A NECESSIDADE DE DECOLONIZAR O TERMO INOVAÇÃO

Maria Clara Bianchini Borduque[1]

Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo

clarabianchiniemail@gmail.com

 

Rosemary Segurado[2]

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

roseseg@uol.com.br

 

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Resumo

O termo inovação sofre uma disputa semântica ao longo da história. Em uma análise cronológica, percebe-se que acontecimentos sociais, políticos e econômicos contribuem para tornar, hoje em dia, a inovação uma palavra fetiche. Cristaliza-se uma forte identificação com apenas uma parte dos seus sentidos múltiplos: aquele relativo aos seus aspectos tecnológicos, contribuintes do “progresso” econômico. Paralela à esta “evolução”, o pensamento moderno abissal tratou de inviabilizar outras possibilidades semânticas do termo inovação, que sempre estiveram presentes, e resistiram, de forma quase invisível, a todos esses acontecimentos. Atualmente, em uma releitura decolonial, é possível acesso a uma destas propostas sobreviventes, que questionam a denominação popular do termo, e trazem reflexão.

Palavras-chave: inovação; capitalism; poder; disputa semantic; decolonização.

THE NEED TO DECOLONIZE THE WORD INNOVATION

Abstract

The term innovation suffers a semantic dispute throughout history. In a chronological analysis, it is clear that social, political and economic events contributed to make innovation a fetish word nowadays. There is a strong identification with only one part of its multiple meanings: the one related to its technological aspects, which contribute to economic “progress”. However, parallel to this “evolution”, the abyssal modern thought tried to make other semantic possibilities of the term innovation unfeasible, which were always present, and resisted, in an almost invisible way, to all these events. Currently, in a decolonial reinterpretation, it is possible to access one of these surviving proposals, which question the popular denomination of the term, and bring reflection.

Keywords: innovation; capitalismo; power. semantic dispute; decolonization.

1  INTRODUÇÃO

Atualmente a palavra inovação está presente na literatura científica e técnica, na literatura de ciências sociais e humanas, nas engenharias e centros tecnológicos, no imaginário popular, nas mídias, no discurso de partidos e candidatos, também nas políticas públicas. Inovar se tornou o emblema da sociedade moderna. E o termo é utilizado como se o significado fosse um entendimento comum e igual a todos, ou seja, inovação se tornou um slogan associado à inovação tecnológica devido à sua contribuição para o progresso econômico.

O presente artigo tem o objetivo de problematizar alguns conceitos tradicionalmente adotados para se pensar os significados de inovação e incorporar alguns referenciais que podem contribuir para ampliar a discussão sobre o tema.

Godin (2015), demonstra em seu estudo sócio-histórico, que o termo inovação nem sempre teve o mesmo significado. Godin estudou o significado e o emprego do termo desde a Grécia e Roma antigas. Ser inovador já foi pejorativo e criminoso. Foi uma ideia contestada pela filosofia, religião, política e assuntos sociais. Godin observou uma grande mudança semântica do termo após a Revolução Francesa, e um grande uso do termo em contexto econômico e político. Atualmente o termo inovação se tornou uma palavra fetiche e um imperativo. Não somente isso, mas também ingrediente fundamental do “novo espírito do capitalismo.

Pretende-se mostrar a seguir a empregabilidade do termo inovação em três tempos: o clássico, o liberal, e o contemporâneo. Para o leitor desatento, poderá parecer que se trata de uma ordem evolutiva, mas não é, pois os dois primeiros tempos trataram de invisibilizar significados do termo que coexistiram nestas épocas, e que só retornam a nossa vista no momento contemporâneo.

É válido explicar de antemão que os tempos aqui sugeridos se delimitam pelas transformações da organização do trabalho, bem como as tecnologias e as técnicas empregadas em cada época, o contexto político e religioso, e a configuração de poder, que juntos, contribuíram fortemente para as transformações do termo. Trataremos de contextualizar a disputa no cenário econômico e político em curso, para traçar o paralelo com o significado semântico de cada tempo, bem como o abismo identitário de cada tempo que se formou em consequência disso.

 

 

2  O TEMPO CLÁSSICO

No período antes Reforma Protestante na Europa, ou seja, antes de 1648, reis eram contra a inovação e exigiam a mesma postura de bispos, médicos, mestres de escolas, príncipes e cortesãos. Godin (2015) encontrou em diversas publicações, proclamações, livros e listas, o escrito de advertências, exigência de juramentos, aconselhamentos, instruções, e boas maneiras contra a inovação.

Um pilar importante que perpassa todo o artigo é o debate sobre como cada técnica de cada época vai moldando o homem, e este vai moldando a técnica, como explicado por Marx (2008) em O Capital, no capítulo Maquinaria e Indústria Moderna, que analisa a relação entre homem e tecnologia numa perspectiva sócio-histórica.

A primeira parte do tempo clássico é delimitada pela dinâmica de trabalho do artesão com a sua ferramenta, um instrumento manipulado pelos órgãos naturais do humano, que torna possível ir além das limitações orgânicas do corpo. Ao interagir com a natureza através da ferramenta, o homem passa a modificar a natureza, mas também a si mesmo, ao passo que essa dinâmica desenvolve potencialidades que estavam ocultas. Nesses moldes, o homem se torna um artesão, e participa de todo o processo de produção de algo, do começo até o final.

