PRODUÇÃO DE DADOS PELA VIA DOS ESPAÇOS DISCURSIVOS
a ética do discurso de Habermas como possibilidade para construção de conhecimentos democráticos
Mariangela Lima de Almeida
Universidade Federal do Espírito Santo
mlalmeida.ufes@gmail.com
Allana Ladislau Prederigo
Universidade Federal do Espírito Santo
Rafael Carlos Queiroz
Universidade Federal do Espírito Santo
Sumika Soares de Freitas Hernandez-Piloto
Universidade Federal do Espírito Santo
Islene da Silva Vieira
Universidade Federal do Espírito Santo
Gustavo Falcão Santana
Universidade Federal do Espírito Santo
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Resumo
Em busca de superar uma racionalidade reducionista instaurada por décadas na produção de conhecimentos na área da educação, propomos neste artigo, considerando a teoria do Agir Comunicativo, realizar uma discussão sobre os Espaços Discursivos. Estes vêm se configurando em uma proposta para produção de dados, de modo a considerar a intersubjetividade dos sujeitos e a autorreflexão como meios constituintes de saberes. Seus princípios estão alicerçados na ética do discurso desenvolvido por Habermas. A construção da metodologia em tela, tem-se dado pela via dos estudos desenvolvidos pela pesquisa-ação, que a partir de pesquisas desenvolvidas tece algumas considerações teórico-metodológicas e epistemológicas apresentadas nesse momento. Considerando este mesmo movimento, percebe-se que a produção de dados pela via dos Espaços Discursivos permite um diálogo ético e democrático com os envolvidos, na busca de consensos acerca das temáticas propostas, sendo a argumentação, neste contexto, a base para estruturação do conhecimento na área educativa.
Palavras-chave: pesquisa-ação; espaços discursivos; ética do discurso; Habermas.
1 INTRODUÇÃO
A relação entre democracia, tecnologia e educação contemporânea tem sido tema central de debates acadêmicos, especialmente à luz das contribuições de Jürgen Habermas, um dos principais teóricos da Escola de Frankfurt e ainda ativo aos 95 anos de idade. Sua obra, que transita por diversos campos do saber, traz à tona a importância do Agir Comunicativo para o fortalecimento de espaços democráticos, ressaltando que a comunicação livre e racional é o alicerce para a construção de uma sociedade mais inclusiva e justa. Ao aplicarmos essas ideias ao campo educacional, é possível reconhecer a necessidade de reestruturar práticas pedagógicas que ultrapassem o positivismo e promovam o diálogo crítico, uma prática fundamental em qualquer sistema educacional que se propõe a contribuir para a consolidação da democracia.
O conceito de esfera pública proposto por Habermas, no qual os cidadãos debatem temas de interesse comum, tem sido radicalmente transformado pelas novas tecnologias. Em vez de um espaço plural de discussão e consenso, as redes sociais e os algoritmos que as sustentam muitas vezes polarizam a opinião pública, segmentando os indivíduos em grupos de interesse, o que pode enfraquecer o princípio de deliberação racional que Habermas defende, substituindo-o por um comportamento guiado por estímulos e reforços de curto prazo. Embora a esfera pública desempenhe diversas funções nas sociedades capitalistas democráticas modernas, Habermas concentra-se na "função que a esfera pública exerce para garantir a preservação da comunidade democrática" (Habermas, 2023, p. 28).
Ao analisarmos esses desafios sob a ótica habermasiana, a educação emerge como um dos espaços essenciais para contrapor tais tendências, desenvolvendo uma racionalidade comunicativa que promova o pensamento crítico e o debate democrático. Pode-se dizer, que na área da Educação, o filósofo contemporâneo exerce influência significativa ao pensarmos na comunicação e racionalidade presente nos diferentes contextos educativos, de modo a buscar a produção de um conhecimento que rompa com o positivismo, corrente filosófica que se fez dominante nos últimos séculos e influenciou aspectos do mundo da vida e do mundo sistêmico.
