A Re-volta ecológica

 a transformação digital dos modos de produção e a economia circular

Guilherme de F. Preger[1]

UERJ

gfpreger@yahoo.com.br

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Resumo

Este artigo observa a transformação digital em curso como uma transformação do modo de produção dominante capitalista. Esta transformação foi acelerada (intensificada) pelo evento pandêmico do coronavírus. No entanto, pelo caráter parasitário do sistema capitalista, a pandemia foi representada frequentemente como uma “re-volta da natureza”. O artigo interpreta esta representação enquanto reveladora do modo recursivo da economia, isto é, como retorno, feedback, reentrada ou circularidade do ambiente (natureza) sobre o sistema (sociedade). Este modo recursivo, embora sempre presente, se tornou crítico justamente com a transformação do modo de produção. O artigo descreve essa transformação como decorrente de alterações profundas na reprodutibilidade técnica. Elas acarretam uma indistinção entre produção e reprodução do sistema e a criação de um novo valor, dito de exposição (Walter Benjamin). A transformação do modo de produção é também epistêmica, o que permite reconhecer as circularidades da economia (economia circular). Este corte epistemológico obriga a considerar a passagem da economia à ecologia política, dentro de uma perspectiva holonômica do sistema social que é transversal aos sistemas funcionais. Essa perspectiva permite resolver mais satisfatoriamente os paradoxos gerados pela circularidade dos retornos da natureza, transpondo a distinção acumulação/degradação para a distinção excedente/distribuição. Neste caso, é observado como toda mais-valia (excedente) apropriada pelo sistema capitalista corresponde a uma menos-valia ecológica.

Palavras-chave: Ecologia política. Transformação digital. Modo de produção. Reprodutibilidade técnica. Economia circular.

THE ECOLOGICAL RETURN

The digital transformation of the mode of production and the circular economy

 

Abstract

This article looks at the ongoing digital transformation as a transformation of the dominant capitalist mode of production. This transformation has been accelerated (intensified) by the coronavirus pandemic event. However, due to the parasitic nature of the capitalist system, the pandemic was often presented as an “return of nature”. The article interprets this representation as revealing the recursive mode of the economy, that is, as a feedback, re-entry or circularity of the environment (nature) into the system (society). This recursive mode, although always present, became critical precisely with the transformation of the mode of production. The article describes this transformation as resulting from profound changes in technical reproducibility. They entail an indistinction between production and reproduction of the system and the creation of a new value, called exposition value (Walter Benjamin). The transformation of the mode of production is also epistemic, which makes it possible to recognize the circularities of the economy (circular economy). This epistemological cut forces us to consider the transition from economics to political ecology, within a holonomic perspective of the social system that is transversal to functional systems. This perspective makes it possible to match the paradoxes generated by the circularity of nature's returns, transposing the accumulation/degradation distinction to the surplus/distribution one. In this case, it is observed how all surplus value appropriated by the capitalist system corresponds to an ecological minus-value (loss).

Keywords: Political ecology. Digital transformation. Mode of production. Technical reproducibility. Circular economy.

1  INTRODUÇÃO: A RE-VOLTA DA NATUREZA

“A natureza nos envia uma mensagem”. As palavras de Inger Andersen, diretora do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) em entrevista ao jornal britânico The Guardian, mostra como a atual pandemia do coronavírus trouxe o retorno da proposopeia ao discurso público: “A humanidade colocou muita pressão sobre os ecossistemas e agora estamos pagando as consequências”[1]. É tentador enxergar a pandemia do coronavírus como uma vingança pelo uso e consumo indiscriminados de recursos naturais pela espécie humana. Assim, nas palavras da filósofa Isabelle Stengers, a pandemia poderia ser descrita como uma “intrusão de Gaia” (STENGERS, 2015). Já o antropólogo Bruno Latour nos fala de um “ensaio geral” para as consequências devastadoras do aquecimento global[2]. A proposopeia de enxergar a pandemia como uma reação da natureza às pressões ilimitadas das atividades econômicas humanas é interessante se ela não nos ilude quanto à responsabilidade do sistema econômico capitalista na eclosão deste desastre sanitário. Antes mesmo da eclosão da pandemia já havia vários estudos mostrando que a cadeia alimentar baseada no consumo intensivo de carne animal, com mega-fazendas de gado, e o desmatamento acentuado de florestas eram fatores propícios ao surgimento de patógenos virais (WALLACE, 2020).

A ideia de uma “revolta da natureza” é sugestiva em vários sentidos. Em primeiro lugar, ela nos acorda do “sono sorumbático” daquilo que Samo Tomsic (2022) denominou de “metafísica extrativista”, a ideologia que domina toda a modernidade capitalista, na qual a relação entre sujeito (res cogitans) e objeto (res extensa) proposta por Descartes é unidirecional: o sujeito ativo extrai o objeto passivo da natureza como “recurso disponível”, e este objeto não tem agência sobre o sujeito. Nesta metafísica, desvelada também por Heidegger (2006), a natureza é explorada passivamente pelo sistema econômico, incluindo como natureza os corpos dos trabalhadores. Para Tomsic, o sistema capitalista é dominado por uma “pulsão” pela geração de excedente para fins de acumulação. Este excedente constante foi denominado por Marx como “mais-valia” ou mais-valor.  Por isso, a reação da natureza evidenciada pela pandemia deve ser vista como uma re-volta, um retorno do objeto sobre o sujeito, na lógica cibernética da retroação (feedback negativo) ou realimentação (feedback positivo), isto é, de uma circularidade da atividade humana concreta (práxis).

De fato, voltando ao termo de Latour, a pandemia deve ser entendida como um “ensaio geral” para as consequências do aquecimento global. Este aquecimento significa exatamente a geração de entropia generalizada, isto é, globalizada e sincronizada. Esta entropia é o excedente econômico produzido pelo sistema capitalista.   Entropia significa que o sistema perde a capacidade de se distinguir de seu ambiente. Nesta perspectiva, a infecção pelo vírus patógeno significa justamente esta incapacidade do sistema se autodiferenciar. O vírus adoece os corpos humanos, e sobretudo a pandemia é um evento sistêmico que atinge o sistema em sua totalidade e que indica o apagamento de suas fronteiras com o ambiente. Esta re-volta da natureza, este retorno do ambiente sobre o sistema reprodutivo, é a chave para a análise passar da economia para a ecologia política. Esta ecologia deve pensar concomitantemente a imbricação do sistema econômico em seu ambiente e também a reentrada deste sobre aquele[3]. A perspectiva ecológica nos obriga a sair da metafísica extrativista e buscar por uma concepção circular da reprodução social. Voltaremos a este tema mais adiante.

