A bússola singeriana para o socialismo

 

André Ricardo de Souza[1]

Universidade Federal de São Carlos

anrisouza@uol.com.br

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Resumo

O modo como Paul Singer refletiu e buscou em sua vida militante o socialismo, necessariamente democrático, é abordado neste artigo elaborado com base em texto anterior de minha autoria, contendo revisão e relevante complementação. São tratados aspectos concernentes à escritos importantes de Singer, assim como seus ditos em aulas e reuniões de grupos de estudo de economia solidária. No artigo é feita ainda uma fundamental distinção do socialismo democrático em relação à social-democracia, enquanto referência política para a esquerda contemporânea e são discutidos determinados caminhos pensados pelo professor para a edificação do socialismo apontado por ele como autêntico.

 

Palavras-chave: Paul Singer; economia solidária; social-democracia; superação do capitalismo; socialismo democrático.

 

THE SINGERIAN COMPASS FOR SOCIALISM

Abstract

 

The way in which Paul Singer reflected and sought, in his militant life, socialism, necessarily democratic, is addressed in this article elaborated based on a previous text of my authorship, containing revision and relevant complementation. Aspects concerning Singer's important writings are treated, as well as his sayings in classes and meetings of study groups on solidarity economy. The article also makes a fundamental distinction between democratic socialism and social democracy, as a political reference for the contemporary left, and discusses certain paths thought by the professor for the construction of socialism that he considered authentic.

 

Keywords: Paul Singer; solidarity economy; social democracy;  overcoming capitalism; democratic socialism.

 

LA BRÚJULA SINGERIANA PARA EL SOCIALISM

Resúmen

La forma en que Paul Singer reflexionó y buscó, en su vida militante, el socialismo, necesariamente democrático, es abordado en este artículo elaborado a partir de un texto anterior de mi autoría, que contiene la revisión y complementación pertinente. Se tratan aspectos referentes a importantes escritos de Singer, así como sus dichos en clases y reuniones de grupos de estudio sobre economía solidaria. El artículo también hace una distinción fundamental entre el socialismo democrático y la socialdemocracia, como referente político para la izquierda contemporánea, y discute ciertos caminos pensados por el profesor para la construcción del socialismo que él considera auténticos.

 

Palabras llave: Paul Singer; economía solidaria; socialdemocracia; superación del capitalismo; socialismo democrático.

 

1 INTRODUÇÃO

O presente escrito retoma, revisa e complementa considerações contidas em um pequeno artigo de minha autoria publicado também em P2P Inovação. Agradeço a Clovis de Lima pelo estímulo dado para eu elaborar o presente artigo de modo que ele integrasse o número temático desta revista, que, muito justamente, homenageia o saudoso professor de economia da Universidade de São Paulo.

Como se sabe a referência do socialismo foi central não só em importantes textos publicados por Paul Singer nas formas de artigos, capítulos e livros, mas sobremaneira em sua intensa vida militante, desde a juventude até os anos finais como gestor público. Entretanto, o socialismo concebido, defendido e valorizado por Singer era radicalmente democrático, sendo a democracia, de fato, algo indissociável dele. Eis o que, basicamente, discuto aqui.

Mais uma vez, valho-me dos escritos do próprio professor, bem como de certa relação de amizade que pude ter com ele, vivenciada na universidade, no trabalho de organização de uma coletânea publicada de textos (Singer; Souza, 2000) e na interlocução em seu lar até bem próximo do seu falecimento, em 2018. Após ter sido seu aluno e enquanto eu cursava ciências sociais na USP, em 1997, iniciamos um diálogo que estimulou decisivamente a formação de um dos grupos pioneiros no país na militância por economia solidária, composto por jovens colegas uspianos meus de curso e outros que eram agentes de pastoral católica da paulistana Região Episcopal Brasilândia, então conduzida por dom Angélico Sândalo Bernardino, outro grande incentivador nosso. Tal coletivo foi chamado de Núcleo de Ação e Pesquisa em Economia de Solidariedade - NAPES[2]. Tal nome se deveu sobremaneira à influência em nós de um artigo do sociólogo chileno Luís Razeto Migliaro (1993), tendo o grupo, posteriormente, adotado em sua denominação o termo ‘economia solidária’.

