FAKE NEWS E DEMOCRACIA

desinformação, liberdades públicas e o desafio da verdade

Eloisa Samy Santiago[1]

Universidade Federal do Rio de Janeiro

eloisasamy@ufrj.br

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Resumo

O presente artigo versa sobre o fenômeno das fake news, suas repercussões sociais e as consequências jurídicas que dele decorrem, em especial no campo das liberdades públicas e da democracia. O ponto nodal da investigação reside na análise da desinformação como mecanismo de distorção da realidade, com vistas a manipular a opinião pública e interferir nos processos democráticos, particularmente mediante o uso de plataformas digitais que, por meio de algoritmos, ampliam sua propagação. Para conduzir a pesquisa, adota-se o método dedutivo, ancorado em conceitos filosóficos e sociológicos aplicados ao Direito, com revisão integrativa, objetivando analisar os modos como a desinformação veiculada por fake news afeta a confiança nas instituições e distorce o processo de formação da vontade popular. Busca-se compreender os limites jurídicos e éticos para o combate a esse fenômeno, considerando o risco de censura e o papel das redes sociais na promoção de conteúdos engajadores, em detrimento da veracidade. Conclui-se, à guisa de síntese, que o enfrentamento das fake news demanda, além de regulação eficiente, uma promoção da cultura democrática, sob pena de se perpetuar um estado de dominação informacional que compromete a autodeterminação dos cidadãos no âmbito democrático.

Palavras-chave: desinformação e fake news; liberdade de expressão; democracia; plataformas digitais; regulação ética.

FAKE NEWS AND DEMOCRACY

disinformation, public freedoms, and the challenge of truth

Abstract

 The present article addresses the phenomenon of fake news, its social repercussions, and the legal consequences that arise from it, particularly in the field of public liberties and democracy. The central focus of the investigation lies in the analysis of disinformation as a mechanism of reality distortion, aimed at manipulating public opinion and interfering with democratic processes, particularly through the use of digital platforms, which, via algorithms, amplify its spread. To conduct the research, the deductive method is employed, anchored in philosophical and sociological concepts applied to Law, along with an integrative review, with the objective of analyzing how disinformation conveyed by fake news undermines trust in institutions and distorts the process of forming popular will. The research seeks to understand the legal and ethical limits in combating this phenomenon, considering the risk of censorship and the role of social networks in promoting engaging content at the expense of truth. In summary, it is concluded that addressing fake news requires not only effective regulation but also the promotion of democratic culture, under penalty of perpetuating a state of informational domination that compromises citizens self-determination within the democratic framework.

Keywords: misinformation and fake news; freedom of expression; democracy; digital platforms; ethical regulation.

1  INTRODUÇÃO

A expressão “fake news” tem ganhado destaque como referência a informações falsas propagadas no ambiente digital com o propósito de prejudicar indivíduos ou instituições. Este fenômeno, impulsionado por motivações políticas ou financeiras, encontra terreno favorável em plataformas digitais como Facebook, X (antigo Twitter) e WhatsApp, com repercussões visíveis na disseminação de desinformação relacionada à COVID-19 e à vacinação, por exemplo.

Em 2017, o Senador Ciro Nogueira (PP/PI) apresentou Projeto (Brasil, 2017) para acrescentar ao Código Penal o artigo 287-A, com a seguinte proposta de redação:

Divulgação de notícia falsa

Art. 287-A – Divulgar notícia que sabe ser falsa e que possa distorcer, alterar ou corromper a verdade sobre informações relacionadas à saúde, à segurança pública, à economia nacional, ao processo eleitoral ou que afetem interesse público relevante.

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 1º Se o agente pratica a conduta prevista no caput valendo-se da internet ou de outro meio que facilite a divulgação da notícia falsa: Pena – reclusão, de um a três anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 2º A pena aumenta-se de um a dois terços, se o agente divulga a notícia falsa visando a obtenção de vantagem para si ou para outrem

Em maio de 2024, o Congresso Nacional brasileiro manteve o veto presidencial à tipificação de crimes contra o Estado Democrático de Direito, incluindo a criminalização das fake news eleitorais (Brasil, 2024a). Este veto bloqueou o projeto de lei que propunha penalidades para aqueles que promovessem ou financiassem campanhas de desinformação, além de aumentar as punições para violações ao Estado democrático.

Se há um consenso na literatura acerca de uma definição do termo fake news, esse é de que não há consenso algum.

O início desse debate tem se dado, frequentemente, em torno da perspectiva de “verdade” versus “mentira”, bem como se pautado pelo estabelecimento de sanções penais contra aqueles que criam e/ou divulgam fake news.

Muitos apontam para a superposição de interesses econômicos e ideológicos como uma explicação para o envolvimento de pessoas e organizações na criação de notícias falsas. Contudo, alguns desses agentes não têm motivações políticas diretas, mas buscam lucrar obtendo cliques e, consequentemente, receitas publicitárias.

Todavia, é viável induzir à desinformação mesmo com o uso de conteúdos verdadeiros, como exemplificado no emprego de jogos de palavras (Guimarães, 2021), sutilezas textuais (Legroski, 2020) relações de causalidade equivocadas e fatos apresentados de forma descontextualizada.