 Mas, como também desenvolvi em artigo anterior (PREGER, 2021a), a pandemia foi igualmente vivenciada por todos como uma intensificação do uso dos recursos digitais. No período pandêmico houve uma aceleração extraordinária do processo conhecido como “transformação digital”, que já se desenhava antes. O surgimento de uma “economia das plataformas”, que se tornou bastante visível na segunda década do século XXI, sugere uma imensa readequação do sistema capitalista à transformação digital. Muitos estudiosos têm pensado sobre a reorganização do capital pela substituição do fordismo industrial para o pós-fordismo “uberista” e a passagem da política burocrática dos partidos para a tecnocracia das “Bigtechs” (MOZOROV, 2018) ou do “Capitalismo de Plataforma”[4].  Outros estudiosos já escrevem sobre o “pós-capitalismo” (MASON, 2017). Neste caso, as visões não são necessariamente utópicas, pois há mesmo aqueles que antevêem um retrocesso histórico do sistema atual para um tipo de “feudalismo digital” ou tecno-feudalismo, como Yannis Varoufakis[5]. Assim, podemos conceber que o “sucesso” do vertiginoso acoplamento entre o vírus pandêmico e o vírus digital favorece e acelera uma transformação histórica de grandes proporções na qual nem mesmo o dominante sistema capitalista sairá incólume.

Neste artigo, desenvolverei outra meada nesta linha de passagem histórica. Levando a sério a perspectiva marxista de que as mudanças revolucionárias ocorrem a partir de grandes transformações do modo de produção, pretendo esboçar a ideia de que a Grande Transformação[6] digital caminha resolutamente para uma mudança epocal e que estamos testemunhando uma revolução cujo destino, de longa duração, é impossível prever. No entanto, é possível delinear como está se dando essa passagem histórica e com isso não se perder no labirinto da atualidade se enveredando em caminhos sem saída, isto é, em aporias.

 

 

2 a transformação digital como mudança no modo de produção (capitalista)

É conhecida a importância que o conceito de “modo de produção” toma em toda a obra de Karl Marx. O autor alemão concebe as transformações históricas justamente em termos das transformações do modo de produção. Este consiste sinteticamente do somatório das forças produtivas, compostas pelo trabalho humano e pela instrumentação técnica, e das relações de produção, compostas pelas relações econômicas, jurídico-políticas e ideológicas[7].  Não é um somatório linear, pois entre essas duas, forças produtivas e relações de produção, há sempre conflitos. Da forma de organização deste conflito é que se define uma época. Em seus próprios termos mais que conhecidos:

A conclusão geral a que cheguei, e que uma vez adquirida serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se, resumidamente assim: “na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinada, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.  (MARX[8] citado por COLAO, 2006).

Para Marx, o modo de produção da vida material condiciona a consciência de cada época. O modo de produção é uma “categoria” do materialismo histórico (COLAO, 2006) que enquadra tanto a produção da infraestrutura (base material) como a organização (superestrutura) da sociedade histórica. Uma mudança do modo de produção é assim uma transformação histórica, material e ideológica. O importante a reter é que só depois que se transforma é que vem a consciência da mudança, que lhe é sempre posterior. Esta é a versão marxista do famoso voo hegeliano da coruja filosófica que ocorre apenas nos extertores vespertinos de certa época. Por isso, é curioso que, dada a radicalidade da transformação digital para o modo de produção capitalista, não se debata mais amiúde a transformação do próprio sistema capitalista, talvez mesmo sua superação. Se é verdade, como para Mark Fisher (2020), que é mais difícil imaginar o fim do capitalismo do que o fim do mundo[9], é porque o “realismo capitalista” se tornou tão consensual que os próprios marxistas não conseguem mais analisar as transformações do modo de produção sem sair de suas mesmas categorias atuais. Para realizar esta análise é preciso se distanciar dessas categorias. Tal é o mesmo para o conceito de “paradigma científico”, proposto por Thomas Kuhn (1970), que só pode ser pensado a partir de suas anomalias, isto é, daqueles resultados não previstos e inesperados que não conseguem ser por ele assimilados sem transformá-lo. Mas, para isso é necessário reconhecer o paradigma como paradigma, e não como verdade última e fundante. Ou seja, é preciso relativizá-lo, ou perspectivá-lo pela comparação com outro paradigma. Em relação ao conceito de modo de produção, é necessário então reconhecer qual a especificidade do sistema capitalista como modo produtivo que está sendo mais impactada pelas transformações técnicas e isso se torna possível a partir das análises de suas anomalias. Como momento anômalo, a pandemia oferece uma grande oportunidade para esta reflexão, ou sua “epokhé[10].

 

2.1  REVOLUÇÃO COMO TRANSFORMAÇÃO DO MODO DE PRODUÇÃO

Um dos temas mais frequentes da literatura política contemporânea de esquerda é sobre a perda da agência revolucionária e do horizonte utópico de transformação social diante do período de “estagnação secular”[11] que levou à atual hegemonia dita “neoliberal”, o momento descrito ironicamente por Mark Fisher como “realismo capitalista”. Movimentos populistas de esquerda e sobretudo de direita substituem os movimentos revolucionários com mais fibra e agressividade. A busca por um novo agente revolucionário para além da classe trabalhadora tradicional, formalizada e organizada, é um tema onipresente. Há possíveis candidatos, com apostas na “Multidão” (HARDT & NEGRI, 2005), ou no “Precariado” (STANDING, 2013) como substitutos do proletariado marxista revolucionário. A melancolia pela ausência de horizontes utópicos e por derrotas contínuas se torna retrospectivamente uma marca registrada da história da esquerda (TRAVERSO, 2020).

No entanto, é sabido que o conceito de “revolução política” é uma redução do conceito científico de revolução. Lembremos que o conceito de revolução vem da obra de Copérnico, De revolutionibus orbium coelestium (1543). Para Copérnico, a revolução significava a translação completa de um corpo celeste no espaço sideral. A revolução científica, que formou as bases da ciência moderna e foi formalizada sobretudo por Galileu, Bacon, Descartes e Isaac Newton no século XVII, precede o uso do conceito de revolução política. Este conceito é traduzido para o domínio político com a chamada Revolução Gloriosa Inglesa, que se finalizou em 1689. Mais tarde, no século XVIII, ele volta a ser aplicado no domínio científico para caracterizar as pesquisas e descobertas de Lavoisier[12]. Em sua obra clássica sobre as revoluções científicas, Thomas Kuhn (1970) definiu a revolução como uma “mudança de paradigma”. Embora o tema da isomorfia entre os conceitos de revolução política e revolução científica seja tema de acirrada discussão, há diferenças marcantes entre os dois. A mudança de paradigma se faz dentro de um longo processo e sem uma agência específica ou particular. Como mencionado, a mudança de paradigma se dá através da detecção de anomalias, que não conseguem ser assimiladas pelas teorias do paradigma dominante[13]. A mudança paradigmática, no entanto, é um evento raro, pois o mais comum é a adoção de soluções ad hoc para resolver o problema (puzzle) da anomalia, cuja acumulação insatisfatória acaba gerando uma série de inconsistências para o paradigma dominante, tornando-o menos convincente. Mas como famosamente observou Max Planck, um paradigma só é superado quando o último de seus suportadores morre[14]. O comum, portanto, é a coexistência de paradigmas concorrentes e incomensuráveis (PREGER, 2021c). Para a revolução política, por outro lado, o modelo comum é pensá-lo como evento instantâneo (“a tomada da Bastilha”) e conduzido por líderes, partidos ou pela turba popular raivosa.

