DESENVOLVIMENTO SOLIDÁRIO

a dimensão estratégica da economia solidária em Paul Singer

Roberto Marinho Alves da Silva[1]

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

rmas2007@gmail.com

Ronalda Barreto Silva[2]

Universidade Estadual da Bahia

ronalda_barreto@uol.com.br

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Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar os fundamentos da economia solidária como estratégia de desenvolvimento solidário a partir da construção teórica e militante de Paul Singer. Para tanto, foram realizados estudos em obras do autor que tratam dessa questão com diferentes dimensões de análise e em distintos contextos históricos, desde a década de 1960 até suas produções mais recentes no século XXI, confrontando o modelo de desenvolvimento capitalista com o solidário e destacando algumas das virtudes e estratégias da economia solidária em iniciativas comunitárias de desenvolvimento. Foi possível apreender que as questões que desafiaram Singer desde as suas análises em relação aos desafios para superação do subdesenvolvimento, sobre as alternativas ao desenvolvimento capitalista e se é possível levar desenvolvimento a comunidades pobres, estão intimamente interligadas nas obras aqui analisadas. Em todas essas dimensões e perspectivas de análise, é preciso ter um ponto de vista ou uma orientação utópica de um sistema social capaz de superar as contradições do capitalismo. Ao mesmo tempo, exige uma postura militante de construção dessa alternativa a partir da realidade atual de hegemonia do capital, o que requer resgatar e construir novas estratégias de organização socioeconômica orientadas pelos valores e princípios da solidariedade, da cooperação e da autogestão.

Palavras-chave: desenvolvimento solidário; economia solidária; Paul Singer.

SOLIDARITY DEVELOPMENT

the strategic dimension of the solidarity economy in Paul Singer

Abstract

This article aims to analyze the foundations of the solidarity economy as a strategy of solidarity development based on the theoretical and militant construction of Paul Singer. To this end, studies have been carried out in works by the author that deal with this question with different dimensions of analysis and in different historical contexts, from the 1960s until his most recent productions in the 21st century, confronting the model of capitalist development with solidarity and highlighting some of the virtues and strategies of the solidarity economy in community development initiatives. It has been possible to learn that the issues that have challenged Singer since his analyzes regarding the challenges of overcoming underdevelopment, about alternatives to capitalist development, and whether it is possible to bring development to poor communities, are closely intertwined in the works analyzed here. In all these dimensions and perspectives of analysis, one must have a utopian point of view or orientation of a social system capable of overcoming the contradictions of capitalism. At the same time, it demands a militant posture of constructing this alternative from the current reality of the hegemony of capital, which requires rescuing and constructing new strategies of socioeconomic organization guided by the values and principles of solidarity, cooperation and self-management.

Keywords: solidarity development; solidarity economy; Paul Singer.

1  INTRODUÇÃO

No atual momento do Brasil, de esperança e de reconstrução, este artigo tem como objetivo refletir sobre o legado deixado por Paul Singer no debate sobre o desenvolvimento solidário. Coerente com o método que adotava, o debate proposto por aquele intelectual militante sobre o desenvolvimento estava ancorado na análise crítica da realidade, destacando as características do desenvolvimento capitalista, de onde derivava um questionamento de elevada importância: é possível pensar um desenvolvimento que não seja capitalista?

Para Nascimento (2018, p.106) este é um “fio condutor” da obra de Singer, a partir da contraposição entre “desenvolvimento econômico capitalista e o seu corolário, o desenvolvimento solidário”. A questão do desenvolvimento está presente nas obras de Paul Singer antes mesmo do seu envolvimento intelectual e afetivo com a economia solidária. Porém, foi a partir dessa questão que Singer nos ajudou a compreender que a economia solidária não é um segmento ou um setor econômico, mas expressa um modo de organização da produção, da distribuição, das finanças e do consumo orientado por uma estratégia solidária de desenvolvimento.

A análise estrutural do desenvolvimento capitalista está presente na vasta obra de Paul Singer, desde o início da década de 1960, com destaque para a coletânea de ensaios publicada em 1968, sob o título “Desenvolvimento e crise” (Singer, 2023). A preocupação de Singer, à época, se referia à possibilidade de superação do subdesenvolvimento, enfrentando questões a partir das condições históricas concretas no Brasil. Também são conhecidas as suas contribuições no debate sobre o desenvolvimento em relação aos aspectos demográficos e à questão urbana, da “Dinâmica Populacional e Desenvolvimento” (Singer, 1970).

A temática também é transversal ao famoso Curso de Economia[3] proferido por Paul Singer em 1968, em pleno endurecimento do regime ditatorial, publicado posteriormente, em 1975, com o título “Curso de Introdução à Economia Política” (Singer,1979), com mais de vinte edições desde a primeira publicação. Nesta obra, a décima primeira aula aborda a questão do “desenvolvimento econômico”, em que Singer analisa a dialética da expansão capitalista e suas contradições.

Nas décadas de 1980 e 1990, Singer está preocupado com as questões que marcaram o período da redemocratização no Brasil, de como enfrentar a crise econômica com redução de desigualdades sociais por meio da redistribuição de renda e a expansão do mercado interno, além da ampliação de direitos de cidadania plena (Singer, 1986; 1999). Da mesma forma, avança nas reflexões sobre a crise do socialismo e a necessidade de atualizar as alternativas de construção do socialismo na atualidade (Singer, 1998; 2000). Nessas análises críticas, Singer incorpora as formas de organizações econômicas baseadas em práticas e princípios de cooperação e de autogestão que, apesar de subordinadas, subsistiam à expansão destrutiva do capitalismo.

É exatamente a confluência desses dois desafios, de encontrar alternativas possíveis de enfrentamento à pobreza diante das elevadas taxas de desemprego e de queda da renda nos anos 1990, sem perder de vistas o caráter estratégico de superação do modelo de desenvolvimento capitalista, que conduz o olhar e a atenção de Paul Singer às iniciativas econômicas solidárias, enquanto “uma solução não capitalista para o desemprego” (Singer,1999). Essas iniciativas de trabalho associado e de cooperação na pequena produção estavam em expansão no final do século XX, sendo consideradas por Singer como “implantes socialistas”, constituídas a partir das contradições internas do capitalismo, ou seja, de forma intersticial, “[...] em função dos vácuos deixados pelo mesmo” (Singer, 2002, p.116).