No que diz respeito às motivações individuais, o desejo de pertencer a um grupo e de sentir companheirismo surge como um forte estímulo para promover o compartilhamento, apoio e aceitação de qualquer tipo de conteúdo. Há um comportamento emocional de grupo que contribui significativamente para a disseminação sistemática de conteúdos falsos. Além disso, outros dois fatores psicológicos chamam a atenção no fenômeno: o realismo ingênuo[2] (onde os participantes tendem a acreditar que suas próprias percepções da realidade são as corretas, enquanto consideram os outros como desinformados) e o viés de confirmação (onde os participantes buscam apenas informações que confirmam suas próprias opiniões).

A proliferação de informações falsas, que se disseminam com rapidez alarmante nas plataformas digitais, configura-se como um desafio premente não apenas para a integridade do discurso público, mas também para os alicerces da convivência democrática.

O propósito deste estudo, portanto, é oferecer uma análise crítica sobre as dinâmicas que envolvem a produção e disseminação das fake news, examinando suas implicações para as instituições democráticas.

Para tanto, adotamos uma abordagem multidisciplinar que, em um primeiro momento, busca refletir sobre o conceito de fake news para, em seguida, direcionarmos nossa atenção para os mecanismos de propagação da desinformação, com ênfase no papel desempenhado pelas redes sociais, algoritmos e demais ferramentas de comunicação digital, que operam como vetores de amplificação da desinformação, não apenas distorcendo a realidade, mas comprometendo o próprio ideal de um espaço público dialógico e civilizado.

Por fim, o estudo busca oferecer diretrizes para o enfrentamento desse fenômeno, apresentando sugestões que possam ser úteis para legisladores, educadores e cidadãos na construção de um ecossistema informativo mais transparente e plural. O combate à desinformação, assim, se apresenta como uma tarefa coletiva, essencial à preservação da democracia, à defesa da verdade e à promoção de uma sociedade mais justa, inclusiva e bem informada.

 

2 DIREITOS DIFUSOS E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO: DESAFIOS NA ERA DIGITAL

Conforme ressalta Schwartz (2016), o fenômeno das fake news deve ser analisado sob diversas perspectivas que vão além das dimensões tecnológicas e econômicas. É imprescindível, nesse contexto, considerar as questões ontológicas – que nos levam a refletir sobre os critérios que definem a realidade de um objeto e sobre como podemos promover e organizar a emergência de espaços e tempos que integrem elementos analógicos e digitais, reais e virtuais –, e deontológicas – as quais dizem respeito às implicações éticas que envolvem a tomada de decisões fundamentadas em informações incompletas, assim como a natureza dos direitos que almejamos assegurar e as limitações que as diferentes tecnologias impõem ao exercício desses direitos –, que influenciam a definição das agendas na nova era da cidadania digital.

Inspirado pelo livro Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921) de Sigmund Freud, Hans Kelsen escreveu “O conceito de Estado e a psicologia social” (2000). Sua investigação aborda a relação entre a teoria jurídica do Estado e os aspectos psicológicos subjacentes à sua aceitação e funcionamento dentro da sociedade, examinando como os conceitos de autoridade e obediência, essenciais à estrutura do Estado, são sustentados não apenas por normas jurídicas, mas também por fenômenos psicológicos coletivos.

Em sua teoria, o Estado é entendido como uma ordem normativa soberana, que se manifesta através de um sistema de normas jurídicas que regulam a conduta humana. No entanto, para que essa ordem normativa seja efetiva, é necessário um grau de aceitação e internalização por parte dos indivíduos que compõem a sociedade. É aqui que a psicologia social entra em cena.

Kelsen (2000) demonstra que a legitimidade do Estado e a eficácia de suas normas dependem da percepção coletiva de legitimidade e da disposição psicológica dos indivíduos para obedecer a essas normas. Esta obediência não é apenas um fenômeno de conformidade externa, mas envolve uma internalização das normas jurídicas como legítimas e obrigatórias. Para tanto, explora como os processos de socialização, a formação de identidades coletivas e os mecanismos de influência social contribuem para a sustentação da autoridade estatal.

A obediência às normas jurídicas não é apenas uma questão de coerção, mas também de uma crença compartilhada na legitimidade dessas normas, o que é profundamente enraizado em processos psicológicos e sociais. A partir desse raciocínio, ele desenvolve o conceito de democracia, ressaltando o relativismo ético e a importância da tolerância, propondo uma ampla reforma institucional para aproximar a democracia representativa do princípio democrático central: a liberdade como autodeterminação.

Regimes políticos, democracia, participação, carisma e poder estão inseridos nos estudos psicopolíticos. Segundo Carvalho (2001), a mudança na ordem dos direitos afeta tanto a cidadania quanto a democracia. O pertencimento a um Estado e uma nação é um processo de construção identitária, moldado por processos psicossociais e psicopolíticos.

Se a motivação psicológica é importante, ela não é suficiente para explicar completamente a disseminação de notícias falsas. Uma série de transformações sociais, especialmente a digitalização da produção e consumo de notícias, desempenha um papel central nesse fenômeno.