Considerando estes aspectos, o Grupo de Pesquisa “Formação, Pesquisa-ação e Gestão de Educação Especial” (Grufopees - CNPq / UFES), têm se debruçado na ética do discurso em Habermas para a aplicação dos Espaços Discursivos, que se configuram como uma via de produção de dados que considere o outro como produtor de conhecimentos, compreendendo que nas ciências humanas se é necessário um olhar diferenciado para o objeto e sujeitos de investigação, uma vez que entendemos que existe nesse contexto subjetividades, que por vezes, são inexistentes nas ciências exatas.
O Grufopees, atualmente tem se dedicado ao estudo da perspectiva teórico-metodológica da pesquisa-ação\investigação-ação, buscando compreender o potencial desta metodologia para a transformação social e educacional, considerando seus pressupostos teórico-metodológicos e epistemológicos na contribuição para o avanço do conhecimento científico na área da educação, em interface com outras áreas do conhecimento. Nesse contexto, temos dialogado com autores-pesquisadores, que desenvolveram estudos científicos e acadêmicos a partir da metodologia supracitada.
Neste artigo em tela, buscamos discorrer acerca dos Espaços Discursivos, trazendo para diálogo a sua sustentação teórica em Habermas, a racionalidade e intencionalidade por detrás de sua utilização; e algumas considerações epistemo-metodológicas a partir de experimentações vivenciadas pelo grupo de pesquisa, considerando o desenvolvimento do Projeto de Pesquisa em andamento denominado “Análise comunicativa da produção científica em pesquisa-ação: um estudo comparado em países lusófonos”.
Dessa forma, apresentamos aqui alguns diálogos teóricos desenvolvidos a partir de artigos, dissertações e teses desenvolvidas por membros do Grufopees e que servem de base para a constante elaboração e análises conceituais acerca dos postulados habermasianos no que tange a construção teórica dos Espaços Discursivos.
2 OS ESPAÇOS DISCURSIVOS COMO UMA VIA DE PRODUÇÃO DE DADOS
Partindo do pressuposto que Habermas (1987) propõe uma teoria do agir comunicativo, em busca de uma razão que fomente processos públicos com caráter emancipatório, neste texto busca-se, compreender os conceitos habermasianos e o espaço discursivo como espaço de participação entre sujeitos que mediante o discurso, apresentam argumentos para elaboração de consensos e fortalecimento do entendimento mútuo, no sentido de captar os movimentos vivenciados por pesquisadores e participantes de processos de pesquisa realizados pela via da pesquisa-ação ou investigação-ação.
Assim, a seguir realizamos um diálogo destrinchando conceitos habermasianos que sustentam a nossa concepção de espaço discursivo e posteriormente apresentamos como estes vêm ocorrido a partir do seu empreendimento pelo grupo de pesquisa Grufopees.
2.1 ESPAÇO DISCURSIVO: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DE JÜRGEN HABERMAS
Para o desenvolvimento da ideia dos espaços discursivos como meio de produção de dados, nos apoiamos em Habermas, em especial na ideia de esfera pública. Para a construção deste conceito, o filósofo inspirou-se na Grécia antiga, onde ocorriam os debates públicos e eram decididos os destinos da Polis. Entretanto, este se configurava como exclusivo, uma vez que só podiam participar os homens livres, ou seja, não era democrático (Marques, 2018).
O referido autor compreende a esfera pública como o local de argumentação e troca de opiniões a respeito das coisas públicas e como um espaço relevante de inclusão e sociabilidade através do entendimento mútuo e racional. O discurso é a atribuição fundamental da política e que antes de ser o campo da estratégia e do cálculo, a política é o campo da ação comunicativa que se realiza por meio da linguagem entre os indivíduos reunidos em público (Habermas, 2003).