O trabalho neste tempo era mais bem denominado como afazeres ou labor, muitas vezes ainda desempenhado na esfera privada e se diferencia do entendimento moderno contemporâneo que temos desta prática. Thompson (2005) estuda que neste tempo não há ainda o amplo uso do relógio mecânico, então o tempo de trabalho era orientado pelo quanto se demorava para realizar tarefas. Era comum haver pouca separação entre tempo de trabalho e tempo de vida. As relações sociais e o trabalho eram misturados – o dia de trabalho se prolonga ou se contrai segundo a tarefa – e não há grande senso de conflito entre o trabalho e passar do dia.

Ao analisar a Revolução Francesa em 1789, Godin (2015) constatou que o termo continuou sendo utilizado em contexto religioso e político, mas desta vez, estava servindo aos dois lados do debate. Portanto, o autor, propõem uma análise de que essas transformações sociais contribuem para que o termo passe a ter um significado neutro. Já vimos acima o significado do termo na perspectiva conservadora do Estado Monárquico, e a seguir trazemos exemplos da perspectiva liberal que começava a ser gestada.

Godin (2015) constata que na França se iniciou um processo de reabilitação semântica do termo, já que pensadores e filósofos começaram a escrever que existiam boas e más inovações, na tentativa de imprimir neutralidade ao termo. Nesse empreendimento, é grande a contribuição de Auguste Comte, com sua filosofia positivista, que promove uma reabilitação instrumental do termo, ao afirmar dois instintos fundamentais: o espírito de conservação e o espírito de inovação. O filósofo discute a civilização ou o progresso social como uma mudança do animalismo para a humanidade, um triunfo da razão sobre os instintos, assim, explica o progresso social como resultado do espírito de inovação.

 

3  O TEMPO LIBERAL

Neste tempo, que chamaremos de liberal, iremos assistir à transformação da empregabilidade do termo inovação de neutra para positiva. Entende-se por empregabilidade positiva o fato de o termo passar a ser um imperativo da sociedade moderna, ou seja, o termo passa a ser empregado com quase nulo questionamento. Grandes acontecimentos, como a Revolução Industrial (1760-1840), buscando mudanças econômicas, e a Revolução Francesa (1789), buscando mudanças políticas, contribuíram para a transformação da semântica do termo.

A Revolução Industrial foi possível pois a racionalidade ocidental se materializa nas máquinas sociais e físicas, formando a base para que esta revolução produtiva pudesse ocorrer. Como afirmam Deleuze e Guattari (2005), “as máquinas são sociais antes de serem técnicas. Ou melhor, há uma tecnologia humana antes de haver uma tecnologia material” (p. 49).

Primeiramente, visando atingir a divisão do trabalho para uma maior produtividade e lucro, artesãos especializados passaram a desenvolver apenas parte do processo de produção que tinham maior domínio. Inicia-se assim a separação dos trabalhadores do meio e do conhecimento da produção. O artesão é transformado em uma máquina de ações repetitivas, e com isso é retirado a sua capacidade de pensar sobre todo o processo produtivo, gerando uma dinâmica de alienação do trabalhador em relação ao processo completo de produção.

Neste mesmo cenário, floresce o desenvolvimento da máquina física que emprega a força motriz do vapor, funcionando de forma automática. Enquanto no tempo clássico o artesão ao manipular sua ferramenta, ele é a força motriz, já no tempo liberal, a máquina é movida por uma força natural diferente da humana. Para Marx (2008), “se a força motriz provém do homem ou de uma máquina, é algo que não altera em nada a essência da coisa” (p. 551). Ou seja, a máquina física e a vapor tem o mesmo racional da ferramenta: busca emancipar os limites orgânicos do corpo humano. Segundo Marx (2008) o objetivo desta (e de todas as outras) tecnologia capitalista é aumentar a mais-valia do capitalista, ampliando a exploração e o barateamento do trabalho humano, aumentando a produção, e aumentando os lucros. Quando os homens passam a trabalhar na fábrica manipulando máquinas, o trabalhador vira um operador da máquina. E para tanto, não se fazia mais necessário um trabalhador habilidoso, como era o artesão, e nem do emprego da força humana, como, por exemplo, da época da ferramenta. Desta forma, se torna possível pagar menos pelo trabalho de pessoas com menores qualificações. Nesta lógica, é possível aumentar a margem de lucro, tornando o emprego da tecnologia rentável.

Com isso, nasceu e se espalhou pelo globo formas de organização e sistematização da produção. Inicialmente, as ideias desenvolvidas por Taylor no final do século 19, visavam a maximização da produção atrelada ao máximo aproveitamento da mão de obra e com o surgimento da gerência científica. O taylorismo, como ficou conhecido, revolucionou a indústria. Para Taylor, era necessário racionalizar o trabalho, elevando a produção industrial em menor tempo possível. Então o engenheiro passou a estudar estratégias que pudessem ser aplicadas no sistema produtivo, tanto na função dos operários quanto na função da gerência. Implementou que cada operário iria realizar apenas uma atividade, padronizando o trabalho e o controlando a linha de produção, o que intensificou a alienação de todo o processo produtivo. Anos depois, o empresário Ford inspirado nas ideias de Taylor, adicionou ao seu sistema a linha de montagem automatizada, acelerando ainda mais o processo de produção.

