Liberdade em Amartya seN
brilho e cegueira[1]
Armando de Melo Lisboa[2]
Universidade Federal de Santa Catarina
amelolisboa@gmail.com
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Resumo
Neste breve ensaio examinaremos a ideia de liberdade em Amartya Sen, o que será percorrido em três etapas. Primeiramente, realçaremos o brilho e a grandeza de sua original abordagem, indispensável para uma humanização das respostas econômicas aos graves desafios modernos. Em seguida, discutiremos os pontos cegos desta sua visão, para, por fim, aventarmos uma hipótese explicativa desta cegueira.
Palavras-chave: Amartya Sen; ensaio.
FREEDOM IN AMARTYA WITHOUT
shine and blindness
Abstract
In this brief essay we will examine the idea of freedom in Amartya Sen, which will be covered in three stages. First, we will highlight the brilliance and grandeur of his original approach, which is indispensable for a humanization of economic responses to serious modern challenges. Then, we will discuss the blind spots in his vision, and finally, we will propose a hypothesis to explain this blindness.
Keywords: Amartya Sen; assay.
LIBERTAD EN AMARTYA SIN
brillo y ceguera
Resumen
En este breve ensayo examinaremos la idea de libertad en Amartya Sen, que se abordará en tres etapas. En primer lugar, destacaremos la brillantez y la grandeza de su enfoque original, que es indispensable para una humanización de las respuestas económicas a los serios desafíos modernos. Luego, discutiremos los puntos ciegos en su visión y, finalmente, propondremos una hipótesis para explicar esta ceguera.
Palabras clave: Amartya Sen; ensayo
1 Lucidez
O sistema comunista que suprime a liberdade é fundamentalmente diferente do capitalismo de vigilância neoliberal que explora a liberdade. (...) Plataformas como Facebook ou Google são novos suseranos. Lavramos incansavelmente suas terras e produzimos dados preciosos, que eles depois devoram. Sentimo-nos livres mesmo sendo completamente explorados, monitorados e controlados. Em um sistema que explora a liberdade, não se forma resistência. A dominação se completa no momento em que coincide com a liberdade. (Byung-Chul Han).
Nossa liberdade é construída sobre o que o outro ignora de nossa existência. (Aleksandr Soljenítsyn).
Estar à vontade em inúmeras casas, línguas e correntes ideológicas talhou a percepção de Amartya Sen[3] da economia ser “um assunto mais vasto”, levando-o a refundar, seminalmente, não apenas a teoria do bem estar, mas especialmente a teoria do desenvolvimento, liberando-a da sua concentração debilitante nos “profundos equívocos desenvolvimentistas” (Sen, 2022, p. 385; 308).
Além do desacerto do reducionismo utilitarista, Sen também enfrentou diretamente as perspectivas deterministas e fatalistas que imperam na análise econômica, e que retratam a economia como um fenômeno natural fora do controle humano. Esta visão doutrinária da economia como uma “ciência da necessidade” é uma concepção extremamente limitada, tóxica, pois exacerba as desigualdades e opressões, a erguendo como uma ciência espúria. Ou seja, constrói uma ciência pessimista, castradora das opções humanas, encurralando-nos num “beco sem saída”.
Nosso bengalês evita estes economicismos vulgares, seja considerando “que fazer o bem não deve ser uma transação”, pois é um imperativo moral; seja descortinando o lugar central que a liberdade tem “no enriquecimento da vida humana ao criar mais espaço para escolhas”, inclusive “a liberdade de produzir mudanças no mundo” (Sem, 2022, p. 115; 403; 358).
Liberdade, em Sen, portanto, não é meramente um ideal abstrato ou princípio formal, mas um valor que conjuga a possibilidade do indivíduo mudar sua própria situação, de moldar realidades sociais inteiramente novas.
