REDESCOBRINDO A COLETIVIDADE NO ÂMBITO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL

 

Vitor da Silva Gonçalves[1]

Instituto Federal Fluminense

vitorsgoncalves@protonmail.com

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Resumo

O conceito de commons se originou no campo material, mas, nas últimas décadas, foi ampliado para o campo da propriedade intelectual, como oposição a restrições historicamente construídas, promovendo modelos de acesso aberto e colaborativos. Nesse sentido, o presente trabalho realizou, por meio de pesquisa bibliográfica, uma síntese histórica dos commons e a construção de um paralelo entre os processos ocorridos no âmbito da propriedade sobre bens materiais e da propriedade intelectual. É observado que, na antiguidade, esta primeira possuía um aspecto mais coletivo do que privado, mas passou por um processo de fechamento, tornando-se majoritariamente individual. Já os bens imateriais, também se apresentavam como coletivos e passaram por um processo similar de fechamento, a partir do reconhecimento da sua forma de propriedade e criação de leis para sua proteção. Entretanto, diferentemente dos bens materiais, houve uma reviravolta: o resgate e readaptação das antigas ideias de propriedade compartilhada e criação colaborativa, promovendo um movimento de reabertura dos commons imateriais.

Palavras-chave: commons; coletividade; propriedade intelectual.

REDISCOVERING THE COLECTIVITY IN THE INTELLECTUAL PROPERTY SCOPE

Abstract

The concept of commons originated in the material domain, but in recent decades, it has been extended to intellectual property, opposing to historically constructed restrictions and promoting models of open access and collaboration. In this perspective, the present work constructed, through bibliographical research, a historical synthesis of the commons, and performed a comparison between the processes that occurred in the domains of material goods and intellectual property. It is observed that, in antiquity, the former had a more collective than private aspect, but underwent a process of closure, becoming mostly individual. Intangible assets, on the other hand, also presented themselves as collective, and underwent a similar process of closure, based on the recognition of their form of ownership and the creation of laws for their protection. However, unlike material goods, there was a turnabout: the recovering and re-adaptation of shared property and collaborative creation, promoting a movement for reopening the immaterial commons.

Keywords: commons; collectivity; intellectual property.

1  INTRODUÇÃO

A palavra commons não possui tradução estabelecida na língua portuguesa, mas pode ser entendida como todo o conjunto de recursos, tanto físicos quanto culturais, igualitariamente acessíveis aos membros de uma sociedade. Estes são muitas vezes referenciados como comuns, bens comuns ou recursos compartilhados.

O conceito de commons engloba todos os tipos e formas de bens distribuídos conhecidas historicamente, cujas origens podem ser especuladas na gênese humana, uma vez que o ambiente natural é, necessariamente, compartilhado, além da necessidade de alguma espécie de contrato social para a existência do conceito de propriedade. Para Schurmann (1956), a história das relações de propriedade em uma dada sociedade se traduz na história da própria sociedade. Nesse sentido, as origens do compartilhamento de recursos entre as pessoas remetem à história das relações humanas com seu meio de vida.

Considerando os commons como a forma primordial dos seres estabelecerem relações com o meio, torna-se razoável que estes pouco se apresentassem como tema de discussão e que fossem tratados com pouca relevância, até que transformações sociais trouxessem a figura do proprietário e dos seus direitos exclusivos, seguidos da consolidação das leis, que restringiram o acesso às demais pessoas sobre os bens. Foi desse modo que se instituiu o conceito dos commons, como uma espécie de limitação do alcance da propriedade, observável em diferentes momentos históricos, em múltiplos contextos sociais.

O termo é historicamente antigo, mas ganhou maior popularidade a partir da publicação da obra intitulada “The tragedy of the commons”. Nessa obra, Hardin (1968), buscou uma fundamentação para a discussão sobre superpopulação e apresentou a ideia de que, quando um bem material é compartilhado entre múltiplos indivíduos, a consequência lógica para cada um é de que o caminho mais vantajoso é a maximização do uso do recurso. Para o autor, isto decorre do fato de que o proveito do uso do bem é individual, mas as consequências negativas são coletivas, levando todos os indivíduos racionais compartilhadores do recurso a realizarem o mesmo, gerando o colapso do bem comum. Essa ideia tem sido contestada por autores Como Ostrom (1998), ao defender que os modelos utilizados para estudo do comportamento humano diante da escassez de recursos são limitados e que há a possibilidade de gestão coletiva dos commons, baseada em diálogo, normas sociais e acordos, sendo um fenômeno observável em diferentes contextos.