Nesta mesma época que ocorre a transformação do espaço do trabalho para a fábrica, outros espaços também se transformam, como a escola, a igreja, o hospital, a prisão, a família etc. Como explica Foucault (2005), começa a se materializar um novo tipo de poder disciplinar sob o sujeito. Estes espaços de confinamento – como o filósofo os denomina – atuam na lógica panóptica: uma constante e impessoal vigilância, regras claras, e a criação lenta, porém eficaz, através da disciplina, do corpo dócil que no sentido político é disciplinado a ponto de não ter forças para resistir. Além disso também era considerado útil, no sentido econômico: para a produção e para o consumo capitalista. O espaço psicológico do sujeito passa a ser também um local de punição, e passa a sofrer diversas iniciativas de disciplinamento. Há uma disciplina necessária para se estar nestes espaços de confinamento, e que se atua sobre o corpo para o fazer operar e pensar como se deseja. Há nessa dinâmica uma disputa pela verdade, ou seja, uma luta dos saberes e dos poderes para se estabelecerem como verdade, já que a verdade molda o pensamento e o corpo. Utilizam-se discursos produtores de verdade, que influenciam as práticas. Nesse exercício de poder, deixa de ser necessário o papel de uma pessoa autoritária, que se faça obedecer. A vigilância acontece de forma impessoal, e a construção do saber e da verdade, leva as pessoas a obedecer sem perceber.

Este terreno é extremamente fértil para que se floresça a empregabilidade positiva do termo inovação, tornando-o um imperativo da sociedade deste tempo. Dardot e Laval (2016) mostram que esse discurso positivista científico, a partir do século 17, começa a enunciar “o que o homem é, e o que ele deve fazer; e é para fazer do homem esse animal produtivo e consumidor, esse ser de labor e necessidade, que um novo discurso científico se propôs redefinir a medida humana” (p. 332). Os autores ainda afirmam que a criação do sujeito produtivo foi a grande obra da sociedade industrial: “fabricar homens úteis, dóceis ao trabalho, dispostos ao consumo (p. 325).

Paralelamente a Revolução Industrial, acontecia entre 1789 e 1799 a Revolução Francesa. Muitas gerações depois deste marco, já sabemos que os ideais de liberdade, igualdade, e fraternidade do movimento não se materializaram exatamente conforme imaginado por todos os envolvidos. Entre 1920 e 1940, diversos pensadores da Escola de Frankfurt, tais como Marcuse, Horkheimer e Adorno, colaboram para criar o conceito de Racionalidade Instrumental, uma crítica a esta ideologia da modernidade que tem como pilares o racionalismo e positivismo, que com o emprego da máquina no trabalho, acaba por automatizar este racional.

O filósofo Marcuse (1999) aponta ainda que:

a sociedade liberal era considerada o ambiente adequado à racionalidade individualista. (…) No decorrer do tempo, no entanto, o processo de produção de mercadorias solapou a base econômica sobre a qual a racionalidade individualista se construiu. A mecanização e a racionalização forçaram o competidor mais fraco a submeter-se ao domínio das grandes empresas da indústria mecanizada que, ao estabelecer o domínio da sociedade sobre a natureza, aboliu o sujeito econômico livre” (p. 76).

 

Os princípios da eficiência competitiva e concorrência livre favoreceram as empresas que detinham os equipamentos industriais mais mecanizados e racionalizados, perpetuando as desigualdades entre os cidadãos, e construindo com isso, novas formas de escravidão.

Marcuse (1973) também afirma que os ideias da razão iluminista, que tinham por objetivo a libertação do homem, da forma como foi materializado na máquina social e física capitalista, acaba por converter o homem em instrumento da máquina, portanto, escravizando-o. Ele afirma que “uma falta de liberdade confortável, suave, razoável e democrática prevalece na civilização industrial desenvolvida, um testemunho de progresso técnico” (p. 23), o que significa dizer que o aparato tecnológico é orientado para a sua própria manutenção, impondo quais serão as exigências para os novos avanços. A lógica de funcionamento do aparato tecnológico é uma razão fechada em si mesma, portanto, com isso, todo o sonho de libertação do humano através do racionalismo, ou seja, todo o projeto do Iluminismo, desmorona. Para os pensadores da Escola de Frankfurt, o homem é livre apenas para escolher os meios mais adequados para alcançar as metas que o aparato tecnológico determinou. Ou seja, os objetivos do aparato tecnológico se tornam os objetivos dos indivíduos, num processo inconsciente, e neste jogo, classifica-se como bem-sucedido aquele mais bem-adaptado às demandas da máquina, seguindo corretamente suas instruções.

Assim, Marcuse (1999) afirma que:

 

a tecnologia, como modo de produção, como a totalidade dos instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina, é assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação (p. 73).

 

Não podemos deixar de citar que o cenário global econômico e político, deixado como legado pelas 1ª e 2ª Guerras mundiais, e pela Guerra Fria, ajudou a cristalizar a empregabilidade positiva do termo inovação, bem popularizar de que o termo está ligado ao desenvolvimento tecnológico. Schumpeter (1911/1982), economista e cientista político austríaco, afirmou que a inovação é a força que transforma incessantemente o capitalismo. A inovação se torna uma ferramenta para reduzir defasagens ou lacunas na produtividade entre países e é condutora da liderança industrial. Todo um novo conjunto de argumentos se desenvolve, fornecendo evidências para a reformulação de políticas: a prosperidade da pesquisa e desenvolvimento (P&D), estatísticas voltadas a apoiar a ideia e pesquisas de inovação. Em questão de décadas, a política científica muda para a política tecnológica e a inovação. A inovação se torna um conceito básico de política econômica. Os governos que contestaram a inovação no tempo clássico, agora no tempo liberal começam a produzir pensamentos reflexivos sobre a inovação como uma ferramenta política.