Estudos sobre a preservação da diversidade cultural indicam que a interação social, muitas vezes vista como um agente de homogeneização cultural, pode, na verdade, gerar diversidade. O cientista político Robert Axelrod (1997) propôs um modelo que explora esse fenômeno, baseado em agentes que demonstram estados absorventes multiculturais através de uma interação social que tende à homogeneização cultural. Nesse modelo, a diversidade cultural é originada pela escolha dos traços culturais iniciais dos agentes, enquanto a interação social apenas atua para reduzir essa diversidade inicial.

A liberdade de expressão não se limita apenas à esfera individual – envolvendo o direito de manifestar opiniões e compartilhar informações e ideias –, mas também se configura como um direito coletivo ou difuso, que inclui o acesso às ideias e informações divulgadas por terceiros.

Conforme Dimoulis e Martins (2014, p. 57), no caso dos direitos difusos, é possível considerar que esses direitos são exercidos “por sujeitos de representatividade metaindividual”, o que se refere às entidades ou grupos que possuem a capacidade de representar esses interesses, indo além dos interesses individuais dos seus membros.

O problema peculiar dos direitos difusos está relacionado ao seu conteúdo, especificamente na dificuldade de determinar o que cada titular pode fazer ou exigir em situações concretas, diferentemente dos demais direitos fundamentais.

É inquestionável que o Estado tem o dever de implementar e respeitar os direitos fundamentais. Contudo, o problema reside em determinar se essa obrigação também se aplica aos indivíduos. O reconhecimento normativo da liberdade de expressão de uma pessoa implica que terceiros devem respeitar esse direito, abstendo-se, por exemplo, de atos de censura ou permitindo a publicação das opiniões do interessado?

Para Dimoulis e Martins (2014, p. 63) a resposta afirmativa apoia-se na tese da simetria ou correspondência entre direitos e deveres fundamentais. No entanto, essa tese apresenta um problema: ao reconhecer uma relação de reciprocidade entre titulares de direitos e deveres fundamentais, semelhante ao que ocorre no plano infraconstitucional, enfraquece-se a autonomia privada.

De acordo com os autores, as normas que definem os deveres autônomos dos particulares geralmente têm baixa densidade normativa. Por tal motivo, é essencial que o legislador intervenha, pois ele é o principal destinatário das normas que estabelecem os deveres fundamentais. Neste aspecto, a intervenção legislativa torna-se não apenas recomendável, mas imprescindível.

Como Pontes De Miranda (2012) sugere, a verdadeira interpretação do direito requer que as normas sejam integradas à realidade social, permitindo que a legislação não apenas estabeleça regras, mas também responda às demandas e valores contemporâneos.

A interpretação do direito deve, portanto, buscar um equilíbrio que permita a proteção dos direitos coletivos sem comprometer a autonomia privada.

 

3 DOMINAÇÃO E AUTONOMIA: O EFEITO DAS FAKE NEWS NA DEMOCRACIA

Alasdair MacIntyre, um dos principais defensores da ética das virtudes, discute em sua obra After Virtue (2007) o fracasso do projeto moderno de justificação da moralidade. Ele analisa como a moral contemporânea se transformou em uma desordem conceitual, atribuindo essa situação à fragmentação da linguagem moral que resultou do fracasso do projeto iluminista. Macintyre (2007) identifica a falha central na tentativa de justificar as virtudes com base em regras e princípios preestabelecidos. Em sua perspectiva, a abordagem correta consiste em priorizar as virtudes, a fim de entender a função e a autoridade das regras. Essa forma de justificação moral tem raízes na ética antiga, especialmente na filosofia de Aristóteles, e contrasta significativamente com a ética legalista que predominou na modernidade.

Para o projeto iluminista que deu origem à filosofia moral moderna, a moralidade é concebida como um conjunto de normas universais e atemporais, acessíveis a qualquer ser racional. Não se exige que o indivíduo tenha disposições práticas adequadas para investigar a práxis, como postulava a doutrina do círculo ético.

Segundo o autor, ao criticar o dissenso absoluto na definição desses padrões que permeia a filosofia pós-kantiana, Nietzsche deslegitima a pretensão universalista da moral moderna, abrindo espaço para os emotivistas, que veem a moral como mera manifestação do estado emocional de indivíduos específicos.

De acordo com Macintyre (2007), ambas as visões estão incorretas: a moral não deve ser entendida como uma lei cuja justificativa se pretenda atemporal (como no iluminismo), nem como uma particularidade histórica isolada (como nas ideias de Nietzsche e do emotivismo), mas sim como uma busca da essência humana em um tipo de vida teleologicamente orientada. O “tornar-se humano” plenamente exige que o indivíduo desenvolva integralmente suas potencialidades de racionalidade e sociabilidade dentro de uma comunidade que não vise apenas este ou aquele bem, mas sim o bem humano – a plenitude da condição humana – em seu sentido mais amplo. É dentro de tal comunidade que um discurso moral coerente (e verdadeiro) poderá emergir. Nesse contexto, o conceito fundamental se torna o de virtude, entendida como a qualidade (moral) que possibilita ao ser humano tornar-se e permanecer verdadeiramente humano.

