AMAZÔNIA: SEM SOCIAL NÃO TEM AMBIENTAL

a conta jamais fechará sem alianças e estratégias diferenciadas

 

Caetano Scannavino[1]

Observatório do Clima
Rede Folha de Empreendedores Socioambientais

scannavino@gmail.com

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Resumo

O artigo examina as desigualdades que afetam a região Norte, especialmente no estado da Amazônia e as políticas que as fazem persistir. Aborda a necessidade de alianças e estratégias diferenciadas que compensem devidamente a logística onerosa e atendam aos contextos amazônicos. Apresenta o desafio de conciliar conservação, inclusão social, crescimento econômico e o desenvolvimento da Amazônia com o objetivo de propor soluções para o desenvolvimento econômico, social e ambiental da Amazônia brasileira.

Palavras-chave: desigualdade social; inclusão social; desenvolvimento econômico; Amazônia.

Abstract

The article examines the inequalities that affect the northern region, especially in the state of Amazonia, and the policies that make them persist. It addresses the need for differentiated alliances and strategies that properly compensate onerous logistics and meet the Amazonia contexts. It presents the challenge of reconciling conservation, social inclusion, economic growth and the development of the Amazon in order to propose solutions for the economic, social and environmental development of the Brazilian Amazonia

Keywords: social inequality; social inclusion; economic development; Amazon.

 

1 INTRODUÇÃO

A usina de Tucuruí no Pará foi inaugurada nos anos 80 para gerar energia ao país e à indústria do alumínio. As comunidades impactadas do entorno só tiveram acesso à luz elétrica quase três décadas depois. Os paraenses seguem pagando a maior tarifa da federação, apesar do estado ser o 2º maior produtor de energia do Brasil. E seguimos exportando alumínio para importar bicicletas de alumínio. 

A visão nacional de desenvolvimento ainda nos remete a grandes projetos de infraestrutura na Amazônia, só que não necessariamente para a Amazônia. Planejados para atender o resto do país, nem sempre se convertem em benefícios para os seus 28 milhões de habitantes. Comparada às outras regiões, há um abismo no acesso dos amazônidas às políticas sociais e serviços básicos de saúde, educação, energia, transportes, comunicações e saneamento.

A luz elétrica já alcançou quase 99% dos lares brasileiros, mas é na Amazônia onde se encontra grande parte dos excluídos (IEMA, 2021). Enquanto mais de 80% da população do Sudeste tem acesso a coleta de esgoto, esse número não chega a 15% na região Norte (Trata Brasil, 2023). Com a Covid-19, a falta de estrutura assistencial ficou ainda mais escancarada, com seus municípios entre os primeiros a colapsar, sem respiradores, tampouco cilindros de oxigênio para abastecê-los.

 

2 MÉTODO

A revisão da literatura proposta neste trabalho segue a abordagem de revisão semissistemática, o método de revisão de literatura usado para identificar e avaliar criticamente pesquisas relevantes sobre determinado assunto, projetado para temas que foram conceituados de formas diferentes e estudados por vários grupos de pesquisadores em diversas áreas do conhecimento (Snyder, 2019).

 

3 Projetos de Infraestrutura para Amazônia

Como as políticas básicas são de competência dos governos locais, a exclusão se torna ainda mais aguda em uma Amazônia onde municípios têm tamanho de nações, populações dispersas, de difícil acesso, e altos custos logísticos. Os mecanismos de compensação são insuficientes frente a um sistema de arrecadação desenhado para realidade ao sul do país. Não são fáceis os desafios de uma Prefeitura como a de Altamira/PA para distribuir merenda escolar seguindo o padrão custo-aluno ou implementar a atenção básica via tabela SUS junto aos seus cidadãos espalhados em uma área maior que a Grécia, Portugal ou Ceará. A conta jamais fechará sem alianças e estratégias diferenciadas que compensem devidamente a logística onerosa e atendam aos contextos amazônicos.