Nos relatórios da OCDE desde 1966, organizações e governos internacionais, um após o outro, passam a adotar a inovação como solução para os problemas econômicos e a competitividade internacional, e a lançar políticas de inovação. Com isso, passamos a vivenciar uma experiência coletiva como se o significado do termo inovação fosse um acordo comum e igual a todos, ou seja, inovação tornou-se um slogan associado à inovação tecnológica devido à sua contribuição para o progresso” econômico.

Na análise histórica de Godin, podemos entender que a crítica à inovação feita pela monarquia, foi incorporada pela burguesia, tornando esse um novo ingrediente para sustentar a acumulação de capital. Portanto, nos últimos 200 anos, a inovação foi adquirindo uma conotação social positiva, por causa de sua função instrumental para o progresso político, social e material das sociedades. E a inovação foi se tornando um forte pilar do novo espírito do capitalismo.

 

4 O TEMPO CONTEMPORÂNEO

E finalmente este último tempo, que iremos nos debruçar mais profundamente, que neste artigo trataremos pelo nome de Contemporâneo, será apresentado em duas partes: a visível e a invisibilizada. Na parte visível, assistiremos à extrapolação da empregabilidade do termo inovação de positiva para fetichizada, atingindo sua forma máxima de positividade e anulação de questionamentos. Na parte invisibilizada, mostraremos outros significados e entendimentos possíveis do termo inovação, numa perspectiva decolonial.

4.1 A PARTE VISÍVEL

4.1.1 O fetiche da inovação e a liberação do capital

Uma vez bem cristalizadas as mudanças decorrentes da Revolução Industrial e Francesa, como explicada no tempo liberal anterior, entre os anos de 1960 e 1990, ocorrem mudanças no espírito do capitalismo, transformando a forma de se acumular capital, perseguir lucros, as relações de trabalho, a vigilância, o poder, e por consequência, extrapolando o imperativo da inovação como modo de vida.

Como explicam Boltanski e Chiapello (2009) os enfrentamentos contraculturais, de 1968, iniciada por uma geração jovem formada e o setores marginalizados do fordismo, criticavam o mundo hierarquizado, controlador e disciplinar que havia se instaurado nas fábricas, mas também para além das paredes da indústria, em toda a cultura. A crise do petróleo de 1973 provocou aumento do preço dessa matéria-prima, desestabilizando a estratégia do preço baixo para obtenção de melhores rendimentos. Baseando-se nessas críticas ao sistema, e na nova ordem mundial de distribuição de matérias-primas, experimentos começaram a serem feitos, até que o “novo espírito do capitalismo” se consolida, a partir dos anos 1990. Esse “novo espírito”, que mais parece uma releitura do sonho iluminista liberal, chega com uma nova proposta de acumulação de capital, e da apropriação, em seus próprios termos, das reivindicações contra culturais, como “criatividade, espontaneidade, liberdade, independência, inovação, ousadia, busca do novo etc.” (Sousa, 2010, p. 38). Esses ingredientes passam rapidamente a compor as novas recomendações para gerentes, executivos, e engenheiros, na literatura de gestão empresarial. Fontenelle (2012) afirma que “a inovação sempre foi fundamental para o processo produtivo capitalista” (p. 101).

Em outra perspectiva, Deleuze e Guattari (2000) explicam que a nova tecnologia informacional e o esse novo estágio do capitalismo, passaram a requerer novas formas de agenciamento coletivo e, portanto, de controle, que por sua vez, depende da noção de que o mundo é inconsistente, complexo, paradoxal e confuso, e que deve estar constantemente sendo modificado, melhorado, inovado com o saber humano. Inovar torna-se, assim, um discurso dominante e imperativo, sobre o qual não é possível discordar.

Verificamos a cristalização de um discurso da inovação permanente, relacionado ao novo estágio do desenvolvimento capitalista informacional que põe o saber no centro do processo produtivo.

Então Fontenelle (2012) arremata que:

inovação torna-se uma palavra fetiche que se apresenta como a solução possível para problemas relacionados à educação, saúde, sustentabilidade, segurança, entre outros. Daí a dificuldade de questionarmos esse discurso, e é nesse sentido que nos encontramos diante de uma nova forma de agenciamento coletivo (p. 107).

 

Assim, como elaborado por Fontenelle (2012), parece que, à primeira vista,  assistimos a um ressurgimento das ideias schumpeterianas, porém, estamos diante de uma nova etapa do desenvolvimento capitalista, produto da terceira revolução tecnológica que transformou o trabalho do conhecimento na principal força produtiva. Portanto, é somente com base nesse cenário que podemos compreender o real sentido da palavra inovação no contexto organizacional contemporâneo e a sua consequência imediata, qual seja a gestão do conhecimento.

Gorz (2005) afirma que a revolução informacional visava reduzir custos de produção e incrementar qualidades imateriais a produtos, a fim de que se pudesse extrair deles rendimentos simbólicos de monopólio, ou seja, um sobre preço mediante o caráter de antecipação ou exclusividade no oferecimento de produtos e serviços que pudessem destacar-se por seu design ou marca publicitária. Ou seja, a inovação do momento atual não se trata, apenas, de produzir novidades em um ritmo cada vez mais frenético, mas, principalmente, “transformar a invenção em mercadoria, e pô-la no mercado como um produto de marca patenteada” (Gorz, 2005, p. 42).

