O CAPITAL SOCIAL COMO PILAR DE AUTONOMIA E RESILIÊNCIA EM TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS
Josué de Lima Carvalho[1]
Universidade da Amazônia / Universidade Federal Rural da Amazônia /Universidade Federal de Santa Maria
josue.carvalho@ufra.edu.br
Rossicléa Ferreira do Nascimento[2]
Universidade da Amazônia
rossinascimento@gmail.com
Douglas Junio Fernandes Assumpção[3]
Universidade da Amazônia
douglas.assumpcao@unama.br
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Resumo
Este estudo investiga o papel do capital social nas comunidades quilombolas, destacando como ele contribui para a autogestão, a coesão comunitária e o fortalecimento dos direitos territoriais. A partir de uma análise qualitativa e textual dos textos selecionados, utilizando o software Iramuteq, foram realizadas análises de nuvem de palavras e de similitude para identificar temas centrais e inter-relações entre conceitos relevantes. Os resultados mostram que o capital social nessas comunidades vai além das redes de apoio interno, estendendo-se à luta pelo reconhecimento institucional e ao uso coletivo dos recursos. A análise evidencia a importância das práticas de autogestão e da reciprocidade como pilares de autonomia e resiliência, essenciais para a sustentabilidade e preservação da identidade quilombola. Estudos futuros poderiam explorar a interação entre capital social e políticas públicas, além de investigar o impacto das novas tecnologias na mobilização social das comunidades.
Palavras-chave: Capital social; comunidades quilombolas; autogestão; reconhecimento territorial.
SOCIAL CAPITAL AS A PILLAR OF AUTONOMY AND RESILIENCE IN QUILOMBOLA TERRITORIES
Abstract
This study investigates the role of social capital in quilombola communities, highlighting how it contributes to self-management, community cohesion, and the strengthening of territorial rights. Through a qualitative and textual analysis of the selected texts, using the Iramuteq software, word cloud and similarity analyses were conducted to identify central themes and interrelations among relevant concepts. The results show that social capital in these communities goes beyond internal support networks, extending to the fight for institutional recognition and the collective use of resources. The analysis highlights the importance of self-management practices and reciprocity as pillars of autonomy and resilience, essential for the sustainability and preservation of quilombola identity. Future studies could explore the interaction between social capital and public policies, as well as investigate the impact of new technologies on the social mobilization of these communities.
Keywords:Social capital; quilombola communities; self-management; territorial recognition.
EL CAPITAL SOCIAL COMO PILAR DE AUTONOMÍA Y RESILIENCIA EN TERRITORIOS QUILOMBOLAS
Resumen
Este estudio investiga el papel del capital social en las comunidades quilombolas, destacando cómo contribuye a la autogestión, la cohesión comunitaria y el fortalecimiento de los derechos territoriales. A partir de un análisis cualitativo y textual de los textos seleccionados, utilizando el software Iramuteq, se realizaron análisis de nube de palabras y de similitud para identificar temas centrales e interrelaciones entre conceptos relevantes. Los resultados muestran que el capital social en estas comunidades va más allá de las redes de apoyo interno, extendiéndose a la lucha por el reconocimiento institucional y al uso colectivo de los recursos. El análisis evidencia la importancia de las prácticas de autogestión y de la reciprocidad como pilares de autonomía y resiliencia, esenciales para la sostenibilidad y preservación de la identidad quilombola. Estudios futuros podrían explorar la interacción entre el capital social y las políticas públicas, además de investigar el impacto de las nuevas tecnologías en la movilización social de las comunidades.
Palabras clave:Capital social; comunidades quilombolas; autogestión; reconocimiento territorial.
1 INTRODUÇÃO
O capital social tem recebido uma atenção crescente no contexto do desenvolvimento comunitário contemporâneo. Enquanto recurso intangível, ele desempenha um papel crucial no fortalecimento das relações e na construção de redes de apoio, especialmente em comunidades tradicionais. No caso das comunidades quilombolas e ribeirinhas, o capital social se revela como um fator central para a promoção do bem-estar coletivo e para a preservação dos valores culturais, funcionando como o "coração pulsante" dessas comunidades, conforme apontado por Pistore e Paim (2013).
Definido por meio de redes de interação e normas compartilhadas, o capital social se manifesta nas ligações familiares, nas associações comunitárias e nos laços de amizade, que são mobilizados principalmente em momentos de crise, visando superar desafios e alcançar objetivos comuns (Moser, 1996; Narayan, 1995). Além de promover a coesão social, o capital social é também um recurso estratégico que contribui para o desenvolvimento econômico e sustentável, ajudando a construir uma sociedade mais integrada e colaborativa.
O conceito de capital social, com raízes em estudos sociológicos de autores como Tocqueville e Lyda Hanifan, evoluiu ao longo do tempo para abranger uma visão mais ampla de interdependência entre indivíduos e grupos (Fukuyama, 2000). Essa interdependência é essencial para o fortalecimento de práticas democráticas, cooperação mútua e solidariedade. No entanto, os desafios enfrentados pelas comunidades tradicionais para acessar outros tipos de capital (como econômico e cultural) destacam a singularidade e complexidade do capital social, que assume formas diferentes em contextos diversos.
Neste estudo, o foco está em entender como o capital social se manifesta em três diferentes trabalhos sobre comunidades quilombolas: uma tese, um estudo de caso e um artigo científico, todos voltados para aspectos de autogestão, gestão social do território e reconhecimento institucional. Esse trabalho visa explorar como as práticas de autogovernança e os laços sociais nessas comunidades se alinham (ou divergem) das definições clássicas de capital social, destacadas nas teorias de Bourdieu (1986), Coleman (1988) e Putnam (1993).
Ambos os trabalhos que fundamentam este estudo foram realizados por membros do grupo de pesquisa Gesdel (Grupo de Pesquisa em Gestão Social e Desenvolvimento Local), formado por alunos, pesquisadores e professores da Universidade da Amazônia (UNAMA). O Gesdel foi estabelecido em 2012 e atua principalmente nas áreas de Ciências Sociais Aplicadas e Administração, sendo liderado por Mário Vasconcellos Sobrinho e Ana Maria de Albuquerque Vasconcellos.