 Se pensarmos em termos historicamente mais abrangentes, veremos, no entanto, que o conceito de revolução tem períodos mais longos e ainda mais radicais. O historiador Yuval Harari (2016) menciona três grandes revoluções na história da humanidade: a revolução cognitiva, que fez nascer a capacidade simbólica sapiente há cerca de 70 mil anos atrás; a revolução agrícola, que Harari considera a maior catástrofe de nossa história, há cerca de oito mil anos; e a revolução científica acima mencionada. As demais revoluções são, segundo o historiador israelense, consequências ou desdobramentos dessas três.  Por este ângulo, revolução é um marco de bifurcação histórica, irreversível, que indica um ponto de não retorno. Assim descrito, o processo revolucionário, que não pode ser atribuído à agência de algum agente particular, se assemelha às estruturas dissipativas estudadas pelo químico Ilya Prigogine (1987) que se bifurcam em processos irreversíveis. A bifurcação, que acontece num ponto de criticidade, é tomada como “revolucionária” porque é irreversível. Assim, há desdobramento em cascata de um importante evento revolucionário. Ou dito de outro modo, sem revolução da imprensa (Gutenberg), não haveria revolução científica de Copérnico; sem revolução científica não haveria enciclopedismo; sem enciclopedismo não haveria revolução francesa; sem revolução francesa não haveria as revoluções políticas subsequentes[15].

A lista acima, um tanto arbitrária, se inicia com a revolução técnica da imprensa. Antes dela poderíamos mesmo assinalar o surgimento da escrita, há cerca de cinco mil anos, que mencionarei adiante. De fato, muitas descobertas técnicas (e a escrita e imprensa são descobertas técnicas) são consideradas, no jargão atual, “disruptivas”, porque aceleram o tempo histórico. Para o conceito de modo de produção marxista, o desenvolvimento técnico tem uma importância capital. O modo de produção une, como mencionado, as forças produtivas e as relações produtivas. As primeiras são compostas pela força de trabalho humana (que se sofistica pelo avanço do conhecimento) e pela instrumentação técnica. O modo de produção pode ser entendido como um modo técnico, pois a produção antropogênica é baseada no domínio técnico (LEROI-GOURHAN, 1990).  Na dialética entre as forças produtivas e as relações de produção, estas estão sempre atrás daquelas, procurando capturar o incremento produtivo (de valor) gerado pela transformação técnica. Esta relação é, para Marx, transhistórica, mas no capitalismo, a revolução política do proletariado procura resolver o descompasso entre as forças do trabalho e as relações de propriedade pela passagem ao comunismo, através do socialismo. A revolução política preconizada por Marx faz um ajuste entre as forças produtivas geradas pela revolução industrial e as relações de propriedade que a entravam.  E mais uma vez: sem a revolução científica do século XVII não haveria a revolução industrial do século XVIII e não teríamos a produção de um “proletariado” que, mais do que um agente, é o móvel da revolução política. O próprio Engels reconheceu este fato ao denominar a versão marxista de “socialismo científico”.

No capítulo 13 do volume I d’ O Capital, Marx descreve a importância da maquinaria para o novo modo de produção capitalista: “O revolucionamento do modo de produção tem como ponto de partida, na manufactura, a força de trabalho; na grande indústria, o meio de trabalho”[16]. A revolução industrial faz surgir a maquinaria e o proletariado. Mas a revolução industrial é uma consequência da racionalidade técnica obtida pela revolução científica. Esta por sua vez, só se tornou possível porque a invenção da imprensa permite o compartilhamento numa comunidade de pesquisadores de hipóteses, de teorias e de experimentos. A revolução científica do século XVII se opõe à “doutrina antiga” porque é “exotérica”, isto é, pública. Só uma vez publicadas que as teorias podem ser refutadas por outros pesquisadores; e só sendo públicos que experimentos podem ser repetidos e verificados em outros locais. A pesquisa científica moderna depende da publicação de suas descobertas para que o método científico tenha validade universal[17]. Por outro lado, a invenção da imprensa é responsável pela criação da lógica da réplica que a revolução industrial irá ampliar para todos os objetos materiais. Por trás de toda maquinaria industrial está a máquina impressora de Gutenberg.

Atualmente há uma grande revolução em curso, que é a revolução digital, e que muda inteiramente a gramática das forças produtivas (como foi a revolução de Gutenberg). Então não cabe a suposição melancólica de que a vigência da revolução fracassou ou se exauriu. Em verdade, estamos no meio do turbilhão de uma delas. 

 

 

 

2.2 TRANSFORMAÇÃO DIGITAL: A REVOLUÇÃO QUÂNTICA, COMPUTACIONAL E INFORMACIONAL DO MODO DE PRODUÇÃO

  A revolução em curso é a confluência entre três grandes revoluções: a das técnicas de reprodução computacionais, que mudam o grau qualitativo da reprodutibilidade técnica e das técnicas e dos registros de observação; a da revolução da mecânica quântica, que nos abre para uma nova ontologia (e/ou epistemologia); e a revolução informacional que nos oferece uma nova lógica de organização. Todas essas três revoluções estão contempladas no tema da tranformação digital, e não é possível entender esta transformação sem se reportar àquelas revoluções. Tentarei sintetizar o impacto e a importância delas.

No marxismo há uma distinção entre o conceito de produção, que se refere aos meios técnicos das forças produtivas, e o conceito de reprodução, que se refere antes ao conceito das relações de produção. Há uma dominância do primeiro sobre a segundo, destacando a espécie humana como aquela (única) que precisa produzir (tecnicamente) suas condições de existência. No entanto, é admitida a imbricação entre produção e reprodução na ideia, várias vezes mencionada, que, ao produzir o mundo, a humanidade reproduz a si mesma. Como escreveu Althusser: “Como o dizia Marx, até uma criança sabe que uma formação social que não reproduz as condições de produção ao mesmo tempo que produz, não sobreviverá nem por um ano. Portanto a condição última da produção é a reprodução das condições de produção” (ALTHUSSER, 1985).  A novidade marxista é considerar o modo de produção como um enquadramento sociotécnico. O desenvolvimento dos meios de produção determina um modo produtivo e este delimita uma transformação de época, como a do capitalismo. Uma sociedade é conhecida pelo que ela produz e como produz, e esta produção, por sua vez, é enquadrada pelo seu grau de desenvolvimento técnico.  Por outro lado, como cada época só pode responder às questões que consegue resolver, isso significa que a técnica delimita a epistemologia de uma determinada sociedade, ou seja, aquilo que ela sabe está restringida por aquilo que ela pode fazer. O trabalho é visto como “atividade metabólica”, o que significa que a relação de trabalho é a crescente hominização da natureza pela técnica antropológica.

Entre os marxistas, foi Walter Benjamin quem mais atenção deu à questão da sobreposição entre produção e reprodução técnica. Em seu seminal ensaio A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica (2012 [1936]), Benjamin lançou a hipótese de um novo tipo de valor, o valor-exposição, para além da dicotomia entre valor de uso/valor de troca utilizado na obra de Karl Marx. A reprodutibilidade técnica garante que as coisas ganhem valor à medida em que podem ser expostas, sendo esta uma transformação de grande impacto político. Este valor-exposição já estava presente como potência desde a formação das famosas galerias de comércio do século XIX, um dos temas do grande trabalho de Benjamin sobre as Passagens. Esse valor de exposição tornava-se então, no capitalismo, fetichismo da mercadoria, fazendo com que as mercadorias restituam a aura de unicidade perdida com a produção em massa do processo industrial. Mas para Benjamin, a reprodutibilidade técnica, como potência, torna possível ao proletário a profanação da aura da mercadoria pela posse de sua reprodução, isto é, de sua portabilidade. Podemos entender então o argumento do autor alemão, em seu complexo e profundo ensaio, como a tentativa de rastrear as oportunidades revolucionárias da passagem entre o modo de produção para o modo de reprodução. A reprodução não deve ser mais distinguida enquanto pertencente à esfera das relações de produção ou da superestrutura. Com a reprodutibilidade técnica, esta passa a ser a principal “força produtiva” do capitalismo, seu principal vetor de transformação.

