Contribuições possíveis da Economia Solidária de Paul Singer à Economia de Francisco e Clara

 

Fernando Augusto de Souza Guimarães[1]

Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

fasgui@gmail.com

 

João Victor Martins Toledo Guidotti[2]

Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

joaotoledo25@yahoo.com.br

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Resumo

Neste artigo são apresentadas as linhas mestras contidas na Economia de Francisco que buscam realmar o capitalismo. O chamamento de Mario Bergoglio em 2019 criou um movimento mundial que tem como principal objetivo lutar contra as desigualdades e pobrezas crescentes sem abrir mão da sustentabilidade e justiça social, em outras palavras, o objetivo é humanizar a economia. Neste sentido, tanto a obra quanto a trajetória de vida de Paul Singer podem ser utilizadas como parâmetros capazes de apontar possíveis direções desta mudança. Por isso, a partir da análise do pensamento de Paul Singer e de suas singularidades, se busca traçar as contribuições deste à Economia de Francisco.

Palavras-chave: Economia de Francisco; Paul Singer; economia solidária.

POSSIBLE CONTRIBUTIONS OF PAUL SINGER'S SOLIDARITY ECONOMY TO FRANCISCO AND CLARA'S ECONOMY

Abstract

This article presents the main lines of Francis' Economy that seek to give a new meaning to capitalism. Mario Bergoglio's call in 2019 created a worldwide movement that has as its main objective to fight against inequalities and poverty without giving up sustainability and social justice, in other words, the goal is to humanize the economy. In this sense, both the work and the life trajectory of Paul Singer can be used as parameters capable of pointing out possible directions of this change. Therefore, based on the analysis of Paul Singer's thought and its singularities, we seek to trace his contributions to the Francis’ Economy.

Keywords:Francis’ Economy; Paul Singer; solidarity economy.

1  INTRODUÇÃO

A eleição de Jorge Mario Bergoglio como papa Francisco, em 2013, após o conservador pontificado do alemão Joseph Ratzinger, pode ser entendida como uma nova abertura da Igreja Católica frente ao mundo contemporâneo. Até então, o Concilio Vaticano II realizado na década de 1960 representava um marco na postura da Igreja frente à modernidade e teve por intuito a atualização de alguns de seus dogmas. O fim da celebração das missas em latim e uso de meios de comunicação são algumas das mudanças efetivadas após o Concílio, sendo entendidas como adaptação da instituição à contemporaneidade, o famigerado aggiornamento. (Placeres, 2020). Para muitos adeptos este deslocamento institucional nos anos de 1960 foi entendido como sinal de arrefecimento do conservadorismo católico, mesmo não havendo postura consoante por parte dos predecessores de Franscisco, Joseph Aloisius Ratzinger, Bento XVI e Karol Józef Wojtyla, João Paulo II, em razão das tendências conservadoras de seus pontificados.

A despeito dos predecessores do papa Francisco, é importante ressaltar que ele é o primeiro papa que não participou do Concílio Vaticano II. Por isso, sua eleição pode ser considerada uma inflexão na história da Igreja. Diferentemente de João Paulo II, que buscou despolitizar a igreja e desmobilizar os membros das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), inspirados pelos ideais da teologia da libertação, ao promover o segmento carismático (Prandi; Souza, 1996), Mario Bergoglio se preocupa não apenas com a vida religiosa, voltada à conquista do reino dos céus, mas também com a realidade concreta da vida e os sofrimentos que as políticas humanas causam. Francisco incorpora em si a representação do Terceiro Mundo subdesenvolvido e chagado economicamente, temas que ele trataria com muita parcimônia, todavia com fortes pretensões de modificar as estruturas sociais que se impõem sobre a dura realidade da vida dos indivíduos presentes, sobretudo nos países mais pobres. Na prática, sua perspectiva humanizada nega uma postura resignada com o mundo. Não por acaso ele assumiu para si o nome do santo de Assis, incorporando a representação dos países em desenvolvimento feridos pelas garras do capital.