Apesar das suas origens no campo da propriedade material, o conceito de commons ganhou espaço no campo da propriedade intelectual, como reação às restrições historicamente construídas, propondo modelos de acesso aberto ou, até mesmo, colaborativos. Esta ampliação do conceito deu origem a novas problemáticas, e, nesse sentido, o presente trabalho realizou, por meio de pesquisa bibliográfica, uma síntese histórica dos commons, apresentando seus primórdios, a difusão da propriedade privada e seu processo de fechamento, seguidos do reconhecimento de um novo tipo de propriedade, a intelectual, com qual ocorre um processo similar de fechamento, mas com uma reviravolta: um resgate e readaptação das antigas ideias de propriedade compartilhada e criação colaborativa, promovendo um movimento de reabertura dos commons imateriais, investigado a seguir.

 

2  A PROPRIEDADE INTELECTUAL NA ANTIGUIDADE

Discutir a propriedade intelectual na antiguidade é algo complexo, uma vez que o próprio conceito de propriedade não era precisamente definido e desenvolveu-se junto da sociedade, voltado majoritariamente aos bens materiais, para, somente nos últimos séculos, abranger objetivamente os bens imateriais. Dessa forma, é importante explorar tanto as relações com a propriedade na antiguidade, de forma geral, quanto as relações com os produtos da criatividade e intelectualidade humana, ainda que não fossem tratados como propriedade.

Segundo Nogueira (1945), a propriedade era majoritariamente coletiva entre os povos antigos, sendo as terras e imóveis compartilhados entre as tribos em comum, e os rebanhos e instrumentos de caça, propriedades compartilhadas dos caçadores e pastores, entre outros. Contudo, o autor destacou que a propriedade coletiva propendeu para uma propriedade privada, sendo assegurada inicialmente pela religião, para, posteriormente, pela lei. Para Bowles e Choi (2019), o nascimento da propriedade privada esteve intimamente ligado ao desenvolvimento da agricultura, pois esta demanda investimentos que não seriam encorajados em um modelo de propriedade puramente coletiva. É nessa perspectiva que Braga e Lara (2019), apontaram que, nas civilizações antigas, a propriedade privada era uma questão fundamental, sendo a própria concepção de paz pública desenvolvida com base na proteção dos direitos privados e no apaziguamento entre tensões de direitos desta natureza. Ainda que diferentes povos desenvolvessem o conceito de propriedade privada, a propriedade coletiva não foi abolida, mas acompanhou diferentes civilizações humanas (Axelrod; Fuerch, 2006) ao longo da história.

Já os bens imateriais, frutos da criatividade e do intelecto, eram difundidos na forma de técnicas, arte e conhecimento oral, transmitidos entre gerações. Sua autoria era atribuída não a um indivíduo, mas ao coletivo, sendo constantemente recriados, modificados, adequados aos novos tempos e retransmitidos aos mais novos, perpetuando assim, o conhecimento. Bahn; Lorblanchet; Soulages (2017) destacaram haver uma problemática no estudo de manifestações artísticas em povos muito antigos, uma vez que, na ausência de registros materiais, é impossível comprovar a realização de alguns tipos de manifestações. Entretanto, no caso de obras intelectuais aplicadas sobre veículos físicos, observa-se um aspecto de coletividade, como nas pituras rupestres, em que análises de paleodermatoglifos apontam para a produção coletiva da arte (Martínez-Sevilla et al., 2020).