Desde quando foi Secretário de Planejamento do Município de São Paulo no Governo de Luiza Erundina (1989 – 1992), Singer teve contato com algumas dessas iniciativas coletivas que combinavam a promoção do trabalho e renda com a melhoria das condições de vida em comunidades empobrecidas. Na sequência, em 1996, formulou uma alternativa ao enfrentamento ao grave desemprego na cidade de São Paulo, tendo publicado o artigo intitulado “Economia solidária contra o desemprego”. A proposta resultava da percepção que Singer havia adquirido sobre diversas iniciativas no Brasil e no mundo de expansão de iniciativas solidárias que estavam sendo impulsionadas enquanto alternativas para a geração de trabalho e renda com potencial de promoção de um desenvolvimento solidário. O fato é que, desde então, Singer teve um engajamento militante, político e intelectual, na promoção da economia solidária.

            O presente artigo busca contribuir no resgate dessa construção teórica e política (militante) da relação entre economia solidária e desenvolvimento solidário, realizada por Paul Singer. Para tanto, foram realizadas análises de algumas de suas obras[4] que tratam dessa questão, confrontando o modelo de desenvolvimento capitalista com o modelo de desenvolvimento solidário e destacando algumas das virtudes e das fragilidades da economia solidária na contemporaneidade.

Importante destacar que, em relação ao tratamento analítico dessas categorias, Paul Singer tinha sempre como ponto de partida a realidade histórica concreta a partir da qual desenvolvia suas investigações e formulava conceitos e hipóteses orientados por suas motivações intelectuais e interesses sociais militantes. É preciso considerar os distintos e complexos contextos históricos que estão expressos nas suas obras, desde a questão da crise do desenvolvimento nacional na década de 1960; passando pelas questões do enfrentamento às desigualdades no processo de redemocratização nacional nos anos oitenta; pelo desafio de repensar os conteúdos e estratégias socialistas para os tempos presentes; até seus últimos artigos escritos no século XXI, em que analisa as estratégias econômicas para um desenvolvimento solidário. Dessa forma, a leitura aqui proposta exige não apenas a identificação de elementos de coerência lógica na extensa obra de Paul Singer, mas de compreensão dos valores que indicam utopias - “os rumos por onde desejamos que a humanidade se desenvolva” – e que orientam a ação militante, sendo “imperioso agir sem esperar que as dúvidas sobre as nossas opções estejam todas resolvidas” (Singer, 2022, p. 144).

            Foi a partir desses desafios que se processou o estudo que resultou em uma conferência proferida em um seminário nacional de celebrações pelos 90 anos de Paul Singer[5], sendo posteriormente aperfeiçoado e elaborado pelo autor e pela autora na forma do presente artigo. Além dessa introdução e das considerações finais, foram elaboradas duas seções com aprofundamento do conteúdo, sendo a primeira dedicada a apresentar a concepção de desenvolvimento e a análise das características do modelo capitalista de desenvolvimento. Na sequência, a segunda seção é dedicada aos significados e estratégias do desenvolvimento solidário, destacando o potencial da economia solidária na construção de alternativas contra-hegemônicas ao capitalismo.

 

 

 

 

2 DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA: EXPANSÃO E DESTRUIÇÃO

Tendo se dedicado intensamente à vida acadêmica na década de 1960, Singer se destaca nos debates sobre os dilemas do desenvolvimento brasileiro naquele momento histórico. Uma questão que motivava as análises do intelectual militante naquele momento era sobre a possibilidade e o processo de desenvolvimento, considerando o desafio de superação do subdesenvolvimento. Compreendia o desenvolvimento como um processo histórico “de passagem de uma economia colonial para outra diferente, capitalista ou centralmente planificada, nas condições históricas do mundo contemporâneo”. (Singer, 2023, p. 59).

Cabe destacar, de início, que o autor distinguia crescimento econômico de desenvolvimento, sendo o primeiro quantitativo enquanto o segundo se refere a processos de transformações qualitativas. Sob esse ângulo, o desenvolvimento expressa uma mudança qualitativa com a reorientação das economias dos países subdesenvolvidos “em função do seu mercado interno”, revolucionando a divisão social do trabalho com a industrialização: “Desenvolvimento econômico, no sentido que se dá mais comumente a essa expressão, é um processo de transformação qualitativa da estrutura econômica de um país”. (Singer, 2023, P.64).

 Decorre que, nas análises realizadas por Singer na década de sessenta, o desenvolvimento era concebido como um processo específico dos países subdesenvolvidos ou de economia colonial que estão integrados de forma subordinada à economia mundial, dependentes dos países industrializados ou desenvolvidos. O foco do autor sobre o fenômeno do desenvolvimento se referia às características e dilemas que envolvem esse processo de transformações estruturais econômicas e sociais, tais como a “transferência de grandes massas da população do campo para as cidades, constituição de um parque industrial mais ou menos amplo, aumento da produtividade do trabalho, melhoria do padrão de vida tanto da população urbana como da rural, elevação do seu nível cultural etc.” (SINGER, 2023, p.64). Da mesma forma, buscava identificar os nós críticos ou desequilíbrios em cada uma das etapas do desenvolvimento, desde a substituição de bens importados por produtos do setor de mercado interno, até a mudança qualitativa com a importação de bens de produção (SINGER, 2023, p.89).

Nesse sentido, o autor considerava que o desenvolvimento econômico era um fenômeno que ocorria nas “condições históricas do mundo contemporâneo” (Singer, 2023, p.59 – grifos do autor), tanto sob a orientação capitalista, quanto nas economias planificadas, em países socialistas, embora cada uma tivesse suas particularidades. Porém, não se trata de ingênua neutralidade, pois Singer mantinha coerência com sua perspectiva teórica crítica em relação às determinações e implicações históricas da expansão capitalista, desde o século XV até o presente, com seu caráter colonizador e imperialista, com reflexos destruidores de modos de vida e de produção baseados na economia natural ou na produção simples de mercadorias, de forma que “[...] a lógica do sistema não podia impedir que as mercadorias inglesas e o capital inglês simultaneamente destruíssem as formas de economia pré-capitalistas, quaisquer que fossem, praticamente em todos os continentes do mundo” (Singer, 1979, p.159).