A atuação do Gesdel se destaca pela ênfase na gestão social e no desenvolvimento local, abordando questões complexas que envolvem governança, administração pública, educação, saúde, meio ambiente e tecnologias sociais. Suas pesquisas são direcionadas para o desenvolvimento sustentável centrado na sociedade e nas comunidades locais, o que é particularmente relevante para o contexto amazônico, onde as dinâmicas sociais e territoriais requerem abordagens inovadoras e inclusivas.
O grupo realiza estudos em uma variedade de territórios, como cidades, metrópoles, unidades de conservação, assentamentos rurais e urbanos, com um foco especial nas comunidades tradicionais da Amazônia Paraense. Ao integrar alunos e profissionais em formação com pesquisadores experientes, o Gesdel fomenta uma rede colaborativa que valoriza a aplicação prática da pesquisa para resolver problemas locais, buscando sempre fortalecer os laços sociais e contribuir para o desenvolvimento sustentável e a autonomia das comunidades envolvidas.
Essa combinação de diferentes perfis e níveis de experiência permite que o Gesdel aborde o desenvolvimento local de forma interdisciplinar, conectando teoria e prática. Além disso, o grupo participa de redes de pesquisa, como a Rede de Pesquisadores em Gestão Social, que ampliam seu alcance e impactam positivamente nas políticas públicas e práticas de gestão na região amazônica.
Para tanto, assume-se como pergunta problema: Como o capital social, conforme evidenciado na literatura amazônida, influencia a autogestão e o processo de reconhecimento das comunidades quilombolas em seus territórios?
Assumindo como objetivo geral o de: Analisar, a partir da literatura amazônida, o papel do capital social na estruturação das práticas de autogestão e no fortalecimento dos direitos de reconhecimento territorial das comunidades quilombolas, considerando as contribuições das teorias de capital social.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
A seção a seguir explora as diversas perspectivas teóricas e contribuições dos principais estudiosos sobre o conceito de capital social. Partindo das reflexões de Alexis de Tocqueville sobre a democracia americana até as análises contemporâneas de Francis Fukuyama sobre as relações entre confiança, normas sociais e desenvolvimento econômico, será apresentado um panorama das interpretações e aplicações do capital social. Essa abordagem busca destacar a relevância desse conceito para compreender as dinâmicas sociais, políticas e econômicas que moldam as relações humanas e promovem o fortalecimento da solidariedade e do bem comum.
2.1 NUANCES SOBRE O CAPITAL SOCIAL
O conceito de capital social, embora complexo, demonstra uma contribuição inegável para o desenvolvimento territorial e sustentável, especialmente em comunidades tradicionais. Dispõe da possibilidade em oportunizar qualidade de vida e manutenção das identidades culturais via a dialogicidade entre os indivíduos preconizada pela teoria de Sócrates, aperfeiçoam tanto a democracia quanto o capital social, concebendo uma sociedade mais integrada e cooperativa.
A importância das relações sociais para a democracia já era reconhecida por Tocqueville no século XIX. Para ele, os laços entre indivíduos, baseados em normas e confiança, eram fundamentais para a ação coletiva e a preservação da liberdade e igualdade (Fernandes, 2002).
A visão clássica do capital social continua relevante na contemporaneidade, adaptando-se a novos contextos e desafios resultantes da globalização. Como consequência novas formas de comunicação e interação, proporcionadas pelas tecnologias digitais, tanto ampliam as possibilidades de conexão e colaboração, quanto podem fragilizar os laços comunitários mais tradicionais.
Nesse contexto, a construção, manutenção e expansão do capital social exige um esforço consciente e constante para fortalecer os vínculos locais, promovendo a participação cidadã e o diálogo tão necessário entre diferentes os atores sociais que compõe a sociedade.
Portes (2000) em seu estudo comenta a origem do conceito na ótica de diversos autores e suas diferentes perspectivas acerca do assunto, dentre eles Bourdieu, Glenn Loury e James Coleman.
Na ótica de Bourdieu (1986) o capital social é compreendido como recursos acessíveis aos indivíduos com uso de redes de relações sociais. Moeda essa de valor incalculável no contexto competitivo atual (Portes,2000). À vista disso, Bourdieu ressalta a relevância da interconexão do capital social com outros capitais e, evidencia que todos podem ser convertidos em capital econômico, nesse sentido trabalha a conversibilidade dos capitais.
Como pressuposto Bourdieu (1986), sustenta que os capitais das relações, cultural, econômico assim como os demais são fatores interdependente, e que cada um pode ser transformado em outro capital. O primeiro quando forte e atuante pode abrir precedente para uma colocação profissional diferenciada, é possível a obtenção de informações privilegiadas, e oportunidades que conduzem a ganhos econômicos. (capital econômico). O segundo, competência, habilidades dissemelhantes podem possibilitar o acesso a colocações sociais de maior prestígio, logo, tem potencial para gerar maiores rendimentos recursos econômicos. Observa-se, que a conversibilidade dos capitais não tem formato linear, portanto, barreiras que dificultam a dinâmica existem e, precisam ser trabalhadas para “quebra” da rigidez de acordo com a natureza de cada capital, considerando que são dinâmicas diferentes, para que as transformações sejam possíveis.
Registra-se que as ações do capital social têm como base valores, reciprocidade, obrigações de fazer, sem contratos formais e com horizonte temporal incerto, são relações construídas ao longo do tempo.
A perspectiva de Bourdieu (1986) quanto ao capital social, são conexões entre indivíduos. Sentimento de pertencimento a grupos, reconhecimento, acesso a recursos proporcionados pelos respectivos grupos e entre grupos. Os recursos funcionam como “ponte” na concepção de mudanças e transformações de vidas.
Quanto maior o leque de conexões maior é o poder de influência nas decisões e indicações em determinado campo de atuação. Cada campo ou lócus de atuação das relações, possui suas regras e hierarquia
O trabalho de Glenn Loury de enfatiza o capital cultural, como fator precípuo ao demonstrar que grupos minoritários via redes sociais sofrem impactos negativos a mobilidade social, haja vista, que enfrentam grandes barreiras no alcance desse capital (Portes, 2000). Glenn Loury, destaca que esse comportamento mantém as lacunas raciais em diversas áreas como educação, emprego, entre outras. Seu trabalho acentua a necessidade de políticas públicas para mudanças com objetivo de minimizar as desigualdades sociais.