Com a construção de organizações sociais mais complexas e de maior favorecimento à individualidade, além de maiores tecnologias de meios físicos de transmissão de informação, como por meio de manuscritos, observa-se uma maior preocupação com a questão da autoria. Nesse sentido, Behme (2007) destacou que, já durante o império romano e na antiga Grécia, se podia observar preocupações com a autoria de manuscritos e que a prática da cópia de trabalhos de outros autores já era repreendida, mas normalmente de forma diferente da com que se encara na atualidade, sendo os copiadores recebidos com sarcasmo e ridicularização, e não com litígio. O autor ainda discutiu algumas acusações de plágio do período e chamou a atenção para a escassez de evidências e divergências entre pesquisadores sobre o assunto. Já Hesse (2002), destacou que, durante a antiguidade, as noções de autoria se desenvolveram em diferentes civilizações, mas que não levaram à ideia de propriedade, um fenômeno que se decorreu gradualmente e se solidificou por volta do século XVIII. Este processo é abordado nas seções seguintes.

 

3  “ENCLOSURE OF THE COMMONS” E A FORMALIZAÇÃO DO CONCEITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL

Com o fim da idade média e com o início da ascensão do capitalismo, houve uma intensificação do movimento conhecido como o cercamento dos comuns, ou “enclosure of the commons”, que consistiu da rápida apropriação de terras, que antes eram territórios de uso comum para os camponeses, por meio do seu cercamento. Isto impedia que as populações, agora desprovidas dessas terra, pudessem usar da sua força de trabalho para suprir suas necessidades, fazendo com que os trabalhadores se encontrassem forçados a buscar trabalhos industriais. Este processo foi extensivamente discutido por Marx (2011), que descreveu como os camponeses livres que surgiam com o enfraquecimento do sistema feudalista viram-se usurpados de suas terras comuns pelos proprietários de terra, que reivindicaram para si, ainda que sem formalidade legal, os direitos de propriedade moderna. O autor destacou:

A “Glorious Revolution” (Revolução Gloriosa) conduziu ao poder (...) os extratores de mais-valor, tanto proprietários fundiários como capitalistas. Estes inauguraram a nova era praticando em escala colossal o roubo de domínios estatais que, até então, era realizado apenas em proporções modestas. Tais terras foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou, por meio de usurpação direta, anexadas a domínios privados (Marx, 2011, p 601).

 

Um fenômeno similar ocorreu durante o mesmo período, com a propriedade intelectual, cujas bases legais se solidificavam, fundamentadas na restrição dos direitos de reprodução, por princípios exclusivistas e excludentes. Até então, o conhecimento, era, em maior parte, de domínio público, tanto nas formas de conhecimento popular, técnico, acadêmico, ou de manuscritos, cuja restrição se encontrava majoritariamente na forma de segredos. Ainda na idade média, foram criadas as primeiras formas de exclusão de bens intangíveis, como o surgimento de percursores das patentes e estatutos patentários, que garantiam exclusividade a inventores sobre a produção de suas invenções (Biagioli; Galison, 2014). Contudo, a progressiva transição para uma sociedade capitalista transformou não apenas a força de trabalho e os bens tangíveis, mas também as criações do intelecto em mercadorias.

Ainda na idade média, as primeiras formalizações se deram na forma dos chamados privilégios das guildas, que detinham alguns conhecimentos técnicos e artísticos, na forma de direito consuetudinário, posteriormente formalizados na forma de patentes, em um sistema que, embora com algumas características consideradas modernas, se dava em um meio jurídico caótico, ainda em formação (Prager, 1944).

Em relação às obras literárias, suas primeiras formalizações concediam direitos às gráficas copiadoras de livros, e não aos autores, o que levou a insatisfações e disputas, impulsionadores de um dos primeiros atos reguladores da propriedade intelectual: o estatuto da Rainha Anne, publicado em 1709, originando o direito do autor sobre sua própria obra, o que provocou intensos debates políticos até a segunda metade do século XVIII, consagrando o regime de copyright na Grã-Bretanha (Zanini, 2010). Este processo se decorreu, paralelamente, em outras regiões da Europa, como na França e na Alemanha. Os autores e editores conflitavam pelos direitos sobre as obras, e isto levava a novas discussões no âmbito jurídico e filosófico, acarretando mudanças na percepção dos leitores e legisladores sobre o assunto, no sentido do reconhecimento dos direitos dos autores (Hesse, 2002).