Pude dialogar significativamente com Paul Singer sobre essa temática ainda em outras três oportunidades geradas naquele meio universitário uspiano: a Incubadora TECNOLÓGICA de Cooperativas Populares (ITCP), o Núcleo de Apoio às Atividades de Cultura e Extensão em Economia Solidária (NESOL), na disciplina de pós-graduação que ele ministrou anualmente na Faculdade de Economia e Administração, entre 1999 e 2002, renovando o programa dela a cada ano. Em decorrência daquela disciplina ministrada e contendo os melhores textos selecionados pelo próprio professor, organizei com três colegas outra coletânea publicada (Souza; Cunha; Dakuzaku, 2003), cujo lançamento se deu por ocasião do recebimento por Singer do título de cidadão paulistano na Câmara Municipal, em em 2003, por iniciativa do vereador petista Carlos Neder, ja falecido e que deu importante apoio às iniciativas de economia solidária em São Paulo. Quatro anos depois, o professor se tornaria associado honorário de outra entidade, entre outras mais, cuja formação ele incentivou bastante e da qual faço parte, a Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária - ABPES. Em 2015, Singer proferiu a conferência de encerramento do primeiro congresso internacional da ABPES (CONPES), ocorrido no principal campus da Universidade Federal de São Carlos e que foi publicada em livro (Singer, 2017), sendo uma das últimas palestras dele, que também tratou da questão da paz mundial.

Com base em tal trajetória, faço aqui algumas observações sobre o lugar que a economia solidária ocupa no pensamento do professor a respeito do socialismo, considerado por ele enquanto real e legítimo somente se for pautado efetivamente pela democracia, tratando-se, portanto, do socialismo democrático.

 

2 REFERÊNCIA NORTEADORA DE VIDA

Paul Singer registrou sua reflexão sobre o socialismo democrático já em 1951, aos 19 anos de idade, ao publicar o artigo “Socialismo e democracia” na revista Dror, editada por jovens judeus de esquerda, ressaltando ele ser a democracia algo imprescindível na busca da superação do capitalismo (Singer, 2022, p. 12). Pode-se dizer que a dedicação a tal causa percorreu toda a sua vida, perpassando o movimento sindical, as legendas: Partido Socialista Brasileiro (antigo) e Partido dos Trabalhadores, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e a USP, bem como a Secretaria de Planejamento da Prefeitura de São Paulo, durante a gestão de Luiza Erundina, experiência esta analisada por ele em livro (Singer, 1996), e na Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego nos dois primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva e no de Dilma Rousseff.

Enfocando especificamente a reflexão sobre o socialismo, vale relembrar algo ocorrido em 1999, ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Lula convidou o literato da USP Antonio Candido, grande amigo e referência de Singer nesta temática (MELLO e SOUZA, 1995), para organizar uma atividade de modo a “retomar alguns debates fundamentais” (Silva, 2000, p. 5). Este por sua vez levou adiante a proposta junto com o sociólogo da mesma universidade Francisco de Oliveira, com o então integrante do Instituto Cidadania Paulo Vannuchi e com Paul Singer, em parceria com a Fundação Perseu Abramo, organizando juntos os encontros do Seminário “Socialismo e Democracia”, ocorridos ao longo do ano seguinte. No primeiro deles Singer e o economista da PUC-SP João Machado - que também havia sido seu aluno na disciplina de pós-graduação de economia solidária na USP - foram os expositores e, em decorrência, autores da primeira publicação gerada a partir do evento[3]. Machado chamou atenção para o papel que Singer exercia de renovar o debate socialista. Ressaltou ainda a fácil aceitação na esquerda das ideias contrárias ao socialismo, assim como a necessidade de posicionamento crítico às históricas experiências socialistas e a grande diferença entre a chegada ao poder político e o busca do socialismo (Machado, 2000, p. 51-64).

Para Paul Singer a possível e perene passagem do capitalismo ao socialismo foi um constante tema de reflexão, rejeitando, desde sempre, alternativas antidemocráticas consideradas, em si mesmas, paradoxais. A ideia da “ditadura revolucionária do proletariado” (Marx, 2012) era por Singer enfaticamente rejeitada, não só por uma questão de princípio, mas também por entendê-la como um caminho ineficaz. Isto porque, a seu ver, a conquista do socialismo autêntico e efetivo não decorre de processo rápido, próprio de revolução política - ou eleição, evidentemente - mas sim de um longo e lento processo, próprio de uma “revolução social” (Singer, 1998). Voltarei, mais adiante, a esse ponto.