Além do aspecto de destruição, Singer enfatiza o caráter da dependência, pois o desenvolvimento capitalista não é um processo homogêneo e nem linear, é desigual e combinado. A própria economia colonial é produto desse processo histórico, condicionada pelos fatores externos que limitam seu desenvolvimento, de forma que essas economias periféricas não reproduzem a mesma estrutura econômica dos poucos centros dinâmicos capitalistas, a partir os quais o sistema se irradia globalmente. Da mesma forma, quando o processo de industrialização avança da substituição de importações para abastecimento do mercado interno para a produção de bens de capital, são reproduzidos condicionantes externos que geram desequilíbrios ou crises no processo de desenvolvimento. Ou seja, ao mesmo tempo em que se expande de forma acelerada, o capitalismo freia os processos de modernização dos países menos desenvolvidos, ao reforçar o monopólio tecnológico das nações já industrializadas, de forma que “a diferença relativa entre os países que estão na vanguarda do desenvolvimento industrial e os países que estão na retaguarda tende a aumentar” (Singer, 1979, p. 164).

Um elemento definidor do processo de reprodução da dependência é o patamar do desenvolvimento das forças produtivas que é ultrapassado a cada momento pelas revoluções tecnológicas em curso e pela disputa dos mercados pelas empresas privadas capitalistas. As regras tornam vencedores os que dispõem da melhor tecnologia, pois um dos elementos determinantes da competitividade no mercado é a superioridade técnica, o que requer constante avanço do conhecimento científico e o fomento intenso de novas forças produtivas (Singer, 2022; 2023).

Essa tendência de reprodução dos condicionantes externos de dependência é negada pelas explicações teóricas monetaristas sobre o “círculo vicioso da pobreza” nos países subdesenvolvidos. Ou seja, o baixo desenvolvimento das forças produtivas depende de fatores internos, sobretudo do fato desses países não conseguirem formar poupança interna para os investimentos necessários ao seu desenvolvimento, pois: “consumimos quase tudo que ganhamos e, assim, não podemos poupar, não podemos, pois, aumentar nossa produtividade e então continuaremos pobres. Daí a grande conclusão: só podemos nos desenvolver com o auxílio estrangeiro; [...]” (Singer, 1979, p. 166).

Verifica-se então que, ao mesmo tempo, em que possui mecanismos que aceleram a superação do retardo para modernizar a economia, o sistema estabelece freios e limites aos processos de modernização dos países menos desenvolvidos, o que vai constituindo a desigualdade entre as nações, de forma que “a diferença relativa entre os países que estão na vanguarda do desenvolvimento industrial e os países que estão na retaguarda tende a aumentar” (Singer, 1979, p. 164).

 O desenvolvimento capitalista é realizado sob a égide do grande capital e moldado pelos valores do livre funcionamento dos mercados, das virtudes da competitividade e da iniciativa privada individualista orientada para a reprodução do capital ou maximização de suas taxas de remuneração em detrimento da satisfação das necessidades coletivas ou sociais (SINGER, 2022). Essa é a base da produção das desigualdades internas, regionais e sociais, pois o “jogo competitivo capitalista tem um claro viés a favor do grande capital: é ele que usufrui de ganhos de escala, é ele que tem acesso privilegiado a novo capital, é ele que exerce influência sobre decisões de política econômica que promovem seus interesses” (Singer, 1999, p. 125). Por isso, mesmo que o desenvolvimento capitalista possa produzir melhora do nível de vida não só dos capitalistas, mas de parte da classe trabalhadora, possui efeitos deletérios sobre os explorados e ainda piores sobre os desempregados.

Para Singer (2022), trata-se de um desenvolvimento espacialmente seletivo, embora desigual e combinado, pois as áreas com baixo dinamismo econômico, devido às estratégias locacionais do capital, são integradas marginalmente a esse processo de expansão capitalista, contribuindo para acumulação de capital nas regiões centrais, considerando que as atividades econômicas locais ou regionais perdem competitividade em relação às grandes corporações empresariais sediadas naquelas regiões com maior volume de investimento para desenvolvimento de suas forças produtivas. Dessa forma, as regiões empobrecidas tendem a reproduzir as mesmas características de uma economia colonial (Singer, 2023), se especializando como fornecedoras (ao mercado externo) de matérias primas e mão de obra baratas e consumidoras (no mercado interno) de produtos industrializados com maior valor agregado, o que implica em desvantagens concorrenciais e acumulação de déficits na balança comercial e de pagamentos.

            Outras implicações do desenvolvimento no capitalismo são de ordem política. As crises humanitárias na contemporaneidade, incluindo as questões social e ambiental e grandes guerras, também expressam essa dialética capitalista de expansão e destruição. Singer (1979, p. 162) chama a atenção para o fato de que as contradições mundiais do sistema funcionam como estímulos à sua expansão, buscando formas de restauração das taxas de remuneração do capital, a exemplo da reestruturação produtiva que se processou a partir da crise que se abatia sobre a economia capitalista desde a década de setenta.

Com a redução do dinamismo econômico global e o rebaixamento nas taxas de remuneração do capital, o sistema capitalista busca sua restauração expandindo suas forças produtivas com base em inovações científicas e tecnológicas a partir de suas áreas centrais, reproduzindo a lógica desigual e combinada sob o comando das grandes corporações empresariais, colocando à margem as economias marginais estagnadas e ameaçando a humanidade com a destruição de elementos que lhes são vitais, conforme alerta Antunes (2011, p. 11) na introdução da obra de Mészáros sobre a crise estrutural do capital:[...] o sistema de capital, por não ter limites para sua expansão, acaba por converter-se em uma processualidade incontrolável e profundamente destrutiva”.