Habermas (2003) salienta que essa separação (a delimitação entre o público e o privado na vida social) proporciona uma esfera bem delimitada do âmbito político e outra que abrange os assuntos privados, como a economia e a família, por exemplo. Tal distinção é antiga e se origina na Grécia, em que o reino da necessidade e transitoriedade se esconde nas "sombras" do âmbito privado. Já a vida pública expressava a liberdade e continuidade, pois através da deliberação é que as coisas se materializam e se tornam claras.
É na esfera pública que se dá o reconhecimento. Habermas explicita que essas concepções gregas são essenciais quando se quer compreender o conceito de esfera pública moderna, já que seus princípios são os principais fundamentos que orientam sua estruturação. No entanto, a inovação da proposta habermasiana se dá, justamente, na noção de que a esfera pública não é mais um fim em si mesma. Tal espaço não existe apenas para o exercício da deliberação pura sobre assuntos restritos, e sim para a busca de consenso e julgamentos a respeito de diversos aspectos não apenas do âmbito político, mas também da esfera privada. A esfera pública, nesse aspecto, é mais ampla no que diz respeito aos temas abordados em seu centro, se tornando a mediadora entre o Estado e a sociedade (Cassete, p.33, 2008)
Em 2003, Habermas passa a defender um moderno renascimento da "esfera pública": como um domínio da vida social que surgiu no século XVIII e ocupou uma posição localizada entre a esfera ocupada pelo setor privado. Indivíduos - a esfera privada - e a esfera ocupada pelos aparelhos e instituições reguladoras do estado.
Desse modo, consideramos que com uma visão da lógica contemporânea, Habermas (2003) propõe a ressignificação do espaço público, guiado pelo agir comunicativo, onde há a mediação pelo mundo da vida intersubjetivamente partilhado. A esfera pública, então, considera para seu pleno desenvolvimento os pressupostos da estética discurso, uma vez que é por meio destes que os participantes irão buscar acordos e consensos provisórios, permitindo a melhoria dos aspectos elencados como objetivo em comum (Prederigo, 2024).
Objetivados em compreender como os Espaços Discursivos vêm se configurando no contexto do grupo de pesquisa, na busca por captar os movimentos vivenciados por pesquisadores e participantes de processos de pesquisa realizados pela via da pesquisa-ação ou investigação-ação; ainda motivados pela possibilidade de constituir uma comunidade intersubjetiva com base na fala argumentativa, estabelecemos espaços discursivos em que utilizamos o saber do campo educacional, sobretudo o conhecimento já produzido acerca das questões teórico-metodológicas e epistemológicas necessárias ao trabalho investigativo em nossas pesquisas-ações (Almeida, 2010, p. 143).
Assim ao dialogarmos com os autores dos pressupostos da pesquisa-ação, elencamos a importância que a esfera pública:
[...] forneceu foi um espaço discursivo onde os indivíduos podem se reunir para trocar ideias e opiniões, identificar e discutir livremente problemas sociais de interesse mútuo e formular um acordo consensual sobre como eles devem ser resolvidos. Assim, ofereceu um 'espaço público' que permitiu que todos tivessem a mesma chance de apresentar ideias, interpretações e argumentos, onde não havia barreiras à comunicação livre e aberta e nas quais todos participavam em termos iguais [...] (Carr, 2019, p. 23, grifo nosso).