O conceito de “valor-exposição” de Benjamin encontrará um par no conceito de “força de audiência” (audience power) do teórico marxista Dallas Smythe, num esquecido debate nos anos 70 do século passado. Num ensaio importante (1977), Smythe escreveu sobre o “ponto cego” (blind spot) da teoria marxista ocidental: a comunicação. Ele propôs o conceito de “força de audiência” para caracterizar o trabalho não remunerado fora do local de trabalho oficial, seja fábrica ou escritório. Para o Smythe, os teóricos ortodoxos marxistas ocidentais estavam cegos para o fato de que, após deixar seu local de trabalho, o trabalhador continua trabalhando para o sistema, vendendo sua “força de audiência”, porém não sendo remunerado por ela. Essa força é tão abstrata quanto a força de trabalho. Ela permite a construção de uma “indústria da consciência” que vende a audiência social para outras empresas. Smythe chamou esse ponto cego de “comunicação”, já observando o avanço e a colonização neoliberal do tempo social da reprodução. O movimento operaísta italiano, também chamado de autonomista, nesta mesma época passou a teorizar sobre a “fábrica social”, a extensão do modo de produção capitalista para além da fronteira divisória entre espaço de trabalho e espaço doméstico[18]. O que importa aqui é perceber a correlação entre o “valor-exposição” e a “força de audiência”. Esta é a abstração do trabalho metabólico que gera aquele valor. Não é precisamente a distinção audiência/exposição que está em questão nas plataformas digitais contemporâneas?[19]

Para Walter Benjamin, é o desenvolvimento da fotografía que marca o salto técnico da reprodutibilidade. Se a máquina industrial é eficaz em gerar mais-valor em função da economia de trabalho concreto, a máquina fotográfica gera a nova modalidade do valor-exposição. Para Benjamin, a fotografia guarda potenciais utópicos para a emancipação do proletariado, pois o valor-exposição também vem acompanhado do valor de portabilidade que permite um maior controle social do aparato técnico.  Esse controle, segundo o grande filósofo alemão, se dá através de um “jogo” entre humanidade e técnica, que substitui a política de guerra e morte do fascismo[20].

Outro filósofo importante, o tcheco-brasileiro Vilém Flusser, também elegeu o aparelho fotográfico como invenção que indica uma transformação técnica, em ensaio igualmente crucial (2002). A caixa-preta é um aparelho que realiza de forma sintética (ao apertar um botão) cálculos extremamente complexos que estão fora de alcance da cognição média humana. Ele se propõe “abrir a caixa” fotográfica para desvendar sua opacidade técnica como novo modelo de intervenção crítica. Flusser, em outros ensaios (2007, 2008 e 2010), desenvolve uma versão macrohistórica na qual a fotografía, ou “imagem técnica”, representa um salto epocal. Para o filósofo, toda a história da humanidade sapiens pode ser descrita por sua relação com os signos. Inicialmente, a humanidade se comunicou através de “imagens tradicionais” que reduziam as circuntâncias em três dimensões (3D) para superfícies de duas dimensões (2D). Em seguida, as imagens pictóricas foram recodificadas pelos símbolos da escrita; esta linearizou (1D) a comunicação, colocando as imagens bidimensionais em linhas sequenciais. Flusser diz que toda a consciencia histórica é determinada por esta transformação de linearidade. Nesse sentido, a história é “progressiva”, pois o sentido só se dá quando sua escrita linear é pontuada. O sentido da história é sempre postergado mais adiante à espera de um “ponto final”. Finalmente, através da “imagem técnica”, possibilitada a partir da fotografia, a linearidade da história é comprimida num espaço adimensional ou zero-dimensional (0D) e sua lógica deixa de ser linear para se tornar pontual. Flusser vê nesta gramática pontual uma convergência em fenômenos como a máquina fotográfica[21]; a máquina de escrever, pelo qual não se escreve caligraficamente, mas no bater descontínuo das teclas; no computador e na física quântica. Esse universo dos “quanta”, das “pedrinhas” de contar (contas), é um mundo de cálculos, sendo esta granularidade precisamente a origem da palavra “cálculo”, e o ato de contar a atividade enunciativa por excelencia nesta dimensão zero-dimensional.  Há uma passagem, portanto, da linearidade da escrita para a descontinuidade dos cálculos. Neste novo cenário, a imagem técnica não é mais uma redução de dimensões, mas, ao contrário, a passagem (ou a síntese) dos pontos (0D) a superfícies (2D), ou a volumes (3D). Como tal, esta imagem sintética não mais “representa” uma realidade além, mas é ela própria uma realidade em si, a forma por excelência da cognição contemporânea. Por trás da imagem técnica não há mais alguma realidade discernível, mas apenas pontos ou grãos isolados num espaço adimensional, sem tempo nem espaço. Os pontos adimensionais são agora o “concreto”, enquanto toda imagem bidimensional seja abstrata; no entanto, não mais uma abstração redutora, porém ampliada. Eis daí um paradoxo: enquanto a concretude dos pontos adimensionais pode ser apenas intuída, a abstração das imagens sintética pode ser “realizada” (nas telas), dando sentido a um termo de Marx, a “abstração real” do capital.

Esta perspectiva crítica deu aos textos de Flusser dos anos 80 do século XX uma capacidade presciente espantosa. Antes do surgimento cotidiano da internet, da rede global de computadores conectados (www), o filósofo tcheco-brasileiro já estava imaginando uma sociedade em que toda comunicação se daria entre pessoas teclando em seus computadores e compartilhando imagens. Enquanto a escrita a mão traduzia um trabalho ainda tido como manual, agora são os dedos tateando teclas que tomam expressão “digital”. O filósofo vê nisso uma transformação existencial de grandes proporções, ao mesmo tempo barbára, mas ainda assim utópica, pois o modo “histórico” de experiência, linear e escritural, resultou no Holocausto e em Hiroshima. No entanto, há algo eminentemente “poético” na gramática digital dos computadores, pois sendo as imagens técnicas não mais reduções de situações anteriores (isto é, “representativas”), porém composições sintéticas de pontos, elas não representam “nada”, elas são configurações existenciais e cognoscíveis do nada, isto é, do vazio. É esta a “fenomenologia quântica” que Flusser visualiza, ao sintetizar a revolução da informática com a mecânica quântica.