 

4.1.2 A virada gestorial e o capital humano

Aprofundando o estudo de boltanski e chiapello (2009), e buscando observar como o novo espírito do capitalismo provoca mudanças dentro das empresas, matias (2014), na sua tese de doutorado em sociologia pela unicamp, identifica que a partir da década de 1960 se inicia um discurso ideário da administração voltado para a horizontalização das relações, criticando a hierarquia social verticalizada, exigindo uma ordem mais flexível, autônoma, voltada para a criatividade e autogestão. A nova dinâmica neoliberal do capital, que tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como subjetivação, torna possível o nascimento de um conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência.

Assim, no fim da década de 1970 e começo da década de 1980, ocorre dentro das empresas dois processos – que compartilham entre si uma racionalidade em comum – a virada neoliberal e a virada gestorial. Com isso, empresas passam a ofertar experiências, e não apenas produtos, e a oferta se torna mais subjetiva, e a produção passa a ser orientada por um espírito de concorrência contínua, que exige inovação constante.

Ilustrando a mudança gestorial, Matias (2014) e Stuber (2012) apontam que as inovações pelo design se tornaram a chave do sucesso para companhias atuarem nos mercados globais, sendo que a técnica do Design Thinking possibilita encontrar novas oportunidades para a inovação realizada por meio do conhecimento das necessidades das pessoas.

A técnica de Design Thinking foi popularmente incorporada à administração de empresas por David M. Kelley, fundador da consultoria IDEO, que usa a técnica para traduzir as necessidades e desejos dos seus clientes em propostas de valor concretas, buscando criar soluções diferenciadas. O momento que se dá de fato a implementação da técnica do Design Thinking, se assemelha a metáfora das organizações como conversas, pois é como um workshop onde se reúnem funcionários, clientes, fornecedores, entre outros, para cocriar, ao seguir a racionalidade proposta pelo método, novos produtos, serviços, experiências, modelos de negócio, em um curto espaço de tempo. A proposta diferencial do Design Thinking é que os produtos e serviços sejam gerados em conjunto com as pessoas que serão impactadas por eles; e que os protótipos sejam construídos e testados ainda durante o processo. O processo de produção é sincrônico e interativo, se diferenciando do industrial clássico, já que a pesquisa, a criação e a implementação acontecem simultaneamente, e não mais de forma linear.

Segundo definição do Sebrae, Design Thinking “é um modelo de pensamento que vai além da necessidade de criar um produto ou serviço. A ideia é entrar na vida do consumidor e procurar ditar comportamentos e necessidades futuras. Também é importante experimentar novos pontos de vista e ter agilidade na produção da ideia, para aprender com os erros e evoluir rapidamente. É preciso aprender fazendo, mas o empreendedor precisa ficar de olho, também, nos custos disso” (p. 1). Com este exemplo, podemos notar que a técnica do Design Thinking carrega a mesma racionalidade capitalista: diminuir custos, produzir mercadorias com fetiche, embutir necessidades de consumo. Como descrito pelo Sebrae, o objetivo desta técnica é extrair informações sobre o dia a dia e as necessidades das pessoas envolvidas, para serem moldadas em novas mercadorias lucrativas. Assim, mais uma vez, o ser humano, ainda que participe do processo de criação, não é sujeito, e sim objeto, sendo usado pela técnica, adicionando na técnica suas ideias gratuitamente, acreditando que isso irá trazer mais evolução e progresso, mas sem a consciência de que seu conhecimento é a nova força motriz dessa tecnologia social do capitalismo informacional.

Poderíamos dizer que o homem se objetifica nesse processo de relação com a técnica do Design Thinking, reduzindo as informações sobre o seu dia a dia a informações passíveis de se tornarem comercializáveis. Muitas vezes, as pessoas participam e compartilham informação voluntariamente, pois acreditam no mito do progresso, que mais inovação irá melhorar suas vidas. Assim, a virada gestorial implicou em formas de saber sendo aplicadas para gerarem rendimentos exclusivos, como Gorz (2005) explica em “conferir às mercadorias o valor incomparável, imensurável, particular e único de obras de arte” (p. 11). Para López-Ruiz (2007), estamos vivendo um novo ethos no qual passamos a nos definir como capital humano.

Como bem fundamental Dardot e Laval (2016), “o indivíduo liberal (…) podia acreditar que gozava de todas as suas faculdades naturais (…) mas continuava a ser uma engrenagem dos grandes mecanismos que a economia política clássica começava a analisar” (p. 324).

 

4.1. 3 O sujeito neoliberal e a intensificação do controle

Deleuze e Guattari (2000) traçam um paralelo entre certos tipos de máquinas e sociedade, mas não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque são manifestações das sociedades que lhe puderam dar nascimento. As sociedades disciplinares, tinham por equipamento máquinas energéticas, operadas em espaços de confinamento, em harmonia com um capitalismo dirigido para a produção. Já as sociedades de controle operam máquinas de informática e computadores, que fazem viver o capitalismo informacional, para a venda de serviços voltados ao mercado constantemente modulante e modulador. Por isso seu espaço, ao invés de confinante é por si só dispersivo, e projeta o sujeito para fora, sem libertá-lo do controle. “O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado” (Deleuze e Guattari, 2000, p. 3).