Empreender em polos isolados e longínquos demanda soluções que tenham resolutividade local, garantias de manutenção e autonomia comunitária. Se as coisas demoram mais para chegar na Amazônia, que quando cheguem, sejam o que há de mais avançado. Porém, para que se constituam em tecnologias de ponta, na ponta, é preciso cocriá-las a partir das comunidades e suas culturas de governança para boa gestão. Caso contrário, corre-se o risco de aumentar o ferro-velho de empreendimentos abandonados no meio do mato. 

De barcos hospitais à sistemas fotovoltaicos multifinalitários, já existem muitas iniciativas demonstrativas bem-sucedidas e prontas para escalar via governos através da soma de esforços entre comunidades, ongs, projetos de extensão, e programas de responsabilidade empresarial.

 

4 Tecnologias de ponta na ponta

Gerido e sustentado pelos próprios moradores, o Sistema de Abastecimento de Água da comunidade de Mangal, atende 60 famílias com tecnologia hibrida de captação de água (de chuvas e subterrâneas), bombeada por energia solar, sem a necessidade de baterias.

Figura 1 - Sistema de Abastecimento de Água da comunidade de Mangal, na Resex Tapajós/Arapiuns.

Jardim com árvores

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Arquivo PSA

O Barco-Hospital Abaré: implantado pelo Projeto Saúde e Alegria (PSA), atende mais de 12 mil ribeirinhos de áreas remotas do Tapajós. Ao virar política pública, se tornou a 1ª Unidade Básica de Saúde Fluvial do país (UBSF). Sua gestão foi repassada para as Prefeituras e para a Universidade Federal do Oeste do Pará, com vistas a se tornar também um barco-escola, na forma de um laboratório de boas práticas para a disseminação junto as mais de 100 outras UBSF espalhadas pela Amazônia e Pantanal.

Figura 2 - Barco-Hospital Abaré: implantado pelo Projeto Saúde e Alegria (PSA).

Pessoas sentadas na grama em frente a água

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte: Arquivo PSA

Com a viabilização da energia fotovoltaica na UBS da comunidade de São Pedro, no rio Arapiuns, além da câmara fria para vacinas, serviços de telemedicina estão sendo implementados em caráter piloto através do Projeto Saúde e Alegria, Secretaria de Saúde de Santarém/PA e parceiros afins.

Figura 3 – Telemedicina.

Homem cozinhando na cozinha

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Foto: arquivo PSA

 

Jovens comunitários treinados como agentes locais multiplicadores para instalação e manutenção de sistemas fotovoltaicos.

Figura 4 - Eletricistas do Sol

Grupo de pessoas em pé ao redor de uma mesa

Descrição gerada automaticamente

Foto: arquivo PSA

As Oficinas de Cocriação de Tecnologias Parceria do Projeto Saúde e Alegria, WTT (World-Transforming Technologies), Instituto Invento e MIT Lab, promove com as comunidades a busca de soluções locais a partir de inventos simples, de baixo custo, que possam atender as necessidades do dia a dia (máquina de lavar à pedaladas, liquidificador à manivela, faca de ticar peixe, descascadora de mandioca, carregadora de macaxeira, bici-máquinas, etc).

Figura 5 - D-LAB - Oficinas de Cocriação de Tecnologias.

Pessoas assistindo a apresentação musical

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Foto: arquivo PSA

Movimentos indígenas, quilombolas, extrativistas e organizações parceiras acabam de propor um conjunto de políticas e tecnologias sociais integradas (Filippo, 2023), de baixo custo e alto impacto, para fazer chegar água potável, energia e internet até 2025 para os quase um milhão de amazônidas excluídos, povos da floresta de aldeias e comunidades remotas.

São investimentos que salvam vidas e se pagam ao reduzir o custeio dos serviços assistenciais a partir das energias renováveis, inclusão digital, tratamento de água, telemedicina, conservação de vacinas, processamento de alimentos e agregação de valor aos produtos da sociobiodiversidade.