Carr (2019) sistematiza algumas observações ao articular o conceito de espaço-discursivo com a pesquisa-ação:
Minha segunda observação é observar que uma característica distintiva dessa visão da pesquisa-ação crítica é que ela se apoia apenas na capacidade natural de indivíduos comuns de participarem de diálogos, comunicações e argumentos racionais. [...] (a proposta de) seminário forneceu o espaço discursivo para o diálogo argumentativo entre indivíduos, com base nas perguntas e respostas. Como a pesquisa-ação crítica, objetivou estimular o pensamento crítico e extrair ideias e suposições subjacentes. E, como a pesquisa-ação crítica, ela fornece o tipo de esfera pública que a ação comunicativa exige. (Carr, 2019, p. 24, grifo nosso)
Indicamos assim, as possibilidades de elaboração de significações sobre os espaços discursivos com o propósito de discutir a perspectiva teórico-metodológica da pesquisa-ação. Nestes espaços, a argumentação e o discurso são elementos fundamentais, pois apenas através deles os participantes podem construir conhecimento em busca de consenso dos elementos que cercam a produção de uma investigação embasada na pesquisa-ação. Valorizamos especialmente a inclusão do outro neste processo, considerando que todos os sujeitos racionais devem e podem expor suas argumentações, tendo em vista o mundo da vida.
Considerando o embasamento anteriormente explicitado, os espaços discursivos vêm se configurando como uma aposta do projeto de pesquisa do grupo, como meio de produção de dados à luz da teoria habermasiana. Assim temos o definido como:
[...] espaço de participação entre sujeitos que mediante o discurso, apresentam argumentos para elaboração de consensos e fortalecimento do entendimento mútuo, no sentido de captar os movimentos vivenciados por pesquisadores e participantes de processos de pesquisa realizados pela via da pesquisa-ação ou investigação-ação; e ainda fomentar a elaboração de espaços formativos colaborativos na defesa da formação humana na perspectiva da inclusão (Silva et al. 2023, p. 281).
Os espaços discursivos podem ocorrer com quantidade diversa de pessoas, iniciando pela participação de no mínimo dois sujeitos racionais, dispostos a dialogarem entre si. Neste caminho, se apresentam inspiradas no conceito de esfera pública, de Habermas, em que:
A esfera pública não é mais um agregado de indivíduos que formam o público, mas formada por grupos auto organizados em uma arena para a exposição de problemas que necessitam ser elaborados pelo sistema político. Portanto, não é uma instituição, organização, ou sistema. Não regula, pois não tem uma estrutura normativa. Caracteriza-se pela sua abertura, por ser permeável e se deslocar, sendo um fenômeno social. Todos os assuntos são tidos como passíveis de debate na esfera pública, desde que ganhem status político de um tema de interesse geral. Podem ser debatidos temas como a definição de regras comuns e de metas pragmáticas, considerações de justiça, problemas de identidade e auto entendimento cultural, processos de monitoramento das autoridades e prestações de contas (Barros, 2008, p. 29).
Nesse sentido, os espaços discursivos se apresentam como locais privilegiados para que ocorram os discursos de forma livre, sem coerções ou imposições, conforme proposto por Habermas (2003). Neles, busca-se proporcionar a todos os participantes o direito aos atos de fala, promovendo, através dos diálogos e dos argumentos, processos de reflexão individual e coletiva do vivido. Esses processos podem nos orientar na elaboração de hipóteses para a melhoria dos processos desenvolvidos pela pesquisa-ação. Pretende-se, então, por meio destes espaços, compreender mais acerca dos processos de realização das pesquisas que têm como base a perspectiva teórico-metodológica da pesquisa-ação, abordando seus desafios e possibilidades, bem como seus desdobramentos nos diversos contextos formativos para aqueles que a experienciam (Prederigo, 2024).
Queiroz (2021), que também realizou espaços discursivos em sua dissertação, revelou que o movimento propiciado por esta via, facilitou aos membros participantes, conhecer a realidade de seus pares, fornecendo um processo favorável para que todos conhecessem o panorama vivido por seus pares. Assim, essa busca por um objetivo em comum, enriquece o desenvolvimento de processos formativos comprometidos e relevantes para todos os sujeitos.
Na mesma linha de raciocínio, Carvalho (2018) explicita que os espaços discursivos são momentos em que os participantes, por meio de uma racionalidade comunicativa, expõem suas opiniões, possibilitando trocas democráticas que incluam todos os sujeitos, se aproximando, deste modo, a ações democráticas. Considerando isto, empreender os espaços discursivos se constitui em uma forma de dialogarmos com os diferentes autores-pesquisadores acerca de suas produções, constituindo um espaço livre de diálogo, de exposição de ideias e pensamentos, ancorados em um agir comunicativo (Fernandes, 2024).