O professor de economia da USP foi, desde bastante jovem, um crítico convicto do modelo de pensamento e de militância política que vislumbra a conquista e preservação do socialismo a partir de procedimentos violentos, autoritários, verticalizados e altamente centralizados. Tal crítica se fez presente também na análise, a partir de parâmetros econômicos, do governo soviético, modelo que se generalizou nos demais países geridos conforme o princípio do “partido único”, seguindo a diretriz do “socialismo real” ou “científico” em intolerante contraposição à referência do chamado socialismo utópico (BUBER, 1945). Ao longo do tempo, o governo centralmente planejado, junto com a estatização quase absoluta, se mostraram economicamente inviáveis e politicamente rejeitados, dados os problemas em termos de produção e distribuição, além das práticas opressivas e de cerceamento da liberdade.

Singer destacou o fato de ter sido somente em seu último ano de vida (1923) que Vladimir Lenin (1965) reconheceu, através de um artigo publicado, o equívoco que havia sido entregar a direção das fábricas russas a indivíduos ex-capitalistas e especialistas técnicos, em detrimento dos sindicalistas e operários mais experientes de tais unidades fabris, que, contando com a participação dos demais trabalhadores, poderiam ter formado cooperativas de produção (Singer, 2000, p. 20-23). Tal análise e crítica o professor veio a fazer também em relação ao Chile sob o governo socialista, entre 1970 e 1973, de Salvador Allende (Singer, 2018, p. 75-76).

Era preciso, portanto, reavaliar criticamente e de modo profundado a maneira como o socialismo foi compreendido, buscado e erroneamente vivido nos países sob a liderança da União Soviética. Tratava-se de um desafio eminentemente teórico este de, a partir de bases firmes, “repensar o socialismo” (Singer, 1998). Tal reflexão madura é o ponto de partida para a sólida busca do socialismo, algo que, conforme reiterava Paul Singer, não é pleno sem democracia aprofundada, enfatizando ele, portanto, que esta não poderia ser apenas política e formal, mas, precisa ser também cultural e socioeconômica.

 

3 EM VEZ DA SOCIAL-DEMOCRACIA: SOCIALISMO DEMOCRÁTICO

Nos países governados por partidos de centro-esquerda a referência muito predominante não é, de fato, a do socialismo, mas sim a da social-democracia. Daí a importância de pontuar o que não se deseja para se ter claro o que efetivamente pode e dever buscado. Para elucidar isso, tomo como referência o livro do cientista político polonês Adam Przeworski (1989), considerado fulcral no entendimento da social-democracia e que teve bastante repercussão no campo brasileiro das ciências sociais nos anos 1990. O autor inicia tal obra (página 19) ressaltando que “O projeto dos primeiros socialistas, adeptos do comunismo, era construir uma sociedade dentro da sociedade”, via autogestão, portanto, algo que ficou caracterizado como socialismo utópico. Faz a ressalva, entretanto, que construir uma sociedade dentro da sociedade não basta, pois se faz necessária a conquista do poder político, conforme argumentou Karl Marx, em 1864, no Manifesto de Lançamento da Primeira Internacional (Marx, 1974), afirmando este que o sistema cooperativo só deveria ser desenvolvido em âmbito nacional e que para tal cabia à classe operária obter o poder político. Verifica-se que Marx radicalizou, apontando que o engajamento no cooperativismo autogestionário valia apenas se fosse feito após a vitória revolucionária e que teria que ser, necessariamente, algo aplicado ao país inteiro. Ou seja, era tudo ou nada, formulação equivocada esta que teria consequências, pois a esquerda, na prática, acabou deixando de lado a referência da autogestão.

Przeworski (1989, p. 51-54) relembra que o primeiro governo socialista eleito, em 1920, foi o dos social-democratas suecos e que estes, ao assumirem o poder, viram-se sem condições objetivas para estatizar a produção no país, daí a opção por adotar medidas em prol da melhora nas condições de vida dos trabalhadores: proteção ao desemprego, efetivação legal do salário mínimo, desenvolvimento de programas habitacionais, pensão para idosos e tributação sobre renda e herança. Em outras palavras, como não era viável superar o capitalismo, cabia ao menos atenuar, tanto quanto possível, seus danos e, mediante contribuições do economista inglês John Keynes, desenvolver um Estado de bem-estar social. Essa, na prática, tem sido a maneira pela qual se pauta a maioria dos partidos de centro-esquerda no poder, inclusive o PT no Brasil.