No entanto, ao invés de medidas de bem-viver, deixamos que nossos povos da floresta que prestam um serviço voluntário como guardiões dos ativos naturais que nos mantêm vivos recebam em troca grileiros, bala, doenças de fora e mercúrio.

Continuamos derrubando árvores, convertidas em pastagens de baixíssima produtividade - 73% das áreas já desmatadas na Amazônia (MapBiomas, 2023). Boa parte delas são abandonadas depois. Contaminamos rios com mercúrio sem que os municípios áureos vejam o brilho do ouro, permanecendo entre os mais pobres do país mesmo depois de décadas de garimpo. Pelo IPS Amazônia (Imazon, 2021), os piores Índices de Progresso Social estão justamente nas regiões que mais desmatam.

 Um modelo de ocupação que beneficia alguns poucos, deixando o estrago para todos. Se faz sentido, só se for para os que vivem de ilícitos, Os que querem fazer a coisa certa acabam punidos. Não conseguem concorrer com o preço baixo da extração ou ocupação ilegal, então quebram ou mudam de lado, desestimulando investimentos responsáveis.

São 50 anos sem que a região descole dos pífios 7% a 8% de participação no PIB nacional. Insiste-se em um “progresso” para regredir, não só pelas perdas de ativos, como também de oportunidades, do quanto deixamos de ganhar com as riquezas mudando de cor, do preto do petróleo para o verde da floresta em pé.

Nas zonas agrícolas consolidadas da Amazônia, é preciso focar no aumento da eficiência, produzindo mais com menos terra, e sem desmatamento. Nas zonas a recuperar, a partir de US$ 20 a tonelada de carbono, fica mais rentável restaurar a floresta do que criar gado (Assunção; Scheinkman, 2023). Nas zonas verdes, há um potencial sociobioeconômico vergonhosamente pouco aproveitado.

É ínfima a participação da Amazônia brasileira no mercado global de produtos compatíveis com a floresta, como castanhas, frutas, pimentas e outros. Apesar de representar 30% das florestas tropicais do mundo, ela ocupa apenas 0,18% (US$300 milhões ao ano) de um mercado de quase US$ 200 bilhões (Coslovsky, 2021).

Somente com a proteção das terras indígenas brasileiras como medida de combate às mudanças climáticas, pode-se render em 20 anos de US$523 bilhões a US$1,165 trilhão com os benefícios globais do carbono e a conservação do ecossistema (Ding et al., 2016).

As universidades da região têm formado gente para ir embora. Em uma Amazônia mais de 70% urbana, não seria proibitivo vislumbrar polos estratégicos com plantas tecnológicas de baixo carbono, que qualifiquem a mão-de-obra local, com foco em inovação, processamento e agregação de valor aos insumos da sociobiodiversidade. Se é para fazer valer as benesses fiscais da Zona Franca de Manaus, porque não torná-la, por exemplo, um Vale do Silício da Floresta em Pé, um centro mundial da sociobioeconomia e da biodiversidade?

 

5 CONCLUSÃO

O desafio de conciliar conservação, inclusão social, crescimento econômico e o desenvolvimento da Amazônia permanece. Só não pode mais ser visto apenas de forma unidirecional, para o outro lado da nação, insistindo num modelo que deu errado em tempos sem mais tempo para errar.

Sem um Estado suficiente, seguiremos vendo situações, por exemplo, em que uma liderança indígena tem que recorrer ao garimpeiro ilegal das proximidades para salvar o filho doente com algum remédio ou combustível para remoção. Aí os favores normalizam as relações e sua presença no território, o movimento pela desintrusão se divide, enfraquece, e abre-se a porteira para entrada de novas levas de garimpeiros, do chão, que não são os ricos, aqueles lá fora que de fato ficam com o brilho do ouro. Um ciclo perverso de pobreza, monetária e não-monetária.