Para Sen, a condição de agente é central:
Com oportunidades sociais adequadas, os indivíduos podem efetivamente moldar seu próprio destino e ajudar uns aos outros. Não precisam ser vistos como beneficiários passivos de engenhosos programas de desenvolvimento. (Sen, 2000, p. 26).
Como é sabido, Amartya, na aurora do século XXI, após longas décadas de vigor das teorias desenvolvimentistas, reconceituou, de modo clássico, lapidar e surpreendentemente original, o desenvolvimento como processo de expansão das liberdades. Assim, ao compreender a liberdade não apenas como alicerce do desenvolvimento, mas também como finalidade do mesmo, Sen associou-o incontornavelmente à ideia democrática, pois a liberdade envolve a participação e a construção de consensos através da persuasão e argumentação pública. "Democracia é governo pela discussão, e não apenas sobre votação" (Sen, 2000, p. 416), arremata. Ecos de Santiniketan[4].
Ainda que por caminhos próprios, Sen adere, à “tradição do republicanismo”, onde se ensina que “ser livre é também participar do governo de uma comunidade política que controla o próprio destino” (Sandel, 2023 p. 251).
A vital importância do debate no processo democrático é uma tese que percorre toda a obra de Sen, como, por exemplo, quando abordou magistralmente o problema da fome: “nenhuma grande fome alguma vez ocorreu num país com uma democracia multipartidária com eleições regulares e com uma imprensa razoavelmente livre” (Sen, 2018, p. 82). Inclusive quando da “Nova introdução” (2017) de “Escolha coletiva e bem-estar social” (1970), Sen sublinha uma observação de Frank Knight: “os valores são estabelecidos ou validados e reconhecidos através da discussão, uma atividade que é ao mesmo tempo social, intelectual e criativa” (Sen, 2018, p. 82).
Enfatiza ainda que também James Buchanan pondera que a “governação pelo debate” “é um componente central da democracia”, pois “os valores individuais podem mudar – e mudam – no processo de tomada de decisão” (Sen, 2018, p. 82).
Vemos em Sen, portanto, uma clareza mais-que-cristalina quanto a central importância do momento participativo pré-deliberação na constituição da liberdade social, a qual aprimora as escolhas e dá mais robustez ao processo democrático. A democracia não se reduz meramente a agregar preferências individuais, mas a construção de um bem comum. Esta percepção também já tinha sido exposta em 1959 por Wright Mills: “a liberdade é, em primeiro lugar, a possibilidade de reformular as escolhas existentes, discuti-las – e então a oportunidade de escolher” (Mills, 1975, p. 189).
2 Ofuscamento
Todavia, todo este brilho de Sen quanto a associar a liberdade aos procedimentos democráticos não o levou a problematizar a preocupante erosão dos mesmos nos tempos presentes. Em nenhum momento de sua extensa obra ele se debruça sobre os crescentes sinais de deterioração do debate que imperam no novo mundo digital. Nele, ao contrário da “República das Letras” do século XVIII, há um empobrecimento cívico, onde opiniões divergentes são deletadas e descartadas, e não examinadas dialogicamente. Redes de comunicação e interdependência não se convertem automaticamente “em uma vida pública digna do nome”, pois trata-se de “uma questão moral e política, e não tecnológica”, lembrava Michael Sandel em 1996 (Sandel, 2023, p. 329), ainda na aurora do digital.
A liberdade cada vez mais dista do exercício do autogoverno, concepção na qual o cultivo de virtudes como respeito e tolerância com outros, com o contraditório, tem o maior valor. Apartando-a desta dimensão cidadã, a liberdade é concebida restrita à capacidade de participar de um mercado, dentro do qual cada indivíduo, como seres independentes e autocentrados, livres de vínculos morais e cívicos, escolhe e persegue seus próprios propósitos numa competitiva corrida. Esta perspectiva, distorcendo e desconsiderando o laço social, deixou de perceber que vivemos sob o mesmo teto, o que acaba minando tanto a empatia da condição humana, quanto a confiança em que se assenta toda a vida econômica.