Dardot e Laval (2016) explicam o processo de construção do sujeito neoliberal ou sujeito empresarial através de diversas técnicas que contribuem para a fabricação e governo de um novo sujeito utilitário cuja “subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra” (p. 327). Assim, brota na nova literatura de gestão a necessidade de inclusão do fator humano nas empresas, pois o que se procura aqui é que o sujeito participe da atividade profissional por inteiro, engaje-se plenamente, entregue-se por completo. Este desejo motivacional cunhado na subjetividade do ser é o alvo do novo poder. O sujeito é o alvo desse novo poder e o substituto dos dispositivos de direção das condutas. O efeito dessas novas práticas de fabricação e gestão do sujeito é aumentar a alienação do trabalhador, reduzindo ainda mais a distância entre o indivíduo e a empresa, portando fazendo com que o indivíduo trabalhe para a empresa como se trabalhasse para si mesmo. Fica mais difícil resistir a esse impulso, que parece vir de dentro do si, pois para o sujeito passa a acreditar então que ele deve trabalhar para sua própria eficácia, para o seu próprio desenvolvimento.

O cenário de corrosão dos direitos dos trabalhadores assalariados apresenta insegurança pelas novas formas de emprego precárias, flexíveis e temporárias somado a diminuição do poder de compra que empobrece frações inteiras da sociedade, produz a dependência dos trabalhadores pelos seus empregadores. “Foi esse contexto de medo social que facilitou a implantação da neogestão nas empresas” (Dardot & Laval, 2016, p. 328). É neste contexto em que as empresas podem exigir maiores disponibilidade e comprometimento dos trabalhadores, produzindo um sujeito que está em constante estado de competição, melhoria, inovação, mudança, superação, descobrimento e aprendizado.

Isso faz com que a empresa se torne um instrumento e um espaço de competição: “um lugar de todas as inovações, da mudança permanente, da adaptação contínua às variações da demanda do mercado, da busca de excelência” (Dardot & Laval, 2016, p. 330). Essa racionalidade neoliberal impele o sujeito a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e assim, sobreviver na competição. Esse imperativo tem capilaridade profunda dentro do sujeito que busca transcender-se pela empresa. A empresa torna-se uma disciplina pessoal, uma atitude que deve estar presente em todas as atividades do sujeito, e uma “alma” que se deve buscar e valorizar nos outros.

   Temos, portanto, uma passagem do controle para o autocontrole, pois o “novo espírito” requer ambientes de trabalho com mobilidade e criatividade, e a forma controlar o incontrolável (a criatividade, a autonomia e a iniciativa alheias) é fazendo com que as equipes auto-organizadas se controlem a si mesmas.

Todo esse cenário intensifica o trabalho, pois o sujeito neoliberal é um ser em constante estudo, sempre se sentindo endividado com seus deveres, e altamente controlado por estes aparatos do trabalho que extrapolam o local dele, e passam a compor a lógica de quase toda a sua existência.

 

4.1.4 A materialização desta inovação nas instituições

Rodrigues (2014), em sua dissertação de mestrado, inspirou-se na ideia de espaço social de Bourdieu, direcionando o olhar para a inovação como um espaço de luta simbólica entre atores posicionados na USP e em outros espaços sociais, dotados de diferentes espécies de capital. A mobilização destes recursos permite demonstrar o que os caracteriza e qual a força social capaz de cultivar a visão de inovação e implementá-la por via da Auspi. Desse debate, destacamos os seguintes eixos:

·      Existe a observação de que o termo inovação adquiriu imensa relevância e legitimidade e passou a ser figura obrigatória nos discursos das empresas, da comunidade acadêmica/cientifica, do governo, dos meios de comunicação e até de membros da sociedade civil, sendo vista como uma das alternativas para o desenvolvimento econômico e social;

·      Agência USP de Inovação, espaço social da pesquisa, constituiu-se como um local de forças e de lutas, existindo oposições entre grupos que defendem concepções diferentes de inovação e que disputam qual será o sentido mais legítimo para o termo. Observou-se que existem diferentes concepções de inovação presentes no ambiente universitário, podendo ser destacadas as visões que se aproximam da ideia de inovação tecnológica e as visões que se aproximam da noção de inovação social;

·      A hipótese do autor foi confirmada, ou seja, a investigação dos agentes que compõem esses quadros específicos é chave para desvelar o que será definido como inovação e quais os mecanismos sociais utilizados para realizar tal visão no mundo social.

  

Rodrigues (2014) finaliza sua dissertação sugerindo que “tais constatações sugerem que seria necessária uma ampliação do presente estudo para abordar em detalhes as especificidades dessas lutas e sugerir uma estrutura e uma distribuição dos agentes nesse espaço expandido.” (p. 239).

Fontenelle (2012) analisa os estudos de Thrift (2005), em seu livro Knowing Capitalism, e aponta que o autor nos mostra como tem havido

uma crescente simetria entre o mundo da academia (...) e o dos negócios, em especial na maneira como as duas instituições estão compartilhando as mesmas inquietações relacionadas à necessidade de inovar, transformando saberes em conhecimento (p. 100).

 

Fontenelle (2012) ao analisar esse autor, no novo estágio do capitalismo do conhecimento afirma que “os negócios têm se tornado cada vez mais acadêmicos, assim como a academia tem se tornado cada vez mais orientada pelos negócios” (p. 101). A autora diz que podemos notar que

ao mesmo tempo que as disciplinas acadêmicas são absorvidas pelo mercado, tornando o capitalismo mais inteligente, fazendo uso de uma força de trabalho altamente qualificada, o aparato discursivo promovido pelas escolas de negócios, legitima tal estado de coisas, impondo ao mundo acadêmico uma forma de conhecimento à sua imagem e semelhança, ou seja, uma forma de produção de conhecimento rápida, capaz de atender à sua demanda por uma natureza prática do saber (p. 101).