É perceptível no estudo do respectivo autor a preocupação com as desigualdades sociais, em especial as raciais. Fatores como conhecimentos, habilidades e valores, impactam e elevam o hiato em relação aos grupos minoritários fato que limita aquisição de capital cultural. Essa disparidade é um fator determinante e impeditivo de bem-estar equitativo aos indivíduos que compõem tal universo.
Na abordagem de James Coleman destaca-se a interdisciplinaridade apresentada envolvendo a sociologia, no que se refere as normas e as relações sociais, e a economia, que se apresenta como postura individualista racional (Portes, 2000).
O capital social na perspectiva de Coleman é um instrumento que contribui para a compreensão da ação social, ou seja, como os indivíduos se comportam em um contexto social específico. Suas ações e reações cooperam na construção para relações positivas e negativas que favorecem ou não o alcance dos objetivos dos indivíduos. Percebe-se o capital social como uma trama que conecta as ações individuais aos resultados coletivos, e por conseguinte ressoam dos vínculos sociais na vida cotidiana.
Coleman em seus estudos propôs uma divisão do capital em três tipos: capital financeiro, recursos disponíveis que podem ser investidos na educação dos filhos. Capital humano, relacionado ao nível de educação dos pais, com reflexos na capacidade dos genitores no apoio ao aprendizado da prole. Capital social, equivale ao tempo e ao esforço investidos na formação de seus rebentos, desse modo, fortalecer laços promovendo o desenvolvimento do capital humano.
Coleman ratifica atuação do capital social como catalisador na formação do capital humano, isto é, os laços familiares podem potencializar o impacto do capital financeiro e do capital humano dos pais no desenvolvimento dos filhos.
O capital social conforme as lentes de Coleman (1988) caracteriza-se em três dimensões: a) expectativas, obrigações e confiança: apresenta as relações sociais baseadas em expectativas mútuas e na confiança. b) canais de informação: os canais apresentam celeridade, eficiência e menor custo com uso de redes sociais. c) normas sociais: são as trilhas para direcionar o comportamento dos indivíduos, tanto individual quanto coletivamente.
E por fim, Coleman trabalha em sua pesquisa e apresenta duas estruturas sociais que colaboram para aprimorar o capital social: a) as redes fechadas, tem como características forte laços entre os membros, propicia a cooperação e a punição de comportamentos. b) organizações sociais: estas quando utilizadas para o fim estabelecido, podem na sequência sofrer adaptações para novos objetivos. Essa dinâmica expande as possibilidades de ação dos indivíduos.
A concepção de capital social na perspectiva de Robert Putnam tem como tese basilar para a boa performance das instituições e a evolução econômica das comunidades os elementos: relações sociais, as normas e a confiança (Pistore; Paim, 2013).
As relações entre indivíduos e grupos propiciam o trânsito fácil da cooperação, da inovação com vistas a resolução de obstáculos coletivos e o bem-estar dos atores sociais. É o elemento condutor da dinâmica do capital social, com papel substancial às redes sociais não se limitam às plataformas digitais, compreendem os mais diversos tipos. Contribuem para a democracia no âmbito das comunidades. Promove a coesão social com vistas a redução de conflitos e desigualdades, considerando, a participação cívica, o engajamento dos participantes, cujo elemento central tem na confiança a “força motriz” para a participação da vida política, a defesa dos valores democráticos e qualidade das instituições.
Apesar da subjetividade desse elemento, ele é vital na edificação de conexões duradouras, propicia a longevidade das relações no tecido social.
Fukuyama (2000) em sua abordagem acerca da constituição do capital social constata a a multiplicidade de origens como, interações estratégicas, instituições e processos culturais de longa duração. Destaca o papel imprescindível da cultura na formação de normas sociais e na promoção da cooperação.
O partilhar de valores e crenças comuns, levam a amplificar o senso de identidade e pertencimento que favorece a colaboração e a solidariedade. As normas sociais estabelecidas pela cultura incentivam a parceria, a reciprocidade e cria um ambiente propício para a concepção de relações sociais mais fortes e longevas.
Fukuyama (2000) destaca o caráter mutável e em constante transformação da cultura, sob a influência de diversos fatores, como as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas, as impactam as relações dos atores sociais.
Para estratégias de expansão do capital social no entendimento de Fukuyama (2000) faz-se necessário investimento em educação, provisão de bens públicos (segurança, justiça e direitos de propriedade), fortalecimento da sociedade civil com atuação da participação dos cidadãos, necessário também, incentivar a colaboração de diferentes setores da sociedade.
2.2 O PAPEL DO CAPITAL SOCIAL NO FORTALECIMENTO DA SOLIDARIEDADE E DO BEM COMUM
Observa-se, que o florescer quantitativo de capital social é um processo lento e complexo, que demanda atuação continuada e persistência de diferentes atores sociais. O Estado tem um papel significativo nesse processo, no entanto, não pode agir sozinho, faz-se essencial a participação da sociedade civil, com suas diversas organizações e atores para contribuir na confecção de uma manta a coesa, com valores e práticas que promovam a solidariedade e o bem comum. A seguir apresenta-se uma tabela com os respectivos autores trabalhados no estudo com características e contribuições.
Quadro 1 – Autores de grande contribuição a Teoria do Capital Social.
Autor |
Período |
Foco |
Características do capital social |
Contribuições para o conceito |
Alexis de Tocqueville |
1835 |
Democracia americana |
Capacidade de associação, participação cívica, "arte de associação". |
Pioneiro na identificação da importância das relações sociais para o funcionamento da democracia. |
Lyda Hanifan |
1916 |
Comunidades rurais |
Cooperação, redes de relações, benefícios mútuos. |
Primeira a utilizar o termo "capital social" e a relacioná-lo ao desenvolvimento comunitário. |
Pierre Bourdieu |
Século XX |
Sociologia |
Recurso social, desigualdade, reprodução social. |
Enfatizou o caráter desigual do capital social e sua relação com outras formas de capital (econômico, cultural). |
James Coleman |
Século XX |
Sociologia |
Recurso social, eficácia coletiva, normas sociais. |
Relacionou o capital social com a capacidade das comunidades de resolver problemas coletivos. |
Putnam |
Século XX |
Ciência política |
Confiança social, participação cívica, capital social cívico. |
Popularizou o conceito e o associou à qualidade da democracia e ao bem-estar social. |
Francis Fukuyama |
Século XX |
Ciência política |
Confiança, normas, redes sociais. |
Realizou ampla revisão histórica do conceito, destacou a importância de Tocqueville e a relação entre capital social e desenvolvimento econômico. |
Fonte: Elaborado pelos autores (2024).