Por fim, o cientista político polonês vai abordar os limites estruturais da social-democracia, ressaltando que no sistema capitalista todo e qualquer governo - a despeito de seu ocupante - é dependente do capital, sendo que a crise do keynesianismo constituiu a própria crise do capitalismo democrático e que a (importante) luta por melhorar o capitalismo deve ser claramente entendida como algo distinto da busca do socialismo. A partir das considerações de Przeworski e do modo como as sociedades vêm se desenvolvendo, verifica-se uma real capitulação estrutural da social-democracia ao capitalismo liberal. Em grande medida, ela fracassou enquanto opção concreta para os trabalhadores e não deveria mais ser a referência (meta ou baliza) para movimentos, partidos e governos de esquerda.

 

4 POSSÍVEL TRAJETÓRIA ATÉ O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO

Tendo em vista que a referência da social-democracia é importante na efetivação de direitos cidadãos e na amenização de problemas do capitalismo, mas é estruturalmente limitada - tendo se enfraquecido bastante nas últimas décadas - é preciso retomar com veemência a reflexão e o debate sobre a busca do socialismo democrático, algo a que se dedicou bastante Paul Singer. Seguindo suas pistas na chave teórica da imprescindível conexão profunda entre socialismo e democracia, em termos não apenas políticos, mas necessariamente econômicos também, é que se pode abordar as maneiras através das quais o professor vislumbrou caminhos até o socialismo autêntico. Pensava ele que o Estado prossegue com fundamental importância, sendo um poderoso, porém insuficiente, indutor de tal busca, dado o notável papel exercido pelas organizações da sociedade civil, quando estas são participativamente conduzidas. Nesta perspectiva, a edificação socialista e democrática, de fato, apenas pode ocorrer se feita, gradualmente, de baixo para cima na sociedade - não no país inteiro, de uma vez, como apontou Marx - mediante o convencimento e a livre adesão das pessoas, contando com auxílio de governos comprometidos, em âmbitos: federal, estadual e municipal.

A partir da constatação feita em relação às experiências dos países que seguiram o modelo soviético, Singer afirma categoricamente que o socialismo democrático não resultaria tão somente da conquista de governos nacionais, mas sim da combinação de robustas políticas públicas com a imprescindível articulação dos trabalhadores em suas organizações, incluindo necessariamente as econômicas, conduzidas por eles próprios, ou seja, autogeridas. Esta é a alma da economia solidária, tão valorizada por ele e que recupera princípios do pioneiro cooperativismo europeu do século XIX (Singer, 1998, p. 99-105).

Paul Singer, vale lembrar, se dedicou intensamente à economia solidária nas três últimas décadas de sua vida. Fez isso atuando como professor na USP, proferindo palestras e participando de várias atividades, bem como publicando trabalhos importantes a respeito (Singer; Souza, 2000; Singer, 2002 e 2018) e conduzindo SENAES. Tal conjunto de iniciativas coletivistas de produção, comércio, consumo, poupança e crédito é pautado por princípios igualitários e democráticos, abrangendo cooperativas, empresas recuperadas ou em reabilitação de processos falimentares, pequenos empreendimentos associativos (pré-cooperativas), bancos comunitários e associações locais de troca de mercadorias e serviços mediante o uso de uma moeda social própria (Singer; Souza, 2000; Cattani, 2003; Souza; Lussi; Zanin, 2020).

 Conforme o pensamento de Singer (1998, p. 122), a cooperativa autogestionária constitui um “implante socialista” na sociedade capitalista. Trata-se de algo que, necessariamente, atua no mercado, mas que tem uma lógica e uma organização interna próprias, que são contrárias à capitalista[4]. Ele elaborou tal conceito vislumbrando o modo como o socialismo democrático poderia ser construído, aos poucos, nos poros ou interstícios do capitalismo, algo, que, evidentemente, ganha escopo através do apoio concreto e amplo do poder público nos três níveis de governo. Em suas aulas, costumava apontar como outro exemplo de implante socialista o orçamento participativo. Vale lembrar que se trata de uma experiência nascida no Brasil que ganhou visibilidade, a partir de 1989, na cidade de Porto Alegre, então administrada pelo petista Olívio Dutra (Benevides; Dutra; 2001; Santos, 2002; Oliveira, 2016). Da capital gaúcha tal experiência se espraiou para algumas outras grandes cidades brasileiras, que também contavam com governos de esquerda[5] e para cerca de 1500 cidades de outros países, abrangendo as Américas e a Europa, com destaque para os territórios que compõem o Reino Unido (Bateman, 2019).