 

2  A VISÃO DE FRANCISCO

Ainda que de ordem jesuíta, Francisco desde o início de seu pontificado tem demonstrado de diversas formas seu incômodo com o apego ao passado (cf. Motu Proprio Traditiones Custodes). Sua indignação se expressa, sobretudo, em atos, escritos e pregações, contra a ordem econômica e social que subjuga o mundo atual e seus habitantes ao fardo da miséria e da pobreza. Passando por cima de protocolos oficiais e ritualísticas tradicionais, o papa argentino tem por objetivo estimular a reflexão católica voltada às causas ambientais e sociais.

Por isso, em maio de 2015, o bispo de Roma lançou sua segunda encíclica papal, denominada “Laudato Sí” (“Louvado sejas”, do cântico de Francisco de Assis) – “Sobre o cuidado da casa comum”. Esta encíclica propõe, já em seu título, o rompimento com os costumes arcaicos até então defendidos pela Igreja: seu incipit foi promulgado em língua italiana ao invés de em latim, como não era feito na Igreja há pelo menos 180 anos. A “Laudato Sí” lançou bases para o pensamento católico voltar-se à questão da desigualdade social presente no mundo e o cuidado com a “casa comum” (a Terra), após identificar a presença exacerbada desses algozes no mundo todo:

 

Esta irmã [a Terra] clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do parto» (Rm 8, 22). (Francisco, 2015, § 2)

 

Lançadas as bases de um pensamento cristão convertido às preocupações sociais e ecológicas e inserido no magistério social da Igreja (Francisco, 2015, § 15), Francisco continuou, em seu pontificado, a desdobrar-se em favor destes temas. Tendo por fio condutor a Doutrina Social da Igreja[3]- de quem deriva a encíclica “Laudato Sí”- e o anseio de uma reconstrução política e social (Francisco, 2020, § 66). Em 1° de maio de 2019 (não por acaso, dia dos trabalhadores) enviou um convite aos economistas, agentes de mudança e empreendedores com até 35 anos de idade do mundo todo, para integrarem um encontro global que pudesse “repensar possíveis outros rumos de desenvolvimento econômico planetário, em face da grande desigualdade e do aquecimento global” (Sofiati; Souza, 2021, p. 1). Na ocasião da convocação, Francisco reforçou o convite a quantos se interessassem por “[...] estudar e a pôr em prática uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta” (Francisco, 2019).

Desta carta deriva o grande encontro em Assis, que tinha como proposta inicial o estabelecimento de “[...] um ‘pacto’ para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã” (Francisco, 2019). O encontro mundial deveria acontecer na cidade onde vivera São Francisco, por escolha do próprio pontífice (Bruni, 2020).  Primeiramente marcado para novembro de 2020, o evento viria a acontecer apenas em setembro de 2022, em virtude da pandemia de COVID-19. Tal espera possibilitou a organização mais precisa de pautas e de grupos, que puderam se engajar com maior empenho neste encontro. Francisco, na ocasião da abertura do evento, discursou evidenciando os rumos que a agora denominada “Economia de Francisco” já havia despertado em jovens do mundo inteiro:

Para muitos de vós — acabamos de ouvir — o encontro com a Economia de Francisco despertou algo que já tínheis dentro de vós. Já estáveis comprometidos em criar uma nova economia; aquela carta uniu-vos, deu-vos um horizonte mais amplo, fez-vos sentir parte de uma comunidade mundial de jovens que tinham a vossa mesma vocação. E quando um jovem vê noutro jovem a própria chamada, e depois esta experiência se repete com centenas, milhares de outros jovens, então tornam-se possíveis grandes coisas, até ter a esperança de mudar um sistema enorme, um sistema complexo como a economia mundial. (Francisco, 2022).

 

De fato, o anúncio do evento em 2019 provocou empolgadas reverberações diante de jovens economistas, pesquisadores e empreendedores pelo mundo todo. No Brasil, como o tem demonstrado a tradição histórica, o engajamento não foi diferente. Assim como na recepção do Concílio Vaticano II, o Brasil manteve seu pioneirismo em aceitar, importar e implantar as teorias propostas para a economia por meio do bispo de Roma. Com forte adesão de economistas, pensadores e leigos brasileiros, formou-se a “Associação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara – ABEFC, cujos empenhos culminariam no evento mundial de Assis. Também no Brasil a “Economia de Francisco” recebeu no nome o adendo de Clara, em referência à companheira de Francisco de Assis, Santa Clara de Assis. Essa inclusão de nome se justifica na perspectiva de chamar à contribuição para o debate e ao seu protagonismo também as mulheres, empreendedoras, pesquisadoras e economistas interessadas. Clara remete à proposta de uma economia que esteja “[...] baseada no feminino, no cíclico, na acolhida, no cuidado e no afeto [...]” cujo pressuposto indica “[...] uma transição radical nos modos e nas formas de produção linear, masculinizada, que impôs uma visão de progresso baseada na extração” (ABEFC, 2019).