Ora, ora. Ocorre que estes sinais sombrios de esvaziamento da vida cívica já estavam nítidos nos anos 1950, escancarados, por exemplo, por Mills (em “A imaginação sociológica”). Classicamente, adverte W. Mills nesta obra, que “a antítese da sociedade livre” é a sociedade em que triunfa o “robô alegre”.Alerta então para o assustador advento dos “robôs alegres”, que se adaptam as circunstancias e deixam-se “levar pela correnteza”, em decorrência do incapacitante desenvolvimento de um “alto nível de racionalidade e tecnologia”. Estas, ao invés de serem meios de “maior liberdade, na verdade são meios de tirania e manipulação, meios de expropriar a possibilidade mesma da razão, a capacidade mesma de agir como homem livre” (Mills, 1975, p. 187, 191, 183). “A nossa época” (escreve no final dos anos 1950) está a “enfrentar a possibilidade de que a mente humana se possa estar deteriorando qualitativamente e em nível cultural, devido à esmagadora acumulação de meios técnicos” (Mills, 1975, p. 190).
Com o “colapso da suposta coincidência da razão e liberdade”, ascende o “homem dotado de racionalidade, mas sem razão, cada vez mais auto racionalizado e também cada vez mais constrangido”. A “racionalidade sem razão” é aquela que “não está de acordo com a liberdade, sendo, antes, a sua destruidora” (Mills, 1975, p. 185). Há uma total semelhança deste argumento com a tese “da ideia de racionalidade para a de razoabilidade” (Sen, 2011, p. 230), que Amartya Sen desenvolverá mais tarde na sua dura crítica aos “tolos racionais” (à Teoria da Escolha Racional)[5].
Um terceiro elo comum entre Mills e AS é quanto a “variedade humana”, cujo amplo gradiente de tipos ultrapassa o poder explicativo da Psicologia, da Antropologia ou quaisquer outros ramos do conhecimento. O argumento da “humanidade diversa” é decisivo no paradigma seniano, tanto alavancando seu “foco na vida real” (que desembocará no conceito de “capacidades”[6]), quanto sua compreensão da “pluralidade inescapável” de princípios filosóficos, irredutível a serem postas numa métrica unidimensional[7] (o que alicerçará sua crítica à perspectiva filosófica de Rawls). Somos “criaturas com alto grau de indeterminabilidade”, dirá mais recentemente Terry Eagleton (2021, p. 127)[8].
Aplainar as variações e possibilidades humanas numa uniformidade degradante facilita e naturaliza a submissão à ação sórdida do poder arbitrário; ao pesadelo da sociedade como uma precisa e despótica máquina que asfixia tudo que é caprichoso e excêntrico. Uma vez que para esta ótica “somos todos iguais”, podemos então ser aprimorados ilimitadamente pelo controle de nossos hábitos. Este gerenciamento tecnológico dos seres humanos é o âmago do behaviorismo, moderna distopia que preconiza o condicionamento que pastoreia as pessoas para seu inescapável destino social.
Para Mills (1975, p. 177-178), a cultura humana é “uma questão altamente mutável”. Querer explicar o extenso “panorama de tipos humanos [...] em termos de uma teoria da ‘natureza humana básica’ é limitar a própria história humana a uma pequena gaiola árida de conceitos”.
Mas, não identifiquei nenhuma referência a esta clássica análise sociológica de Mills nas principais obras de Sen[9], apesar destas proximidades. Caso Sen considerasse a perspectiva de Mills, estaria alerta para os perversos efeitos do mundo digital, antecipados pelo sociólogo americano há quase sete décadas? Sinceramente, aqui não é um problema de erudição, a qual é quase ilimitada em Sen[10]. A narrativa de AS e “seu vocabulário um tanto absconso” (Maréchal, 2006, p. 181), se reduz em geral, mormente após receber o Nobel em 1998, à uma concepção abstrata e lógica, sem adentrar numa formulação histórico-crítica, como usual no campo da economia política.