Durante o mesmo período, já se desenvolviam nos EUA, na França e na Inglaterra sistemas estatutários de patentes, o que se tornou uma tendência para diversos países europeus no início do século seguinte. Os principais argumentos a favor das leis de patentes se baseavam nas ideias de que uma pessoa possui um direito natural à propriedade de suas próprias ideias, sendo justo requerer que a sociedade recompense um indivíduo pelos seus serviços, além de ser necessário perspectiva de lucro para a criação das invenções, de forma que, na ausência de proteção, os inventores manteriam suas invenções como segredo (Machlup; Penrose, 1950).

Entretanto, tal processo não se decorreu de forma unânime, mas em meio a controvérsias e oposições, que levaram a um movimento pela abolição das patentes, como apresentado por Carvalho (2009), que destacou os movimentos ocorridos na Inglaterra, Alemanha, França, Holanda e Suíça. Na Inglaterra, os opositores do sistema de patentes possuíam o apoio de um importante veículo da imprensa, a revista “The Economist”, e conseguiram a aprovação de um projeto de lei na câmara superior do parlamento. Para o autor, o conflito estava associado à defesa e ao ataque ao livre comércio, sendo, em geral, os defensores contrários às patentes e os protecionistas, defensores das mesmas, de forma que o movimento antipatentes perdeu sua força, à medida que o protecionismo se consolidou naquele momento histórico do século XIX. Machlup e Penrose (1950) também discursaram sobre o movimento contra as patentes, destacando que alguns países, como a Suíça, foram relutantes a criar leis patentárias, mas que houve pressionamento dos demais, para se aderir ao sistema.

Apesar das oposições, a expansão das relações econômicas internacionais evidenciava as questões da espionagem industrial e da contrafação, o que trouxe uma nova perspectiva e um novo fôlego ao movimento em prol das patentes. Foi durante eventos de exposição universais que a problemática se tornava mais evidente e alguns governos se mobilizavam para proteger seus bens expostos. Com isso, no Congresso Internacional de Patentes, realizado na Exposição Universal de Viena, em 1873, os participantes buscaram a harmonização legislativa e a oposição ao movimento abolicionista, reforçando a defesa das patentes por meio de um sistema unificado, tanto em seus princípios fundamentais, quanto em suas regras. Os debates e resoluções restauraram a força do sistema patentário e abriram o caminho para a sua consolidação anos depois (Malavota; Martins, 2021).

 Houve também resistência na adoção das leis de direitos do autor, o que pode ser observado no discurso realizado em 1841 por Thomas Babington Macaulay, para a “House of Commons” britânica, a respeito da possibilidade de extensão do prazo de proteção de uma obra. Macaulay se apresentou como relutante, arriscando ser incompreendido e mal interpretado como agindo contrariamente aos interesses da literatura. Seu discurso rejeitou a proposta de extensão do prazo de proteção do copyright, o posicionando como uma grande inconveniência criadora de monopólios e, portanto, causando os efeitos indesejados advindos deste. Entretanto, ele apontou o copyright como a única opção possível para garantir o incentivo aos autores e o comparou a um imposto aplicado sobre os leitores para recompensar os autores (Macaulay, 2016).

A estruturação internacional da propriedade intelectual tomou forma, inicialmente, com a Convenção da União de Paris, de 1883, que formalizou as proteções e conceitos de patentes, indicação de procedência, marcas e nomes comerciais, determinando um conjunto de padrões mínimos a serem seguidos pelas legislações nacionais. Posteriormente, foi realizada a Convenção de Berna, em 1886, que trilhou as bases mínimas para as obras literárias, mas ainda em uma conjuntura internacional não plenamente unificada, o que foi alcançado com a fundação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e realização do acordo TRIPs, voltado ao comércio internacional (BRAVO, 2001; BULZICO, 2007).

Desse modo, mesmo diante de críticas, a propriedade intelectual foi não somente formalizada mundialmente, mas, em grande parte, uniformizada, com base nos princípios de que as restrições são necessárias para o incentivo à criação de novas obras, assim como para o exclusivo benefício econômico dos criadores.