Vivemos nossas vidas, tanto individualmente quanto em nossas relações com os outros, à luz de certos conceitos de futuro compartilhado, um futuro no qual algumas coisas parecem possíveis e outras não. Não há presente que não esteja informado por alguma visão do futuro, e este sempre se apresenta como um télos (entendido aqui como a busca consciente de objetivos práticos) ou uma multiplicidade de fins ou metas para os quais avançamos ou não. A narrativa é o que confere unidade à vida humana e cria a identidade pessoal. Ademais, contar histórias é parte fundamental da educação nas virtudes.

Isso nos leva a questionar os critérios que definem a realidade em um mundo digital, onde a linha entre o verdadeiro e o falso é frequentemente turva.

Entre os pensadores contemporâneos, Philip Pettit é amplamente reconhecido por revitalizar e modernizar a teoria republicana, especialmente através de sua obra Republicanism: A Theory of Freedom and Government (1997), em que propõe uma versão neorrepublicana da liberdade, que ele chama de “liberdade como não-dominação”, distinguindo-a da liberdade liberal tradicional, que é frequentemente entendida como “liberdade como não-interferência”.

A reflexão de Pettit (1997) sublinha que a realização plena da liberdade está condicionada à inexistência de qualquer forma de dominação arbitrária por parte de outrem. Para que isso ocorra, não basta apenas eliminar intervenções externas; é imprescindível estabelecer instituições e práticas que assegurem a proteção contra a dominação. Dessa forma, sua perspectiva sublinha a relevância da participação ativa dos cidadãos e do controle democrático sobre as instituições, sendo esses aspectos essenciais para assegurar que todos possam viver livres de qualquer forma de opressão.

As fake news representam uma forma perversa de dominação, pois manipulam a percepção pública e distorcem a realidade. Quando informações falsas são disseminadas, elas não apenas confundem e desinformam, mas também criam um ambiente onde a confiança é erodida. Em um cenário onde a verdade é constantemente questionada, os cidadãos perdem a capacidade de agir de maneira informada e autônoma.

Essa manipulação informacional é particularmente perigosa em contextos eleitorais, onde a disseminação de notícias falsas pode influenciar decisivamente os resultados, distorcendo a vontade popular e comprometendo a legitimidade do governo eleito. Ademais, as fake news podem incitar ao ódio, à violência e à polarização social, enfraquecendo ainda mais o tecido social e as bases da convivência democrática.

Para proteger o processo eleitoral e a liberdade de escolha dos brasileiros, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) adotou diversas iniciativas para disciplinar as Eleições Municipais 2024. A novidade é a regulamentação do uso da inteligência artificial (IA) na propaganda eleitoral. Foram aprovadas a proibição de deepfakes[3], a obrigação de aviso sobre o uso de IA na propaganda eleitoral, a restrição do emprego de robôs (bots) e a responsabilização solidária de provedores e plataformas, civil e administrativamente, quando não removerem imediatamente conteúdos e contas durante o período eleitoral que promovam desinformação, discurso de ódio, ideologia nazista e fascista, além dos atos antidemocráticos, racistas e homofóbicos. Há o monitoramento e a apuração de notícias falsas feitos pela coalizão com as Agências de Checagem, além de esclarecimentos e a divulgação da informação correta por meio de notícias publicadas na página Fato ou Boato e outros canais do TSE (Brasil, 2024b).

Apesar de sua presença em várias manifestações globais desde 2011, o termo pode soar excessivamente abstrato, mas, afinal, o que se entende por democracia?

Em linhas gerais, refere-se ao fortalecimento da participação cidadã e à ampliação dos mecanismos de democracia direta. Subjacente a essa ideia, há uma crítica à representação política tradicional, percebida como incapaz de refletir verdadeiramente a soberania popular.

A denominada soberania popular está sempre associada a um povo, e é nesse ponto que surgem as dificuldades. O “povo” jamais é algo sólido ou imutável que se manifesta diretamente. Ele somente se concretiza por meio de um discurso, e discursos são necessariamente parciais e sujeitos a questionamentos. São assim precisamente porque constituem representações. A confusão com essa ideia provém dos múltiplos significados da palavra “representação”.

A representação política é realizada por meio de representantes eleitos, que se afirmam porta-vozes e legisladores do “povo”. Entretanto, existem outros usos para a expressão “representação” como, por exemplo, a representação artística. A principal diferença entre ambas é que, enquanto a representação do povo não possui um original pré-existente, a representação artística é um ato que, ao se realizar, retroativamente cria o objeto que busca representar.

A representação política é um conceito essencial nas democracias contemporâneas, onde representantes eleitos atuam em nome dos cidadãos. Esse mecanismo permite que a diversidade de opiniões e interesses da população se reflita nas decisões governamentais. Contudo, a eficácia dessa representação é frequentemente questionada, especialmente quando se observa uma desconexão entre os representantes e os representados, resultando na sensação de que as vozes da população não estão sendo adequadamente ouvidas.

Os desafios enfrentados pela representação política se manifestam em sua capacidade de capturar a pluralidade da sociedade. Muitas vezes, os representantes podem estar mais alinhados com os interesses de grupos específicos ou elites, o que pode levar à marginalização das vozes de setores menos favorecidos. Essa situação pode gerar desconfiança no sistema democrático e um sentimento de alienação entre os cidadãos.