“Debater para que?” – é a regra que se impõe cada vez mais. A racionalidade digital, convenientemente, nos poupa tempo. Ela constrói um mundo livre de erros e acidentes, bagunças, suores e odores. Ao invés de interagirmos uns com os outros de forma incerta, mas sinérgica, buscando melhorar nossa vida, o mundo digital amplifica nossa vibração mútua em um nível doloroso. “A natureza fácil e instantânea da existência on-line também aumenta a angústia e a impaciência com as complexidades da vida cívica”, anota Fared Zakaria. Diante das facilidades do mundo digital, “sistemas confusos como democracia liberal, com freqüentes impasses e burocracia ineficiente, parecem toscos e desajeitados”[11].
Não atuamos mais pela “discussão”... Não há lugar para o político no novo mundo digital. Em vez de política, classes, luta ... telas e teclados.A mediação computadorizada da vida social a altera profundamente.Quando as máquinas substituem as relações sociais, abandonamos as reciprocidades orgânicas que entrelaçavam as pessoas.A experiência privada do exercício da “liberdade” no mundo digital se arroga de poder e privilégios privatistas, orgulha um self puramente autônomo. Ela opera desvinculadada grande sociedade, despreocupadade um bem comum, do cuidado cívico com os outros, rejeitados como limitadores coercivos da espontânea singularidade individual.
“O inferno são os outros” é, talvez, a mais famosa percepção de Jean-Paul Sartre. Mas, interpreta Zuboff, ela então “não pretendia ser uma declaração de misantropia, e sim um reconhecimento de que o equilíbrio eu-outro nunca pode ser alcançado” (Zuboff, 2021, p. 555). O padrinho – ou melhor, madrinha – do libertarianismo em voga é Margaret Thatcher e sua notória sentença: “não existe tal coisa como a sociedade: há apenas indivíduos e suas famílias”.
Com o social se tornando “inimigo da liberdade”, se franqueia uma forma reduzida de liberdade sem sociedade (liberdade nua e associal) – “puro instrumento de poder”, revela Wendy Brown (Brown, 2019, p. 58). Quando as relações sociais são um peso coletivo e passam a serem substituídas por máquinas, algoritmos matemáticos, estamos abrindo mão de uma liberdade mais plena e democrática.
A IA, conjugada com a economia em sua forma neurobiológica (que hoje desabrocha com formidável vigor através das técnicas de economia comportamental, neuromarketing e neuroeconomia) são, no conjunto, configurações de engenharia social que não tem nenhum compromisso com o ideal de liberdade, pois expressam arquiteturas/tecnologias de modificação comportamental (explorando nossas vulnerabilidades, ansiedades e inseguranças) que buscam a geração de lucros em primeiro lugar. Em prol de imperativos econômicos, elas, livres de todo tipo de ancoragem e arbitragem, nos capturam, magnetizam,paralisam e pastoreiam.
Ainda que Sen não “mate a bola no peito” por ele magistralmente levantada, esta é a conclusão das mais destacadas recentes investigações sobre a era digital. Entre elas, o referenciado Evgeny Morozov. Ele observa que a “regulação algorítmica”, ao aplainar a imensa complexidade das relações humanas, “nos oferece a boa e velha utopia tecnocrática da política apolítica”. Demonstra ainda que as plataformas são projetadas para escavar “nossa psique tal como as empresas de petróleo escavam o solo”, com os dados “jorrando de nossos reservatórios emocionais” (Morozov, 2018, p. 92; 166).
Na mesma direção, Max Fisher indica que “o Vale do Silício começou a futricar em um hardware mais complexo do que qualquer semicondutor ou computador: a mente humana” (Fischer, 2023, p. 33). A reprogramação do nosso cérebro modifica profundamente quem somos, denuncia celebremente Nicholas Carr (2011).