A iniciativa do Papa Francisco recebeu inúmeras adesões ao redor do mundo, tomou corpo, se intensificou e hoje se faz presente em muitos países, em forma de movimentos de solidariedade social e em busca de uma “mudança no paradigma socioeconômico do mundo” (Souza, 2020, p. 1). Por um lado, a forte adesão ao chamado “franciscanismo econômico” ressalta o descontentamento de jovens (uma vez que a eles fora feito o convite) diante da perversa economia atual, pautada num capitalismo neoliberal e devastador; por outro lado, revela o anseio por novas possibilidades ante a atual realidade econômica de grande parte do planeta. Pensar uma economia de Francisco é pensar em meios inovadores para lidar com o sistema dominante; é abrir caminhos para o estabelecimento de novas economias, que sejam pautadas na solidariedade social e na distribuição igualitária dos bens que um país produz.

Gloria Dei vivens pauper – clamava o mártir Dom Oscar Romero em uma de suas homilias, alguns anos antes do batismo de sangue que lhe daria a alcunha de “Santo das Américas”: “A glória de Deus é que o pobre viva”. Para o papa, os pobres devem ser o cerne desta nova e anunciada economia: “Olhar para a economia a partir deles, olhar para o mundo a partir deles. Sem a estima, o cuidado, o amor pelos pobres, [...], não há “Economia de Francisco” (Francisco, 2022). Portanto, o adágio do santo salvadorenho expressa notadamente a doutrina que se propôs seguir o cardeal Bergoglio, conforme apontado por ele mesmo na raiz da economia de Francisco, a encíclica LaudatoSí:

 

O impacto dos desequilíbrios atuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas agendas mundiais. (Francisco, 2015, § 48).

 

De fato, o problema da exploração dos povos economicamente desfavorecidos incomoda muito o papa. Não por acaso escolhera o nome de Francisco após a indagação do cardeal brasileiro Hummes: “Não se esqueça dos pobres!”. Talvez por isso, animado pelo santo de Assis, o papa materialize seu enfoque político-teológico na idealização e construção de alternativas ao sistema mundial atual (o capitalismo), de formas de economia que se abstenham do consumo desenfreado e da rentabilidade excludente (Francisco, 2015, § 187), tendo por objetivo converter o modelo atual de desenvolvimento global (Francisco, 2015, § 194) em favor da igualdade social.

Falar em alternativas solidárias e fraternas diante do pensamento hegemônico capitalista neoliberal soa quase como uma utopia inalcançável. Todavia, é necessário resgatar os ideais sociais numa perspectiva mais ampla e democrática, para a sustentação de ideias que possam modificar as estruturas atuais do capital em favor da inclusão de pobres e marginalizados na economia mundial. Esse ideário fraterno e solidário se consolida propriamente nos movimentos de articulações pela Economia de Francisco, uma vez que a proposta papal se dá no âmbito do reconhecimento de novos rumos possíveis à economia. No Brasil, pode-se dizer que os movimentos de economia solidária constituem efetivamente os ideais franciscanos acerca da economia.

 

 

3 PAUL SINGER E A ECONOMIA SOLIDÁRIA

Trazida ao país e teorizada por Paul Singer (1932-2018), a economia solidária remonta à discussão de novas engrenagens para os mercados capitalistas, uma vez que

 

O movimento de economia solidária se estruturou com base na proposta de organização de cooperativas e associações voltadas ao combate ao desemprego, à inclusão de jovens, idosos e excluídos do mercado de trabalho, a partir de formas de autogestão de organização do trabalho e da propriedade coletiva dos meios de produção, numa economia diferente, mas integrada ao mercado capitalista (Lima; Souza, 2014, p. 160).