2.2 CONSENSOS PROVISÓRIOS TECIDOS A PARTIR DO EMPREENDIMENTO DOS ESPAÇOS DISCURSIVOS
Por meio das experimentações realizadas pela equipe do grupo de pesquisa, podemos dizer que os espaços discursivos, apesar de apresentarem a mesma base e princípios teóricos sustentados em Habermas, vem ocorrendo em duas modalidades: a que ocorre em uma argumentação mais íntima entre mediador e um participante convidado; e aquela que acontece de modo grupal, com a participação de diferentes mediadores e participantes convidados. Destacamos estas duas modalidades, uma vez que há a percepção de que tem-se peculiaridades em seu desenvolvimento. Além disso, cabe dizer que o empreendimento desses momentos tem ocorrido de modo presencial e on-line.
Os espaços discursivos realizados entre mediador e um convidado, tem possibilitado, de modo mais evidente, um discurso guiado por tópicos presentes nos trabalhos científicos e acadêmicos desenvolvidos pelo próprio participante convidado. Nesse sentido, busca-se, inspirados na psicanálise, promover uma autorreflexão a partir das próprias experiências vividas pelo sujeito, considerando passado e presente desencadeado por seus estudos a partir da perspectiva teórico-metodológica da pesquisa-ação. Podemos ver um exemplo do desenvolvimento do espaço discursivo nesta modalidade a partir do trecho adiante:
Nesta mesma linha de raciocínio, explicitamos aos participantes no início dos espaços discursivos que nossa intenção era promover um diálogo do processo vivenciado no desenvolvimento de uma pesquisa-ação durante o doutorado. Dessa forma, todos poderiam se sentir à vontade para fazer observações de suas experiências e levantar questionamentos de qualquer natureza. Muitos dos pontos discutidos anteriormente surgiram naturalmente, sem que precisássemos direcionar perguntas. Estas foram utilizadas apenas quando os participantes se afastavam do tema do diálogo, a fim de retomar a discussão enfocada na pesquisa-ação. [...] Assim, procuramos nesse movimento proporcionar um local onde as argumentações pudessem fluir livremente a partir de trocas de experiências e observações realizadas através da leitura dos trabalhos. Acreditamos que nossa participação nesse processo se configurou de duas maneiras: enquanto participante, expondo também meus argumentos; e mediadora, proporcionando uma reflexão guiada a partir de observações feitas com base no escrito nas teses (Prederigo, 2024, p. 94-95, grifo nosso).
Partindo do excerto destacado, compreendemos que o mediador assume no momento de realização de um espaço discursivo, um duplo desafio, o de argumentação com base em suas próprias experiências acerca da temática, em busca de consensos; e de guiar, a partir de observações acerca do texto escrito pelo convidado, processos de autorreflexão que possam apontar novas perspectivas acerca da produção de conhecimento com a pesquisa-ação\investigação-ação.