O conceito de capital social evoluiu significativamente ao longo do tempo, refletindo diferentes perspectivas teóricas e contextos históricos. Desde os primórdios em que Alexis de Tocqueville (1835) destacou a "arte de associação" como uma característica fundamental da democracia americana, até os estudos contemporâneos de Francis Fukuyama, o capital social tem sido debatido em termos de sua relevância para o desenvolvimento social, político e econômico.
Tocqueville, em Democracia na América, foi pioneiro ao identificar a importância da capacidade de associação e da participação cívica no fortalecimento da democracia. Ele ressaltou como as redes sociais e o engajamento cívico eram essenciais para o funcionamento das instituições democráticas, destacando que o hábito de formar associações desenvolvia habilidades colaborativas e promovia a coesão social. Seu trabalho estabeleceu as bases para os estudos posteriores, ao conectar práticas associativas ao sucesso de democracias.
Mais tarde, Lyda Hanifan (1916, 2003) introduziu formalmente o termo capital social, ao discutir os benefícios da cooperação e das redes de relações em comunidades rurais. Hanifan destacou como essas redes proporcionavam benefícios mútuos e fortaleciam o desenvolvimento comunitário. Sua abordagem prática e local enfatizou a importância do capital social como recurso para solucionar problemas cotidianos e melhorar as condições de vida.
Pierre Bourdieu (1986), no século XX, trouxe o conceito para o campo da sociologia, explorando suas relações com outras formas de capital (econômico e cultural). Bourdieu enfatizou o caráter desigual do capital social, ao mostrar que ele é um recurso que depende da posição social e do acesso a redes específicas. Para ele, o capital social não era apenas um recurso coletivo, mas também um meio de reprodução de desigualdades sociais, já que indivíduos e grupos o utilizavam para manter posições privilegiadas.
James Coleman (1988), também no século XX, ampliou a visão sociológica de Bourdieu ao explorar o papel do capital social na eficácia coletiva e na resolução de problemas comunitários. Ele argumentou que as normas sociais e as redes de confiança facilitam a ação coletiva, beneficiando as comunidades de forma ampla. Coleman associou o capital social à capacidade de gerar resultados positivos na educação, no desenvolvimento comunitário e em outras áreas.
RobertPutnam (1993) popularizou o conceito nos estudos de ciência política, particularmente com sua obra BowlingAlone. Ele destacou a relação entre o capital social e a qualidade da democracia e do bem-estar social. Para Putnam, altos níveis de confiança social e participação cívica promovem sociedades mais coesas e democráticas. No entanto, ele também apontou para o declínio do capital social em alguns contextos, especialmente nas sociedades ocidentais contemporâneas, devido à fragmentação das redes sociais tradicionais.
Francis Fukuyama (2000) realizou uma ampla revisão histórica do conceito, situando-o em contextos globais. Ele ressaltou a importância das normas sociais e das redes de confiança como pilares do desenvolvimento econômico e político. Fukuyama também resgatou a relevância de Tocqueville, ao destacar como o capital social está intrinsecamente ligado ao funcionamento das economias de mercado e à governança eficaz.
3 METODOLOGIA
Nesta seção esta construída a metodologia do trabalho, caracterizando inicialmente a pesquisa, e a posteriori categorizando o método utilizado e as ferramentas utilizadas para se alcançar os objetivos desta pesquisa.
3.1 CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA
Este estudo utilizou uma abordagem qualitativa e exploratória para investigar o papel do capital social nas comunidades quilombolas, analisando evidências extraídas de três textos: uma tese, um artigo em anais de evento e um artigo científico. Para conduzir a análise textual, foi empregada a análise de conteúdo, conforme Bardin (2016), categorizando os textos com base em termos e conceitos relacionados à teoria do capital social. A análise de conteúdo é uma técnica amplamente utilizada para interpretar dados qualitativos, permitindo identificar e categorizar temas e padrões que surgem nos textos, tornando-se adequada para o aprofundamento teórico sobre capital social em contextos comunitários tradicionais.
A análise de conteúdo, de acordo com Bardin (2016), envolve a categorização e interpretação de dados textuais para identificar significados e padrões semânticos. Neste trabalho, a análise foi conduzida considerando categorias temáticas que se referem aos conceitos de capital social, como laços de confiança, cooperação, autogestão e reconhecimento territorial. Esse método permitiu uma compreensão sistemática de como os elementos do capital social estão presentes e são discutidos nos textos analisados, facilitando a identificação de pontos de convergência e divergência entre os autores.
3.2 METODOLOGIA DE ANÁLISE TEXTUAL COM IRAMUTEQ
A análise textual foi realizada utilizando o software Iramuteq, versão 0.8 alpha 7, que possibilita diferentes abordagens para a exploração e visualização de dados textuais. O Iramuteq é uma ferramenta de análise de dados textuais que permite explorar grandes volumes de texto, identificando a frequência e coocorrência de palavras, além de possibilitar a análise de similitude, conforme descrita por Camargo e Justo (2012). Essa ferramenta foi essencial para estruturar as discussões sobre capital social, pois permitiu observar como os principais conceitos estavam interconectados nos textos.
A primeira técnica empregada no Iramuteq foi a análise de nuvem de palavras, que facilita a identificação dos termos mais frequentes em um corpus textual. Essa abordagem é útil para visualizar os temas centrais que emergem nos textos e evidenciar quais conceitos relacionados ao capital social são mais enfatizados. A nuvem de palavras permitiu identificar rapidamente as palavras mais relevantes, como "comunidade", "quilombola", "território" e "social", ressaltando a centralidade desses temas nas discussões.