Também Giuliano da Empoli, em obra já clássica (“Os engenheiros do caos”), sugere uma elucidadora metáfora: a chegada do Big Data é comparável “à invenção do microscópio” (Empoli, 2020, p. 152), pois permite ver a sociedade em toda a sua complexidade, através de milhões de redes entre indivíduos, como se fosse um “olho de Deus”, uma visão que tudo visse.
Por sua vez, o volumoso estudo de Shoshana Zuboff (“A era do capitalismo de vigilância”) trará um conclusão inspirada na tipologia polinyana. Com as atuais tecnologias, “o comportamento humano” é a “quarta mercadoria fictícia”:
As três primeiras mercadorias fictícias de Polanyi – terra, trabalho e dinheiro – estavam sujeitas à lei. Embora essas leis tenham sido imperfeitas, as instituições da lei trabalhista, da lei ambiental e da lei bancária são estruturas reguladoras voltadas para a defesa da sociedade (e da natureza, da vida e da troca) contra os piores excessos do poder destrutivo do capitalismo bruto. A expropriação da experiência humana por parte do capitalismo de vigilância não enfrentou tais impedimentos. (Zuboff, 2021, p. 604)
Obviamente, não foram barreiras ideológicas que impediram Sen de se aproximar de Mills ou de adotar o linguajar de Karl Polanyi, clássicos autores que, grosso modo, também perfilam no mesmo campo social-liberal onde AS vive. Por fim, para sacramentar nossa crítica à miopia de Sen, recorremos a, talvez, maior filósofa do século XX e que, portanto, configura entre as grandes incontornáveis presenças daquele campo: Hannah Arendt.
Arendt, décadas atrás, buscou entender as origens do totalitarismo: decorrem da “atomização” destruidora dos laços de confiança – uma “situação antissocial” que, potencializando a solidão (sentimento insuportável de abandono e de perda de confiança em si próprio e no mundo), “contém um princípio que pode destruir toda forma de vida humana em comum” (Arendt, 1989a, p. 531). Ela também antecipou, em 1956, o potencial destrutivo do behaviorismo:
O problema das teorias modernas do behaviorismo não é que estejam erradas, mas que podem vir a tornar-se verdadeiras, que realmente são as melhores conceituações possíveis de certas tendências óbvias da sociedade moderna. É bastante concebível que a era moderna – que começou com um surto tão promissor e sem precedentes da atividade humana – possa terminar na mais mortal e estéril passividade que a história já conheceu (Arendt, 1989b, p. 335).
3 A (in)compreensão da tecnologia em Sen.
As mesmas forças que promovem a liberdade e a riqueza também destroem as capacidades humanas, geram desigualdades e pobreza e têm uma influência despótica na vida das pessoas. Não pode haver civilização sem barbárie, catedrais ou corporações sem trabalho árduo e medo da penúria. O problema da humanidade não é simplesmente falta de poder ou de recursos, mas as próprias aptidões que ela desenvolveu de maneira tão magnífica. (Terry Eagleton).
É inestimável a monumental contribuição de Sen para um desenvolvimento mais humano, restaurando de forma inelutável a legitimidade das investigações em ética econômica. Todavia, porque sua relevante teoria das capacidades nos incapacita a tomar uma posição diante do sombrio alto preço de uma vida atomizada, reduzida e administrada, exacerbada com a ascensão das big tech? Será o valor heurístico do paradigma seniano corroído por não desvelar os constrangimentos que a liberdade, cada vez mais associada à uma concepção mercadológica e não a um inalienável direito humano, está a sofrer no mundo digital? A questão não radica simploriamente nos limites de sua original combinação crítica de uma abordagem liberal e microeconômica da teoria do bem estar social com o ar rarefeito da especulação filosófica pouco afeita a compreensão do processo histórico.