E assim também podemos entender que o desenvolvimento do computador é paralelo e tão importante quanto a invenção da fotografía. A começar com o famoso “tear de Jacquard”, criado pelo francês Joseph Marie Jacquard em 1801. A principio uma máquina têxtil, o tear de Jacquard foi o protótipo de um computador moderno. Ele convertia um desenho bidimensional (2D) em pontos de um cartão perfurado (0D) e através, de engrenagens de tração (3D), as linhas têxteis do tear, horizontais e verticais (1D), eram cruzadamente alternadas abaixo ou acima uma da outra e o desenho codificado em pontos perfurados era bordado novamente num tecido (2D)[22]. O tear de Jacquard era uma máquina responsável por uma complexa operação através de diversas dimensões que reproduzia uma imagem desenhada num bordado. Esta lógica de procedimentos foi trazida para os computadores quando Charles Babbage utilizou cartões perfurados em sua máquina analítica construída em 1837, e também por Herman Hollerith[23] em 1889, no primeiro programa computacional para reunir dados censitários. Até os anos 80 do século XX, cartões perfurados eram utilizados como “entradas” em computadores[24]. O tear de Jacquard foi portanto uma máquina de reprodução de padrões.

O que é preciso reter dessa história é que a máquina do computador aperfeiçoa ao extremo a reprodutibilidade técnica prevista pela máquina fotográfica. E não é gratuito que atualmente nossos celulares, verdadeiros computadores de bolso, sejam também máquinas fotográficas. Quando Alan Turing desenvolveu o conceito da “máquina de Turing” (1936), modelo abstrato e genérico dos atuais computadores, ele o pensou como uma máquina de simulação de qualquer procedimento que pode ser codificado discretamente através de um algoritmo[25]. Uma máquina de Turing é geral: ela simula qualquer transformação que possa ser descrita por um procedimento de ações discretas, inclusive a transformação da identidade. Turing chamava essas máquinas de automáticas (a-machines), porque dado um estado inicial a máquina executa o procedimento automaticamente até alcançar um estado final[26].

Luciano Floridi chamou esta revolução informacional de “quarta revolução”, elegendo Turing como seu principal mentor. Esta revolução vem depois da primeira de Copérnico, desbancando o geocentrismo pelo heliocentrismo; a segunda vem de Darwin, considerando o ser humano um animal como outro qualquer resultante da evolução natural; a terceira é a de Freud, pela descoberta do inconsciente. Essa sequência revolucionária, que Floridi toma de empréstimo a Freud, narra um deslocamento ontológico. A revolução da informação modifica a ontologia considerando todos os seres viventes e não viventes em termos informacionais, como “inforgs” (FLORIDI, 2010, p.9). Enquanto a revolução industrial, na qual se constituiu o paradigma marxista, considerava os modos de produção como meios técnicos de dar formas a materiais[27], na revolução da informação os “objetos” são informacionais, e com isso relacionais, e a questão já não é mais produzir (informar matérias) mas reproduzir (correlacionar padrões).

Para os propósitos desse artigo, é preciso concluir o seguinte: o desenvolvimento dos meios de reprodutibilidade técnica, que tem no desenvolvimento da computação sua ponta de lança, é uma transformação (digital) do modo de produção. Nesta, a reprodução envolve e abarca a produção técnica. Mas o que isso significa? Menciono duas respostas que considero as mais relevantes. A primeira é a de um “corte epistemológico” (apud Althusser): há uma mudança na visão da técnica entendida como gramática da relação sociedade/natureza. Não elaborarei aqui este tópico, pois seria necessário um artigo inteiro para abordá-lo[28]. Mas no caso da transformação digital, isso significa que essa relação é recodificada em termos informacionais. A mediação dos códigos e a capacidade de reproduzi-los passa a ser crítica para a geração de valor. E é justamente enquanto código que a produção pode ser agora reproduzida, com imensos ganhos de escala, pois os códigos podem ser replicados infinitamente a um custo marginal (RIFKIN, 2016).  A segunda resposta, que desenvolverei na seção seguinte, é a da crescente importância dos efeitos de retorno (feedback) da produção técnica que não podem mais ser negligenciados. Esses efeitos retroativos só conseguem ser contabilizados se abandonamos o cálculo linear do tipo sujeito-objeto e nos dedicamos a observar os sistemas econômico-sociais com ferramentas de cálculo recursivas. Em outros termos, só podemos contabilizar os efeitos de retorno se observamos a relação sociedade/natureza na perspectiva da circularidade. Assim, entenderemos que aquilo que é enxergado em termos de “recursos” são na verdade produtos de atividades recursivas, de ida e (re-)volta, de circuitos que se fecham sobre si mesmos. 

 

2.3 A ECONOMIA CIRCULAR ECOSSOCIALISTA E O CONTROLE SOCIOTÉCNICO DA ENTROPIA GLOBAL (MENOS-VALIA).

Se a pandemia do coronavírus é um “ensaio geral” das consequências do aquecimento global, então ela deve ser entendida como um sinal do esgarçamento da fronteira entre sociedade/natureza. E, de fato, o vírus, uma cadeia de aminoácidos, isto é, uma cadeia mineral, ao se “acoplar” reprodutivamente às relações sociais antropológicas, sinaliza precisamente este esgarçamento, na indeterminação entre o vivo e o não-vivo. Em ensaio anterior (PREGER, 2021b), menciono que o vírus é o arquétipo das relações parasitárias. Foi Michel Serres, em estudo clássico (2021[1978]), quem observou que o parasita desvela um “parasitismo geral” da existência humana. Para o filósofo francês, a produção humana é a forma antropotécnica de parasitar os ecossistemas naturais, “explorando” a natureza. O parasita marca uma relação assimétrica e unilateral com o hospedeiro. Porém, o parasitismo enquanto sistema geral “retorna” circularmente num circuito mais longo, como na cadeia alimentar onde o predador mais acima será predado em sua morte pelos vermes que estão mais abaixo da cadeia. Surge um problema, no entanto, se a cadeia de parasitismos se lineariza e há então um parasita que não é parasitado por nenhum outro. Neste caso, há um parasita final que apenas “retira sem nada dar”[29]; em outras palavras, um parasita que “acumula”.

Como já mencionado, o nome deste parasita é “O Capital”, que através de sua “metafísica extrativista” é voltado a um processo de acumulação infinita. A infecção global do coronavírus desvela o caráter parasitário geral d’O Capital que, em sua busca incessante pelo excedente (mais-valia), parasita os sistemas bióticos e metabióticos (sociais) autorreprodutivos. Em outros termos, O Capital não se reproduz sozinho, ele é “alopoiético” e precisa se acoplar a sistemas autopoiéticos para poder se replicar, tal qual um vírus[30]. Ao não considerar os retornos da natureza, O Capital se torna um sistema de predação, predatório de suas próprias condições. Mas, como observou Serres, o paradoxo de todo parasita é que ele deve explorar o hospedeiro, mas não pode matá-lo, pois isso também significa sua própria destruição.