Além da nuvem de palavras, foi realizada a análise de similitude, uma técnica que permite observar as coocorrências e interconexões entre os termos no corpus textual. Segundo Camargo e Justo (2012), a análise de similitude é eficaz para revelar a estrutura semântica de um texto, identificando os núcleos de sentido e as associações entre palavras. Neste estudo, a análise de similitude possibilitou a visualização das relações estruturais entre os conceitos-chave do capital social, destacando, por exemplo, a conexão entre "comunidade" e "associação", "quilombola" e "direito", e "recurso" e "comum". Esses agrupamentos revelam como os temas estão organizados no discurso, refletindo as interações sociais e a organização das comunidades quilombolas em torno de seu capital social.
A combinação dessas técnicas permitiu uma análise detalhada dos textos, oferecendo uma perspectiva tanto qualitativa quanto quantitativa. A análise de conteúdo, aliada às abordagens computacionais do Iramuteq, contribuiu para um entendimento profundo das dinâmicas do capital social, possibilitando uma análise estruturada e visual dos temas e das relações entre os conceitos. Essa metodologia foi escolhida pela sua capacidade de captar não apenas a frequência, mas também as inter-relações entre os temas, o que é fundamental para estudar um conceito multidimensional como o capital social, que abrange desde aspectos de interação social até a mobilização por direitos territoriais.
A seleção dos textos para este estudo foi realizada por meio de uma busca detalhada na bibliografia produzida pelo Grupo de Pesquisa Gesdel (Grupo de Pesquisa em Gestão Social e Desenvolvimento Local). Esse processo de seleção teve como critério a exclusão de livros, concentrando-se prioritariamente em artigos e trabalhos acadêmicos que apresentassem uma análise detalhada sobre o capital social nas comunidades quilombolas e temas relacionados.
Como base significativa para o estudo, foi priorizada a tese da professora Ynis Ferreira, que fornece uma fundamentação teórica e prática sobre a autogestão e o uso comum dos recursos nas comunidades quilombolas, alinhando-se diretamente ao objetivo de investigar o papel do capital social. Além disso, foram selecionados os dois artigos mais recentes produzidos pelo grupo, que abordam temáticas vinculadas à tese da professora Ynis, permitindo uma análise comparativa e atualizada sobre as práticas comunitárias e as dinâmicas de capital social nessas comunidades. Essa seleção criteriosa dos textos assegura que o corpus de análise reflete os principais debates e avanços teóricos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa Gesdel em relação ao capital social e à gestão social nas comunidades amazônicas.
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1 FUNDAMENTOS DO CAPITAL SOCIAL NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS: AUTOGESTÃO E IDENTIDADE COLETIVA
Para analisar a teoria do capital social no contexto de comunidades quilombolas, utilizamos três trabalhos principais que representam diferentes abordagens e evidências sobre a gestão do território, a autogestão e o reconhecimento institucional. A seguir, discutimos como esses estudos dialogam e se contrastam com a literatura sobre capital social, particularmente nas visões de Bourdieu (1986), Coleman (1988) e Putnam (1993).
A tese de Ferreira (2018) apresenta uma análise detalhada da autogestão em territórios quilombolas, onde as comunidades desenvolvem práticas de autogovernança e de compartilhamento de recursos. Ferreira propõe que o território funcione como um "ativo comum" para as comunidades quilombolas, estruturando-se em práticas de autogestão e reciprocidade. Esses aspectos se conectam diretamente com a ideia de capital social como recurso compartilhado que fortalece os laços comunitários e facilita a organização coletiva.
Comparando com a teoria de Bourdieu (1986), podemos observar que o capital social nas comunidades estudadas por Ferreira (2018) se traduz em laços de pertencimento e cooperação que sustentam o sistema econômico e social do grupo. No entanto, enquanto Bourdieu vê o capital social como algo que pode ser mobilizado para acesso a outros tipos de capital, nas comunidades quilombolas, o foco parece ser mais sobre a sobrevivência coletiva e a manutenção da identidade étnica, refletindo uma convergência entre capital social e cultural.
Sousa et al. (2023) exploram a gestão social do território na comunidade Itabocal Ponte, onde o território é visto como um bem comum, utilizado de maneira igualitária entre os membros. O estudo destaca que a organização social e o princípio de igualdade na distribuição de recursos refletem uma forte estrutura de capital social, que é sustentada por laços de confiança e cooperação dentro da comunidade.
A abordagem de Coleman (1988) sobre capital social como um conjunto de normas sociais e confiança que facilita a ação coletiva é visivelmente aplicável ao contexto descrito por Sousa et al (2023). O formato de associação comunitária e a colaboração mútua promovem a coesão social, essencial para a preservação e administração dos recursos. No entanto, enquanto Coleman enfatiza a instrumentalidade do capital social para a ação racional, nas comunidades quilombolas o capital social também desempenha um papel identitário, um ponto destacado por Ferreira (2018) e reforçado por Sousa et al. (2023).
No artigo de Carvalho et al. (2024), o foco está no processo de reconhecimento quilombola e na interdependência entre as comunidades e o Estado. O estudo revela como as comunidades quilombolas em Tomé-Açu, ao buscar o reconhecimento formal, negociam seu capital social para consolidar sua posição frente às instituições governamentais. Além disso, a importância das lideranças femininas e das conexões familiares emerge como parte do capital social que sustenta a coesão e autonomia dessas comunidades.
A visão de Putnam sobre capital social como um catalisador de cooperação e participação cívica (Pistore; Paim, 2013) é evidenciada nesse contexto. A busca pelo reconhecimento formal e a interação com o Estado refletem a utilização do capital social para legitimar os direitos territoriais das comunidades, um movimento que se alinha com as práticas democráticas e de fortalecimento cívico. Ao mesmo tempo, Putnam destaca que o capital social pode promover a eficiência das instituições e o bem-estar social, uma dinâmica observável nas interações entre as comunidades e as instituições governamentais descritas por Carvalho et al. (2024).