 

Embora o primeiro enfoque da teoria de Paul Singer tenha sido a proposta de um novo socialismo (Lima; Souza, 2014, p. 160), sua posterior empreitada, tendo por cerne a inclusão dos desfavorecidos economicamente e sua inserção em políticas públicas, favoreceu seu crescimento e formação de uma identidade solidária em relação à economia no Brasil e em países da América do Sul, tendo por pressuposto o ideal de igualdade daqueles que se associam para produzir, comerciar, consumir ou poupar (Singer, 2002, p. 9).

Do ponto de vista sociológico, a economia solidária do professor Paul Singer, pautada no cooperativismo auto gestionário, evidencia traços de pensamentos políticos e econômicos clássicos, como o marxismo e o solidarismo cristão (Lima; Souza, 2014, p. 161). Não obstante a afinidade eletiva que existe entre as propostas de economia solidária e as doutrinas socialistas, uma vez que a proposta de Singer mais tarde viria a criar a ideia de socialismo democrático, uma alternativa ao capitalismo atual e ao sistema neoliberal. O ideário social presente na economia solidária revela uma característica muito cara ao Papa Francisco em sua nova proposta de economia: reparar os danos, deixando de lado as proposições apenas teóricas. O papa deseja que a Economia de Francisco extrapole as cercas das evidências teóricas e parta para a ação concreta em favor de subverter a ordem das coisas e sua estrutura atual (Francisco, 2022).

A teoria de Paul Singer, no que se refere à economia solidária, critica o capitalismo enquanto fator primeiro da competitividade entre os homens, sublinhando que a absorção do pensamento dominante levou os indivíduos a crerem que este sistema é natural e normal (Singer, 2002, p. 7). Singer expõe um estado de competição como natureza do capitalismo, o qual o filósofo Thomas Hobbes evidenciara como um caminho que leva “[...] à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar o seu desejo consiste em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro” (Hobbes, 1983, p. 86). Por isso Singer propõe a ideia de economia solidária como aquela que rompe com os grilhões da exploração e da competição, tornando-se solidária de forma efetiva à medida em que ela se organiza de forma igualitária por meio da associação entre iguais, em detrimento de um contrato entre desiguais (Singer, 2002, p. 9).

É fato que o capitalismo contemporâneo contém raízes requintadas de exploração e subjugação dos trabalhadores – sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos economicamente. Ainda mais em se tratando de sua versão neoliberal, que se constrói sobre uma racionalidade específica que pauta a ação dos indivíduos e governos (Dardot; Laval, 2016). Enquanto Paul Singer expressa claramente a aversão da economia solidária ao sistema capitalista hegemônico, Francisco hesitara, na encíclica Laudato Si, em utilizar efetivamente o termo capitalismo, preferindo chamar de “sistema mundial atual” (Souza, 2020) o que se pode entender como referência aos sistemas neoliberal e capitalista. Todavia, com a repercussão positiva da economia de Francisco entre jovens economistas e simpatizantes do mundo todo, o termo ‘capitalismo’ foi empregado claramente quando da visita do papa à Assis para a realização do evento, em 2022. O pontífice atribuiu a este sistema não apenas o flagelo social, mas também evidenciou nele um problema moral e espiritual:

 

Por fim, há uma insustentabilidade espiritual do nosso capitalismo. O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, antes de ser um averiguador de bens, é um indagador de sentido. Somos todos indagadores de significado. Por isso, o primeiro capital de qualquer sociedade é espiritual, pois é ele que nos dá as razões para nos levantarmos todos os dias e ir trabalhar, gerando a alegria da vida que também é necessária para a economia. (Francisco, 2022).

 

A ciência dos diversos problemas contidos no sistema capitalista expõe a necessidade de sua superação e de novas formas de se reger a economia. Tomando a economia e o aspecto financeiro como base para a transformação social e superação do capitalismo, Francisco e Singer traçam teorias para que se ‘realme’ a economia, como defende o sociólogo Eduardo Brasileiro (2020). É evidente o elo entre as duas teorias: a economia de Francisco, convocada pelo sumo pontífice romano, e a economia solidária, teorizada pelo professor Paul Singer. Em ambas, o diálogo se baseia na fraternidade para a construção de novos olhares sobre a economia, de modo que se estabeleçam empreendimentos efetivos para novas práticas financeiras e econômicas pelo mundo, sobretudo para enviesar o clamor dos pobres e desfavorecidos, sem se abrir mão da liberdade, autonomia e democacria.