A mais-valia marxista descreve precisamente o termo da acumulação, aquilo que é retirado sem retorno. Na visão clássica e neoclássica, o capitalismo é um sistema de mercado de soma zero. O vendedor perde a mercadoria e fica com o dinheiro. O comprador perde o dinheiro e fica com a mercadoria. Isso vale também para o trabalhador. Ele “vende” sua força de trabalho, perde horas de sua vida, mas fica com o salário. O empresário gasta o salário, mas fica com o valor produzido pelo trabalhador. Marx desvendou que este jogo na verdade não é de soma zero. A mais-valia é a soma não-zero de um jogo assimétrico. Essa mais-valia é sempre positiva, corresponde à extração de um excedente produtivo que sempre cresce. No entanto, conforme um dos maiores teóricos da Teoria dos Jogos, Anatol Rapaport, é possível mediante um expediente matemático transformar um jogo de soma não-zero num de soma zero:

Qualquer jogo de N pessoas, seja ou não de soma zero, sempre pode ser representado como jogo de soma zero mediante a adição de um “enésimo mais 1” jogador, cujos ganhos (ou perdas) sejam iguais às somas perdas (ou ganhos) de todos os demais jogadores. Já que o jogador N+1 não faz lances, sua inclusão não faz diferença para a estrutura estratégica original do jogo; mas é vantajoso incluí-lo, porque sua presença nos permite tratar todos os jogos como jogos de soma zero. Os jogos de soma zero são mais fáceis de tratar, de um ponto de vista unificado, do que jogos de soma diferente de zero (RAPAPORT, 1980, p. 151)

Quem seria este jogador N+1 que participa do jogo do sistema capitalista sem, no entanto, realizar “lances”? Voltando ao tema inicial da prosopopeia, podemos chamar este jogador N+1 de “Natureza”. É um jogador paradoxal, pois participa do jogo sem jogar, isto é, sem agir, ou operar. E qual a sua remuneração por participar do jogo? Marx não tinha um termo para esse valor negativo, compensatório da mais-valia, isto é, um termo que designe a valoração daquilo que é extraído. No entanto, Marx reconhece desde sempre que o capitalismo tem contradições insuperáveis que não podem ser superadas pelo próprio sistema.  Ora, se o excedente extraído é a mais-valia, a Natureza fica com a menos-valia. É com a menos-valia da Natureza que o jogo d’O Capital se torna um jogo de soma zero, e sua ação parasitária é balanceada ao zerar a soma entre mais e menos valor.

Porém, a inatividade paradoxal desse jogador extraordinário, a Natureza, precisa ser melhor qualificada.  Em primeiro lugar, a Natureza deve incluir os recursos naturais dos ecossistemas, bem como os corpos e as mentes dos trabalhadores que são explorados. Por isso, neste caso, podemos mapear a distinção sociedade/natureza de forma homóloga à distinção sistema/ambiente da Teoria Social Autopoiética (TSA) de Niklas Luhmann. Esta distinção supõe um “fechamento operacional” na qual apenas o sistema opera para se distinguir (autodiferenciar) e o ambiente não opera. Nesta perspectiva, compreendemos como a Natureza (ou o ambiente) joga sem apresentar lances (agências). Em segundo lugar, a TSA prevê que tanto os sistemas bióticos quanto os sistemas psíquicos não pertencem ao sistema social, mas estão localizados em seu ambiente exterior. No interior do sistema social só há um único elemento, denominado de comunicação. Em terceiro lugar, a TSA apresenta o conceito de reentrada, retirado da obra de George Spencer Brown (cf. nota 3). Neste conceito, a distinção reentra nela mesma, o que se apresenta como a marcação do lado não marcado no lado marcado. Esta marcação se dá como paradoxo ou como contradição (ou aporia). No primeiro caso, a menos-valia se apresenta como distribuição (excedente x distribuição); no segundo caso, ela se apresenta como degradação (acumulação x degradação)[31].

A inclusão da Natureza como “parceiro” neste jogo da reprodução social corresponde precisamente à passagem da economia para ecologia política. Esta inclusão se dá como re-torno (re-volta) da Natureza. A ecologia política nos obriga a uma perspectiva circular. E reconhecer esse retorno como menos-valia significa observar o sistema capitalista como parasitário, que drena “recursos” dos sistemas sociais autopoiéticos (autorreprodutivos) de seu ambiente sob a forma de acumulação, e devolvendo “entropia” para esses sistemas sob a forma de menos-valia[32]. Esta menos-valia aparece sob várias formas: degradação ambiental, poluição, exaustão de recursos, aquecimento global, fadiga física, stress (tensão) mental, geração massiva de lixo (dejetos) e poluição, crise generalizada de depressão psíquica, violência urbana, guerras, movimentos massivos de migração, e todas as formas de ressentimento que são exploradas pelos movimentos de extrema-direita política. Esta ecologia política se assenta sob a noção da “economia circular” que permite fazer (re)ingressar todos os efeitos da menos-valia no quadro socioeconômico. Mas, para além do enquadre de uma economia baseada na reciclagem e no reuso dos elementos, como a economia circular é conhecida, é preciso dar um sobrepasso para a concepção de ecologia política que encare os recursos naturais e humanos dentro de uma visão “recursiva”. É esta perspectiva que nos traz a atual transformação digital dos paradigmas.

Os sistemas digitais operam por recursividade. Segundo o téorico das técnicas Yuk Hui, “Recursividade não é mera repetição mecânica; é caracterizada pelo movimento repetitivo de retornar a si próprio para se determinar, enquanto todo movimento é aberto à contingência, que por sua vez determina sua singularidade”[33]. A recursão de uma função significa o retorno dessa função ao seu próprio domínio para a obtenção de “pontos fixos” ou “autovalores”[34]. O instrumental das funções recursivas permite computar sistemas que operam sobre si mesmos. São funções circulares que frequentemente trabalham com a autorreferência, o que acaba por gerar paradoxos. O capitalismo lida com esses paradoxos pela lógica da acumulação de um lado e a externalização da menos-valia por outro. Ou seja, pela lógica da distinção acumulação/degradação. Isso significa, por um lado, gerar a homogeneidade necessária à acumulação e rejeitar (descartar) aquilo que é heterogêneo. Mas o que é heterogêneo acaba por retornar como uma desordem generalizada do ambiente (degradação) que ameaça a própria sobrevivência do sistema[35]. Ao contrário, no paradigma da economia circular há forma de trabalhar recursivamente o paradoxo, transpondo essa distinção para excedente/distribuição. Trata-se assim de controlar em termos sociotécnicos a geração de excedente do sistema econômico por sua distribuição.  O heterogêneo encontra assim seu justo lugar no sistema social (seu valor de uso) em vez de ser descartado e gerar degradação. A esse controle sociotécnico do excedente denominamos de perspectiva ecossocialista.

 

3 CONCLUSÃO: DESECONOMIZANDO O CRESCIMENTO PELA ECOLOGIA POLÍTICA

Se a menos-valia não é simplesmente econômica, mas se refere à degradação do planeta nos vários níveis físicos, psíquicos e sociais, então a passagem da economia política para a ecologia política obriga a uma visão da totalidade social que gostaria de denominar “holonômica”. Holonomia corresponde à perspectiva holográfica em que cada ponto de vista pontual observa a totalidade social de um ângulo diferente. Esta visão é a mais adequada a uma “fenomenologia quântica” mencionada anteriormente, que vê o mundo em termos de pontos (quanta) num espaço adimensional. A holonomia permite assim perspectivas transversais e diagramáticas atravessando os diversos sistemas funcionais autônomos (economia, política, religião, saúde, arte, ciência, educação, esportes, etc.), conforme a leitura luhmanniana da TSA (STAMFORD DA SILVA, 2016).