Dessa forma, as tentativas de restauração do capital tiveram implicações globais nos anos 1980 e 1990, inclusive nos países centrais do capitalismo, com o elevado desemprego, a flexibilização e precarização das relações de trabalho, o desmonte de sistemas de proteção social e o consequente aumento da pobreza, entre outros fatores. No caso dos países de capitalismo tardio e dependente, a exemplo do Brasil, além do grau mais elevado de gravidade em relação a estes fatores (desemprego, precarização, pobreza e desproteção social), verifica-se um retrocesso no processo de industrialização, sendo a economia cada vez mais orientada às exportações de produtos minerais e agropecuários.

Um resultado é o endividamento que implicou tanto em aprofundamento da crise fiscal que limita as capacidades de intervenção e regulação estatal, quanto na transferência de um maior volume do fundo público ao capital financeiro. Nesse contexto, Singer chamava a atenção para o fato de que o neoliberalismo, ao priorizar os interesses do mercado em detrimento das demandas sociais, incide diretamente na capacidade de decisão democrática em um país, de modo que "Estamos diante de um dilema histórico: ou a liberdade do capital destrói a democracia ou esta penetra nas empresas e destrói a liberdade do capital" (SINGER, 1998, p. 82).

            É a partir das constatações sobre as características e implicações do processo de desenvolvimento no capitalismo que Singer coloca em questão se seria possível um tipo de desenvolvimento não capitalista. Considera a alternativa do desenvolvimento nas economias planificadas, ou seja, nas economias socialistas[6], sob duas perspectivas. A primeira se refere ao ponto de vista que permite uma compreensão crítica do desenvolvimento capitalista. No Prefácio da primeira edição de Crise e Desenvolvimento, ele se posiciona como um observador que “se coloca do ponto de vista de um sistema que supera as contradições tanto da economia colonial quanto do capitalismo, isto é, do ponto de vista do socialismo” (Singer, 2023, p.38). A segunda perspectiva do autor considera que uma economia planificada apresenta potencial de desenvolvimento maior do que em uma economia capitalista.

No Curso de Introdução à Economia Política, ao analisar algumas das experiências socialistas da época, sobretudo da China, afirma que “[...] tudo leva a crer que a capacidade de avanço e de desenvolvimento das forças produtivas, mostrada por essas experiências, demonstra cabalmente que é possível vencer o retardo econômico no espaço de uma geração” (SINGER, 1979, p. 170). Para quem vivenciou esse processo, sobretudo no século XXI, a previsão se concretizou em parte, do ponto de vista da expansão econômica da China com base na planificação coordenada pelo Estado, mas fazendo largas concessões ao modelo de desenvolvimento capitalista orientado pelo e para o mercado.

            Verifica-se, entretanto, que as obras de Singer das décadas de 1980 e 1990 expressam críticas substantivas ao modelo de extrema concentração do poder político que foi adotado pelos países socialistas: “A economia planejada que acabou por ser construída sobre esses princípios foi organizada ao redor de um completo monolitismo do poder de decisão no Estado, [....]”.  (Singer, 2000, p. 23). Preocupado em superar essa concepção que contribuiu para o aprofundamento da crise e falência do socialismo real, Singer pretende contribuir criticamente na construção do socialismo no século XXI, contrapondo o modelo de centralização planejada com a perspectiva da autogestão. Ou seja, a organização socialista da produção se dá pela “gestão coletiva dos meios de produção exercida pelos produtores livremente associados”.  (Singer, 2000, p. 40).

            Nossa compreensão é de que esse debate sendo processado a partir de uma ótica das iniciativas econômicas solidárias enquanto “implantes socialistas” no interior das formações sociais capitalistas (Singer, 1998), conduz o autor a ampliar e atualizar sua perspectiva sobre as alternativas de desenvolvimento. 

3 ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESENVOLVIMENTO SOLIDÁRIO

No século XXI, a concepção de Singer sobre o significado do desenvolvimento expressa elementos de continuidade da análise que fazia desde a década de 1960, mas introduz e enfatiza novas preocupações da humanidade diante do aprofundamento de uma crise de múltiplas dimensões. Em relação aos elementos de continuidade, o autor mantem sua compreensão do desenvolvimento como processo de expansão de novas forças produtivas e de instauração de novas relações de produção. Mas são explicitadas novas perspectivas em relação às características e objetivos do desenvolvimento não capitalista, tais como a promoção da sustentabilidade, com a preservação da natureza, e a justiça social, com a redistribuição das riquezas ou frutos do crescimento.

As motivações políticas e pressupostos analíticos de Singer nesse debate podem ser identificados em suas obras mais recentes. A primeira delas já foi aqui apresentada ao tratar do planejamento centralizado e do exercício monolítico do poder como um dos fatores da crise do socialismo real. A segunda também diz respeito à constatação dos chamados “implantes socialistas”, as formas de organização econômica que persistem nos interstícios do capitalismo, mas que são orientadas por outro tipo de desenvolvimento, o solidário (Singer, 2022).

Essa constatação implica em uma tese fundamental sobre os múltiplos modos de produção, pressupondo que a dialética de expansão e destruição capitalista não elimina totalmente os modos de produção previamente existentes, embora exerça hegemonia sobre os mesmos. É nesse sentido que Singer reconhece e afirma a economia solidária como “um modo de produção, entre outros, que existe dentro do capitalismo, já há duzentos anos, com maior ou menor força, mas que pode, diante das contradições que o capitalismo apresenta, ter um desenvolvimento” (Singer, 2001, p.18). Dessa forma, uma questão é de “como a economia solidária pode se transformar de um modo de produção intersticial, inserido no capitalismo em função dos vácuos deixados pelo mesmo, numa forma geral de organizar a economia e a sociedade” (Singer, 2002, p. 116). Ou seja, poderá ser a economia solidária uma estratégia de desenvolvimento alternativo ao capitalismo?