Ocorre que a nobre e louvável preocupação pela autodeterminação humana de Sen em nenhum momento problematiza a dimensão tecnológica[12]. Nosso nobel pressupõe, otimisticamente, que a mesma sempre é meritória, pois inerentemente orientada para o progresso social.No caso do universo digital, estes traços acríticos diante da inovação como fetichese agudizam em geral, afetando muitos e muitos e não apenas Amartya Sen.
O caráter emancipatório da tecnologia não é uma dádiva que emerge automática e despretensiosamente, mas definido, contido ou acelerado, pelo jogo de forças e estruturas postas na sociedade, do qual tanto brota quanto é uma dimensão constituinte. Depositar fé nas big tech é tão ingênuo quanto recorrer as divindades para explicar os fenômenos naturais e legitimar a ordem social.
Nos primórdios da cibercultura, o sonho utópico e esperançoso pariu a internet, com a ágora eletrônica (viralizadacom o sucesso da inovação e produção utilizando software livre, paradigma onde Linux é um caso emblemático), ao ultrapassar a hierarquia fordista, performatizando uma tecnologia redentora. Outro exemplo icônico é a Wikipedia, enciclopédia escrita por seus próprios usuários[13]. O fato de nos últimos vinte anos nada surgir assemelhado à Wikipedia confirma que este modelo não se tornou padrão, mas é a exceção, ou seja, apenas uma efêmera florescência do “curto verão da internet livre” (Foleto, 2021, p. 178).
Contudo, esta aura da adorável graça que reveste o digital segue viva. Ou seja, mesmo que as maiores empresas globais sejam as Big Data (a ultra rapidez desta escalada colossal foi sem precedentes), ultrapassando as Big Oil, Big Food e Big Pharma, estas plataformas tecnológicas globais ainda são vistas como inofensivas e não associadas a projetos de dominação do mundo.Quaisquer críticas – sem a qual não há um justo balanço das novas tecnologias – que parta dos seus laços com o grande capital financeiro ou de seu modus operandi geopolítico, logo são carimbadas como luditas e desacreditadas.
Por outro lado, a regulação do setor digital, de modo a gerar uma concorrência que permita a ele cumprir suas promessas, é um desafio tão monumental que aparenta ser impossível, dada a acelerada velocidade das inovações digitais[14]. É tal o grau de liberdade irrestrita que Andy Grove, ex-CEO da Intel, declara desafiadora e celebrativamente que “a tecnologia de ponta corre três vezes mais rápido que os negócios normais. E o governo anda três vezes mais devagar que os negócios normais. Então temos uma diferença de nove vezes. O que você quer fazer é se assegurar de que o governo não atrapalhe e atrase as coisas” (Zuboff, 2021, p. 134).
Assim, surfando na californiana ideologia da New Age, as grandes empresas do Vale do Silício, dificilmente encontram restrições e regulações sociais que coíbam ou inibam seus sinistros apetites. “A liberdade do lobo quase sempre significa a morte do cordeiro”, advertiu Isaiah Berlin, um dos maiores liberais do século XX[15].
4 E então? (Epílogo).
Se considerarmos as três célebres opções de Albert Hirschman diante de uma situação política, exit, voice ou loyalty, apostamos no mecanismo do exit, enquanto a democracia se baseia no direito de voice (Nick Land, “The dark enlightenment”[16]).
A democracia só se impôs há pouco mais de um século[17]. Muitos ainda a consideram "burguesa". Infelizmente, a ideia democrática é frágil, pois “sempre vulnerável a um ataque por dentro”. “Para não trair sua própria natureza”, descortina Sergio Abranches, ela deve permitir a ação de seus inimigos (Abranches, 2020, p. 125; 245).