A partir dessa perspectiva holonômica, é possível “deseconomizar” o problema das mudanças climáticas. Steffen Roth (2017), estudioso da obra de Niklas Luhmann, observou que o dilema entre crescimento/decrescimento está totalmente enviezado pela sua visão economicista. Os teóricos do decrescimento defendem que apenas uma redução global do crescimento econômico será capaz de deter as consequências desastrosas do aquecimento global. No entanto, esta visão vai contra a situação de muitos países pobres que necessitam aumentar a renda per capita de seus cidadãos para poder alcançar níveis melhores de qualidade de vida. Cria-se uma aporia que impede ou dificulta acordos globais para mitigar os efeitos da mudança climática. Roth defende que se o problema é observado apenas pelo prisma econômico, o dilema é moralizado, e o crescimento se torna “negativo” e o decrescimento “positivo”. Porém, se observarmos pelo prisma dos outros sistemas funcionais, a distinção crescimento/decrescimento perde necessariamente seu viés moralista. Aumentar o nível educacional (sistema educacional) ou o índice de atendimento sanitário (sistema de saúde), por exemplo, são causas desejáveis. Reduzir a desigualdade (sistema político) é um fim positivo, por outro lado. A proposta de Roth, então, é uma visão multifuncional que retire o privilégio ou a dominância da perspectiva econômica. Denomino esta perspectiva de “desenvolvimentismo qualitativo”, ou seja, uma visão de desenvolvimento que persegue índices de qualidade de vida, para os quais o crescimento econômico deixa de ser a causa para ser uma eventual consequência[36].

Embora haja ceticismo na compatibilidade entre a perspectiva da TSA e a do marxismo, porque este observa a dominância (sobredeterminação) da economia sobre os demais sistemas funcionais, enquanto a TSA observa a autonomia dos diversos sistemas, as duas teorias podem ser compatibilizadas pela perspectiva holonômica mencionada. A sociedade capitalista seria então observada como aquela em que o sistema econômico está acoplado estruturalmente a todos os demais sistemas funcionais. A tarefa ecossocialista seria lutar pelo desacoplamento entre os sistemas funcionais variados e o sistema econômico, ou seja, as lutas ecossocialistas seriam pela autonomia dos sistemas funcionais. Esta seria uma condição para aumentar a complexidade do sistema, de tal forma que o aumento de produtividade técnica obtida pela transformação digital não seja orientado à acumulação do excedente econômico. O aumento de complexidade permitiria a sociedade transpor a distinção acumulação/degradação para a distinção excedente/distribuição.  Na primeira distinção, o sistema sabota suas condições de existência rumo à destruição, pois elimina sua complexidade.  Na segunda distinção, o paradoxo do excedente produtivo pode ser resolvido (“deparadoxado”) pela complexidade obtida através das tendências ecossocialistas. Em outros termos, parafraseando Rosa Luxemburgo, Ecossocialismo ou extinção!

 

REFERÊNCIAS

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[1] Guilherme Preger é doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UERJ (2020) e Mestre em Eletromagnetismo Aplicado pela PUCRJ (1993). Atualmente trabalha em FURNAS CENTRAIS ELÉTRICAS. É autor do livro FÁBULAS DA CIÊNCIA: DISCURSO CIENTÍFICO E FABULAÇÃO ESPECULATIVA (editora Gramma, 2021).



[1] Conferir: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/600080-a-pandemia-da-covid-19-e-uma-vinganca-da-natureza.

[2] Conf. https://www.antropologicas-epidemicas.com.br/post/isto-%C3%A9-um-ensaio-geral.

[3] O conceito de reentrada, proposto pelo engenheiro George Spencer Brown e aplicado por Niklas Luhmann em sua teoria social é uma extensão ou ampliação do conceito cibernético de feedback. Dado que o sistema deve se distinguir do ambiente, entre um estado marcado pela observação e outro não marcado, a reentrada se dá como o retorno da distinção sobre si mesma, ou do não marcado no marcado. Tal reentrada gera sempre um paradoxo (o não marcado no marcado).

[4] Sobre o conceito de “capitalismo de plataforma” do teórico Nick Srnicek, conferir https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rbi/article/view/8654960.

[5] No sentido em que as plataformas digitais são territórios virtuais “regidos” por algoritmos opacos e onde os capitalistas não ganham mais dinheiro produzindo e vendendo, mas extraindo renda a partir da soberania fechada das plataformas “muradas”. Conferir VAROUFAKIS, Techno-Feudalism Is Taking Over (Project Syndicate jun/2021, acesso em https://www.project-syndicate.org/commentary/techno-feudalism-replacing-market-capitalism-by-yanis-varoufakis-2021-06?utm_term=&utm_campaign=&utm_source=adwords&utm_medium=ppc&hsa_acc=1220154768&hsa_cam=12374283753&hsa_grp=117511853986&hsa_ad=499567080225&hsa_src=g&hsa_tgt=dsa-19959388920&hsa_kw=&hsa_mt=&hsa_net=adwords&hsa_ver=3.

[6] O termo é de Karl Polanyi (2012).

[7] MANGOLIN DE BARROS, César. O conceito de Modo de Produção. Manuscrito s/d. Acesso em https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/934137/mod_resource/content/1/elementos%20b%C3%A1sicos0_MODO_DE_PRODU%C3%87%C3%83O.pdf.

[8] O trecho de Marx se encontra em Contribuição para a crítica da economia política, de 1859.

[9] Na verdade, esta frase é de Fredric Jameson e foi depois utilizada por Slavoj Zizek, antes de ser apropriada por Mark Fisher.

[10] Epokhé, ou redução fenomenológica, é um conceito da fenomenologia husserliana de suspender o juízo para se observar um fenômeno sem se prender às categorias dominantes que estruturam sua própria observação.

[11] A tendência de redução da taxa de lucro, a baixa produtividade e a longa estagnação do capitalismo tardio no período neoliberal é o tema por excelência do estudioso marxista Michael Roberts em livros como The Long Depression (2015) e The Great Recession (2016). Conferir seu blog: https://thenextrecession.wordpress.com/.  Conferir seu texto mais recente em https://aterraeredonda.com.br/a-taxa-de-lucro-mundial/?doing_wp_cron=1643235705.8544108867645263671875.

[12] Sobre a oscilação do conceito de revolução entre a ciência e a política, conferir o verbete da enciclopédia da Universidade de Stanford: https://plato.stanford.edu/entries/scientific-revolutions/.

[13] Mais do que tudo, o surgimento ou descoberta da anomalia permite reconhecer o paradigma como paradigma e, portanto, relativizá-lo. Nenhum paradigma é assumido enquanto tal nas operações da “ciência normal” cuja função é precisamente “normalizar” o paradigma deixando-o transparente.

[14] Max Planck: “a new scientific truth does not triumph by convincing its opponents and making them see the light, but rather because its opponents eventually die, and a new generation grows up that is familiar with it." Citado por KUHN, 1970, p. 150.

[15] Para a defesa deste ponto conferir meu artigo no sítio A Terra é Redonda: https://aterraeredonda.com.br/nota-sobre-o-discurso-de-revolucao-politica/#_ednref6.

[16] Conferir https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap13/01.htm.

[17] Lyotard (2004) fala da ciência como um jogo de linguagem agonístico em que cada enunciado deve ser um lance de um jogo “prescritivo” que supõe seu contraditório e sua refutação.  O enunciado, uma hipótese ou uma teoria, deve sustentar sua posição em relação a enunciados contraditórios ou de refutação para ser validado. Daí que os “jogadores” (os cientistas) devem ser “pares iguais”. Assim, na ciência moderna, todo enunciado ser científico deve ser “publicado” para que participe desse jogo.