Antes de aprofundar essa questão, é necessário destacar que, ao observar e analisar relatos sobre estratégias inovadoras de promoção do desenvolvimento regional, Singer (2022) identifica traços de um tipo de desenvolvimento misto que denomina de “semicapitalista” ou “semisolidário”, impulsionado nas décadas de 1980 e 1990, no processo de reestruturação produtiva, ampliando a importância das empresas de pequeno porte. Se refere aos chamados “distritos industriais”, sobretudo na  Itália, conhecidos no Brasil como “arranjos produtivos locais”, constituído por pequenas empresas que cooperam entre si nas diferentes etapas de uma cadeia produtiva, desde as iniciais até as que completam o ciclo colocando o produto no mercado, de forma que “[...] possam colaborar, oferecendo o seu conhecimento especializado para aperfeiçoar a qualidade do produto e os processos produtivos em todas as suas etapas” (Singer, 2022, p. 156).

Diferente do que ocorre com as grandes corporações capitalistas no mercado globalizado, a competição entre as pequenas e médias empresas nos distritos industriais “não visam destruir o concorrente para dominar o mercado”, pois o isolamento seria razão do fracasso de cada uma delas, além de enfraquecer o próprio conglomerado na concorrência com as grandes empresas. Singer considera que esse é o segredo de um distrito industrial: a lógica e os mecanismos de colaboração criam o “[...] equivalente a uma grande empresa em rede, com a vantagem de poder organizar a colaboração mútua de dezenas de milhares de pessoas sem imposição e sem subordinação [...]” (Singer, 2022, p. 157).

Apesar de reconhecer que nos distritos industriais na Itália, sobretudo na Emília-Romana, havia uma forte presença de cooperativas de produção que se relacionam com pequenas firmas capitalistas. No entanto, ele adota como referência o Complexo Cooperativo de Mondragon, na Espanha, envolvendo cooperativas de distintos setores (industriais, comerciais, financeiros e de serviços) e de graus diversos, de forma que “As cooperativas de segundo grau de Mondragon desempenham o mesmo papel que as associações de firmas nos distritos industriais, mas de maneira mais radical” (Singer, 2022, p. 161).

Não se trata de análise ingênua ou romântica sobre as virtudes da ajuda mútua e da cooperação, enquanto elementos essenciais do desenvolvimento solidário. Ao analisar as características dos distritos industriais, Singer não nega a existência e nem omite a permanência dos fundamentos e das determinações globais do desenvolvimento capitalista, sendo uma delas a exploração do trabalho e a centralização do capital. Ademais, ao comparar os distritos industriais com os complexos cooperativos, faz questão de frisar que existe uma diferença significativa entre eles, sendo os primeiros “capitalistas, embora ‘atípicos’, e os últimos são socialistas, em sentido estrito” (Singer, 2022, p. 161). Dessa forma, o autor encaminha suas reflexões para o desenvolvimento solidário como possibilidade de cooperação entre trabalhadores ou pequenos produtores associados em regime de autogestão, ou seja, sem patrões e empregados.

Quanto à questão de que seria possível o desenvolvimento solidário em um contexto de hegemonia da economia capitalista, Singer (1998; 2022) analisa que na atualidade existe uma complexa combinação de modos de produção, tendo em vistas que o capitalismo, apesar da dialética da expansão e destruição, não eliminou a pequena produção de mercadorias, as formas solidárias de organização econômica e nem a economia estatal, consideradas pelo autor como modos de produção não capitalistas. Pelo contrário, “[...] nas últimas décadas, reforçou a presença e o papel destes outros modos de produção no seio da formação socioeconômica dominada pelo capitalismo” (Singer, 2022, p. 162).

Em contraposição ao desenvolvimento capitalista, o autor destaca, no plano político e ideológico, algumas das características da lógica e dos valores do desenvolvimento solidário. A primeira delas se refere à essência do próprio desenvolvimento como expansão das forças produtivas, considerando que o progresso tecnológico deve respeitar a natureza, promover a autorrealização das pessoas, favorecer a igualdade e visar a satisfação de necessidades prioritárias da maioria, submetendo os avanços científicos e tecnológicos “ao crivo permanente dos valores ambientais, da inclusão social e da autogestão” (Singer, 2022, p. 142). Assim, os interesses sociais orientam as escolhas tecnológicas na economia solidária em favor da biodiversidade, da saúde e bem-estar dos consumidores e da autonomia de produtores associados e individuais (Singer, 2022).

A segunda característica do desenvolvimento solidário, enfatizada por Singer, é a prevalência da cooperação como motivação de comportamentos desejáveis, em contraposição à competição exacerbada que gera desigualdades: “[...] na economia capitalista, os ganhadores acumulam vantagens e os perdedores acumulam desvantagens nas competições futuras” (SINGER, 2002, p. 8). Em contraposição, a reciprocidade e a ajuda mútua são valores que perpassam as formas solidárias de organização econômica – de produção, comercialização, consumo ou finanças - orientadas pela equidade, pois “a chave dessa proposta é a associação entre iguais em vez do contrato entre desiguais” (Singer, 2002, p. 9).

Em contraposição ao caráter excludente do desenvolvimento capitalista que não é para todos, Singer considera que as iniciativas econômicas solidárias surgem como reação às injustiças sociais com o propósito de “[...] tornar o desenvolvimento mais justo, repartindo seus benefícios e prejuízos de forma mais igual e menos casual” (Singer, 2022, p. 147). É nesse sentido que Singer (2022, p. 149) reafirma que a “economia solidária propõe abolir o capitalismo e a divisão de classes que lhe é inerente”. Para que isso seja possível é necessário inverter as relações sociais para que as forças produtivas, incluindo os conhecimentos, sejam orientadas e subordinadas a interesses sociais, o que implica em outra forma de sociabilidade baseada na propriedade social dos meios de produção: “essas forças deveriam ser postas à disposição de todos os produtores do mundo, de modo que nenhum país, região ou localidade seja excluído de sua utilização e, portanto, dos benefícios que venham a proporcionar” (Singer, 2022, p. 147;-148).

Nesse debate aparecem duas questões consideradas polêmicas: a primeira é de que não se trata de substituir a propriedade privada dos meios de produção pela estatização e a segunda é que Singer não propõe a abolição do mercado como uma condição para o desenvolvimento solidário.