Presenciamos a crescente dissociação entre liberdade e democracia (entendida como práxis dialógica e participativa), a qual está legitimando que parte significativa das elites globais não tenha compromisso com a democracia, ao contrário. Hoje o fantasma que assombra a sociedade são as direitas radicais e suas distopias neorreacionárias[18]. Para elas, uma coisa é liberdade; outra democracia. A liberdade como participação política está cada vez mais ameaçada ou mesmo negada em muitos países que até a poucopareciam ser democracias consolidadas. Com autoridade, John Gray, conclui seu “breve ensaio sobre a liberdade humana” pronunciando que “novas espécies de despotismo surgem em muitas partes do mundo. Governos contemporâneos recorrem às mais recentes tecnologias para desenvolver técnicas hipermodernas de controle muito mais invasivas que as das tiranias tradicionais” (Gray, 2018, p. 113).
Não resta dúvida que foco conceitual de Amartya Sen possibilita que vidas atrofiadas superem carências e possam se expandir, sendo de extrema importância num mundo com tantas insuficiências e desigualdades. Em que pese esta acuidade, quando posto diante da avassaladora e contemporânea expansão dos regimes iliberais antidemocráticos, entrincheirados nas liberdades econômicas; na glorificação da iniciativa do eu singular e viril, desancorada do em-comum; e na rejeição de um futuro democrático e compartilhado, sua formidável visão do desenvolvimento como liberdade revela-se débil e impotente, senão fantasiosa e traiçoeira.
Referências
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[1] Uma versão preliminar deste texto guiou parte da nossa exposição sobre “Amartya Sen” no Mini-Curso “Economistas como filósofos; filósofos como economistas”. Sepex/UFSC, 05 nov. 2024.
[2] Professor no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (1979), mestrado em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (1988) e doutorado em Sociologia Econômica pela Universidade Técnica de Lisboa (2004).
[3] Para uma breve apresentação de Amartya Sen ver Lisboa (2023).
[4] Cidade universitária fundada por Rabindranath Tagore (primeiro indiano a ganhar o nobel), onde A. Sen nasceu e viveu parte de sua infância. Ver resenha do livro de memórias de AS indicada na nota 2.
[5] A qual é apresentada em texto conexo a este (“Justiça em Amartya Sen, Rawls e mais além”) e que conduziu a segunda parte da nossa exposição sobre Sen na Sepex (conforme nota 1).
[6] “As capacidades são claramente não comensuráveis, pois são irredutivelmente diversas” (Sen, 2011, p. 274).
[7] Para Sen, a longa tradição utilitarista, ao buscar a “sensação de segurança derivada de uma homogeneidade comensurável", reduziu a diversidade da vida a uma uniformidade mensurável e árida, rebaixando a razão ao autointeresse e ao cálculo arredio à moral. Assim, ela agudizou um “medo da incomensurabilidade”. Mas a incomensurabilidade, como parte da condição humana, não “torna difícil fazer escolhas sensatas” (Sen, 2011, p. 273-275).
[8] De fato, Eagleton é duro crítico dos pós-modernismos que, “enamorados das diferenças”, negligenciam “nossas características comuns”. Sugere que “as diferenças entre os seres humanos são vitais, mas não são suficientemente sólidas para servir como base a uma ética ou a uma política” (Eagleton, 2021, p. 108).
[9] Até onde minha varredura alcançou, duas referências a Wright Mills(“A elite do poder”; e “Consumption theory without transitive indifference”, informado como “não publicado”)surgem apenas na imensa bibliografiade “Escolha coletiva e bem-estar social”, confirmando a fina malha teórica de Sen e sua voracidade intelectual. Mas, pelainformação onomásticada mesma, inexiste citação à Mills ao longo das suas quase seiscentas páginas.
[10] Em suas obras, são centenas as referências. Em “A ideia de justiça”, por exemplo, temos 698 nomes mencionados no índice onomástico.