 

Diaz-Isenrath (2008), realiza uma pesquisa sobre as implicações da informacionalização e da empresarização dos saberes, estudando dos dois doutorandos em engenharia em computação, da universidade de Stanford, Lawrence Page e Serge Brin, fundadores da Google. Com esse estudo, ela demonstra de que maneira o conhecimento científico foi sendo apropriado pela lógica da empresa.

Para a filósofa brasileira Chauí (2003), desde a década de 1940, devido às mudanças tecnológicas e no modo de produção capitalista, que a ciência passou a ser um componente do próprio capital, uma força produtiva, inserida na lógica de produção capitalista. A autora se pergunta como a universidade passou a ser balizada pelas ideias de eficácia e sucesso (…) regida pelas ideias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito” (Chauí, 2003, p. 6).

Fontenelle então observa que histórias de sucesso sobre invenções oriundas de universidades americanas como Harvard, Stanford, Yale, entre outras, têm constantemente alimentado o imaginário de jovens estudantes e professores ao redor do mundo, sendo tema de livros, filmes e palestras motivacionais sobre o real valor do saber no capitalismo informacional. A verdade é que nesse cenário, a universidade apresenta-se como lócus privilegiado de capital humano na busca de captura e valorização da inovação.

Um dos resultados da pesquisa de Rodrigues (2014) foi o aumento do número de patentes, do número dos contratos de transferência de tecnologias, dos volumes de receitas de royalties recebidos pela USP, e dos altos valores de investimentos que a agência recebe anualmente. Esses indicadores, podem ser vistos como novos modos de controle:

o cálculo, o monitoramento, a avaliação e a gestão podem aparecer ao mesmo tempo como modestos e oniscientes, limitados e aparentemente sem limites, quando aplicados a problemas tão diversos como a conveniência de um procedimento médico ou a viabilidade de um departamento universitário (Rose, 1996, p. 54).

 

4.1.5 O pensamento abissal

Santos e Menezes (2010) nos mostram que, no cerne da disputa epistemológica moderna, a ciência conquistou o papel universal de fazer a distinção entre o que é verdadeiro e o que é falso. Porém, o autor define que o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal, ou seja, aquele que define que existem dois lados em uma linha, porém, o outro lado desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, não é relevante e nem compreensível. E me proponho acrescentar: o outro lado é tampouco julgado útil. Nesse cenário, por exemplo, conhecimentos populares, indígenas e/ou camponeses, não são considerados conhecimentos reais, mas sim crenças, opiniões, magia, eliminando epistemologicamente que existem realidades desse outro lado da linha.

Os autores ainda explicam que esse pensamento abissal se cristaliza enquanto acontece a colonização, pois os lugares e povos colonizados foram entendidos como “não o legal ou o ilegal, mas antes o sem lei” (Santos e Menezes, 2010, p. 28). Isso demonstra que na disputa epistemológica, o que é considerado o ‘outro lado’ não consegue nem se situar como falso, e muito menos como verdade, mas ocupa um espaço de inexistência, e total negação. Nesta disputa, a epistemologia ocidental moderna vai se criando como universal e única, e promove uma negação radical violenta de outros tipos de conhecimento que não dialogam com a realidade hegemônica que querem impor a sociedade.

Mesmo com a conquista da independência política e econômica dos territórios e povos colonizados, os princípios da imposição epistemológica atuam fortemente ainda nos dias atuais, ainda provocando uma forte “injustiça cognitiva global” (Santos e Menezes, 2010, p. 32). E para enxergarmos saídas a esse pensamento abissal, e criarmos um pensamento pós-abissal, os autores nos dizem que devemos “aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul, e confrontar a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes (p. 32). Desta forma, reconheceríamos uma “pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia” (p. 44).

Os autores apontam algumas condições para um pensamento pós-abissal:

Promover a diversidade epistemológica do mundo, a ecologia dos saberes, ao reconhecer a existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico, e renunciar a qualquer epistemologia universal;

Reconhecer que todos os conhecimentos sustentam práticas e constituem sujeitos. São assim testemunhas dessa relação, pois o que conhecem como real dimensão ativa e se reflete no que dão a conhecer sobre o sujeito do conhecimento, sua dimensão subjetiva;

Ao buscar credibilidade para os conhecimentos não-científicos não buscar o descrédito do conhecimento científico, mas sim buscar alcançar uma utilização contra-hegemônica dos conhecimentos;

Se utilizar da tradução intercultural para fazer diálogo entre a ciência hegemônica e as ciências não hegemônicas, para identificar preocupações em comum, aproximações complementares e contradições inultrapassáveis.

4.2  A PARTE INVISIBILIZADA

O líder indígena Krenak expõe sua opinião sobre o pensamento abissal quanto a inovação e o futuro da humanidade. Ele também compartilha seu pesar sobre o pensamento abissal ao observar que “esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou concepção de verdade, que guiou muitas escolhas feitas em diferentes períodos da história” (Krenak, 2019, p. 11). Para Krenak (2019), a “ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como comunidade” (p. 14). O líder vê que este pensamento abissal nos guiou para sermos apenas consumidores, e não cidadãos.