Em relação à primeira questão, ao propor a repartição da propriedade “entre todos os que participam da produção social” (Singer, 2022, p. 148), expressa a aproximação do seu pensamento com as bases do socialismo autogestionário, incluindo sua crítica contundente à planificação centralizada pelo Estado, no sentido totalitário. Isso não significa que o Estado e, sobretudo o fundo público, não tenha um papel preponderante em garantir a socialização da propriedade – evitando sua reconcentração privada inclusive com mecanismos estatais de redistribuição solidária da renda (Singer, 2002; 2022). Cabe também ao Estado estimular e premiar a expansão das forças produtivas por iniciativas privadas, incluindo pesquisa e desenvolvimento, desde que seus resultados sejam socializados. Fica claro que a concepção de desenvolvimento solidário apresentada por Singer preserva a liberdade de iniciativa econômica pelas pessoas em empreendimentos individuais, familiares e associativos, embora regulada pelos interesses sociais.

Quanto à segunda questão, fonte de acalorados debates no seio das organizações da economia solidária, considera-se que o mercado existe desde muito antes do capitalismo, embora somente neste sistema tenha adquirido o caráter hegemônico de sociabilidade, indo além das trocas comerciais e expressando um modo de ser social em que tudo o que existe (material e imaterial) se torna mercadoria, com valor de troca. O que Singer considera em uma perspectiva qualitativa de mudanças em direção ao desenvolvimento solidário, é que os produtores livres “se esforcem por oferecer aos compradores a melhor qualidade e quantidade pelo melhor preço”, ao mesmo tempo em que considera a necessidade de sujeição dos mercados “a normas e controles, para que ninguém seja excluído da economia contra a sua vontade” (Singer, 2022, p. 148). Dessa forma, cabe ao Estado essa regulação para evitar que o jogo do mercado continue produzindo “ganhadores, que enriquecem, e perdedores, que empobrecem”.

            Fica claro que Singer tenta enfrentar o velho e enorme dilema teórico e político de como harmonizar liberdade com igualdade[7]. A contribuição de Paul Singer é coerente com a solução e a utopia socialista, mas busca estratégias adequadas à realidade dos tempos atuais, destacando que esses processos de transformação societária, da passagem do desenvolvimento capitalista para o solidário no presente, requer o máximo de adesão livre e consciente, pelo convencimento das pessoas, em uma perspectiva democrática. Não é algo para se construir no futuro, para quando o capitalismo esgotar todas as possibilidades de enfrentamento e superação de suas crises, inclusive porque, até lá, poderá ter destruído a própria humanidade e o planeta terra. Por isso, a ideia de Singer de que as iniciativas de economia solidária funcionam como implantes socialistas no seio do capitalismo. É preciso expandir essas iniciativas, sobretudo como estratégias de desenvolvimento solidário em comunidades empobrecidas.     Essa era uma questão colocada por Singer (2018a) quando o mesmo era titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) no Ministério do Trabalho e Emprego[8]: “é possível levar o desenvolvimento a comunidades pobres? ”.

Para Singer (2018a, p. 208), “Desenvolvimento comunitário significa o desenvolvimento de todos os seus membros conjuntamente, unidos pela ajuda mútua e pela posse coletiva de certos meios essenciais de produção ou distribuição” (grifos do autor). Para tanto, é preciso que os investimentos e os seus resultados sejam socializados, feitos por e para toda a comunidade, evitando o “empreendedorismo individual” que exacerba a competição e valorizando os espaços de solidariedade, articulando em redes iniciativas pessoais, familiares e associativas, de modo que “todos possam ser donos da nova riqueza produzida e beneficiar-se dela” (Singer, 2018a, p. 208).

A questão do desenvolvimento solidário a partir do local apareceu com força durante a primeira Conferência Nacional de Economia Solidária - I CONAES, realizada em Brasília, em 2006.  As resoluções da Conferência afirmam a economia solidária como uma estratégia para um novo modelo de desenvolvimento sustentável, includente e solidário, a partir de comunidades “que se mobilizam para pôr em marcha outro desenvolvimento promovido por empreendimentos familiares ou coletivos, sob a forma de cooperativas ou associações de produtores familiares, redes, cadeias produtivas e grupos informais” (I CONAES, Resolução n. 15).

A partir dessa compreensão da Economia Solidária como uma estratégia de desenvolvimento, Singer passou a sistematizar reflexões sobre os desafios e as iniciativas empreendidas na promoção do desenvolvimento de base comunitária. Decorre dessas reflexões um conjunto coerente de orientações práticas que o autor havia presenciado em sua trajetória na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP-USP) e, sobretudo, na SENAES, nas parcerias que estabeleceu com organizações da sociedade civil e governos municipais e estaduais para promoção da economia solidária em iniciativas locais de desenvolvimento.

Foram processos de aprendizados na formulação e na condução da política pública que ampliaram os horizontes da equipe daquela Secretaria, sendo o próprio Singer um mestre e aprendiz entusiasmado, buscando apreender esses aprendizados ao mesmo tempo em que provocava novas reflexões críticas, pois o “Órgão de governo encarregado da formulação das políticas de ESS tem de promover tanto o estudo acadêmico – sobretudo do pano de fundo histórico da problemática em questão – quanto o envolvimento no que está agora sendo chamado de pesquisa-ação [...]” (Singer, 2018b, p. 190).

O ponto de partida do processo de desenvolvimento comunitário é o desejo e a necessidade de melhorar as condições de vida dos seus membros. O dilema que se coloca para impulsionar a economia solidária, nesses casos, é o de como aumentar a renda local para que possam ser adquiridos bens e serviços dos quais necessita para satisfazer suas necessidades de forma adequada e melhorar a vida. Para enfrentar essa situação, é preciso envolver a maior quantidade de pessoas da comunidade para debater quais são as alternativas que possam levar ao seu autodesenvolvimento, buscando captar recursos com a venda do que ela tem de produtos ou de serviços para reinvestir na própria comunidade, ou seja, iniciar um ciclo virtuoso não apenas com base na produção, mas com ampliação da capacidade de consumo (mercado interno). Por isso, conforme orienta Singer (2018a, p. 209), esse processo “não pode prescindir desta condição: os novos ramos produtivos têm de permitir que todos deles participem, enquanto produtores e enquanto gestores do processo produtivo”.