A verdadeira batalha progressista se dá no campo das ideias e das representações. A construção de um povo progressista não é um ato único, mas um processo contínuo de disputa hegemônica, onde a inclusão de todos os setores da sociedade deve ser constantemente promovida e defendida. Isso requer a capacidade de moldar e dominar a narrativa pública de forma que os valores progressistas se tornem predominantes.

No domínio da política, o conflito e a dicotomia entre o “nós” e o “eles” são inescapáveis, dado que nossas representações são sempre incompletas e parciais.

Distante da utopia de uma democracia real e pura, que almeja expressar um povo homogêneo e imanente, transcendente à representação, deparamo-nos com uma realidade diametralmente oposta: um espaço comum intrinsecamente cindido. Todavia, o antagonista que enfrentamos pode ser abordado de modos variados. Na estrutura democrática, o antagonista configura-se como um adversário digno de respeito, e não como um inimigo a ser aniquilado.

A democracia deve propiciar a circulação dos afetos fundamentada menos na quimera de uma sociedade idílica, expurgada de seus elementos deletérios, e mais na aceitação inelutável de que nossa experiência comum jamais alcançará plena harmonia.

4 ALGORITMOS E LIBERDADE: O PAPEL DAS REDES SOCIAIS NA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

Em uma sociedade saudável, as instituições e práticas sociais devem assegurar que os cidadãos possam viver sem o medo constante de serem dominados, direta ou indiretamente. A virtude republicana exige, portanto, uma cidadania ativa e vigilante, onde os cidadãos não apenas participam do processo democrático, mas também se empenham em preservar a integridade das instituições que protegem sua liberdade. Este engajamento é fundamentado na confiança mútua e na veracidade das informações circulantes.

Os algoritmos que regem as redes sociais têm o papel de determinar quais publicações alcançarão um público maior ou menor. Eles são responsáveis por ordenar os resultados de um feed, baseando-se no grau de pertinência que cada conteúdo apresenta para o usuário em particular.

Nas plataformas como Instagram, Facebook, X (antigo Twitter) e TikTok, as redes sociais se revelam instrumentos formidáveis para a análise do comportamento do consumidor. Mediante o emprego de algoritmos sofisticados, essas plataformas conseguem identificar os interesses e comportamentos dos usuários em distintas redes. Não é por acaso que os conteúdos apresentados são tão alinhados com os seus gostos pessoais. Por trás de cada página daquelas e de outras plataformas, há uma intricada rede de projeções tecnológicas, fruto da Inteligência Artificial e dos algoritmos desenvolvidos pelas big techs.

Ao observar com atenção, percebe-se uma proximidade sem precedentes entre empresas e consumidores, um processo que ocorre de forma silenciosa e utiliza técnicas altamente sofisticadas. Os algoritmos, que são uma manifestação da IA, tornam-se verdadeiramente eficazes ao reconhecer os hábitos dos usuários na internet, através do monitoramento constante das nossas atividades. Essa coleta de dados resulta em uma precisão elevada, possibilitando a criação de estratégias personalizadas e continuamente aprimoradas.

As grandes empresas de tecnologia têm um papel determinante na disseminação de informações, em razão dos algoritmos que desenvolvem com a finalidade de gerar engajamento e obter maior visualização de anúncios e campanhas publicitárias.

A maioria das democracias no mundo confere uma parte do poder político a um órgão não eleito, cuja legitimidade provém da competência técnica e da imparcialidade. Esse órgão é o Poder Judiciário, que, no Brasil, encontra no Supremo Tribunal Federal sua instância máxima. É responsabilidade dessa Corte proteger as regras do jogo democrático e os direitos de todos contra possíveis abusos de poder pela maioria.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de Repercussão Geral na discussão sobre a constitucionalidade (Brasil, 2018), à luz dos arts. 5º, incs. II, IV, IX, XIV e XXXVI, e 220, caput, §§1º e 2º, da Constituição da República, do artigo 19, da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) sob a seguinte Ementa:

Direito Constitucional. Proteção aos direitos da personalidade. Liberdade de expressão e de manifestação. Violação dos arts. 5º, incisos IV, IX, XIV; e 220, caput, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal. Prática de ato ilícito por terceiro. Dever de fiscalização e de exclusão de conteúdo pelo prestador de serviços. Reserva de jurisdição. Responsabilidade civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais. Constitucionalidade ou não do art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) e possibilidade de se condicionar a retirada de perfil falso ou tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente somente após ordem judicial específica. Repercussão geral reconhecida

Em seu pronunciamento, assim se manifestou o Ministro Dias Toffoli:

(…) a discussão em pauta resvala em uma série de princípios constitucionalmente protegidos, contrapondo a dignidade da pessoa humana e a proteção aos direitos da personalidade à liberdade de expressão, à livre manifestação do pensamento, ao livre acesso à informação e à reserva de jurisdição

No dia 8 de abril de 2024, o dono da empresa X (antigo Twitter) Elon Musk, usou sua plataforma para atacar o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes (Schreiber, 2024), a quem nomeou como “ditador brutal” por haver determinado o bloqueio e/ou exclusão de contas no Inquérito 4874, que apura condutas praticadas pelas chamadas “milícias digitais antidemocráticas”[4].