As evidências trazidas pelos estudos de Ferreira (2018), Sousa et al. (2023) e Carvalho et al. (2024) reforçam a importância do capital social como recurso essencial para a autogestão e o reconhecimento das comunidades quilombolas. No entanto, esses estudos também apresentam nuances específicas que contrastam com a literatura clássica. Em Bourdieu (1986), o capital social é principalmente um meio de alcançar benefícios econômicos ou simbólicos, enquanto, nas comunidades quilombolas, ele se volta para a manutenção da identidade coletiva e da coesão social.
Coleman (1988) e Putnam (Pistore; Paim, 2013) oferecem insights relevantes para entender a funcionalidade do capital social nas interações intra e intercomunitárias. Coleman vê o capital social como um catalisador de ações cooperativas para alcançar objetivos comuns, enquanto Putnam associa o capital social à democracia e à cidadania ativa. Ambos os pontos se aplicam às comunidades quilombolas, especialmente no que diz respeito à participação na gestão do território e na busca por reconhecimento institucional. A interdependência e a autonomia discutidas por Carvalho et al. (2024) refletem essas dinâmicas, mostrando como o capital social facilita as interações entre as comunidades e o Estado, contribuindo para a legitimação de seus direitos e valores culturais.
Esses resultados corroboram em demonstrar o capital social, em contextos de comunidades tradicionais, pode ir além das definições convencionais, envolvendo não apenas os recursos econômicos ou políticos, mas também os aspectos identitários e de resistência cultural. Essa complexidade ressalta a importância de expandir o conceito de capital social para capturar suas múltiplas dimensões em contextos comunitários diversos, como os quilombolas.
Nos três textos analisados – Ferreira (2018), Sousa et al. (2023), e Carvalho et al. (2024) – observa-se uma convergência em torno do papel essencial do capital social na autogestão e na resiliência das comunidades quilombolas. Esses estudos apontam como os laços de confiança, reciprocidade e cooperação dentro das comunidades servem de suporte para a organização social e a manutenção de práticas territoriais, reforçando a coesão e identidade coletiva.
Nos três trabalhos, a reciprocidade aparece como uma característica central das interações comunitárias, promovendo tanto a coesão social quanto a autonomia coletiva. Ferreira (2018) enfatiza o uso do território como um "ativo comum" que fortalece os laços de cooperação e permite a sustentabilidade dos recursos compartilhados. Sousa et al. (2023) destacam que o território é utilizado de maneira igualitária e com base na confiança mútua, refletindo um sistema de distribuição de recursos orientado pela reciprocidade e pela cooperação.
Em Carvalho et al. (2024), o capital social é visto como um recurso que facilita a interação das comunidades com o Estado, especialmente em questões de reconhecimento territorial. As lideranças comunitárias e as redes familiares desempenham um papel vital na negociação com instituições governamentais, consolidando a posição das comunidades e promovendo sua autonomia.
Esses pontos podem ser interpretados à luz da teoria do capital social de Coleman (1988), que vê a confiança e as normas sociais como catalisadores para a ação coletiva, essencial para a autogestão das comunidades. A abordagem de Putnam (1993), que associa capital social à participação cívica e à eficiência das instituições, também é relevante, pois as interações com o Estado descritas por Carvalho et al. (2024) exemplificam como o capital social pode melhorar a qualidade das instituições e fortalecer a cidadania ativa.
Essas evidências reforçam o papel multifacetado do capital social nas comunidades quilombolas, evidenciando que ele não apenas facilita a cooperação interna, mas também contribui para a construção de relações institucionais que promovem o bem-estar e a autonomia da comunidade.
4.2 ANÁLISE DE FREQUÊNCIA E NÚCLEOS TEMÁTICOS: UMA VISÃO GERAL SOBRE O CAPITAL SOCIAL
Para aprofundar a compreensão das dinâmicas de capital social nas comunidades quilombolas, este estudo empregará duas abordagens complementares de análise textual: a nuvem de palavras e a análise de similitude, ambas realizadas no software Iramuteq. Essas metodologias possibilitam uma visualização e compreensão amplificada dos termos e temas centrais nos três textos selecionados.
A análise de nuvem de palavras no Iramuteq facilitará a identificação das palavras mais frequentes nos textos, permitindo destacar os temas e conceitos centrais relacionados ao capital social e às práticas comunitárias descritas em cada estudo. Esse tipo de análise é fundamental para este trabalho, pois torna evidente os elementos-chave abordados pelos autores em relação à autogestão, territorialidade e reciprocidade nas comunidades quilombolas, revelando, de forma visual, quais aspectos são mais enfatizados nos textos.
Em complemento, a análise de similitude, conforme descrita por Camargo e Justo (2012), permitirá examinar as conexões entre os principais termos identificados. Essa análise possibilita a visualização das relações estruturais entre palavras, identificando agrupamentos semânticos e destacando como certos conceitos se interconectam no contexto dos textos analisados. Com essa abordagem, será possível observar as associações entre temas como gestão social, fortalecimento territorial e capital social, revelando padrões de proximidade semântica que refletem a estrutura das interações sociais e culturais nas comunidades estudadas.
Essas análises quantitativas são especialmente importantes, pois trazem uma dimensão objetiva e mensurável ao estudo, apoiando a interpretação qualitativa das evidências com base em dados sólidos. Ao combinar essas técnicas, este trabalho busca não apenas visualizar, mas também compreender em profundidade os elementos de capital social que estruturam a vida comunitária, reforçando a análise com uma base empírica detalhada. A figura 1 a seguir apresenta a nuvem de palavras com os termos mais frequentes nas 3 obras estudadas ao longo deste trabalho.
Figura 1 – Nuvem de palavras do corpus textual.
Fonte: Autores/Iramuteq (2024).
A análise da nuvem de palavras gerada a partir dos três textos revela alguns dos principais conceitos e temas centrais relacionados ao capital social e à organização das comunidades quilombolas. As palavras com maior destaque, como "comunidade", "quilombola", "comum", "recurso" e "social", indicam a frequência e relevância desses termos na estrutura textual, apontando para o foco dos estudos na dinâmica coletiva e na importância dos recursos compartilhados.
A proeminência de "comunidade" e "quilombola" reforça o contexto específico das análises, que são centradas nas comunidades quilombolas e nas suas práticas de organização e sobrevivência coletiva. Esse destaque sugere que o capital social nessas comunidades é construído e sustentado pelo pertencimento a um grupo específico, com forte identidade cultural e histórica.