Além de reconhecer suas potencialidades econômicas, o processo comunitário deverá ser capaz de identificar ou de criar “brechas de mercado” que permitam que seus membros produzam algo que lhes proporcione boa remuneração. Para Singer (2018a, p. 209), a criação de brechas de mercado é possível com a mobilização de recursos e esforços locais e de parceiros externos que possibilitem a melhoria na qualidade dos produtos ou serviços, desenvolvimento de novos produtos, identificação de demandas em expansão, aumento de escala ou intensificação produtiva para elevar a produtividade e reduzir custos e a formação de redes entre produtores associados para uma melhor posição no mercado.

A partir da identificação de uma especialização produtiva, considerando potencialidades locais e brechas de mercado, será preciso realizar investimentos, combinando recursos próprios (trabalho, conhecimentos, habilidades, vantagens naturais comparativas, tempo, infraestrutura etc.) com aportes externos de projetos e programas com financiamento público e outras formas e fontes de cooperação, possibilitando o acesso a conhecimentos e outros ativos econômicos que a comunidade não dispõe. Singer destaca a necessidade de formação dos agentes comunitários de desenvolvimento, pessoas da própria comunidade que se dedicam aos processos contínuos de organização local, construindo a consciência “de que o desenvolvimento é possível pelo esforço conjunto da comunidade, amparado pelo crédito assistido e acompanhamento sistemático” (Singer, 2018a, p. 211).

Da mesma forma, o autor enfatiza a importância dos agentes externos de organizações da sociedade civil, instituições de ensino técnico e superior (incubadoras de economia solidária), os órgãos públicos e as instituições financeiras, entre outras. Esses agentes devem ser orientados por uma perspectiva política e pedagógica que possibilite estabelecer relações igualitárias e horizontal de diálogo com a comunidade, possibilitando uma “contínua troca de saberes. Nesta troca, os membros da comunidade recebem ensinamentos e os oferecem aos agentes, num processo de ação política mútua”. (Singer, 2018a, p. 211).

Outra questão enfrentada por Singer é relativa à dimensão e à atomização de iniciativas econômicas locais (individuais, familiares e associativas) enquanto fatores que podem fragilizar as possibilidades das comunidades pobres se desenvolverem pelos seus próprios esforços. O que debilita o desenvolvimento da economia solidária é atuação isolada em mercados dominados por empresas capitalistas, com pouco ou nenhum acesso à crédito e assessoria técnica. Na maioria dos casos, faltam conhecimentos e aportes tecnológicos para melhorar o padrão de qualidade dos produtos ou serviços, para produzir com regularidade e ampliar a escala da produção com custos adequados para atender às demandas.

A solução é o enredamento dessas iniciativas em redes de cooperação solidária de caráter territorial ou especializada em uma cadeia produtiva. Singer vai propor a organização de “federação de comunidades” com o que havia apreendido no estudo dos “complexos cooperativos” e com as experiências de “distrito industrial”, mais conhecido no Brasil como Arranjo Produtivo Local (APL), “em que desenvolvimento tecnológico, compra de insumos e marketing de produtos podem ser feitos em comum” (Singer, 2018a, p. 212).

Em todos os casos, esse encadeamento visa facilitar o acesso a conhecimentos para o desenvolvimento de tecnologias sociais e apropriadas às iniciativas locais, fortalecer os processos organizativos e de coesão social para tomada de decisão coletiva e incidir nas negociações com o poder público e o mercado, reduzir custos administrativos, de processamento de produtos e de aquisição de insumos, desenvolver marcas de produtos regionais e processos de qualidade com certificação participativa, entre outras vantagens.

Dessa forma, a economia solidária, ao reorganizar processos econômicos contextualizados em bases territoriais e em cadeias produtivas, possibilita o resgate e a valorização da cooperação entre pequenos produtores individuais e familiares, promovendo o trabalho associado e considerando as diversidades ecológicas, culturais e étnicas: “[...] se converte ao mesmo tempo em uma dinâmica de desenvolvimento endógeno, autogestionário, solidário e sustentável, [...] considerando e ampliando as capacidades locais ou territoriais, numa estratégia nacional de desenvolvimento”. (I CONAES, Resolução n. 18).

           

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção intelectual de Paul Singer sobre a questão do desenvolvimento nos conduz a diferentes dimensões da realidade, desde a macroeconomia política que trata do significado geral do desenvolvimento, distinguindo as características do desenvolvimento em uma economia capitalista e em uma economia planificada ou socialista, até a realidade micro, dos sentidos e estratégias do desenvolvimento local ou comunitário. Apesar das passagens de escala de análise terem grandes riscos teóricos e metodológicos, foi possível perceber as mediações realizadas pelo autor, considerando os contextos e o acumulado de conhecimentos em cada momento histórico, mantendo coerência em relação aos fundamentos ou pontos de vista essenciais de quem realiza a análise.

Nesse sentido, a coerência da análise está contida no significado do desenvolvimento enquanto expressão de mudanças qualitativas em uma dada sociedade, sobretudo a partir da expansão das forças produtivas e suas repercussões - social, cultural, política e ambiental - que são distintas a partir da orientação do desenvolvimento, se capitalista ou solidário. Dessa forma, o processo de expansão das capacidades criativas e criadoras, materializadas nas novas forças produtivas e de instauração de novas relações de produção, são orientadas por determinadas finalidades ou interesses sociais, seja a satisfação de necessidades humanas ou a geração de riquezas que são acumuladas e centralizadas.

As questões que desafiaram Paul Singer nas suas análises sobre a superação do subdesenvolvimento, sobre a alternativa ao desenvolvimento capitalista e se é possível levar desenvolvimento a comunidades pobres, estão intimamente interligadas nas obras aqui analisadas. A superação do subdesenvolvimento ou da economia colonial pela via capitalista, apesar do progresso tecnológico, econômico e social que pode proporcionar, implica na manutenção das condições estruturais de dependência e na reprodução das desigualdades sociais e territoriais, mantendo ou gerando comunidades empobrecidas. A alternativa de promoção do desenvolvimento solidário, a partir da realidade atual e da hegemonia do sistema do capital, requer construir novas estratégias a partir da constatação de que a expansão do capital não significa a eliminação total de seus oponentes, sejam das sociabilidades que antecedem o capitalismo, sejam das potencialidades futuras de outros modos de produção.