 

4 conclusão

Paul Singer deixa evidente em sua obra “Introdução à economia solidária” (2002) que “Se toda economia fosse solidária, a sociedade seria muito menos desigual” (SINGER, 2002, p. 10). Francisco, na mesma esteira de pensamento, defende que “Para se conseguir continuar a dar emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial” (Francisco, 2015, § 129). A definição da economia solidária de Singer enquanto “[...] outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual” (Singer, 2002, p. 10), remonta ao desejo de Francisco para a economia mundial: uma espécie de desencantamento de um sistema de propriedade estruturalmente perverso (Francisco, 2015, § 52). Para o pontífice também é preciso que a propriedade privada dê lugar ao solidarismo econômico, reconhecendo sua função social e subordinando-a ao destino universal dos bens (Francisco, 2015, §93) como o faziam os primeiros cristãos, que tinham tudo em comum e, quando dispunham de propriedades e bens, vendiam-nos para dividir com os necessitados (Guidotti, 2021, p. 91). Esta lógica também deveria exercer influência sobre o capital, para transformá-lo em bem comum diante das necessidades dos povos.

Francisco reconhece o flagelo social da falta de emprego, enquanto o capitalismo o exalta em favor da competição, formando o exército industrial de reserva de mão de obra (Marx, 2013, p. 672). A preocupação do papa retrata um viés prático da Economia de Francisco: criar economias diversificadas para evitar o desemprego e, por consequência, reproduzir o solidarismo em vez da competitividade entre trabalhadores e trabalhadoras do mundo. Por isso ele reconhece a necessidade de questionar o modelo de desenvolvimento (Francisco, 2022). Esse questionamento deve levar em conta as empreitadas capitalistas que se dão no âmbito de combate aos pobres e não à pobreza; de combate à fome e não à miséria – e esse posicionamento reflete a terrível lógica excludente exaltada no capitalismo. Para se fazer economia de Francisco, é preciso ter em mente o objetivo de colocar no centro os pobres e desfavorecidos:

Encontrando-me na cidade de Francisco, não posso deixar de meditar sobre a pobreza. Fazer economia inspirando-se nele significa assumir o compromisso de colocar os pobres no centro. [...]. O nosso capitalismo, ao contrário, quer ajudar os pobres, mas não os estima, não compreende a bem-aventurança paradoxal: “Bem-aventurados os pobres” (cf. Lc 6, 20). Não devemos amar a miséria, aliás, devemos combatê-la, sobretudo criando trabalho, trabalho digno. Mas o Evangelho diz-nos que, sem estimar os pobres, nenhuma miséria pode ser combatida. E, ao contrário, é a partir daqui que devemos começar, também vós, empresários e economistas: vivendo estes paradoxos evangélicos de Francisco. (Francisco, 2022).

 

Não obstante, Singer reconhece por afinidade a ‘reinvenção’ da economia solidária no Brasil como “resultados diretos da falência de firmas capitalistas, da subutilização do solo por latifúndios (...) e do desemprego em massa” (Singer, 2002, p. 113). Nesse escopo, tanto a economia de Francisco quanto a economia solidária de Paul Singer conversam entre si, na perspectiva de angariar alternativas político-econômicas ao poderio hegemônico do atual capital. Na esteira deste pensamento, cabe sublinhar as teorias do papa quanto ao uso dos bens financeiros e, por consequência, quanto ao acúmulo e concentração de capital. Assim como a doutrina mariológica da Igreja ensina – “aos esfomeados encheu de coisas boas e aos ricos mandou embora sem nada” (Silva, 2022, p. 128), Francisco defende uma regulação no acúmulo do capital daqueles que concentram para si suas maiores partes:

 

Às vezes, para que haja uma liberdade económica da qual todos realmente beneficiem, pode ser necessário pôr limites àqueles que detêm maiores recursos e poder financeiro. A simples proclamação da liberdade económica, enquanto as condições reais impedem que muitos possam efectivamente ter acesso a ela e, ao mesmo tempo, se reduz o acesso ao trabalho, torna-se um discurso contraditório que desonra a política. [...]sobretudo se pensa que a criação de postos de trabalho é parte imprescindível do seu serviço ao bem comum. (Francisco, 2015, § 129)