Esses termos indicam a visão do território e dos recursos como bens comuns, compartilhados e geridos coletivamente pelos membros das comunidades. A presença desses conceitos sugere que o capital social nessas comunidades está intimamente ligado à gestão dos recursos naturais e ao uso comum do território, refletindo o princípio de autossuficiência e a importância da coesão social para manter a sustentabilidade local.
O termo "social" destaca o foco nos laços comunitários e nas interações sociais como base para o fortalecimento do capital social. A palavra "propriedade", por sua vez, sugere um olhar sobre a posse coletiva e a importância de regras e normas para o uso do território. A combinação desses termos sugere que, nas comunidades quilombolas, a propriedade e a gestão do território não são vistas como individualizadas, mas como um patrimônio coletivo essencial para o bem-estar de todos.
A presença das palavras "território" e "direito" indica que os textos abordam as questões de reconhecimento legal e o papel do território na construção da identidade quilombola. Isso sugere que o capital social nas comunidades quilombolas também está vinculado à luta por direitos territoriais, com o território sendo um elemento central da sua identidade e autonomia.
Esses termos indicam práticas de governança interna, em que a autogestão é uma prática comum e as associações desempenham um papel fundamental na organização e na tomada de decisões. A ênfase nesses conceitos reforça a ideia de que o capital social se manifesta através de práticas organizadas, onde a coletividade decide sobre os aspectos do território e dos recursos de forma autônoma.
A Figura 2 apresenta a análise de similitude, realizada no software Iramuteq, baseada nos textos selecionados. A análise de similitude permite observar as conexões entre as palavras mais frequentes e suas coocorrências, formando uma estrutura visual que destaca as associações semânticas e os núcleos de sentido mais importantes no contexto das comunidades quilombolas.
Figura 2 – Análise de similitude
Fonte: Autores/Iramuteq (2024).
A análise de similitude apresentada na Figura 2 revela as principais coocorrências de palavras nos textos analisados, destacando os agrupamentos semânticos e a forma como certos conceitos se interrelacionam no contexto das comunidades quilombolas. Essa análise permite observar as estruturas de sentido, evidenciando como os termos centrais estão organizados e ligados por suas proximidades no discurso.
No centro da análise, o termo "comunidade" aparece como o elemento mais conectado, o que indica sua importância como conceito unificador nos textos. Em torno desse núcleo, observamos conexões com palavras como "social", "associação", "quilombola" e "pesquisa", que destacam a importância das interações sociais, das associações comunitárias e da identidade quilombola na organização dessas comunidades. A relação entre "comunidade" e "associação", por exemplo, sugere a presença de estruturas organizativas que facilitam a cooperação e o suporte mútuo, aspectos fundamentais para o fortalecimento do capital social.
Próximo ao núcleo "quilombola", surgem termos como "direito" e "território", evidenciando a importância do reconhecimento legal e da luta por direitos territoriais para essas comunidades. Isso reforça a ideia de que o capital social nas comunidades quilombolas está fortemente vinculado à mobilização por autonomia e ao fortalecimento das identidades culturais e étnicas. A conexão entre "quilombola" e "direito" sugere que o capital social vai além das redes internas e se projeta para as interações com o Estado e outras instituições externas.
A análise de similitude mostra que "recurso" e "comum" estão interligados, refletindo a perspectiva de que o território e os recursos naturais são vistos como bens coletivos, geridos pela comunidade. Termos como "propriedade" e "autogestão" também aparecem próximos a esse núcleo, indicando que a gestão coletiva e a autogovernança são práticas que fundamentam o uso sustentável dos recursos e o fortalecimento do capital social. Esse agrupamento destaca a importância do compartilhamento e da cooperação para a preservação e uso dos recursos naturais nas comunidades quilombolas.
Em uma área mais periférica do mapa, vemos o núcleo de "autogestão" conectado a termos como "estrutura" e "sistema". Isso sugere que a autogestão nessas comunidades não é apenas uma prática isolada, mas faz parte de uma estrutura organizacional complexa que sustenta o funcionamento e a continuidade dos recursos compartilhados. Esse agrupamento reforça o conceito de capital social como um recurso organizacional e estratégico, onde as comunidades se estruturam para gerirem seus próprios interesses de forma independente e coordenada.
A análise de similitude fornece uma visão aprofundada das interconexões entre os principais conceitos relacionados ao capital social nas comunidades quilombolas. A visualização dos agrupamentos semânticos permite interpretar como a identidade coletiva (representada pelo núcleo "comunidade"), a luta por direitos territoriais ("quilombola" e "direito") e a gestão de recursos compartilhados ("recurso" e "comum") estão estruturadas e se relacionam.
Essas coocorrências evidenciam que o capital social nas comunidades quilombolas não se limita apenas às redes de apoio interno, mas também se expande para questões de reconhecimento territorial e interação com instituições externas. A análise demonstra como o capital social funciona como um recurso que fortalece tanto a coesão interna quanto a capacidade de negociação e defesa de direitos das comunidades em relação ao Estado e outras instituições.
Na teoria de Putnam (1993), o capital social é visto como um recurso fundamental para a construção de uma sociedade coesa e participativa, onde confiança, normas e redes sociais facilitam a cooperação. Nos resultados, o núcleo "comunidade", cercado por termos como "social", "associação" e "quilombola", reforça essa visão, evidenciando que a identidade comunitária é um pilar do capital social. Em comunidades quilombolas, essa coesão social se traduz em uma identidade coletiva forte, que alimenta as práticas de autogestão e fortalece o senso de pertencimento. Esses laços não apenas sustentam o convívio interno, mas também fundamentam a capacidade de mobilização para defender os direitos comunitários.
A teoria de Bourdieu (1986) sugere que o capital social, ao se manifestar nas redes de relações, pode ser convertido em outros tipos de capital, como o econômico e o simbólico. No contexto das comunidades quilombolas, a conexão entre os núcleos "quilombola" e "direito" reflete essa ideia de conversibilidade, onde o capital social serve como base para a luta pelo reconhecimento de seus territórios. A presença de termos como "território" e "propriedade" ao redor desses núcleos evidencia que a posse coletiva e a gestão compartilhada do território são valores centrais, e que o capital social facilita o engajamento com o Estado e a sociedade para assegurar esses direitos. Assim, o capital social não apenas reforça a coesão interna, mas também atua como um recurso estratégico na mobilização por direitos, constituindo um instrumento essencial para a autonomia quilombola.