Sem social não tem ambiental.[2]

 

REFERÊNCIAS

ASSUNÇÃO, Juliano; SCHEINKMAN, José Alexandre. Carbono e o Destino da Amazônia. [S. l.]: Amazônia 2030, 2023. Disponível em:  https://www.climatepolicyinitiative.org/wp-content/uploads/2023/09/Carbono-e-o-Destino-da-Amazonia.pdf. Acesso em: 27 nov. 2023.

COSLOVSKY, Salo. Oportunidades para Exportação de Produtos Compatíveis com a Floresta na Amazônia Brasileira. Belém-PA: Centro de Empreendedorismo da Amazônia, 2021. Disponível em:  https://amazonia2030.org.br/wp-content/uploads/2021/04/AMZ2030-Oportunidades-para-Exportacao-de-Produtos-Compativeis-com-a-Floresta-na-Amazonia-Brasileira-1-2.pdf. Acesso em: 27 nov. 2023.

DING, Helen; VEIT, Peter G.; BLACKMAN, Allen; GRAY, Erin; REYTAR, Katie; ALTAMIRANO, Juan Carlos; HODGDON, Benjamin. Benefícios climáticos, custos de posse: O caso econômico para a proteção dos direitos de terras indígenas na Amazônia. Washington, DC: World Resources Institute, 2016. Disponível em: https://files.wri.org/d8/s3fs-public/Climate_Benefits_Tenure_Costs_PT.pdf. Acesso em: 27 nov. 2023.

FILIPPO, Joseph. ONGs propõem levar água, energia e internet a 1 milhão na Amazônia. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 ago 2023 às 8h00. Coluna Folha Social. Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2023/08/ongs-propoem-levar-agua-energia-e-internet-a-1-milhao-na-amazonia.shtml. Acesso em: 27 nov. 2023.

INSTITUTO DE ENERGIA E MEIO AMBIENTE. Amazônia Legal: quem está sem energia elétrica: Análise feita pelo IEMA mostra que 990.103 brasileiros estão sem acesso ao serviço público. São Paulo: IEMA, fev. 2021. Disponível em:  https://energiaeambiente.org.br/produto/amazonia-legal-quem-esta-sem-energia-eletrica. Acesso em: 27 nov. 2023.

INSTITUTO DO HOMEM E MEIO AMBIENTE DA AMAZÔNIA. Municípios que mais desmatam tem pior qualidade de vida na Amazônia. Belém-PA: IMAZON, 2021 Disponível em:  https://imazon.org.br/imprensa/municipios-que-mais-desmatam-tem-pior-qualidade-de-vida-na-amazonia/. Acesso em: 27 nov. 2023.

INSTITUTO TRATA BRASIL. A vida sem saneamento: para quem falta e onde mora essa população? São Paulo: Trata Brasil, 2023. Disponível em:  https://tratabrasil.org.br/a-vida-sem-saneamento-para-quem-falta-e-onde-mora-essa-populacao/. Acesso em: 27 nov. 2023.

MAPBIOMAS BRASIL. Área de agropecuária no Brasil cresceu 50% nos últimos 38 anos. [S. l.]: MapBiomas, ©2023. Disponível em:  https://brasil.mapbiomas.org/2023/10/06/area-de-agropecuaria-no-brasil-cresceu-50-nos-ultimos-38-anos/. Acesso em: 27 nov. 2023.

SNYDER, Hannah. Literature review as a research methodology: an overview and guidelines. Journal of Business Research, Athens, GA, v. 104, p. 333-339, 2019. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0148296319304564?via%3Dihub. Acesso em: 24 nov. 2023.



1Coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria, com atuação há mais de 30 anos na Amazônia, membro da coordenação do Observatório do Clima, e integrante da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais

 

[2]Versão ampliada de artigo base publicado originalmente na Folha de S. Paulo.