De modo a deixar mais compreensiva esta questão, enfatiza-se dois momentos vividos a partir dos espaços discursivos, que representam a função do mediador nesse processo. A seguir vê-se o processo de troca com base em um mundo intersubjetivamente partilhado:
Mediadora 1: Quando estava lendo seu texto, e agora você falando também, eu lembrei muito do meu processo, com o estágio na docência do ensino superior, porque realmente a gente acha que é bem mais fácil, por exemplo, eu sou formada em pedagogia, a gente acha que o ensino superior é bem mais fácil que nos anos iniciais e que não precisa tanto de metodologias ativas. E aí quando a gente vai para a sala de aula, a gente vê que não é isso, que realmente…
Autor-pesquisador 1: E você sabe uma coisa que é interessante, uma das coisas que mudaram na minha prática, modéstia parte, eu acho que eu nunca fui um mau professor, mas eu era aquele professor que passava conteúdo, era o técnico na minha área, eu era bem sucedido empresarialmente, então ia passando aquilo, era trabalho o tempo todo, fazendo trabalhos, avaliações, mas assim, eu percebia lá um aluno que ia mal, eu acreditava que ele foi mal porque não estudou. Depois que eu entrei no doutorado, eu comecei a ver algumas coisas, às vezes o aluno tem algum tipo de dificuldade, aí você começa a conhecer os espaços de educação também fora da escola, então isso fez eu começar a me aproximar mais dos alunos como professor [...] e hoje eu não me vejo mais sendo um professor no modelo tradicional, aquele que entra, dá uma aula lá de cinquenta minutos e depois dá um exercício, alguma coisa para o aluno fazer (Espaço Discursivo, 22/01/2024).
O diálogo exposto demonstra que a partir da partilha de uma vivência da mediadora do espaço, pode-se gerar um consenso acerca de determinado assunto, sendo para além disso, desencadeado dados relevantes para o entendimento de como a realização de uma pesquisa-ação\investigação-ação influencia na mudança da práxis do pesquisador. Seguindo este fio e levando em consideração a função do mediador de guiar, a partir de observações acerca do texto escrito pelo convidado processos de autorreflexão, expomos a declaração de uma convidada, que elucida:
Eu fiquei feliz quando você entrou em contato e propôs esse diálogo, porque a gente volta ao trabalho! E como eu te falei, eu tenho dois horários na prefeitura, eu dou aula, não me aposentei ainda. Então eu produzi muito [...] depois eu dei uma parada, porque vai decorrendo o tempo e a gente vai esquecendo, e aí quando você propôs eu falei, “deixa eu rememorar algumas coisas aqui!” (Autora-pesquisadora 2, Espaço Discursivo, 07/05/2024).
Ponderamos então, que a realização destes momentos valorizam os conhecimentos acadêmicos/científicos já produzidos, dando novos significados ao resgatá-los, trazendo a possibilidade do avanço destes pela via da autorreflexão coletiva. Destaca-se nesse ínterim, que para Habermas, interesse e emancipação dependem fundamentalmente da autorreflexão, que traz à consciência [...] os elementos que determinam ideologicamente uma práxis presente da ação e da interpretação de mundo (Habermas, 2013, p. 56).
Por sua vez, a modalidade que compreende a participação de diferentes mediadores e convidados, se configurando em um grupo para argumentação de um tema em específico, têm demonstrado especificidade no que tange o compartilhamento de experiências e suas respectivas opiniões a partir da realização de uma pesquisa-ação\investigação-ação. Nestas, percebemos que há uma busca entre os participantes, de chegarem a um consenso provisório geral acerca do tema em questão.
Autora pesquisadora 3: Eu tive a oportunidade de aprender muito durante o meu mestrado. Então, quando elencamos que seria a perspectiva teórico-metodológica, que utilizaríamos a pesquisa-ação colaborativo-crítica, eu defino com uma palavra: desafio. Porque no mestrado a gente tem pouco tempo, são dois anos. Porém, apesar de ter sido um desafio essa escolha, também tive a oportunidade de aprender muito, porque durante o mestrado, a gente mergulhou numa escola de ensino fundamental e a gente vivenciou junto com os profissionais. Não só a observação, mas a colaboração e também o processo formativo. Então a gente foi se formando junto com os profissionais e aprendendo juntos. Não é impossível, mas é um desafio.