Enquanto candidato à Presidência da República, em 2022, Lula prometeu encampar de algum modo, se eleito, o orçamento participativo. Isto levou à formação, no semestre seguinte, do Plano Plunianual (PPA) Participativo, que mobilizou os dois fóruns interconselhos de interlocução com o governo federal, assim como 27 plenárias em unidades federativas, mais de quatro milhões de pessoas, além de 1,4 milhões de interações diretas na Plataforma Brasil Participativo (gov.br/brasilparticipativo) que resultaram em 8.254 propostas - parte delas feitas por indivíduos, em vez de grupos, abrangendo também 88 de ministérios do próprio governo - de modo a gerar 1,52 milhões de votos ao todo (Brasil, 2023). Entre as mais votadas estavam: enfrentamento da emergência climática; atenção primária e atenção especializada à saúde; promoção do trabalho digno, emprego e renda; segurança alimentar e nutricional; combate à fome e turismo. Trata-se de uma relevante empreitada buscando viabilizar, de alguma maneira, certo orçamento participativo nacional.

Nas aulas de economia solidária de Paul Singer na USP, ele ressaltava que a busca do socialismo deveria passar, necessariamente, pela democratização das organizações não apenas econômicas, mas de várias outras dimensões da vida em sociedade. Isso, evidentemente, diz respeito à disposição participativa e à capacidade comunicativa (Habermas, 1994) dos integrantes delas na busca da profunda prática democrática. Foi com essa perspectiva que Singer pensou a formação de “parlamentos econômicos”, que seriam instituições nas quais governos, empresas e sindicatos laborais pudessem propor e debater planos e propostas, em busca de denominadores comuns (Singer, 2000). Isto lembra, de algum modo, a experiência também brasileira da câmara setorial automotiva, que envolveu, entre 1991 e 1993, empresas, governos: federal e estadual, e o Sindicato dos Metalúrgicos dos ABC Paulista  (Martin, 1996; Singer, 2022, p. 19). Embora o uspiano professor de economia não tenha feito tal registro em publicações, pode-se dizer - a partir das suas profícuas aulas ministradas - que a proposta de câmaras setoriais também constitui um exemplo de implante socialista.

A busca do socialismo autêntico passa pela democratização do funcionamento das instâncias de Estado e dos órgãos governamentais, algo que implica na diversificação e no grande fortalecimento institucional dos conselhos responsáveis por proposição e acompanhamento de políticas públicas, compostas por representantes da sociedade civil organizada. Envolve necessariamente também a criação, ampliação e o aprofundamento dos processos de funcionamento de conferências e consultas populares sobre políticas.

Por fim, cabe destacar o papel da economia solidária na construção do socialismo democrático. Isso diz respeito, em primeiro lugar, à formação do máximo de empreendimentos econômicos desse tipo, ou seja, pautados pelos princípios da autogestão. Tal processo passa pela ampliação e pelo fortalecimento - através do apoio propiciado por políticas públicas condizentes - das organizações da sociedade civil voltadas para essa prática, quais sejam: universitárias incubadoras de cooperativas populares; entidades ligadas a sindicatos e instituições religiosas, além de comprometidas organizações não governamentais.

Para que a economia solidária se desenvolva é imprescindível que haja favoráveis e fartas e linhas de crédito para seus empreendimentos, oferecidas por bancos públicos, que, aliás, precisarão deixar de funcionar, na prática (em grande medida) como bancos privados, conforme a lógica vigente do mercado de crédito. Tal encaminhamento, evidentemente, decorre de firmes: decisão e vontade políticas. Em consonância com isso será fundamental avançar na linha da democratização das finanças no país, através de mudanças legislativas e de políticas voltadas à ampliação e ao fortalecimento de cooperativas de crédito e bancos comunitários (Segundo; Magalhães, 2009; Soares, 2009). Vale dizer que os bancos comunitários emitem moedas sociais - complementares e alternativas ao real - que circulam em suas respectivas cidades e regiões e parte deles são responsáveis pelo recebimento de contas de consumidores (como água e luz) e pela operação, na ponta, de programas de transferência de renda, algo que ocorre com destaque no município fluminense de Maricá e que pode se generalizar nacionalmente.