Segundo a jornalista Eliara Santana, pesquisadora associada do Centro de Lógica, Epistemologia e Historia da Ciência da Universidade Estadual de Campinas (CLE/Unicamp), integrante do projeto Pergunte a um/uma cientista, os ataques de Musk ao Brasil fazem parte de uma estratégia deliberada de desestabilização (Pereira, 2024). Em sua análise, as ações de Elon Musk no Brasil não são meramente caprichos de um bilionário, mas sim parte de uma estratégia coordenada para desestabilizar instituições democráticas e promover narrativas de desinformação alinhadas com a extrema direita, para quem a desinformação se torna um instrumento poderoso, capaz de moldar comportamentos e influenciar decisões políticas em um cenário global onde a extrema direita busca fortalecer sua influência.

De nada adianta a expedição de uma ordem judicial referente à supressão de uma notícia falsa se o meio de veiculação não estiver disposto a cumpri-la.

Em 17 de agosto de 2024, a plataforma X anunciou o fechamento de seu escritório no Brasil, alegando que o Ministro Alexandre de Moraes havia ameaçado prender sua representante legal no país. Essa decisão foi uma resposta a repetidos atos de desobediência e insubordinação de Elon Musk às leis brasileiras e à autoridade do STF. Em 28 de agosto, o tribunal intimou Musk a designar um novo representante legal em um prazo de 24 horas, uma ação considerada inédita, uma vez que ocorreu por meio de uma postagem na própria rede social. A intimação foi um reflexo das tensões entre o empresário e as autoridades brasileiras, culminando em sua marcada resistência às ordens judiciais. Em resposta à situação, Musk prometeu que a Starlink, sua empresa de internet via satélite, funcionaria gratuitamente para os usuários brasileiros, considerando que o bloqueio de contas tornaria impossível o pagamento dos serviços. No entanto, em 29 de agosto, o Ministro Moraes determinou o bloqueio das contas da Starlink para garantir o cumprimento de multas acumuladas superiores a R$ 18 milhões impostas ao X. No dia seguinte, o X declarou que não obedeceria às “ordens ilegais e secretas” do Ministro Moraes e que esperava ser bloqueado em breve no Brasil. Em 30 de agosto, o Ministro exigiu que a Anatel e as operadoras removessem o X do ar, prevendo multas significativas para quem tentasse contornar a proibição (Hising, 2024)

O verdadeiro problema para Balkin (2017), não reside nos algoritmos em si, mas nas pessoas e entidades que os controlam. Há um paralelo histórico nesse argumento, quando Claude Lévi-Strauss descreveu a escrita como um instrumento de controle social. Hoje, as tecnologias digitais desempenham função semelhante, reforçando relações de poder por meio da mediação algorítmica. Portanto, o foco das preocupações deveria ser nas entidades humanas que manipulam essas ferramentas, em vez de no temor popular de que a IA substitua ou domine a humanidade.

Outro ponto de destaque abordado pelo autor é o papel dos governos, que, cientes de que a maior parte da comunicação digital ocorre em plataformas privadas, começaram a cooptar essas empresas para regulamentar o discurso em seus territórios. Ao invés de censurar diretamente os indivíduos, os Estados pressionam as plataformas a moderarem conteúdos considerados inadequados, alterando a maneira tradicional de se gerir a liberdade de expressão. Este fenômeno dá origem ao que o autor chama de “censura colateral”, que ocorre quando intermediários, como provedores de internet ou redes sociais, são pressionados a censurar o discurso de terceiros para evitar sanções.

A censura colateral surge como consequência das regras de responsabilidade atribuídas a esses intermediários, levando-os a práticas excessivas de controle, como bloqueio e filtragem. O objetivo dos governos é, por meio dessa responsabilização, incentivar uma autorregulação que se traduza em restrição de conteúdos, criando um cenário em que a liberdade de expressão passa a ser governada não por decisões judiciais, mas por programadores e algoritmos.

Nesse cenário, Balkin (2017) identifica um segundo problema: a restrição prévia administrativa. Em regimes de restrição prévia, a fala de um indivíduo é barrada até que um algoritmo ou funcionário corporativo autorize sua publicação, muitas vezes sem aviso ou possibilidade de defesa. A inversão do ônus da ação aqui é crítica, pois coloca o orador na posição de precisar de permissão prévia para se expressar, algo que contraria o princípio de liberdade de expressão sem censura antecipada. Além disso, o autor sublinha que, quando a fala é removida ou filtrada por um sistema automatizado, o indivíduo não tem garantias processuais adequadas, como ocorre em um processo penal.

Essa nova regulamentação, além de incômoda pela censura colateral, preocupa por seu viés autoritário, na medida em que elimina a transparência e a responsabilização de quem decide o que pode ou não ser dito, limitando a liberdade de expressão na era digital por mecanismos invisíveis e inquestionáveis.

 

5 ALGORITMOS E COMUNICAÇÃO PÚBLICA: O NOVO DESAFIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A liberdade é o princípio fundante de qualquer regime democrático. Sem ela, o processo de autogoverno — essencial à definição moderna de democracia — se desmancha, cedendo lugar a formas de controle, manipulação e opressão. Neste contexto, a verdade, tal como definida nos quadros da comunicação pública, revela-se como condição inalienável para o exercício pleno dessa liberdade. Entretanto, o cenário contemporâneo, moldado por novas tecnologias e plataformas digitais, coloca a verdade em risco, especialmente diante do fenômeno das fake news, que perverte a comunicação e distorce a percepção coletiva da realidade.