[18] Sobretudo o trabalho do filósofo italiano Mario Tronti que influenciou o movimento autonomista de Toni Negri, Maurizio Lazzarato, entre outros. Ver Augusto da Fonseca, Thiago Silva. ‘Lenin na Inglaterra’. Mario Tronti e o Operaísmo Italiano. Cadernos de Etica e Filosofia Política, n. 29, USP, 2016, p.144. Acesso em https://www.revistas.usp.br/cefp/article/download/124490/120985/235286.

[19] O teórico Jonathan Beller segue esta linha de pesquisa, substituindo o conceito de audiência pelo de atenção. Conferir seu texto Paying Attention, acesso em https://www.cabinetmagazine.org/issues/24/beller.php.

[20] Esta relação com o “jogo” está presente na versão do ensaio referenciada neste artigo. No entanto, em versões mais conhecidas do ensaio de Benjamin, como notadamente aquela traduzida por Sérgio Paulo Rouanet, a questão do jogo foi subtraída do texto, provavelmente por Theodor Adorno. Para Benjamin nesta versão do ensaio, há uma “primeira técnica”, cuja lógica é a da dominação da natureza e dos humanos e uma “segunda técnica”, de controle das relações entre humanos e natureza, sendo esta última mediada pelo jogo.

[21] No caso, mesmo a máquina fotográfica analógica é um efeito dessa pontualidade, pois mesmo que a fotografia se estenda sobre uma superfície, ela é baseada nas granularidades químicas da tinta. Além disso, a fotografia é efeito de um ato “instantâneo” que é o acionamento do botão fotográfico, o clique da máquina.

[22] Conferir https://www.stylourbano.com.br/o-tear-jacquard-nao-so-revolucionou-a-industria-textil-mas-foi-o-primeiro-computador-do-mundo/.

[23] Até os dias de hoje cartões perfurados são denominados de holerites.

[24] E é preciso somar a esta história a participação de Ada Lovelace, filha do poeta Lord Byron, que escreveu o primeiro algoritmo para um computador (1842-43) e o matemático George Boole que em sua álgebra ou lógica booleana (1857) permitiu que operações lógicas clássicas pudessem ser traduzidas para a linguagem de circuitos elétricos. Antes de todos, foi Leibniz no final do século XVII, com sua “ars combinatoria” que instituiu a lógica digital binária 0/1, utilizada hoje por todos os computadores. 

[25] Isto é, o algoritmo, ou o programa (conjunto de algoritmos), é um texto prescritivo, com um conjunto de instruções definidas por sequências de comandos condicionais do tipo se isto então aquilo, que pode ser traduzido em linguagem binária por se 1/0 então 1/0. Este programa “reproduz” uma matriz quadrada em que a condição se é dada na coluna vertical e a consequência então está na linha horizontal.

[26] Uma máquina de Turing é formada por uma fita infinita de símbolos (geralmente 1/0, onde 0 denota o espaço em branco), um alfabeto, um cabeçote móvel leitor/escritor, um conjunto total, finito e discreto de estados, um subconjunto de estados finais e uma função de transição. Todos esses elementos são internos à máquina. No entanto, é preciso indicar uma posição na fita e o estado inicial correspondente e esta definição deve ser definida externamente. A partir daí a máquina funciona “automaticamente” até que um estado final seja alcançado. Para os propósitos deste artigo, para entender uma máquina de Turing é suficiente consultar o verbete da wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1quina_de_Turing.

[27] A ontologia forma/matéria que vem de Aristóteles é chamada de hilemorfismo. É o paradigma de que a matéria é amorfa e a ela deve ser dada uma forma (que é imaterial) para que tenha existência. 

[28] O tema da técnica como gramática das relações entre sociedade humana e natureza é objeto de importantes clássicos teóricos. Conferir AUROUX, 1992; DERRIDA, 1973; SIMONDON, 2020; LEROI-GOURHAN, 1990.

[29] Para Michel Serres, o parasita é aquele que “toma sem dar”, ou aquele que retira sem retribuir.

[30] Estou usando os termos “autopoiético” e “alopoiético” retirados da obra de Humberto Maturana e Francisco Varela (2002) e de sua extensão aos sistemas sociais por Niklas Luhmann (STAMFORD DA SILVA, 2016).

[31] Distribuição e degradação são dois “fantasmas” que assombram o capitalismo. Marx lidou com os dois sob a forma do socialismo (que representa as tendências de distribuição no sistema) e a degradação como a urgência de reinvestir do empresário burguês. A má consciência capitalista é a percepção que não pode simplesmente deixar o capital “parado”. Toda acumulação está assombrada por uma desvalorização radical que obriga o empresário a reinvestir seu capital. Essa urgência de reinvestimento é uma forma de reentrada no sistema.

[32] Em trabalho anterior publicado nesta revista (PREGER, 2020) observei o circuito entrópico da economía global: “A economia ecológica introduz o tema do balanço entrópico. O problema maior não é a escassez energética, mas a entropia que é dada pela segunda lei da termodinâmica, que diz que a entropia sempre aumenta. O balanço entrópico não se conserva, sendo sempre positivo. Assim, o ciclo produz-consome-descarta é triplamente entrópico: há entropia na produção (sobretudo na extração), no consumo (que basicamente é uma operação entrópica) e no descarte (em que o lixo se torna um dejeto entrópico)”.

[33] Cf. HUI, Yuk. Um devir psicodélico. Trecho extraído de seu livro Recursivity and Contingency (2021). O trecho em português foi retirado desta referência: https://www.academia.edu/43052274/Cap%C3%ADtulo_de_Yuk_Hui_Recursividade_e_Conting%C3%AAncia_Introdu%C3%A7%C3%A3o_Um_Devir_Psicod%C3%A9lico_.

[34] Uma função recursiva é do tipo F(x)=x. Se F(xo)=xo, então xo é o ponto fixo da função.

[35] Esta relação conflitiva é o que o antropólogo cibernético Gregory Bateson denominou de “duplo vínculo” (double bind). No capitalismo, toda a contradição leva a um duplo vínculo, isto é, a uma aporia. O aumento de produtividade técnica deveria levar a uma redução do trabalho, isto é, da entropia, mas conduz a seu oposto, ao aumento de entropia. Isso se dá por uma vinculação estrutural entre capital e exploração.

[36] Esta pauta qualitativa é a base da Agenda 2030, acordo global assinado na COP 2015, em Paris, onde o Brasil deu contribuições relevantes. Esta agenda é composta de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) cujas metas de atendimento são medidas por diversos indicadores. No Brasil e na América Latina, o IBGE ficou responsável pela determinação desses indicadores, tarefa concluída em 2018. Embora a Agenda considere uma meta de crescimento do PIB global em 3%, a maioria dos índices têm caráter eminentemente qualitativo. Por exemplo, se a meta é aumentar a rede de saneamento básico, esta meta obviamente sugere um aumento do PIB para ser atendida pelos seus investimentos. Porém, este índice de crescimento não é a finalidade da meta, mas um efeito lateral de seu alcance. Conferir https://odsbrasil.gov.br/.