Outras duas medidas para o desenvolvimento da economia solidária merecem ser aqui mencionadas. A primeira diz respeito à priorização real das compras públicas - por parte de governos - de mercadorias e serviços produzidos por empreendimentos econômicos autogestionários (Dagnino, 2020). Isto, evidentemente, passa por mudanças legislativas e normativas, bem como pelo compromisso real dos mandatários de cargos executivos e de inúmeros gestores públicos atuantes em âmbitos: federal, estadual e municipal. Já a segunda se refere ao estímulo concreto, também da parte de governos, para que tais empreendimentos autogestionários, atuantes em vários ramos, se articulem não apenas de modo político, mas também e principalmente de maneira econômica, a fim de formarem entre si expressiva organização pautada pela intercooperação econômica (Souza; Augusto Júnior, 2020, p. 17-18).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que Paul Singer, desde sua juventude, concebeu o socialismo como algo indissociável da democracia, entendendo ele não ser possível chamar de ‘socialismo real’ aquele que não foi e não é efetivamente democrático. Isto porque, conforme seus escritos, suas colocações verbais não publicadas em textos (sobremaneira em aulas na USP) e sua práxis, a democracia aprofundada é o que, necessariamente, qualifica a proposta e a prática do socialismo, sendo, portanto, seu eixo.

Singer analisou e discorreu sobre os equívocos políticos e econômicos da experiência socialista liderada no mundo pela antiga União Soviética. Chamou atenção para o fato de seu primeiro líder Lênin ter reconhecido já no final da vida o equívoco quanto à prescrição do modo como as empresas daquele país, no pós-revolução de 1917, deveriam ser geridas. Infelizmente, porém, não teve o dirigente russo tempo e forças para implementar a necessária correção de rumos. Lamentavelmente, o padrão verticalizado e não participativo, tanto da administração pública quanto da gestão das empresas e instituições, se generalizou nos demais países sob influência soviética – incluindo a China com seu ‘capitalismo de Estado’ - sendo interpretado como “experiência concreta do socialismo real” e mantido à custa de medidas autoritárias, repressivas e violentas.

O dedicado professor da USP se contrapôs, ao longo da sua vida, à disseminada concepção equivocada, e ainda arraigada, de socialismo. Fez tal reflexão, com destaque, a partir do significado histórico da economia solidária, enquanto parte da revolução social lenta rumo ao socialismo democrático (Singer, 1998). O empreendimento de economia solidária é, como ele próprio dizia, um implante socialista, tal como outros (discutidos um pouco neste pequeno artigo) presente na sociedade capitalista, mas em relação antagônica com ela. Paul Singer tinha firme a ideia que seu grande amigo Antonio Candido (2000, p. 10) apontou, qual seja: a de ser o socialismo democrático uma “bussola ideológica” pela qual os governos populares e de esquerda devem realmente se orientar. Para tanto, acrescento eu, é preciso reconhecer plenamente os limites da social-democracia e, corajosamente, deixá-la de lado enquanto referência, ou seja, substituir uma bússula (ou GPS, se quisermos), por outra.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Doutor em sociologia pela USP, professor associado do Departamento de Sociologia da UFSCar, pesquisador bolsista do CNPq e membro da Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária (ABPES).

[2] Em 22 de junho de 2023, tal grupo voltou a se reunir, ao menos remotamente, depois de duas décadas, para uma live chamada “Jovens incentivados por Paul Singer e dom Angélico, ontem e hoje”, disponível no canal de YouTube da Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária.

[3] Pude presenciar tal encontro na sede nacional do PT em São Paulo, que contou com comentários também registrados na publicação de: Aldo Fornazieri, Arlindo Chinaglia, Eduardo Suplicy, Fernando Haddad, José Genoíno, Max Altman e Lula.

[4] Ao lado do empreendimento de economia solidária, Paul Singer (1998, p. 121), apontou como exemplo de implante socialista o seguro social público, que foi uma conquista histórica dos sindicatos europeus.

[5] Por ordem decrescente de população, eis os maiores municípios brasileiros que tiveram tal experiência: Belo Horizonte, Recife, Belém, Guarulhos, São Bernardo do Campo, Aracaju, Blumenau, Olinda, Vitória da Conquista e Santo André.