 

Por afinidade, ambas as teorias – a de Singer e a de Francisco - propõem uma mudança estrutural paralela ao ideário socialista ortodoxo, qual seja, uma metamorfose nas proposições econômicas atuais que subverta a ideia de que o caminho da emancipação passa necessariamente pela tomada do poder de Estado (Singer, 2002, p. 112). Nesse escopo, as teorias de Francisco e Singer convergem porquanto se fundamentam, por um lado, num olhar para a economia afim de “corrigir as suas disfunções e deturpações” (Francisco, 2015, § 194) e, por outro, em desenvolver “organizações econômicas cuja lógica é oposta à do modo de produção dominante” (Singer, 2002, p. 112). A costura das duas teorias demonstra contribuições que sejam possíveis tanto à uma quanto à outra, de forma que bebendo da economia solidária a economia de Francisco poderia ter mais sucesso, assim como o oposto seria verdadeiro.

Todavia, ainda que distantes do socialismo ortodoxo e desapegadas da necessidade de tomada de poder de Estado, Singer e Francisco admitem que as novas formas de organização econômica não podem servir de forma complementar à economia capitalista (Singer, 2002, p. 114), tampouco  podem ser utilizadas na perspectiva de justificar o sistema mundial atual, “onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente” (Francisco, 2015, § 56). Os dois processos levantariam novas alternativas para o modelo econômico atual, por meio da dialética e sob a hegemonia do capital, contudo, em determinado momento de seu apogeu, serviriam como uma “alternativa superior ao capitalismo” (Singer, 2002, p. 114), tendo em vista a construção de uma ‘vida melhor’ para aqueles que as impulsionam.

Voltando à competitividade, obra-prima do capitalismo, Francisco e Singer também convergem na ideia de sua superação por meio da solidariedade fraterna. A competição expressa, de certa forma, o fracasso de uma “economia da exclusão e da desigualdade social” (Francisco, 2013, § 53).

Outra característica do pensamento de Singer reside na afirmação de que a transformação econômica está vinculada ao ideal democrático que possibilite a autogestão dos trabalhadores sem negação do mercado (Singer; Machado, 2000). Afronta ao pensamento comunista mais ortodoxo, que entende a extinção do mercado como etapa necessária de superação do capitalismo, o pensamento de Singer preza pela ressignificação do mercado a partir de uma racionalidade não capitalista. Em certa medida, o problema atual não seria culpa do mercado, mas sim reflexo da razão do mundo que o estrutura, qual seja, o capitalismo neoliberal. No que tange a economia de Francisco, esta reitera a necessidade de mudança na lógica econômica que organiza mercado, sem necessariamente negá-lo. Afinal, a sustentabilidade como ponto nevrálgico das propostas da economia de Francisco apenas pode ser aplicada de modo concreto por meio da lógica consumista inerente ao modelo de desenvolvimento atual.

 

REFERÊNCIAS

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SOUZA, André Ricardo de. Pilares da Economia de Francisco e Clara e o enfrentamento da profunda crise. Contemporânea, São Carlos, SP, v. 10, p. 367-377, 2020. Disponível em: https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/910. Acesso em: 12 maio 2023.

SOUZA, André Ricardo de; SINGER, Paul (org.). A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2003. v. 1. 360p.



[1]Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar e mestre pelo mesmo programa. Pesquisador do NEREP – Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política. São Carlos – SP, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4105-3822.

[2]Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar. Pesquisador do NEREP – Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política. São Carlos – SP, Brasil. ORCID:https://orcid.org/0000-0002-2803-6051.

[3] A DSI (Doutrina Social da Igreja) nasceu em 1831 com a publicação da encíclica RerumNovarum, de Leão XIII. Nesta encíclica, Leão XIII “[...] tratou do trabalho humano e das condições para sua realização, de modo que fosse respeitada e preservada a vida dos trabalhadores com dignidade. A encíclica também manifesta uma posição oficial da Igreja Católica em relação ao liberalismo, ao socialismo e à questão social, enquanto analisa a subserviência do proletariado e suas reivindicações ao poder burguês dominante.” (Guidotti, 2021, p. 50).