 

4  UMA NOVA CATEGORIA DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E O SURGIMENTO DOS MOVIMENTOS DE REABERTURA

Os meados do século XX foram anos decisivos no desenvolvimento da computação, quando os adventos da eletrônica e métodos matemáticos, fomentados pela corrida tecnológica da guerra fria, convergiam para a criação de um dispositivo capaz de realizar operações lógicas e apresentar seus resultados, por meio um sistema de entradas e saídas. Tais operações eram mapeadas em instruções, que, quando dispostas sequencialmente, em estrutura de fila, permitiam que a unidade de processamento realizasse quaisquer operações, até mesmo de forma autônoma (Mahoney, 2008).

Dessa forma, os computadores se tornaram dispositivos capazes de realizar tarefas antes consideradas impraticáveis, ou até mesmo impossíveis, para humanos, mas dependentes de uma disposição específica de instruções para operarem para atender seus objetivos. A organização dessas instruções se demonstrou uma tarefa complexa, levando à criação de um novo ramo do conhecimento sobre ela. Este ramo foi denominado programação, e consiste em manipular as instruções que os computadores executam, de forma que estes resolvam as mais variadas tarefas, e guardar essa sequência de instruções, na forma de um programa, também chamado de software, para executar sempre que necessário. Com a posterior criação de estruturas de dados, compiladores, sistemas operacionais, entre outros, a programação se tornou cada vez mais complexa.

Os primeiros programas de computador foram desenvolvidos sem muita preocupação com questões de autoria. Estes eram vistos como parte integrante dos equipamentos físicos, também chamados de hardware, e distribuídos pelos fabricantes juntos destes. Os programas eram recorrentemente compartilhados e modificados por cada usuário, para atender às suas necessidades, no que rapidamente se transformou em prática comum e encorajada pelos fabricantes, sendo conhecida como a cultura hacker (Buning, 2007). Embora nesse período um programa de computador ainda não fosse considerado modalidade da propriedade intelectual, é possível observar que o comportamento social em torno deste se assemelhasse ao de uma propriedade compartilhada, de forma análoga às terras comuns da antiguidade.

Essa postura diante da propriedade de software foi se transformando, tendendo a uma repetição do processo de fechamento dos comuns, à medida que o interesse econômico sobre software crescia e, cada vez menos os fabricantes de computadores, disponibilizavam seus programas gratuitamente, desacoplando o software do hardware. Isto criou a demanda por proteção jurídica, e gerou discussões sobre a forma como o software deveria ser protegido, sendo consideradas possibilidades como patentes, segredo industrial e direito do autor (Mellema, 1984), sendo este último a forma adotada internacionalmente, por meio do acordo TRIPS (Buning, 2007).

Ainda que o tratamento do software dentro das leis de propriedade intelectual, assim como as demandas comerciais, convergissem para o seu fechamento, muitos grupos de desenvolvedores mantinham sua cultura de compartilhamento, conhecida como cultura hacker, mas viam-se cada vez mais diluídos, frente a uma forte tendência oposta. Um desses grupos foi o laboratório de inteligência artificial do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que desenvolvia software de forma compartilhada, trocando código-fonte entre outras universidades ou empresas, até que tal prática encontrou-se em colapso, quando muitos dos seus membros foram absorvidos por empresas e quando o laboratório adotou novos sistemas, integrando software de fabricantes que reivindicavam sua propriedade intelectual, não permitindo acesso ou modificação (Stallman, 2021).

Como reação a esse fechamento, um dos membros do laboratório iniciou, em 1984, um projeto com o objetivo de criar um sistema operacional livre, que permitisse e encorajasse todos a usá-lo, copiá-lo, modificá-lo e redistribuí-lo, sem restrições, perpetuando a cultura hacker, que se encontrava à beira do desaparecimento. Assim, deu-se início ao desenvolvimento do projeto GNU, com a escrita de diversos componentes necessários para um sistema operacional, mas também, e talvez o elemento mais significativo, a criação de uma licença de software que determinasse as liberdades que este oferecia e, ao mesmo tempo, criasse uma espécie de restrição, para impedir que pudesse ocorrer um futuro fechamento, tal como ocorreu com a cultura hacker. Dessa forma, foi criada a licença pública geral GNU, ou GNU GPL (Stallman; Gay, 2009).