Não é a primeira vez que a democracia se vê ameaçada por forças que tentam manipular a verdade. Contudo, na era da informação digital, essa ameaça se reveste de características inéditas e, em certa medida, mais insidiosas.

O debate em torno da liberdade de expressão e sua relação com a verdade nos obriga a revisitarmos antigas reflexões filosóficas sobre a ética da comunicação pública. O Estado, enquanto garante dos direitos fundamentais, tem o dever de assegurar que a comunicação social se mantenha dentro dos parâmetros da verdade. Não se trata aqui de impor uma censura prévia ou de controlar o discurso — o que seria contrário à própria lógica democrática. O desafio, ao contrário, está em encontrar formas de proteger o espaço público de uma degeneração moral causada pela mentira deliberada e pela manipulação de dados.

A democracia depende de um ambiente onde os cidadãos possam participar livremente do debate público. No entanto, essa participação só pode ser frutífera se for fundada na troca honesta de informações e ideias. Nesse sentido, a liberdade de expressão, como um direito fundamental, deve ser equilibrada pelo dever de falar a verdade. Como advertiu Norberto Bobbio, a liberdade irrestrita pode se transformar no pior inimigo da própria liberdade.

As fake news representam, na sociedade digital, uma forma de dominação. A informação falsa, estrategicamente disseminada para confundir e enganar, subtrai dos indivíduos a capacidade de formar juízos autênticos. Esse tipo de manipulação tem implicações graves não só para a liberdade individual, mas para o próprio funcionamento da democracia. Quando os cidadãos não têm acesso a informações verídicas, sua autonomia é anulada, e eles passam a ser governados por quem controla o fluxo de notícias falsas.

É por essa razão que os esforços para combater a disseminação da desinformação não pode ser vistos como meros debates técnicos ou regulatórios. Estamos lidando com uma questão existencial para a democracia: proteger a verdade significa, em última análise, proteger o direito à liberdade mas, também, o direito à igualdade. O Estado, por meio de leis e instituições, precisa encontrar formas de responsabilizar aqueles que, deliberadamente, distorcem a realidade e manipulam a percepção pública.

As grandes plataformas digitais, que mediam a maior parte da comunicação pública hoje, desempenham um papel central na manutenção ou deterioração da democracia. Seus algoritmos, desenhados para maximizar o engajamento e os lucros, têm sido usados, muitas vezes, para amplificar conteúdos falsos, polarizadores e incendiários, donde cabe perguntar: até que ponto essas plataformas podem ser responsabilizadas pela propagação de fake news? Mais do que isso, qual o papel do poder público na regulação dessas tecnologias?

A resposta a essas perguntas envolve uma revisão crítica do próprio conceito de liberdade de expressão na era digital. Como bem coloca Balkin (2017), as tecnologias de comunicação sempre moldaram a forma como entendemos a liberdade de expressão. Hoje, no entanto, estamos diante de um novo desafio: o poder de decidir o que pode ou não ser visto, lido e compartilhado está, em grande parte, nas mãos de empresas privadas, cujos interesses nem sempre estão alinhados com o bem público. Essa concentração de poder é perigosa para a democracia, pois transforma a comunicação pública em uma arena controlada por algoritmos opacos e, muitas vezes, insensíveis às consequências sociais de suas decisões.

O conceito de policy networks (redes de políticas públicas), formulado por autores como Marsh e Stoker (2010), oferece uma compreensão sobre como os diversos atores — públicos e privados — interagem na formação e implementação de normas. Tais redes, formadas por burocracias especializadas, empresas e grupos de interesse, são vitais para a eficiência e a legitimidade do processo regulatório.

As policy networks referem-se ao conjunto de relações que se formam entre diversos agentes (stakeholders), que podem incluir burocracias governamentais, legisladores, empresas privadas, ONGs, grupos de interesse, sindicatos e acadêmicos. Esses atores colaboram e, por vezes, competem na construção de políticas públicas, especialmente em áreas de alta complexidade técnica, como a regulação econômica, ambiental, de saúde ou de telecomunicações. O conceito parte do pressuposto de que, em sociedades democráticas e complexas, a regulação não é exclusivamente um processo hierárquico, onde o governo central decide e implementa normas de cima para baixo. Ao contrário, ela emerge de uma cadeia de interações entre atores que possuem expertise, recursos e interesses diversos.

Na visão de Marsh e Stoker (2010), essas redes não são estáticas; elas se reconfiguram conforme as questões e os interesses mudam. Para entender como essas redes operam, a abordagem de policy networks oferece um quadro analítico que supera a dicotomia tradicional entre Estado e mercado, reconhecendo que a elaboração de normas regulatórias é, na verdade, o resultado de negociações contínuas entre múltiplas partes interessadas.

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme explorado ao longo deste estudo, a difusão de desinformação representa uma ameaça direta à integridade do discurso público e ao exercício pleno da democracia. A liberdade de expressão, embora fundamental, não pode ser irrestrita, pois deve ser equilibrada com a responsabilidade de não promover ou disseminar falsidades que distorcem a realidade. A preservação de um espaço público baseado na verdade é essencial para garantir a autonomia dos cidadãos e a legitimidade dos processos democráticos.