[11] Zakaria (2024, p. 206). O “solucionismo tecnológico”, também resume Leonardo Foleto (2021, p. 183), é “a ideia de que basta um software, um algoritmo, mais tecnologia, para resolver e consertar todos os problemas do mundo. É a busca de uma saída mágica, rápida e supostamente indolor que descarta as alternativas institucionais ou construídas pela organização da sociedade civil, mais lentas e complexas, e que pode ser comprada pronta, oferecida por empresas criadas ou de alguma forma relacionadas aos serviços fornecidos pelas big techs”.
[12] Sen praticamente não reflete sobre “tecnologia”, vocábulo inexistente nos minuciosos “índices remissivos” de suas obras. Em verdade, surge apenas no seu livro de memórias, ao registrar a controvérsia entre Gandhi e Tagore, vividamente acompanhada em Santiniketan. Gandhi defendia ardorosamente que “todos usassem a charka – a primitiva roda de fiar (...) uma das fundações de sua economia alternativa, e um método de elevação pessoal”. Tagore, que “discordava totalmente, (...) via razões para comemorar o papel libertador da tecnologia moderna na redução da labuta, bem como da pobreza”. Também duvidava que “a fiação contínua com uma máquina primitiva eleva a mente: ‘a charka não exige que ninguém pense’, disse a Gandhi” (2022: p. 98, grifo nosso).
Sen, ainda jovem, tendo a charka se tornado “um enorme símbolo da atitude indiana para com o progresso humano”, tentou fiar algumas vezes. Revela então que, além de se entediar, se [...] perguntava como era possível que alguém tão grande como Gandhi atribuísse tanto valor a uma atividade extraordinariamente mecânica, repetitiva e estúpida. Também me perguntava como era possível que ele insistisse tanto em submeter as pessoas a um trabalho tão fatigante, que podia ser evitado com o uso de simples inovações técnicas. Uma modesta alteração tecnológica tornaria as pessoas mais produtivas e mais satisfeitas (Sen, 2022, p. 99). Outra rara ocasião é no breve artigo “Dez teses sobre a globalização”: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0909200106.htm.
[13] Richard Barbrook, tanto em “Futuros imaginários” (2007), quantono precursor ensaio “A ideologia californiana” (escrito em 1995junto com Andy Cameron, disponível em: https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2019/02/ideologia-californiana_revisado1.pdf; https://networkcultures.org/wp-content/uploads/2015/10/0585-INC_NN10-totaal-RGB.pdf)perfaz uma arguta análise dos novos dispositivos de dominação travestidos de interatividade que se robustecem com a leniência política e na ausência da crítica.
[14] Jean Tirole (2020, especialmente capítulos 14 e 15) traz um sintético balanço das imensas dificuldades da arbitragem neste campo.
[15] Com quem Sen conviveu e dialogou.
[16] Nick Land, um dos principais ideólogos das Big Tech e extremamente influente junto a perturbadora “doutrina do Vale do Silício”, sugere que a democracia “não passa de um mito do iluminismo” (conforme Hui, 2020, p. 55).
[17] “Quando a palavra ‘democracia’ começou a ser usada com alguma frequência, entre 1770 e 1800, foi empregada quase exclusivamente em sentido vexatório e ofensivo. Os revolucionários franceses desdenhavam da ‘democracia’ quase tanto quanto os americanos. Ela era vista como anarquia, falta de governo e caos sem controle”, lembra David Graeber (2015: p. 171). Corroborando esta realidade, Pierre Rosanvallon anota que “o termo democracia só conseguiu se impor progressivamente. A palavra ‘democracia’ foi durante muito tempo considerada problemática” (2021, p. 226).
[18] Os neolibertários, argumenta Pablo Stefanoni (2022: p. 44), “defendem a liberdade pessoal, mas não a liberdade política”. Por trás deste raciocínio está a ideia de que “enquanto a tecnologia e o capitalismo fizeram a humanidade avançar nos últimos dois séculos, a democracia só fez mal”. Outro amplo e atual balanço dos “radicais do mercado e a ameaça de um mundo sem democracia” nos é brindado por Quinn Slobodian (2024).