Autora pesquisadora 4: [...] eu pensei a mesma coisa que a [autora-pesquisadora 3], ela falou a palavra “desafio” eu também... Foi uma experiência bem assim, voltada para essa palavra, porque na época eu não tinha experiência ainda com escola. Aí juntou a metodologia, que querendo ou não era a primeira vez atuando em uma escola, e com a pesquisa-ação. Então, para mim foi um desafio. A escola era grande, era não, é. A escola está lá ainda, é grande. E os professores com muita experiência, aquela coisa toda, para mim foi desafiador na época. Juntou tudo, pouca experiência profissional, a pouca idade, aquela coisa toda. Mas no final deu certo por conta disso que com o processo, a gente vai se tornando familiar do espaço. Eu acho que a pesquisa-ação tem isso, né? Da gente não ficar se vendo estranho por muito tempo. Pelo menos nos primeiros meses, até você conhecer tudo, contribuir. Aí depois é como se eu tivesse fazendo parte da escola, até mesmo por conta da frequência que eu ia [...] (Espaço Discursivo, 02/04/2024)
Pode-se identificar a partir do diálogo exposto, que os participantes chegam a consensos a partir da externalização de um mundo intersubjetivamente compartilhado. A autora Fernandes (2024), ao se apropriar dos espaços discursivos para produção de dados de seu estudo enfatiza:
Compreendemos, nesse sentido, que a discussão realizada no 2º Espaço Discursivo as fez refletir sobre a perspectiva metodológica adotada e entendemos que este era o objetivo do espaço: discutir diretamente com os autores sobre a pesquisa-ação utilizada em suas pesquisas, pela via do agir comunicativo de Habermas (2012). O espaço discursivo tornou-se um lugar de argumentação (mundo da vida) pela via de atos de fala dos participantes do discurso, fundamentados no mundo objetivo, no mundo social e/ou no mundo subjetivo (Fernandes, 2024, p. 168).
De modo a fornecer um processo de produção de dados mais inclusivo, optamos por realizar os espaços discursivos em ambientes presenciais e também on-line. Em ambos os casos nos ancoramos nos princípios do discurso, que dispõe que:
(1.1) A nenhum falante é lícito contradizer-se;
(1.2) Todo falante que aplicar um predicado F a um objeto A tem que estar disposto a aplicar F a qualquer outro objeto que se assemelhe a A sob todos os aspectos relevantes;
(1.3) Não é lícito aos diferentes falantes usar a mesma expressão em sentidos diferentes;
(2.1) A todo falante só é lícito afirmar aquilo que ele próprio acredita;
(2.2) Quem atacar um enunciado ou norma que não for objeto da discussão tem que indicar razão para isso;
(3.1) É lícito a todo sujeito capaz de falar e agir participar de Discursos;
(3.2) a. É lícito a qualquer um problematizar qualquer asserção; b. É lícito a qualquer um introduzir qualquer asserção no Discurso; c. É lícito qualquer um manifestar suas atitudes, desejos e necessidades;
(3.3) Não é lícito impedir falante algum, por uma coerção exercida dentro ou fora do Discurso, de valer-se de seus direitos estabelecidos em (3.1) e (3.2) (Habermas, 2003, p. 110-112).
Os princípios elencados por Habermas buscam a garantia da igualdade de condições entre os sujeitos, sendo necessário que todos possam participar e que tenham chances iguais para se expressar de modo livre de coerções. Consideramos então, a interpretação dos princípios do discurso elencados, tencionando o pleno desenvolvimento dos argumentos dos participantes.
Corroborando com os estudos de Prederigo (2024) e Fernandes (2024), entendemos que a ética do discurso está fundamentada na noção de coletividade contrariando-se à matriz Kantiana, que é fundamentada em uma autonomia individual. As ideias de Habermas nos guiam para a construção de conhecimento entre sujeitos na busca de melhoria das condições que cercam determinado grupo de modo democrático. Considera-se, deste modo, que todos os sujeitos participantes de uma comunidade são capazes de fala e ação, sendo assim, todos podem assumir o compromisso de melhoria dos aspectos vividos, por meio da construção de conhecimentos por via da comunicação.