O fenômeno das fake news, embora moderno em sua manifestação tecnológica, resgata um problema antigo: a manipulação da informação para servir a interesses particulares. No contexto digital contemporâneo, tal manipulação ganha contornos mais amplos e perigosos, dada a velocidade e a amplitude de propagação, potencializadas por algoritmos das grandes plataformas de redes sociais.

Portanto, torna-se imprescindível que as plataformas digitais, governos e cidadãos atuem conjuntamente para mitigar os efeitos devastadores da desinformação. As regulamentações éticas, a promoção da educação crítica e o fortalecimento das instituições democráticas são pilares para a construção de um ecossistema informativo mais justo, plural e transparente. A regulação deve focar não apenas em impedir a disseminação de conteúdos falsos, mas em garantir que os fluxos informacionais respeitem os princípios da liberdade responsável.

Ao direcionarmos nossa atenção para o futuro, torna-se evidente que a jornada em prol da liberdade e da igualdade é repleta de obstáculos e complexidades que não podem ser subestimados. As forças que buscam manipular, dividir e controlar a sociedade são poderosas e, muitas vezes, se escondem atrás de discursos de liberdade irrestrita para justificar suas ações. Contudo, como nos lembra Philip Pettit, a verdadeira liberdade não é apenas a ausência de interferência; é a ausência de dominação. Portanto, para que a liberdade, na sua acepção de não-dominação, se concretize, é imprescindível que as instituições democráticas sejam fortalecidas e que os indivíduos sejam capacitados a resistir a tentativas de controle e manipulação.

O princípio de não-dominação pode ser operacionalizado em contextos variados, desde sistemas jurídicos nacionais até a governança de dados. A proposta é investigar a aplicabilidade prática desse princípio, identificando desafios e possibilidades de sua implementação, especialmente em cenários onde as garantias formais de direitos não são suficientes para proteger os indivíduos contra formas sutis e sistêmicas de controle e opressão. Essa análise deve ser alicerçada nos conceitos de liberdade, igualdade e dignidade humana, reconhecendo que a dignidade é um elemento essencial para a promoção da igualdade e, consequentemente, da verdadeira liberdade.

A não-dominação, entendida como a ausência de controle arbitrário, deve ser o paradigma central para a proteção da liberdade de expressão. Isso não assegura apenas a liberdade individual, mas também a igualdade substantiva, criando um espaço onde todas as vozes podem ser ouvidas e respeitadas, sem temor de repressão ou discriminação.

As agências reguladoras, segundo a perspectiva do neorepublicanismo de Pettit (1997), devem ser projetadas e geridas de maneira a evitar tanto o domínio pelo poder político quanto pela captura de interesses privados. Para esse autor, o controle republicano exige mecanismos de accountability e a criação de uma esfera pública vigorosa, na qual os cidadãos possam participar dos processos decisórios de forma igualitária e transparente. A legitimidade da governança regulatória, desse modo, não se resume à expertise técnica, mas depende de sua capacidade de responder ao bem comum e de ser constantemente avaliada pelos próprios cidadãos.

Por fim, a democracia, como regime de autodeterminação popular, depende de um ambiente onde a verdade seja protegida e promovida, permitindo que os cidadãos participem de forma consciente e informada nos processos decisórios. Sem isso, a liberdade se transforma em dominação, e a democracia em mero artifício retórico, esvaziado de substância.

A democracia, portanto, não é um estado de coisas, mas um processo contínuo que exige, de todos nós, um compromisso com a verdade, com a justiça e com a liberdade. Que saibamos trilhar esse caminho com responsabilidade e sabedoria, conscientes de que ao proteger a verdade, estamos, na realidade, defendendo nossa própria liberdade. O fortalecimento das instituições democráticas e a promoção de uma educação crítica são essenciais para que os cidadãos possam discernir entre informações verídicas e manipulações, contribuindo para um ambiente de comunicação mais ético e saudável.

           

REFERÊNCIAS

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[1] Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Pós-graduada com Especialização em Gênero e Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, Advogada. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0827871638853240. ORCID: https://orcid.org/0009-0002-8739-7866.

[2] O realismo é a posição epistemológica que afirma a existência de coisas reais, independentes da consciência. Essa posição pode se manifestar de diversas formas. A mais primitiva delas, tanto historicamente quanto psicologicamente, é o realismo ingênuo, que não é afetado por qualquer reflexão crítica sobre o conhecimento. (HESSEN, 1980, p. 93).

[3] Deepfake é uma tecnologia que utiliza inteligência artificial (IA) para criar conteúdo audiovisual falso que parece real. Essa técnica combina algoritmos de aprendizado de máquina, particularmente redes neurais, para superpor ou gerar imagens e sons de maneira a reproduzir a aparência e a voz de uma pessoa específica. Os deepfakes podem ser usados para criar vídeos em que indivíduos dizem ou fazem coisas que nunca realmente ocorreram.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito 4.874 DF. Relator Ministro Alexandre de Moraes. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6214799> Acesso em: 16 jun. 2024.

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