O trunfo da licença GNU foi o de utilizar das próprias restrições das leis de propriedade intelectual para criar uma condição em que um software possa se comportar tal como num sistema com características de propriedade compartilhada, assim como na cultura hacker, e ainda impedir, por meio do mesmo sistema jurídico, que o material licenciado sob sua licença seja utilizado para criar programas com restrições de compartilhamento. Esta característica construiu um princípio de reciprocidade, uma vez que a licença exige que, para a redistribuição do código licenciado, é necessário que esta seja feita sob os mesmos termos.

A licença GNU GPL chamou a atenção do público desenvolvedor de software, uma vez que trouxe segurança jurídica para o compartilhamento de código-fonte, rapidamente ganhando adeptos e permitindo a criação da Free Software Foundation, uma fundação voltada à proteção e fomento do software livre, que mantém uma base ideológica, junto de uma definição, que o classifica como aquele que oferece as chamadas 4 liberdades essenciais, sendo as “de executar o programa como você desejar, para qualquer propósito; de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo às suas necessidades. Para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito; de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar outros; e de distribuir cópias de suas versões modificadas a outros. Desta forma, você pode dar a toda comunidade a chance de beneficiar de suas mudanças. Para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito.” (Free Software Foundation, 2022)

Paralelamente, uma complicação jurídica se dava em torno de um projeto de software desenvolvido pela Universidade de Berkeley, conhecido como o sistema operacional BSD. O BSD se originou a partir do licenciamento do sistema UNIX, desenvolvido pela AT&T, para a universidade, que o modificou substancialmente, a ponto de remover todo o código criado pala empresa. Em 1992, a AT&T processou a Universidade de Berkeley por uso sem permissão da sua propriedade intelectual, mas o desfecho da causa favoreceu a universidade, que, mediante acordos, removeu algumas partes do seu sistema e pôde então desenvolvê-lo redistribuí-lo como o fazia (Kernighan, 2020; Raymond, 2003).

Com a distribuição do sistema BSD, seu modelo de licença, de mesmo nome, ganhou popularidade. A licença permitia a livre execução, cópia, modificação e redistribuição do código, sem restrições, permitindo até mesmo o seu uso para a criação de código distribuído sob licenciamento diferente. As licenças GPL e BSD ganharam popularidade e adoção, sendo utilizadas pela comunidade, mas não sem atritos, gerando divergências entre desenvolvedores em relação à questão da reciprocidade, trazendo uma dualidade que perdura até os dias atuais. Para alguns desenvolvedores, a reciprocidade é uma forma de restrição que pode prejudicar a própria comunidade de software livre, por meio de incompatibilidades (The Freebsd Project, 2021). Para outros, a reciprocidade é considerada uma necessidade, pois impede que terceiros tomem o software livre e o utilizem para desenvolver software proprietário, sem devolver contribuições à comunidade (Free Software Foundation, 2021).

Tendo em vista essa dualidade da comunidade, e observando que o software livre era bem-sucedido entre pequenos programadores e universidades, mas não no meio empresarial, um grupo de desenvolvedores criou uma nova organização em 1998, a Open Source Initiative (OSI), que mantém sua própria definição de software denominado código aberto, ou open source (Dibona; Ockman; Stone, 1999). Apesar das divergências de pensamentos dos diferentes grupos da comunidade de software livre/código aberto, as ideias convergiram no sentido prático, mantendo a unidade do movimento de liberdade de compartilhamento de código (Stallman, 2022). A OSI foi fundamental não somente pela introdução das ideias de compartilhamento no meio econômico, mas também por trazer uma especial atenção ao termo “open” para público, partindo de uma definição que não se restringe a termos de software, mas que permitiu transcender a ideia do movimento para outras áreas.

Foi sobre esse ambiente fértil construído pelo movimento do software livre, que as ideias de open source conquistaram o meio criativo. Muitos indivíduos se interessaram em disponibilizar abertamente obras literárias, artes visuais, músicas, peças teatrais, entre muitos outros tipos de trabalhos criativos. Visando sistematizar e unificar o licenciamento desse tipo de obra, foi fundada, em 2001, a Creative Commons, uma organização sem fins lucrativos responsável por elaborar e manter diversos tipos de licenças, com ideais de oposição às restrições das leis de direitos autorais e promoção da liberdade criativa em um mundo conectado pela internet, sob os princípios de facilitar o consumo de conteúdo, para inspirar e gerar novos trabalhos, reduzindo os custos de produção de conteúdo digital e permitindo maior participação dos usuários no processo criativo (Scharf, 2017).