Em face do exposto, nos espaços discursivos realizados presencialmente, podemos inferir que as argumentações tornam-se mais fervorosas, uma vez que a comunicação entre os participantes flui em uma lógica natural, sendo possibilitada a troca em diferentes momentos, desencadeando um movimento de melhor apropriação das diferentes realidades vivenciadas pelos pesquisadores.
O ambiente presencial também possibilita aos mediadores a realização de uma escuta sensível, onde o mediador consegue sentir o outro para além das palavras enunciadas, desvelando expressões físicas, tom de voz, e há o famoso “olho no olho”. A escuta sensivel é descrita por Barbier como aquela que: “reconhece a aceitação incondicional do outro. Ela não julga, não mede, não compara. Ela compreende sem, entretanto, aderir às opiniões ou se identificar com o outro, com o que é enunciado ou praticado” (Barbier, 2007, p. 94).
Em se tratando dos espaços discursivos realizados de modo on-line, depreendemos que estes nos proporcionam um alcance maior de participantes, e considerando que o projeto de pesquisa contempla cinco países distintos, esta viabilidade de participação se torna extremamente relevante. É importante pontuar que a realização destes, tem nos mostrado a realização de argumentações focadas e produtivas, uma vez que dispomos para além de uma argumentação através da fala oral, dispositivos que permitem a exposição argumentativa escrita.
Os ambientes virtuais tem nos mostrado cada vez mais possibilidades de trabalho criativo e colaborativo, uma vez que oferecem ferramentas diversificadas para os processos de trocas entre os participantes. Deste modo, entendemos que o uso dos espaços on-line tem sido de grande valia.
3 CONSIDERAÇÕES
Tendo como ponto de partida os estudos produzidos pelo Grufopees-Ufes, chegamos a um consenso provisório que nos permite indicar aspectos constituintes dos espaços discursivos, que vem se configurado como aposta do grupo para produção de dados de modo mais inclusivo e democrático na área de ciências humanas, em especial na área da educação.
Os pressupostos dos espaços discursivos se ancoram na teoria Habermasiana, em principal na ética do discursivo, considerando também uma releitura do conceito de esfera pública. A sua experimentação pela equipe do grupo de pesquisa nos permite indicar a sua realização por meio da modalidade entre um participante e um mediador; e entre diferentes mediadores e participantes. Temos feito ainda, de modo presencial e on-line, tendo cada variação deste, demonstrado particularidades que beneficiam a pesquisa de diferentes maneiras.
Dos espaços discursivos realizados até o momento, podemos apontar, considerando o estudo de Prederigo (2024) que:
[...] na medida em que proporcionamos um espaço horizontal de tocas, livre de qualquer tipo de coação, os autores puderam externalizar seus argumentos, que gerou, em diversos momentos, processos de autorreflexão, mediados pelo explorar das suas memórias, considerando o vivenciado na realização de uma pesquisa-ação. Acreditamos que estes se configuram como formativos, pois acontecem mediante as trocas de experiência na busca de consensos ou acordos provisórios, considerando um objetivo em comum. No nosso caso, o aprofundamento dos conhecimentos e dos usos da pesquisa-ação na área da educação (p. 2007).
Destacamos, nesta linha, a potência da realização dos espaços discursivos, como meio de produção de dados a partir da teoria habermasiana, uma vez que foi perceptível, levando em conta as experimentações vivenciadas pela equipe do grupo de pesquisa, que estes possibilitam aos participantes externalizar as suas opiniões em prol de um objetivo em comum, gerando consensos e acordos.
Cabe rememorar, que o conceito de espaços discursivos discutido neste texto, está em processo de constante construção, considerando os estudos e os empreendimentos do Grufopees. Deste modo, o que se apresentou neste momento, foram algumas considerações tecidas, que nos auxiliam a pensar em um método de produção de dados que considere o outro como propulsor de novos conhecimentos na área da educação, negando assim, a concepção positivista do participante da pesquisa enquanto objeto passivo de análise.
REFERÊNCIAS
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