Krenak nos conta que muitos povos originários da América Latina resistiram a essa proposta da civilização pois entenderam muito cedo que era um erro. Mais especificamente relatando a história dos povos indígenas brasileiros, ele relata: “A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais” (Krenak, 2019, pp. 31-32). Outro líder indígena, e xamã, Davi Kopenawa Yanomami diz “os brancos acham que deveríamos imitá-los em tudo” (Krenak 2019, pp. 31-32).

Tanto Krenak quanto Kopenawa, e, em outra perspectiva Karl Marx, veem que seres humanos vão se transformando em mercadoria, e se vendendo as novas lógicas de funcionamento do capitalismo e do trabalho, que muda de tempos em tempos.

Para Krenak (2019), a inovação significa que:

toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de fazer coisas, da mercadoria. Antes de essa pessoa contribuir, em qualquer sentido, para abrir uma janela de respiro a essa nossa ansiedade de perder o seio da mãe, vem logo um aparato superficial para dar mais um tempo de canseira na gente. É como se todas as descobertas estivessem condicionadas e nós desconfiássemos das descobertas, como se todas fossem trapaça (p. 64).

 

O líder indígena procura aqui explicar que o processo de inovação hegemônico é um processo planejado por empresas para conquistar mercados: “planejam com antecedência a publicação de descobertas em função dos mercados que eles próprios configuram para esses aparatos” (Krenak, 2019, p. 64).

A proposta de Krenak para inovação é um “reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, como se a gente não fosse natureza” (Krenak, 2019, p. 67).

Acosta (2016) nos dá algumas lentes para que possamos entender melhor esta proposta. O autor nos explica que alguns saberes indígenas não possuem uma ideia análoga à de desenvolvimento, ou seja, não existe uma concepção de vida como um processo linear. Assim, não existe a perspectiva que um estado anterior (menos desenvolvido) possa migrar para um estado posterior (mais desenvolvido). Assim, o autor explica que as propostas indígenas latino-americanas para este tema “não são alternativas de desenvolvimento, mas alternativas ao desenvolvimento” (Acosta, 2016, p. 85).

Segundo a indígena Mónica Chuji e Acosta (2016), isso não significa, “um retorno ao passado, à idade da pedra, à época das cavernas, ou uma negação à tecnologia ou ao saber moderno” (p. 76). Mas, as propostas indígenas estão em linha com o que é conhecido por Bem Viver – ou conhecido por “sumak kawsay” nas tradições indígenas andinas e amazônicas – que é o saber (não apenas mental, mas também corporal e relacional) viver, saber conviver, viver em equilíbrio e harmonia, respeitar a vida, vida em plenitude, vida plena. Nas palavras de Santos, o Bem Viver é “um conceito de comunidade onde ninguém pode ganhar se seu vizinho não ganha. A concepção capitalista é exatamente oposta: para que eu ganhe, o resto do mundo tem que perder” (Acosta, 2016, p. 76).

Assim, as propostas indígenas para inovação precisam sem entendidas como um chamado a pluralidade e diversidade. Acosta (2016) diz “o mercado, o Estado, e a ciência têm sido as grandes potências universalizantes” provocando “o eclipsamento paralelo de linguagens, costumes e gestos (…) homogeneização de desejos e sonhos que ocorre profundamente no subconsciente das sociedades” (p. 81).

O livro de Krenak tem o seguinte título: Ideias para adiar o fim do mundo. Nos perguntamos: O que deve ser adiado? Quais são as ideias que ele sugere? O fim está claro: é a falência desta certa ideia de humanidade, que desvaloriza a natureza e as diversidades, e transforma os portadores dessa ideia em agentes da destruição dos mundos. Porém Krenak propõe adiar o fim de um mundo específico, e ele está dizendo sobre aquele mundo que a forma de vida dominante se empenha em destruir, o mundo do outro lado da linha. É este que deve ainda resistir e sobreviver.

Krenak (2019) esboça brevemente um método de inovação:

esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como natureza, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela (pp. 69-70).

Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado (pp. 31-32).

 

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto ao longo deste artigo, o significado semântico do termo inovação está em disputa. Lutar por um significado específico do termo é um ato político de construção de uma realidade específica que se quer ver fortalecida. Enxergar que não há neutralidade por trás desta palavra fetiche, é um grande primeiro passo, e pode-se dizer ser este o objetivo principal deste artigo. Resgatar outros possíveis significados ao termo, e torná-los acessíveis, é outra breve contribuição que aqui se pretende, limitada a metodologia de revisão bibliográfica possível a esta escrita. Por fim, este primeiro trabalho abre possibilidades para outros futuros, que queiram se aprofundar no estudo de outras perspectivas sobre inovação; no estudo do poder dos atores envolvidos; no estudo do controle que a tudo vai modular; no estudo do uso do discurso; no estudo das implicações; no estudo das modificações do trabalho; etc.

Enquanto esses objetivos se materializam, um pedido de Krenak pode servir ainda como uma última inspiração: o branco deve aprender a pisar suavemente na Terra, ou seja, existir sem deixar muitas pegadas e marcas. Será que nossa subjetividade moderna permitirá tal feito?

 

REFERÊNCIAS

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[1] Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008), especialização em Inovação Social pela BUAS University (2012), especialização em Sociologia pela FESPSP Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (2022).

[2] Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1992), mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). Atualmente é pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, professora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e docente e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Estudos Eleitorais e Partidos Políticos, atuando principalmente nos seguintes temas: mídia e política, comportamento político, mídia, política e sociologia do trabalho.