É nesse sentido que a economia solidária se coloca como uma estratégia que permite enfrentar problemas da atualidade, da “processualidade destrutiva e incontrolável” do capital sobre a natureza e a própria humanidade, precarizando e desvalorizando o trabalho. Ou seja, de como é possível enfrentar esses problemas, da produção insustentável e do agravamento da pobreza, devido ao desemprego e a perda de renda, sem perder o ponto de vista da superação do capitalismo. A utopia militante de Paul Singer nos ajuda a compreender essa dimensão estratégia.       

 

 

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. Introdução: a substância da crise. In: MÉSZÁROS, I. A Crise Estrutural do Capital. 2. ed. rev. e ampliada. São Paulo: Boitempo, 2011.

COSTA-FILHO, Alfredo. Paul Israel Singer. Estudos avançados, vol. 15, n. 43, São Paulo, Set./Dec, 2001.  

FIORI, José Luis. A utopia, a história e o desafio de governar. A Terra é Redonda, publicado em 11/07/2022, disponível em:<https://aterraeredonda.com.br/a-utopia-a-historia-e-o-desafio-de-governar/> Acesso em Dez.de 2022.

I CONAES. I Conferência Nacional de Economia Solidária: Economia Solidária como Estratégia e Política de Desenvolvimento. Brasília, 26 à 29 de junho de 2006. Anais... Brasília: SENAES/TEM, 2006.

NASCIMENTO, Cláudio. Paul Singer: uma tese e oito hipóteses sobre o socialismo/

Autogestão. In: NASCIMENTO, Cláudio & SANTOS, Aline Mendonça. Paul Singer:democracia, economia e autogestão. Marília: Lutas anticapital, 2018.  

SINGER, Paul. Dinâmica populacional e desenvolvimento: o papel do crescimento populacional no desenvolvimento econômico. São Paulo: CEBRAP, 1970.

SINGER, Paul. Curso de Introdução à Economia Política. São Paulo: Atlas, 1979.

SINGER, Paul. Repartição da renda: pobres e ricos sob o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

SINGER, Paul. Uma utopia militante: repesando o socialismo. Petrópolis: Vozes, 1998.

SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo: Contexto, 1999.

SINGER, Paul. Economia Socialista. In: SINGER, Paul; MACHADO, João. Economia Socialista.  São Paulo: Perseu Abramo, 2000.

SINGER, Paul. Mário Pedrosa e o Vanguarda Socialista. In: MARQUES NETO, José Castilho (Ed.). Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2001.

SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Perseu Abramo, 2002.

SINGER, Paul. É possível levar o desenvolvimento a comunidades pobres? In: SINGER, Paul, Ensaios sobre economia solidária. Coimbra: Ed. Almedina, 2018a. p. 207-213.

SINGER, Paul. A economia solidária no Brasil. In: SINGER, Paul, Ensaios sobre economia solidária. Coimbra, Portugal: Ed. Almedina, 2018b. p. 169-192.

SINGER, Paul. Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidário. In: SINGER, Paul. Economia Solidária: introdução, história e experiência brasileira. São Paulo: Ed. UNESP; Perseu Abramo, 2022. p. 141-164.

SINGER, Paul. Desenvolvimento e Crise. In: SINGER, Paul, Desenvolvimento e política: reflexões sobre a crise dos anos 1960. São Paulo: Ed. Unesp; Fundação Perseu Abramo, 2023.



[1] Professor Associado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Possui graduação em Filosofia Licenciatura Plena pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1989), mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (1999) e doutorado em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (2006).

[2] Professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia. Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia (1988), mestrado em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (1995) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2001).

[3] O próprio autor explica que as aulas de economia política foram proferidas em 1968, no Teatro de Arena, em São Paulo, a convite de entidades estudantis da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo. As aulas foram gravadas e transcritas para distribuição entre os participantes, sendo posteriormente revisadas e ampliadas para publicação em 1975.

[4] Para uma visão da extensa e complexa produção intelectual de Paul Singer, recomenda-se o acesso à página na web (http://paulsinger.com.br) onde se encontra uma síntese de sua biografia intelectual e comentários sobre suas principais obras, bem como os estudos de Costa Filho (2001) e de Nascimento (2018) sobre as contribuições de Singer para as questões clássicas da economia política a partir da realidade brasileira e as concepções e estratégias alternativas e solidárias de desenvolvimento.

[5] Trata-se do Seminário “Paul Singer 90 Anos”, realizado entre 29 de novembro e 01 de dezembro de 2022, em São Paulo, promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB/USP), o Instituto Paul Singer e o Centro Maria Antônia da USP (CEUMA/USP). Na oportunidade, debateu-se sobre Paul Singer “Interprete do Brasil: desenvolvimento e economia solidária”.

[6] Singer (2000, p. 22) chama a atenção ao fato de que desde a Revolução Russa de 2017 e a constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS (1922), “o socialismo passou a ser entendido como sinônimo de planejamento geral ou centralizado da produção, a substituição do mercado pela alocação administrativa dos meios de produção, a organização monopolista de todos os ramos de produção e a fixação detalhada de metas para todas as empresas – tudo isso visando a plena satisfação das necessidades individuais e coletivas”.

[7]Fiori (2022) alerta que a origem deste paradoxo antecede o aparecimento do socialismo e o surgimento do próprio capitalismo industrial. O autor cita a solução lógica formulada por GerrardWinstanley (1609-1676), um líder revolucionário inglês, para quem “os homens só poderiam se tornar livres e iguais quando todos se apropriassem coletivamente da propriedade da terra e dos seus frutos”.

[8] Paul Singer foi titular na SENAES no período de 2003 a 2016, desde o primeiro mandato do Presidente Lula, quando a Secretaria foi criada, até o golpe institucional que interrompeu o segundo mandato da Presidenta Dilma Rousseff.