A Creative Commons foi responsável por não somente disponibilizar uma série de licenças como ferramenta para os criadores, mas também por espalhar o conceito de liberdade de acesso e colaboração aos meios artísticos, jornalísticos, acadêmicos, ente outros, contribuindo para a promoção de uma cultura de compartilhamento e colaboração. Dentre os novos meios nos quais a cultura de colaboração se permeou, destaca-se o ainda infante movimento open hardware, responsável por estender o conceito de open source para o design de equipamentos físicos, como projetos de engenharia (Hansen; Howard, 2013). O diferencial deste movimento se dá não apenas por levar a cultura de colaboração e compartilhamento para uma nova área, mas pelo fato de levar essa cultura para fora do campo de abrangência das leis de direitos autorais, no campo da propriedade industrial. Nesse sentido, o movimento gera novas problemáticas e enfrenta desafios relacionados às incertezas jurídicas diante de um novo conceito, como em relação à forma e ao objeto de proteção (BONVOISIN et al., 2017). Apesar dos desafios, o movimento já ganha adoção na indústria (Herrera, 2020).

Juntos, os movimentos pela cultura de colaboração e compartilhamento foram responsáveis pelo acúmulo de um grande número de obras sob licenças que permitem seu livre acesso e, muitas vezes, a modificação e criação de obras derivadas, constituindo uma espécie de território digital de uso comum. A esse “território”, Schirru (2016) refere como os commons de conhecimento, e destacou suas principais diferenças em relação aos commons tradicionais, principalmente devido à não existência de escassez, sendo esta criada artificialmente pelas restrições, de modo a não haver a possibilidade do fenômeno da tragédia dos comuns, mas o oposto, uma vez que quanto mais utilizado é um bem comum de conhecimento, mais valor ele ganha e mais relevante se torna.

 

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS COMMONS NA ATUALIDADE

Observa-se uma tendência às formas de propriedade surgirem nas sociedades, naturalmente, de forma compartilhada e, à medida que se cria interesse sobre essa propriedade, no sentido de gerar riqueza, ocorre um processo de fechamento e criação de normas reguladoras do acesso aos meios. Tal fenômeno pôde ser observado com as terras, que, originalmente, eram livres para todo humano circular e utilizá-la para seu trabalho e, com o desenvolvimento social e interesses sobre as propriedades, fecharam-se cada vez mais, com o ápice no fim do sistema feudalista, na Europa, quando houve o fenômeno conhecido como “enclosure of the commons”.  Já no campo da propriedade intelectual, o fenômeno também foi observado, com as obras do intelecto humano sendo livremente compartilhadas na maior parte do globo, durante a maior parte da história humana, para se encontrarem diante de uma série de restrições, à medida que surgiram os interesses comerciais sobre o conhecimento, gerando seu progressivo fechamento.

Entretanto, com os commons de conhecimento, houve um processo adicional, em que surgiram movimentos opositores às restrições jurídicas da propriedade intelectual, resgatando as antigas ideias de propriedade comum e utilizando das próprias regulamentações jurídicas responsáveis pelo fechamento para estabelecer um “território” de livre acesso e compartilhamento de obras.

O sucesso dos movimentos de colaboração e compartilhamento dos commons de conhecimento é considerado por muitos como um processo irrefreável e permeia cada vez mais a cultura moderna. Esta cultura se adapta mais fácil e rapidamente aos avanços tecnológicos dos meios de comunicação e informação do que os ideais tradicionais, e, com isso, conquista cada vez mais espaço nas criações humanas, com cada vez mais novas iniciativas de bens comuns, como as recentes iniciativas de ciência aberta e inovação aberta. Livres da escassez artificial, estes movimentos desenvolvem importantes papéis na construção de uma sociedade mais igualitária e multiplicam a capacidade criativa humana, permitindo ampliar os limites do nosso conhecimento.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Mestre em propriedade intelectual e transferência de tecnologia para a inovação e bacharel em engenharia de automação, atua em pesquisas na área de software livre e cultura de compartilhamento.