A relação entre "recurso" e "comum" revela um aspecto do capital social descrito por Coleman (1988), que vê o capital social como um recurso coletivo que facilita a ação coordenada em prol do bem-estar da comunidade. Nas comunidades quilombolas, o território e os recursos naturais são tratados como bens comuns, o que exige uma organização e uma gestão colaborativa. A presença de termos como "autogestão" e "estrutura" reforça que o capital social está intimamente ligado à capacidade de organizar e coordenar o uso dos recursos, onde os membros da comunidade agem de forma coletiva para garantir a sustentabilidade e equidade. Esse sistema de gestão participativa evidência como o capital social se traduz em práticas que preservam e mantêm os recursos, fortalecendo a resiliência comunitária.
A análise de similitude também destaca as associações e redes internas, refletidas por termos como "associação" e "social". Essas estruturas de redes e associações podem ser vistas como a materialização do capital social, pois promovem a integração dos membros da comunidade e facilitam a tomada de decisões coletivas. A perspectiva de Putnam (1993) sobre capital social como elemento de promoção da democracia e participação cívica é aqui confirmada, pois as associações são espaços onde os membros podem exercer a cidadania, fortalecer os laços comunitários e construir uma governança interna eficaz.
A presença de "autogestão" ao lado de termos como "estrutura" e "sistema" sugere que as comunidades quilombolas operam com um modelo de organização que reflete a autossuficiência e a independência. Essa autogestão é sustentada pelo capital social, que funciona como um recurso que torna possível a governança interna sem a necessidade de intermediários externos. Esse aspecto reforça a teoria de Coleman (1988), para quem o capital social proporciona a estrutura necessária para ações coletivas coordenadas, permitindo que as comunidades se organizem de maneira eficiente e autônoma.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados deste estudo demonstram a relevância do capital social para as comunidades quilombolas, especialmente na estruturação de práticas de autogestão e na busca por reconhecimento territorial. Ao explorar a dinâmica do capital social com base nos textos analisados, constatou-se que os laços de confiança, reciprocidade e cooperação são fundamentais para a organização e sustentabilidade dessas comunidades.
Os três estudos abordados — a tese de Ferreira (2018), o trabalho de Sousa et al. (2023) e o artigo de Carvalho et al. (2024) — convergem ao destacar o capital social como recurso essencial, não apenas para a gestão dos recursos naturais, mas também para fortalecer a identidade coletiva e garantir a resiliência frente a desafios externos. Esses estudos sublinham que o capital social nas comunidades quilombolas vai além de redes de apoio interno, expandindo-se para relações institucionais e práticas de negociação com o Estado, conforme evidenciado na busca por direitos territoriais e reconhecimento institucional.
As análises realizadas com o apoio do software Iramuteq, por meio da nuvem de palavras e da análise de similitude, permitiram identificar a centralidade de temas como "comunidade", "quilombola", "território" e "direito". Essas categorias refletem a importância da gestão compartilhada e das práticas de autogestão, além de destacar o papel do capital social na articulação de redes internas e externas que sustentam a autonomia comunitária.
Esses achados contribuem para a literatura sobre capital social ao evidenciar que, em contextos tradicionais e de forte identidade cultural, o capital social assume características multifacetadas, envolvendo não só aspectos de cooperação e reciprocidade, mas também a resistência e a preservação cultural. Este estudo reforça a necessidade de uma abordagem ampliada do capital social para capturar sua complexidade em comunidades tradicionais, onde ele se entrelaça com questões de identidade, território e autonomia.
Para estudos futuros, sugere-se uma investigação aprofundada sobre como o capital social nas comunidades quilombolas influencia a eficácia de políticas públicas voltadas para o reconhecimento territorial e a sustentabilidade. Embora este estudo tenha evidenciado a importância das redes comunitárias e da autogestão para a coesão e resiliência dessas comunidades, pesquisas adicionais poderiam explorar como essas dinâmicas internas se inter-relacionam com iniciativas governamentais e o impacto de políticas externas na preservação da autonomia comunitária. Isso poderia fornecer insights valiosos sobre a integração de práticas locais e a formulação de políticas mais eficazes para atender às necessidades específicas dessas comunidades.
Além disso, seria pertinente realizar estudos comparativos entre comunidades quilombolas de diferentes regiões, para verificar variações nas práticas de capital social e suas relações com o território. Um estudo comparativo permitiria identificar fatores contextuais que influenciam as formas de organização e resistência, contribuindo para uma compreensão mais abrangente do capital social em comunidades tradicionais e de como essas especificidades podem impactar suas lutas por direitos territoriais.
Outra área de pesquisa promissora envolve o uso de metodologias mistas, que combinem a análise qualitativa com métodos quantitativos para medir o impacto do capital social na sustentabilidade econômica e ambiental das comunidades. Estudos quantitativos poderiam incluir indicadores específicos sobre a eficácia do uso de recursos e a coesão social, oferecendo uma visão ampliada sobre os efeitos concretos do capital social no desenvolvimento local.
Por fim, dada a crescente importância das tecnologias digitais, seria relevante explorar como a conectividade e as redes sociais impactam o capital social nas comunidades quilombolas, particularmente em relação à mobilização por direitos e à disseminação de práticas sustentáveis. A compreensão das interações entre o capital social e as novas tecnologias pode oferecer diretrizes para políticas públicas e estratégias de fortalecimento comunitário que considerem as mudanças no cenário das comunicações e da mobilização social.
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[1]Doutorando em Administração (PPAD/UNAMA), professor assistente (UFRA, professor convidado na especialização em Gestão Pública (UFSM/UAB).
[2]Doutoranda em Administração (PPAD/UNAMA).
[3]Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura (PPGCLC) e do Programa de Pós-graduação em Administração (PPAD/UNAMA). Pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Administração (PPGAdm) da Universidade Estudal do Oeste do Paraná (UNIOESTE).